http://dx.doi.org/10.18593/r.v41i1.9271

INVESTIGAR NARRATIVAMENTE A FORMAÇÃO DOCENTE: NO ENCONTRO COM O OUTRO, EXPERIÊNCIAS...

INVESTIGATING NARRATIVELY TEACHER TRAINING: IN THE MEETING WITH THE OTHER, EXPERIENCES...

INVESTIGAR NARRATIVAMENTE LA FORMACIÓN DOCENTE: EN EL ENCUENTRO CON EL OTRO, EXPERIENCIAS...

Tiago Ribeiro*

Professor do Colégio de Aplicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos

Carmen Sanches Sampaio**

Professora da Escola de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Rafael de Souza***

Integrante do Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Resumo: O presente texto tece reflexões acerca da pesquisa narrativa e discute alguns princípios constitutivos em ações investigativas que se inscrevem nessa perspectiva teórico-metodológica. Por meio da partilha de algumas narrativas e acontecimentos vividos no desenvolvimento de uma investigação-formação longitudinal, o trabalho sublinha o quanto as ideias de experiência, alteridade, igualdade e horizontalidade são potentes para pensar e investigar narrativamente os processos formativos docentes. Além disso, destaca o outro como um sujeito legítimo e importante no processo alteritário da pesquisa e da formação, tendo no conceito de excedente de visão uma ferramenta privilegiada para essa reflexão.

Palavras-chave: Narrativa. Pesquisa. Formação Docente. Experiência. Alteridade.

Abstract: This text reflects on the narrative research and discusses about some underlying principles of investigative actions inscribed in this theoretical and methodological perspective. Sharing some narratives and events lived in a longitudinal research and training developing, this work underscores how the ideas of experience, otherness, equality and horizontality are potent to think and investigate narratively teachers training processes. In addition, it emphasizes the other one as a legitimate and important subject in research and training process, taking the concept of “excess of seeing” as a prime tool for this reflection.

Keywords: Narrative. Research. Teacher Trainning. Experience. Otherness.

Resumen: Este texto teje reflexiones sobre la investigación narrativa y discute algunos de los principios que subyacen las acciones de investigación inscritas en esta perspectiva teórica y metodológica. Al compartir algunas narrativas y acontecimientos experimentados en el desarrollo de una investigación-formación longitudinal, el trabajo pone de relieve cómo las ideas de la experiencia, la otredad, la igualdad y la horizontalidad son poderosas para pensar e investigar de forma narrativa procesos de formación docente. Asimismo, se destaca el otro como sujeto legítimo e importante en el proceso alteritário de investigación y formación y tiene el concepto del excedente de visión em cuanto un instrumento de gran importancia para esta reflexión.

Palabras claves: Narrativa. Investigación. Formación Docente. Experiencia. Alteridad.

Experiência acontece narrativamente.

Pesquisa narrativa é uma forma

de experiência narrativa.

Portanto,

experiência educacional

deveria ser estudada narrativamente.

Clandinin & Connelly

1 INTRODUÇÃO

Neste texto, tecemos algumas reflexões a respeito da potencialidade da narrativa no processo formativo docente e na pesquisa da experiência educativa, buscando pensar sobre princípios epistemológicos, éticos, políticos e metodológicos implicados em ações de investigação-formação.

A narrativa tem sido a opção epistemo-político-metodológica de nossas ações de pesquisa e formação, na Rede de Formação Docente: Narrativas e Experiências (Rede Formad), criada em 2010 em uma universidade pública federal do estado do Rio de Janeiro, a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), congregando diferentes grupos e coletivos docentes, de estudos e pesquisas de diferentes estados do Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco), com o intuito de investir na formação docente na perspectiva das redes (SAMPAIO, 2010; SAMPAIO; RIBEIRO, 2014) e fortalecer ações de investigação-formação pautadas nos princípios da horizontalidade, solidariedade, igualdade e inclusão (DUHALDE, 2012; RIBEIRO, 2014).

Na Rede Formad temos assumido a narrativa tanto como uma forma de partilhar o mundo vivido, uma vez que vivemos e organizamos a vida de forma narrativa (RICOUER, 2010), portanto um fenômeno a ser investigado, quanto o próprio método de investigação, uma vez que nos possibilita pensar e indagar conceitos, concepções, ideias e práticas dos sujeitos com os quais pesquisamos (CONNELLY; CLANDININ, 2008). Todavia, o que significa compreender duplamente a narrativa? Que compreensões temos de narrativa? Em que medida ela, além de fenômeno investigativo, pode ser também uma metodologia de pesquisa? O que implica uma investigação narrativa?

