Constituição, realidade e crise

Autores

  • Wilson Antônio Steinmetz Universidade de Caxias do Sul (UCS) Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC)

DOI:

https://doi.org/10.18593/ejjl.v17i3.12750

Resumo

“O direito constitucional tem de se garantir por si mesmo”, escreveu Konrad Hesse. A observância e a aplicação das normas constitucionais não estão garantidas por outras normas acima da Constituição ou por poderes supraestatais. “A Constituição não depende senão de sua própria força e de suas próprias garantias.” (HESSE). No caso da Constituição brasileira, são garantias imanentes o controle de constitucionalidade das leis, os limites materiais ao poder de emendar a Constituição, o dever de aplicação imediata de direitos e garantias fundamentais e a previsão de um órgão judicial guardião máximo da Constituição, com poderes de decidir sobre matérias constitucionais com efeitos imediatos, gerais e vinculantes. Contudo, o próprio Hesse lembra que nem o mais “engenhoso sistema constitucional” consegue garantir a sua própria efetividade quando certos pressupostos não estão presentes, especialmente quando a Constituição não consegue ser uma ordem configuradora da realidade histórica viva. Essa capacidade configuradora “[...] depende em grande medida de fatores externos, sobre os quais a Constituição só pode influir limitadamente.” Hesse menciona entre os fatores externos as circunstâncias da realidade histórica e o nível de desenvolvimento espiritual, social, político ou econômico dos tempos. Outro pressuposto essencial, ainda segundo Hesse, é a conduta dos atores que participam na “vida constitucional”. Decisiva é a disposição de governantes e governados aceitarem como moralmente correto, legítimo e imperativo o conteúdo da Constituição. Em síntese, paralelamente às garantias imanentes da Constituição, desempenham um papel decisivo os fatores externos. É a dialética que se processa entre norma e realidade, que se manifesta em complementaridades e tensões. Tudo isso não é inovação ou novidade teórica. São premissas bem assentadas no campo da Teoria da Constituição enquanto locus epistêmico de análise e reflexão sobre as constituições. O que muda é a descrição ou a interpretação da relação entre Constituição e realidade que cada uma das inúmeras teorias da Constituição propõe e a ênfase, descritiva ou valorativa, que se atribui aos polos da relação. Na atual quadra da história do Brasil, retomar a pesquisa e a reflexão rigorosas sobre a dialética Constituição-realidade é, se não uma imposição, muito recomendável à comunidade científica do direito, especialmente àqueles que investigam o direito como fenômeno normativo e suas projeções sobre as relações políticas e sociais. Nosso País vive aquela que talvez seja a maior crise após a redemocratização. À crise política somam-se uma crise econômica e uma crise financeira do Estado, nos três níveis da Federação. A crise política por si mesma não seria atemorizante ou ameaçadora. Desde a redemocratização em meados dos anos 1980, atravessamos crises políticas sem rupturas institucionais ou constitucionais. No pós-1988, a Constituição tem se mostrado adequada e, ao mesmo tempo, resistente às crises políticas sazonais. No entanto, há fundados motivos para supormos que a atual crise – que possui uma dimensão política, uma dimensão econômica e uma dimensão financeira – desafia e continuará desafiando a engenharia institucional e organizacional desenhada pela Constituição de 1988. Primeiro, as dimensões da crise formam uma unidade, estão profundamente imbricadas. Passados dois anos, constata-se que a solução da crise geral depende de uma solução articulada ou encadeada das três dimensões. Segundo, o País necessita de uma ampla reforma política para a qual os partidos, os grupos e as facções políticas parecem ter disposição nenhuma para convergir. Terceiro, a crise sinaliza que o Estado brasileiro, em todas as suas esferas, já não tem condições de, simultaneamente, cumprir todas as tarefas que a Constituição lhe impõe, atender às demandas remuneratórias das corporações internas ao Estado (especialmente, daquelas corporações tradicionalmente privilegiadas) e às demandas de financiamento ou crédito de grupos econômicos e sociais externos ao Estado. Quarto, o País necessita de uma profunda reforma fiscal, mas ninguém quer perder coisa alguma. Após 1988, a comunidade científica do direito, especialmente aquela dedicada à investigação do direito constitucional, priorizou a exploração e a construção de modelos, interpretações e esquemas argumentativos que otimizassem as potencialidades normativas, substantivas e instrumentais da Constituição. E isso, sem dúvida, produziu um estado da arte muito superior na teoria, na dogmática e na práxis constitucionais àquele anteriormente existente. Desse empenho, resultou, até mesmo, um certo otimismo constitucional. Aqui, não se está dizendo ou insinuando que o País vive uma crise constitucional ou está na iminência de se precipitar em uma crise constitucional. A Constituição vige. A Constituição, na sua globalidade, não é motivo de dissenso. A Constituição mantém sua legitimidade. Sinaliza-se, isto sim, que talvez estejamos no fim de um ciclo. A crise pela qual atravessamos testará as soluções constitucionais (princípios e regras) que temos para o jogo político, para os direitos e interesses das corporações que movimentam o Estado, para o financiamento dos inúmeros deveres e tarefas do Estado e para o atendimento de interesses de grupos econômico-empresariais e de movimentos da sociedade civil organizada. Nesse contexto, a comunidade científica do direito não estará cumprindo seu papel ao se limitar tão somente a desenvolver investigações que explorem as potencialidades normativas da Constituição a partir de uma perspectiva internalista; que explorem o direito constitucional apenas a partir dos mecanismos e das garantias imanentes da Constituição. Os problemas e desafios que compõem a crise demandam investigações que também tenham por objeto a dialética Constituição-realidade e as condições fáticas (elementos externos) que interferem na efetividade da Constituição. A adequação empírica das soluções constitucionais deve ser submetida à análise e à crítica, sem preconceitos, mas também sem o propósito de desconstituir aqueles elementos essenciais da Constituição, especialmente os direitos fundamentais e o regime democrático, porque são patrimônios da civilização à qual estamos ligados. Sem que se perca a identidade de juristas, teóricos ou cientistas do direito, será preciso abrir-se e dialogar com outros saberes, como a Ciência Política e a Economia, para citar dois exemplos.

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Biografia do Autor

Wilson Antônio Steinmetz, Universidade de Caxias do Sul (UCS) Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC)

Doutor em Direito pela UFPR (2003), docente do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Caxias do Sul e do Programa de Mestrado em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina.

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Publicado

20-12-2016

Como Citar

Steinmetz, W. A. (2016). Constituição, realidade e crise. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], 17(3), 719–732. https://doi.org/10.18593/ejjl.v17i3.12750

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