DITAMES ÉTICOS FRENTE À RECUSA DE TRATAMENTO
Resumen
No Brasil, assim como em muitos outros países, o tratamento médico, quando eletivo e sem a necessidade de emergência, está pautado na premissa do consentimento do paciente frente à conduta do médico. Porém, o que gera muito debate acerca do assunto é nos casos em que o tratamento é negado pelo paciente ou seu(s) acompanhante(s). Neste grupo encontram-se os adeptos à religião Testemunhas de Jeová, os quais são religiosamente impedidos de receber transfusão sanguínea e são cada vez mais numerosos e presentes na prática médica, mas também os pacientes que, deliberadamente, sem razão convincente para o médico, recusam-se a aceitar a conduta proposta unicamente por exercer seu princípio da autonomia e beneficência, mesmo que psicológica, por acreditarem ter mais riscos para si do que benefícios, incluindo integridade moral, psíquica, física e religiosa. Essas situações criam um ambiente de discordância, exigindo a necessidade de empatia e conhecimento sobre a ética médica por parte do médico para com o paciente. Esse conhecimento deve estar sempre atualizado acerca de novas tecnologias e alternativas terapêuticas, para que o paciente possa dispor de um número maior de opções de tratamento caso venha a recusar a conduta médica por razões ideológicas e religiosas. Os princípios da autonomia e da beneficência são, então, as questões éticas envolvidas nesses casos. Nesta pesquisa propõe-se analisar os princípios éticos e sua legitimidade diante do paciente que se recusa a fazer tratamento médico, e elucidar como a autonomia desse paciente pode ser preservada à luz da bioética e da tecnologia moderna. A metodologia utilizada foi uma revisão bibliográfica pela busca on-line no banco de dados dos sites Scielo, Google Acadêmico, PubMed e Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina (CFM). Há um consenso, tanto no campo da medicina quanto do direito, de que o cidadão adulto competente tem direito à autonomia de tomar decisões importantes sobre a sua vida. Em tais decisões, inclui-se o direito à recusa de tratamento. Os artigos selecionados também demonstraram essa posição em comum, de que a autonomia e a beneficência do paciente devem ser preservadas, independente da causa da recusa do tratamento, exceto nos casos que colocam o paciente sob risco de vida. Nessas ocasiões especiais, há uma limitação na autonomia do paciente que se refere à recusa de tratamento médico, as quais levaram o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, por meio da Resolução de 1974, a guiar a conduta dos médicos nas seguintes situações:
[...] se paciente grave, inconsciente e desacompanhado de familiares precisar de transfusão de sangue, ela deve ser feita sem demora; se paciente grave, inconsciente e acompanhado de parente que impeça a transfusão, o médico deve esclarecê-lo de sua necessidade e, havendo a relutância, recorrer à autoridade policial e judicial; se paciente lúcido se negar a transfusão, deve assinar termo de responsabilidade perante autoridade policial ou judicial, e o médico deve tentar tratamento alternativo.
Mas isso não significa, necessariamente, que a autonomia deve ser ignorada, como afirmam as autoras Sudati e Cavaltante (2009): “[...] a autonomia é [...] a liberdade que o indivíduo tem de poder optar por aquilo que seja melhor para si mesmo; [...] é a liberdade de escolha ou recusa de um tratamento médico, ainda que essa decisão provoque ao indivíduo, consequências graves.” Para esses casos, o autor João Vaz Rodriguez, citado no artigo de Nascimento (2010), defende o uso do termo “dissentimento informado”, já que o termo “consentimento informado” remete a uma aceitação do paciente ao que foi sugerido pelo seu médico. Quando essa decisão é tomada com base em princípios religiosos, é comum haver menor aceitação do médico, o qual, muitas vezes, chega a recorrer à justiça para que o tratamento seja executado. Segundo o autor, não é papel do médico contestar sobre as crenças do paciente, mas certificar-se de que este é esclarecido e convicto dela (NASCIMENTO, 2010). Além disso, no Código de Ética Médica (CEM) (1988), em seu artigo 48, encontra-se que “[...] é vedado ao médico exercer a sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa e o seu bem-estar.” É nisso que as autoras Sudati e Cavaltante (2009) se basearam para relatar que “O dever do médico de cuidar do paciente acaba quando este, lúcido e informado das condições, opõe-se ao tratamento.” O Código de Ética Médica (1988) reforça, ainda, essa questão no capítulo I dos princípios fundamentais, inciso XXI: “No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.” Contudo, há uma parcela dos médicos que se defendem a partir do artigo 56 do CEM (1988), que em seu teor diz: “É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”, surgindo, então, uma possibilidade de controvérsia na aplicação das leis éticas (SOUZA; MORAES, 1998). Paralelo a isso, Sudati e Cavaltante (2009) discutem, também, sobre o termo “obstinação terapêutica”, que se refere àquelas situações em que o médico, pelo simples fato de dispor de muitas tecnologias científicas, acaba usando-as para uma prática médica excessiva e abusiva, que visa, prioritariamente, à abordagem da doença e não do doente e suas vontades, ignorando a autonomia deste. Isso é alertado no CEM (1988), no capítulo V art. 35, sobre exceder-se a terapêutica e outros procedimentos médicos sem necessidade real. Em contrapartida, há possibilidades de aliar essas tecnologias científicas com o paradigma do agir com base no dever, em uma visão paternalista, para o agir com base nos preceitos éticos e morais do paciente. No capítulo I do CEM (1988), inciso V, relata-se que “Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente” e, ainda, no capítulo V, art. 32, que é vedado ao médico “Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.” Há respaldo, também, no Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), na resolução n. 136/1999, art. 1°, que diz “O médico, ciente formalmente da recusa do paciente em receber transfusão de sangue e/ou seus derivados, deverá recorrer a todos os métodos alternativos de tratamento ao seu alcance.” Silva et al. (2013) apontam algumas das terapêuticas alternativas, como o sangue artificial ou substituto do sangue, os expansores de volume (cristaloides), as terapias de oxigênio, a hemodiluição, a eritropoietina humana recombinante (leva a medula óssea a aumentar sua produção de glóbulos vermelhos, usando em associação com os expansores de volume), antifibrinolíticos, colas e seladores de fibrina (agem diminuido o volume de sangramento numa hemorragia). Mesmo diante dessas medidas alternativas, não há garantia de que o paciente irá aceitá-las, exercendo seu direito expresso na Carta de Direitos dos Usuários de Saúde (2006), em seu artigo 4º inciso XI: “[...] o direito à escolha de alternativa de tratamento, quando houver, e à consideração da recusa de tratamento proposto”, sendo o profissional médico tentado a tomar medidas extremas, desconsiderando a autonomia do paciente. Para tanto, a razão para a desconsideração com as crenças individuais no que se refere à recusa do tratamento, segundo alguns profissionais médicos, seria atribuída à beneficência do paciente, ou seja, zelar pela vida. Porém, “[...] beneficência requer que o médico faça o que beneficiará o seu paciente, de acordo com a visão do paciente e não com a visão do médico; respeito à autonomia e a beneficência contribui harmoniosamente pelo bem-estar do paciente como um todo.” (SPRUNG; EIDELMAN apud SOUZA; MORAES, 1998). Conclui-se que a tendência da medicina contemporânea é respeitar a autonomia dos pacientes, mas situações de emergência colocam esse princípio em xeque. Para isso, há dispositivos em várias esferas regulamentando a conduta do profissional no que se refere ao direito de escolha do paciente à recusa de tratamento. Nesse contexto, mostra-se necessária uma constante atualização do médico sobre as terapêuticas existentes, tornando possível a harmonia entre os conceitos de beneficência tanto na visão do médico como na do paciente e, assim, deixar para trás o conceito paternalista do médico. De tal modo, a autonomia vista na prática passa a ser mais respeitada pelos profissionais e elevada a patamares idealizados pelas regulamentações do Código de Ética Médica e de outras resoluções.
Palavras-chave: Transfusão de sangue. Testemunhas de Jeová. Direitos do paciente.
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Citas
Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica. Resolução CFM n° 1246/88. Brasília (DF): CFM, 1988.
BRASIL. Conselho nacional de saúde. Carta de direitos dos usuários de saúde. Portaria nº 675. Brasilia, 2006.
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Resolução CREMERJ Nº 136/1999. Rio de Janeiro (RJ): CRM, 1999.
NASCIMENTO, M. O direito de recusa a tratamento médico. Monografia puplicada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, 2010. Disponível em: <http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/31321/M1331JU.pdf?sequence=1&isAllowed=y>Acesso em: 03 ago. 2016.
SILVA, N.V. et al. Métodos alternativos à transfusão de sangue: vantagens e desvantagens. Revista eletrônica interdisciplinar, v.1, 2013. Disponível em: <http://univar.edu.br/revista/index.php/interdisciplinar/article/view/68> Acesso em: 03 ago. 2016.
SOUZA, Z.S.; MORAES, M.I.D.M. Ética médica e o respeito às crenças religiosas. Bioética, Florianópolis, v.6, n.1, p. 89-93, 1998. disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/329/397>. Acesso em: 03 ago. 2016.
SUDATI, M. N.; CAVALCANTE, J.T.D. O respeito aos paciente na escolha dos tratamentos médicos. In: ETIC- ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA. Presidente Prudente, vol.5, 2009.