Para acercarmo-nos dessas indagações, as quais dão vida a este trabalho, partilhamos algumas reflexões construídas no bojo de uma pesquisa em andamento, de cunho longitudinal, em uma escola pública na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. O foco das reflexões aqui tecidas são os encontros de filosofia com crianças, ação que vem sendo desenvolvida com crianças de 5 anos – estudantes da Educação Infantil, etapa 2, da referida instituição – e quatorze bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Incentivo à Docência (PIBID), vinculados ao subprojeto PIBID/Educação Infantil/Pedagogia/ Unirio.1

A pesquisa, cujo objetivo é pensar o processo de formação vivido por esses futuros professores, a partir da ideia de experiência larrosiana (LARROSA, 2011) conta com o apoio financeiro da Capes e está vinculada ao projeto institucional do PIBID/Unirio, projeto que conta com a aprovação do Conselho de Ética da Universidade. Além dos bolsistas, fazem parte da pesquisa a professora orientadora, duas professoras supervisoras – docentes da escola –, um doutorando em educação e um professor voluntário da rede municipal de Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, e as crianças, com as quais conversamos ao longo da pesquisa, expondo suas razões e modos de funcionamento.2

Ao enfatizar a formação como experiência, a pesquisa mencionada acompanha e investiga o processo formativo das/dos quatorze bolsistas, tendo a articulação prática-teoria-prática como constitutiva do processo formativo ao longo de sua certificação docente inicial, em nível superior. Nesse sentido, perguntamo-nos: qual a potencialidade de um processo que aposta na experiência como possibilidade de formação docente? A relação com as crianças e com a prática, desde o início do curso de graduação, tenciona e provoca as estudantes-bolsistas a pensarem e a repensarem suas concepções, crenças e práticas?

Para tal, a pesquisa supracitada lança mão da narrativa como fenômeno investigado e como método de investigação. Ao fazê-lo, dá pistas para refletirmos acerca desse modo de investigar a experiência educativa, provocando-nos a “entender as realidades para além do que nelas é quantificável e organizável de acordo com os parâmetros definidos pelo pensamento moderno [...]” (OLIVEIRA; GERALDI, 2010, p. 24).

Mas, o que seria isso de “entender as realidades para além do que nelas é quantificável”? De que compreensão de pesquisa estamos falando? Que princípios a sustentam?

Nessa esteira, o presente texto, ao acercar-se da investigação em andamento, não almeja trazer seus resultados provisórios do ponto de vista dos objetivos sobre os quais ela se propõe a pesquisar, mas, a partir do modo como a ação investigativa vem sendo realizada busca mostrar, compartilhar maneiras possíveis de pensar, viver e fazer a pesquisa narrativa, destacando os princípios que a sustentam, ao menos no caso da ação investigativa que vimos desenvolvendo.

2 A PESQUISA NARRATIVA

A concepção moderna de ciência se pauta nas ideias de objetividade, controle, generalização e universalidade (MORIN, 1996). Crê que pode explicar o mundo a partir das suas partes, cuja soma equivaleria ao todo; que pode generalizar dados e controlar todas as variáveis de uma pesquisa. Por conseguinte, de acordo com essa concepção de ciência, a investigação é marcada pela operação de estabelecer os limites do que pode ou não ser considerado conhecimento, o que a faz excluir de sua ideia de cientificidade formas de compreender que não compartilham ou compactuam com a sua maneira de conhecer/ver/investigar/conceber o mundo. Assim, toda perspectiva que se aproxime mais da experiência do que do experimento, da subjetividade do que da objetividade, da singularidade do que da generalização será considerada como não científica.

Ainda, faz-se interessante destacar que tal ciência tem como elemento central uma perspectiva antropocêntrica, a qual coloca o homem em posição de centralidade e divide as coisas do mundo entre as humanas e não humanas (natureza/coisas), sendo este mundo considerado estático, compreensível de forma neutra a partir de leis (baseando-se na mecânica newtoniana), concebidas como generalizações para “disciplinar” e homogeneizar a multiplicidade de experiências, e desde a decomposição da realidade em menores partes (lógica fruto da racionalidade cartesiana), como uma máquina.

A questão é que essa lógica, pelo seu determinismo decompositor/compartimentador, produz um método científico, ou melhor, a necessidade de um método científico bem delimitado, o qual se assenta na redução da complexidade do mundo e das relações que nele e com ele se estabelecem, assumindo uma causalidade/linearidade de acontecimentos. Assim, concebe o conhecer como um quantificar. Isto finda na geração de um tipo de conhecimento que mais pretende dominar do que entender, que coloca quem pretende conhecer em uma posição pretensa de apenas controlar e observar, sendo tal observação válida, apenas, se parte de um experimento reproduzível e generalizável.

No entanto, pensando na hegemonia exercida por essa forma de conceber a produção de conhecimento e as relações com o mesmo, é necessário indagar: como se pautar nesses princípios, ter como referência essas crenças para realizar uma pesquisa tendo como foco as relações vividas, os percursos singulares vividos por sujeitos em relações responsivas, envolvendo, portanto, trocas, partilhas, palavras e contrapalavras? É possível pensar uma investigação da experiência educativa sem cair nos meandros das ideias de controle, objetividade, neutralidade e generalização?

Defendemos que investigar a experiência educativa – porque se trata de um processo que envolve sujeitos em interação, em movimento, os quais falam, respondem, discordam e se transformam no percurso mesmo da pesquisa – exige outra relação investigativa, outros princípios e cuidados teórico-político-metodológicos. Ao pesquisar com o outro, também nos pesquisamos, tencionamos nossos saberes e conhecimentos, nos formamos e indagamos nesse processo. Daí que a pesquisa cujo foco é a experiência demanda abrirmo-nos a encontros diários com as contradições – de nós mesmos, da própria pesquisa, entre o que defendemos e o que praticamos, entre nossas crenças e nossos modos de pensar e viver a investigação.

Se acreditamos que a vida é vivida de forma narrativa, que o viver é um ininterrupto processo de construir, reconstruir e interpretar histórias, então a pesquisa narrativa figura como uma opção potente e coerente no que se refere ao pesquisar a experiência educativa.

Potente porque possibilita aproximar-se de ideias, de concepções do outro, tentar compreender o seu compreender (BATESON, 1998). Tais possibilidades, no entanto, apenas se realizam se houver uma empatia [vizivanie] (BAKHTIN, 2010), a qual se constitui no ato, por parte daquele que lê ou escuta a narrativa, de reconhecer o outro como tão único e insubstituível no mundo quanto a si mesmo. Apenas aí, neste posicionamento de abertura em relação ao outro, como em um ato de contemplação estética, onde um se aproxima e confere ao outro uma forma estética exterior àquela de si mesmo, nesse movimento de ir ao outro, exterior, para retornar a si, é realizado um retorno deslocado.

Essa ideia de enfatizar o encarar o outro como externo parece ao mesmo tempo estranha e, talvez, óbvia. Porém, ela é de suma importância quando se parte da ideia de que o sujeito, com e desde sua singularidade, tem papel ativo na relação com o mundo em todos os âmbitos, inclusive na exteriorização do outro para, em um ato de parcial abnegação e renúncia, também considerá-lo sujeito singular, ativo e potente.

Ademais, o retorno deslocado que tal movimento implica assim o é porque, ao estranhar o outro, suas ideias e concepções, na “ida a ele”, também podemos entrar em contato com nossas próprias ideias e aprender, estranhar-nos. Enfim, um movimento no qual o pensamento floresce. E, para que esse pensar ocorra, é preciso parar, deter-se, escutar a si e ao outro, se fazer presente de forma inquieta, pois “pensar exige silêncios e vazios. E terá valido a pena pensar, mesmo que o pensado se esvaia no momento mesmo de sua emergência.” (GERALDI, 2010, p. 100).

Vale ressaltar que a pesquisa narrativa, concebida da forma aqui projetada, abre possibilidades de nos desafiarmos à prática cotidiana dos princípios, por nós perseguidos, da horizontalidade, da igualdade e da inclusão. Além disso, ela se mostra como uma opção epistemo-teórico-político-metodológica desviante da maneira moderna de relação com a produção de conhecimento. Isto porque coloca participantes como praticantes, não apenas sujeitos, mas personagens da pesquisa, assim como o pesquisador, problematizando a naturalização das hierarquizações das relações, pensando tais possibilidades como constitutivas do exercício da palavra, sem o apagamento dos conflitos e tensões que suscita, sem a dissipação das diferenças e com a atribuição de importância ao que todos aqueles que narram têm a dizer:

[...] se o profissional se empenha em entender, sem deter-se no que pode ver ou ler, ele descobre à sua frente interlocutores que [...] são também sujeitos produtores de histórias, além de parceiros do discurso. Da relação objeto-sujeito passa-se para uma pluralidade de autores e de contratantes; ela substitui a hierarquia dos saberes por uma diferenciação mútua dos sujeitos. (CERTEAU, 2012, p. 66).

É bom pensar ainda que em tal exercício da palavra na conversa, compreendida como forma de narrativa, tais princípios são ainda mais potencializados, pois a empatia e o que ela suscita passa a ser mútuo: cada um que conversa precisa exteriorizar o outro como legítimo e singular. Complementarmente, na conversa, o excedente de visão (BAKHTIN, 2011) vem tornar maiores as possibilidades de deslocamento, pois é com ele que um vê (e, talvez, compreenda) o outro com aquilo que apenas a avaliação exotópica na posição externa pode oferecer.

Finalmente, a conversa, talvez por seu viés artesanal (BENJAMIN, 1994) e apesar de sua aparente simplicidade, traz consigo uma beleza: a do dizer de si atravessado por todos os outros que nos habitam. São essas palavras simples as mais difíceis de escutar (LARROSA, 2010), justamente por esse âmbito de multiplicidade que carregam consigo, que provocam a seguir suas pistas e indícios, “[...] segredos e armadilhas que implicam hesitações, silêncios tropeços, ritmos, inflexões, retomadas diferenciadas dos discursos. E gestos, franzir os lábios, sobrancelhas, olhares, respirações, mexer de ombros, etc” (COUTINHO, 2008, p. 20) que só são lidos se deixamos os sentidos eriçados, a percepção disponível.

Essas reflexões implicam pensarmos em alguns momentos e aprendizagens marcantes vividas no desenrolar da pesquisa narrativa que estamos desenvolvendo. Partilhamos alguns deles, pois pensamos que dão a pensar e ajudam a compreender o que temos realizado e compreendido enquanto pesquisa narrativa.

2.1 O CAMPO DE PESQUISA

O campo de pesquisa, no caso da pesquisa narrativa, não é apenas um lugar onde se vai para colher dados, buscar fontes, realizar a investigação. Trata-se, antes, de um espaço-tempo onde conversas, ideias, pontos de vistas e saberes são partilhados, narrativas são produzidas. Isto significa que, ao entrar no campo, o pesquisador narrativo não encontra um “espaço limpo”, porém grávido de histórias em movimento, de vidas em seu pleno curso: “ao adentrarmos no campo de pesquisa, carregamos conosco e encontramos pré-narrativas – vidas em movimento, estruturadas narrativamente, com o recontar ainda por vir durante a pesquisa.” (CONNELLY; CLANDININ, 2011, p. 100).

Na esteira dessa discussão, é possível dizer, também, que pela sua capacidade de recontar e reconstruir o vivido, a narrativa termina por constituir-se viva. Isto porque, ao possibilitar o retorno ao vivido, o passado ganha novo sopro de vida, é embebido na vitalidade do presente, por se tornar um presente relativo a um momento e a um lugar outros, que não fala sobre, mas que conta, que coloca em palavras um encontro:

[...] qualquer narrativa que relate “o-que-se-passa” (ou o que se passou) institui algo de real, na medida em que se considera como a representação de uma realidade (do passado). Ela baseia sua autoridade no fato de se fazer passar pela testemunha do que é, ou do que foi; ela seduz e se impõe através dos acontecimentos dos quais pretende ser a intérprete [...]. No entanto, o “real” representado não corresponde ao real que determina sua produção. Ele esconde, por trás da figuração de um passado, o presente que o organiza. (CERTEAU, 2012, p. 49).

Nesse sentido, adentramos em uma relação narrativa, tecemos nossas histórias com os sujeitos do campo narrativamente, todo o tempo e o tempo todo. Por meio dessa operação narrativa, podemos saber do contexto vivido pelo grupo que aí encontramos; grupo que conosco se transforma, uma vez que passamos a fazer parte dele. O fazer parte do grupo significa que não somos, nós pesquisadores narrativos, apenas um sujeito no campo, mas um sujeito do campo. Pesquisamos, é verdade, mas também fazemos parte dos eventos narrativos em desenvolvimento, produzimos parte dessas narrativas, somos integrantes do cotidiano vivido, implicados e coimplicados no e com o campo que nos acolhe.

A coimplicação com o campo, com os sujeitos que o compõem, permite perceber o que não está nos discursos diretos, nas falas, mas aquilo que está nas entrelinhas, nos silenciamentos, nos vazios e hiatos das relações. Na pesquisa que vimos desenvolvendo, por exemplo, cujo campo de pesquisa é o cotidiano de uma escola pública do Rio de Janeiro como já mencionamos, estar presente, no sentido de estabelecermo-nos como parte do cotidiano da escola, ficar a par de suas histórias, do processo que vem sendo vivido, do desafio que a instituição vem se colocando, no sentido de praticar e potencializar uma educação da primeira infância pautada na inventividade, curiosidade e desejo, faz toda a diferença.

Sermos do campo e não no campo oportuniza que troquemos com os sujeitos, que sejamos reconhecidos como pares pelas professoras, coordenadoras e crianças da escola. Isto porque nos estabelecemos como participantes do cotidiano vivido: colocamo-nos ao lado para pensar junto, para conversar, avaliar, sugerir, ajudar nas atividades e propostas.

Obviamente, sendo o campo composto por sujeitos, e os sujeitos singulares e distintos, a intensidade e intimidade com que os vínculos vão sendo construídos são maiores ou menores com cada professor, turma, grupo. Nessa relação, muitas vezes, a ideia ainda bastante nutrida – muito mais nas ações de pesquisas do que na teorização – por professores da universidade e da escola básica, de uma separação entre sujeito (o pesquisador) e objeto (o pesquisado) vai ruindo. A cooperação, princípio importante na pesquisa narrativa, como já mencionado, vai empoderando a ambos – pesquisador e professor – como sujeitos e personagens da pesquisa e do cotidiano. Somos copartícipes, pois aprendemos e ensinamos juntos, pesquisamos e refletimos juntos. Dessa maneira, vamos vivendo o desafio de experienciar o princípio da horizontalidade e da igualdade, no exercício da cooperação.

Na escola que nos acolhe, essa relação cooperativa vem sendo tecida com alguns grupos, mas, em especial, com uma turma na qual atua a professora Elaine, uma das professoras supervisoras do PIBID/Educação Infantil. A relação mais próxima com Elaine, com a gestão do colégio, bem como o conhecimento do vivido na escola, por meio da escuta atenta das histórias e narrativas que por aí circulam, possibilitaram-nos propor, a essa turma, a vivência dos encontros de filosofia com crianças de quatro/cinco anos de idade.

Conhecer a professora possibilitou-nos perceber, nas situações de fala (CERTEAU, 2012), nas conversas realizadas, nas expressões de seu rosto e corpo, espanto e insegurança. Aliás, insegurança que, em alguma medida, também nos habitava: nutríamos há muito o desejo de viver a filosofia com crianças, mas o conhecimento que tínhamos sobre esse processo eram as leituras realizadas de trabalhos e pesquisas de Walter Kohan (2012) e relatos e provocações que José Ricardo, professor voluntário do projeto, nos fazia-nos.

Já aconteceram três rodas de filosofia com crianças. Nelas, tivemos a oportunidade de discutir e conversar, com meninos e meninas entre 4 e 5 anos, sobre assuntos, comumente considerados de “gente grande”, como medo, perguntas, dor, entre outros temas, muitos deles surgidos nos próprios encontros e trazidos pelas próprias crianças.

Entretanto, não é nosso objetivo problematizar, tampouco apresentar os encontros de filosofia com crianças neste trabalho. O que nos toca, aqui, é refletir sobre o modo como as narrativas suscitadas por esses encontros, produzidas durante eles ou nas nossas reuniões, posteriores aos encontros, nos dão a pensar. Acreditamos que esse exercício possibilita aproximarmo-nos e partilharmos um pouco dos modos como temos realizado a pesquisa narrativa.

É importante ressaltar que o processo vivido, a conversa com os estudantes-bolsistas, as professoras e mesmo as crianças tem a ver com uma dimensão muito importante na pesquisa narrativa, de acordo com Connelly e Clandinin (2011): a continuidade. Algumas questões somente surgem ou podem ser enfrentadas por causa do tempo em que estamos no campo, das relações que vamos tecendo com os sujeitos e com o conhecimento mútuo que vai sendo construído. Ademais, continuar no campo, acompanhar com cuidado, fazer-se presente também pode nos ajudar a revisar nossos pontos de vistas, nossas interpretações. Movimento vivido por um dos participantes da pesquisa, como vemos em uma de suas notas de campo, ao registrar suas impressões acerca do primeiro encontro de filosofia com crianças, na escola:

Somos muitos adultos: quatorze bolsistas, a coordenadora do projeto, eu e o professor voluntário José Ricardo, além das duas professoras da turma e da coordenadora da escola. O número de adultos é maior que o número de crianças. Talvez por isso elas estejam inibidas, meio caladas. Será que vai dar certo? Talvez não fosse melhor um número menor de adultos na sala? (Tiago. Nota de campo, 4 de maio de 2015).

Aqui poderíamos nos deter no modo de escrita do próprio texto de campo: em primeira pessoa, refletindo as marcas subjetivas e impressões singulares do sujeito que a escreve. No entanto, o que gostaríamos de pensar é a respeito da importância da continuidade no campo, de partilhar das experiências vividas com o grupo e de algo aí inerente, no que diz respeito à pesquisa narrativa: ao fazê-lo, mais do que pesquisar sobre o outro, estamos também pesquisando a nós mesmos, revendo nossos mapas cognitivos, nossas formas de pensar, nossos pensamentos iniciais. A continuidade no campo permite ao pesquisador narrativo olhar para si mesmo e indagar-se, reconstruir seus modos de ver e compreender, de recompor-se a todo momento, com o outro, na interlocução. Assim, estamos diante de uma investigação que é, em si mesma, formação (SAMPAIO; RIBEIRO, 2014) de uma pesquisa com um caráter singular, próprio, por isso muito colada à experiência enquanto força que atravessa e transforma. Quiçá uma pesquisa experiência?

O mesmo autor da nota de campo supratranscrita produziu outra, sobre essa mesma questão, agora em uma reunião do grupo de estudos, após outro encontro de filosofia com crianças. Sua nota nos deixa ver essa dimensão da pesquisa narrativa, sobre a qual estamos falando:

Impressionante como as crianças estão animadas com os encontros de filosofia. Como elas falam, participam, apesar da quantidade de adultos! Eu estava enganado em pensar que precisaríamos mudar o número de adultos na sala. Pensei que não fosse dar certo e tivéssemos de repensar, pois as crianças não teriam atenção suficiente [...] Mas, elas me surpreenderam! Não apenas participaram, conversaram, opinaram, como ouviram-se umas às outras. Será que meu modo inicial de pensar tem a ver ainda com um modo de olhar a criança como menos capaz do que o adulto? (Tiago. Nota de campo, 15 de junho de 2015).

A nota de campo anterior mostra, de forma clara, o processo de reflexão e autorreflexão do seu autor acerca de suas próprias concepções e crenças, no desenvolvimento da pesquisa: se abrir a viver a pesquisa narrativa como quem mergulha no cotidiano pesquisado é também estranhar-se e transformar-se. Isto porque, ao pesquisarmos narrativamente, a falsa separabilidade entre sujeito e objeto e a ingênua neutralidade do pesquisador se esvaem. Conforme nos alertam Connelly e Clandinin (2011, p. 129), “[...] os participantes da pesquisa narrativa são influenciados por sua participação na pesquisa e pela experiência de vivenciar a pesquisa.” O que resta, portanto, são gestos de escuta, encontros alteritários e possibilidades de vivermos a formação docente enquanto experiência.

2.2 PESQUISA NARRATIVA E EXPERIÊNCIA

Ao afirmarmos que o que resta, ou melhor dizendo, que o que ocorre, em uma pesquisa narrativa, são gestos de escuta, encontros alteritários e possibilidades de experiência, o que estamos dizendo? O que queremos dizer? Talvez seja interessante determo-nos um pouco mais sobre essa assertiva, desafiando-nos a refletir com a potencialidade que tal afirmação pode nos proporcionar, dar-nos a pensar.

A aproximação das palavras “gesto” e “escuta”, aqui, avizinha-se do binômio experiência e sentido (LARROSA, 2014). Compreendemos que mais do que a técnica e o discurso, mais do que a crítica e a reflexão, a experiência e o sentido nos possibilitam pensar singularmente o ato educativo, a relação educativa, lendo-a como um texto em aberto, singular, cheio de ranhuras, aberturas, indícios, vias, mapas, silêncios. Daí que um olhar plasmado de certezas, de verdades, pode não ser capaz de captar detalhes, entrelinhas, refugos de sentidos escondidos sob enunciados e enunciações, sobre o que se passa com cada um. Isto porque esse olhar, o olhar das certezas e verdades, já está encharcado com seus a priores. Talvez seja necessária uma pausa, um livrar-se da classificação, da categorização, do enquadramento do vivido em um arquétipo de análise... e deixar-se embeber pela experiência, deixá-la ressoar, repercutir singularmente em si mesmo. Um gesto de escuta: parar, ouvir, deixar-se atravessar. Assim, quiçá, demo-nos conta não apenas do que investigamos, mas de nós mesmos frente ao que investigamos.

Ao lado de “gestos de escutas”, trouxemos a ideia de encontros alteritários, como próprios da pesquisa narrativa. Acreditamos que na pesquisa narrativa, por seu caráter horizontal, coparticipativo e dialógico, a alteridade se faz na relação que temos com os participantes da pesquisa, acontecimentos e textos. Inclusive os textos, é importante frisar, são lugares de encontro, de ter acesso a uma palavra outra, podendo dela discordar, concordar, repensar, espichar compreensões. Encontro alteritário porque somos provocados, a todo momento, a viver um distanciamento aproximado, encontros com muitos outros e outras, que em nós repercutem como uma polifonia de vozes, ideias, pontos de vista, alargando e transformando modos de pensar, de dizer, de fazer, de pesquisar, de viver, o que faz da pesquisa narrativa, sobretudo, possibilidades de experiências.

Na nota de campo anterior, o autor se pergunta sobre sua própria concepção de infância e surpreende-se com o modo pensado, inicialmente, de que o encontro de filosofia com crianças não daria certo pelo fato de as crianças não conseguirem lidar com tantos adultos na sala. Ele se pergunta: “Será que meu modo inicial de pensar tem a ver ainda com um modo de olhar a criança como menos capaz do que o adulto?” (Tiago. Nota de campo. 15 de junho de 2015).

Mais uma vez, enfatizamos: na pesquisa narrativa, ao pesquisar a relação educativa, a experiência educativa, o cotidiano, também nos investigamos, nos despimos, podendo nos tornar outros no processo de investigação. Se conseguimos nos sentir de tal modo atravessados, incomodados, provocados, passivos no sentido de paralisados diante de nosso próprio pensar, então, possivelmente, a pesquisa está, para nós, constituindo-se em experiência.

Tornam-se possibilidades de experiência os diferentes acontecimentos vividos ao longo da pesquisa: as falas, as anotações do que vivemos e presenciamos, os documentos, alguma atividade vivida, as conversas, um gesto, um silêncio, um olhar, uma resposta que contraria nossa certeza... enfim, a imprevisibilidade própria do cotidiano, o que refuta nossos saberes, nossa segurança epistemológica.

No nosso segundo encontro de filosofia com as crianças, continuamos a tratar do tema perguntas. Em determinado momento, José Ricardo, professor que coordenava o encontro, afirmou haver perguntas que são fáceis e outras que são difíceis e perguntou a uma das crianças na roda sobre sua pergunta. Após a menina falar sobre sua questão, ele volta a indagar:

- Essa é uma pergunta fácil ou difícil?

Sem pestanejar, a criança responde:

- É uma pergunta fácil e difícil!

Para alguns dos presentes ali, o ocorrido foi apenas mais um acontecimento em meio a tantos outros, naquela conversa. No entanto, para outros, esse mesmo acontecimento se constituiu experiência, pois foi sentido de modo singular. Por isso, ele foi anotado no caderno de campo, feito texto de campo, com reflexões pessoais. Fazer do acontecimento texto de campo, isto é, realizar anotações sobre ele, colocando de algum modo o que ele nos dá a pensar, para não esquecer, possibilita-nos retornar a ele e poder narrá-lo, partilhá-lo e refletir sobre ele.

Assim foi feito. Após o encontro de filosofia com crianças, tivemos, no mesmo dia, reunião de estudo do grupo. A coordenadora do grupo trouxe a fala da menina de volta e, como ela, a criança, naquele momento, talvez estivesse nos indicando o quanto ainda estamos encharcados de um modo de pensar dicotômico, formados que somos sob a égide da ciência moderna. Modo de pensar que nos leva a escolher um polo e todos os outros são excluídos ou submetidos a essa escolha. O que a criança nos dizia era provocador porque nos deslocava para uma perspectiva epistemológica outra: uma epistemologia da conexão – e/e – e não da exclusão ou/ou.

Uma fala, uma simples fala de uma criança de cinco anos nos deu muito a pensar, a discutir, na partilha da palavra, na conversa. Esta é, para nós, a beleza da pesquisa narrativa: que as coisas miúdas, os imprevistos, os acontecimentos são sua força motriz, aquilo que a sustenta e faz viver. Pesquisar narrativamente é uma forma de viver e de indagar a vida (CONNELLY; CLANDININ, 2011).

Esse é um pequeno exemplo entre tantos outros possíveis, porém, acreditamos que ele seja capaz de mostrar o quanto jorram questões dos textos de campos, das narrativas. Ao voltar a elas, lê-las, relê-las, podemos perceber miríades de pistas, indícios, sinais (GINZBURG, 1989) sobre diferentes questões, sobre a relação educativa, sobre o outro e sobre nós mesmos. Pesquisamos e somos parte da pesquisa. Longe de não haver rigor científico aí, há rigor, sim, mas um rigor de outra natureza: um rigor flexível, como nos fala Ginzburg (1989). E esse rigor está assente numa cadeia narrativa e reflexiva que busca destecer a narrativa puxando os diferentes e diversos fios de sentido e sem sentido que dela fazem parte. Obviamente, não somos, como pesquisadores e pessoas, capazes de puxar todos eles, já que todo olhar é limitado, entretanto, desafiamo-nos a deixá-los vibrar, falar-nos, dar a pensar. E isso se torna possível pelo que compreendemos como distanciamento aproximado: a forma como conversamos com as narrativas em nossas ações investigativas.

2.3 DISTANCIAMENTO APROXIMADO

Um dos critérios de cientificidade da ciência clássica, além do rigor, flexibilizado por Carlo Ginzburg (1989) na ideia de rigor flexível, é o distanciamento. Dessa ideia de distanciamento advém algumas críticas à pesquisa narrativa, as quais defendem que, pelo fato de o investigador vivenciar colaborativamente o cotidiano investigado, ser parte indissociável do que pesquisa, não teria um distanciamento que o permitisse refletir desemplicadamente sobre seu “objeto”. No entanto, refutamos tais críticas à medida que compreendemos ser a pesquisa narrativa uma investigação-formação, indissociavelmente, além de um modo de indagar, partilhar e reconfigurar a experiência educativa.

Não obstante, não se trata de não haver distanciamento em relação ao que se é investigado. Tal qual o rigor, o distanciamento da pesquisa narrativa também é de outra natureza: trata-se de um distanciamento aproximado, isto é, implicado com o campo, com as pessoas, com os acontecimentos. Contudo, ao traduzir – ou buscar traduzir – o que vive em sua pesquisa nos textos de campo, o pesquisador narrativo pode manter uma relação de estranhamento com o experienciado; pode indagá-lo de modos distintos, indo e voltando, tornando a pensar, mais uma vez, sobre a experiência passada e tornada presente.

Aproximar-se de maneira distanciada é uma arte de viver, mas como chegar a ela? Como defini-la? Parece-nos que tal busca se inicia pelo desenvolvimento dos limites das ideias de aproximação e distanciamento separadamente, pois, a partir do estabelecimento de suas maiores ou menores medidas, poderemos chegar à relação com o outro – na vida, na docência e na pesquisa – aqui almejada.

Dessa maneira, a distância teria como limite a indiferença, isto porque, quando se chega ao seu território, a distância é radical a ponto de fazer-nos virar as costas. Já a aproximação não seria a de ler ou pensar pelo outro: essa proximidade é perigosa. Sua medida é a do “estar com” o outro, não a do “fazer por” ele.

Para ajudar-nos a desenvolver e enriquecer essa ideia, seria possível, ainda, trazer à lembrança a ideia de distância que permeia hegemonicamente a produção de conhecimento. Ela seria a distância crítica, baseada na tradição da filosofia da educação e da modernidade, a qual se propõe estabelecer uma separação radical entre sujeito (do conhecimento) e realidade (objeto). Não é essa a distância da qual queremos nos aproximar. A que ansiamos é a distância poética: uma distância:

[...] que nos permite ver las cosas desde certa perspectiva pero no abandona cierta virtualidade poética, porque al mismo tempo se hace presente en su presente, en el momento oportuno [...] Una distancia que es, en realidad, una toma de distancia apropriada para hacerse presente en el presente, para vivir el acontecimento del presente [...] (BÁRCENA, 2012, p. 85, grifo do autor).

Ao articularmos, então, a ideia de um aproximar-se para fazer e estar com, mas mediada por um distanciar-se que não se faz indiferente, e sim presente, resguardando-se a ideia empática do outro como exterioridade singular, potente e insubstituível, assim como nós mesmos, chegamos a uma aproximação distanciada, ou a um distanciamento aproximado. Esse modo de relacionarmo-nos com aparece concretizado na conversa, um espaço no qual transmitir é muito menos que cuidar e querer bem ao outro, ao mundo, um espaço da ação ética, que transforma a conversa em linguagem ética. Linguagem na qual o olhar o outro o transforma em igual, não equivalente ou idêntico, mas semelhante (SKLIAR, 2014). Linguagem na qual “eu, como eu-único, emerjo do interior de mim mesmo, enquanto a todos os outros eu os encontro.” (BAKHTIN, 2010, p. 142, grifo nosso).

Trata-se, sobretudo, de pensar a conversa, espaço do distanciamento que é, também, aproximado, amoroso. Trata-se de uma possibilidade de se dar a ler ao outro e de se permitir ser lido em nosso discurso. De compartilhar experiências, de abrir-se a possibilidades de experiência. Quiçá reconhecer-se e/ou estranhar-se na narrativa do outro e, quem sabe, ir se (trans)formando, ao se perguntar, ao se questionar.

Sublinhamos que o modo como experimentamos o mundo é singular. Tem a ver com as relações tecidas com ele e desde onde a tecemos (DOMINGO; FERRÉ, 2010). Somos homem, mulher, gay, lésbica, mãe, pai, branco, trans, negro, indígena, quilombola, rico, pobre... enfim, uma miríade de possibilidades que atravessam a forma como experimentamos e narramos o mundo. Daí a relação da narrativa com a experiência ou a possibilidade de experiência. Isto porque a experiência é singular, irrepetível, como nos lembra Larrosa (2011), ao diferenciá-la do experimento, reproduzível por sua natureza.

O distanciamento aproximado nos permite mergulhar nesse espaço entre o eu e o outro, forjando movimentos de idas e vindas, nas suas falas, silêncios, gestos, fazendo da busca narrativa um gesto de escuta sensível ao que se passa e passa com cada um e consigo mesmo, no movimento da pesquisa. Pesquisar narrativamente é inscrever-se ética, estética e politicamente na pesquisa, compreendendo que nenhum distanciamento eufemiza a responsabilidade ética que a relação com os outros nos impõem; daí que a horizontalidade, alteridade e igualdade são constitutivas da pesquisa narrativa, pesquisa como exercício cotidiano de diferença.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar e praticar a formação docente, inicial e permanente, na perspectiva da investigação narrativa enquanto experiência, tem sido nossa opção teórica, política e metodológica. Narrar – oralmente, por escrito, imageticamente – o vivido nos encontros com as crianças e professoras, no cotidiano da escola, nos encontros com os autores, nos textos lidos e debatidos, nos encontros com cada um/a de nós, revela-nos que a narrativa é um modo privilegiado de dar vida à experiência. Ao narrar, contamos nossos modos de lidar e de pensar sobre o vivido, ou melhor, a partir do vivido. O que contamos? Como contamos? Por que contamos o que contamos?

Se a experiência nos obriga a pensar porque é do campo do imprevisível e não do programado ou pensado previamente; se nos toma de surpresa, pois, na maioria das vezes, está no campo do ainda não sabido, necessitamos assumir que tê-la como constitutiva dos processos formativos exige de nós o desafio de aprendermos a conviver com a imprevisibilidade, com a impossibilidade de controlarmos os processos de aprender e ensinar e, portanto, lidarmos, cotidianamente, com a surpresa. Surpresa que exige abandonar a expectativa da linearidade, das relações causa-efeito, da preparação como antecipação e execução, abrindo-nos para o acontecimento.

Nesse processo, no encontro com o outro – crianças, professoras e professores, da universidade e da escola básica, estudantes-bolsistas, sujeitos legítimos na relação –, temos aprendido a estar mais atentos/as ao que nos acontece, a afinar o olhar, a sensibilidade, a escuta, a observação, a estar presentes e não ausentes. O que nos inquieta nesse processo formativo, coletiva e singularmente vivido por cada um(a) de nós? Nos ouvimos? Ouvimos as crianças, as professoras? Deixamo-nos interpelar pelo que temos lido, conversado, vivido?

Nesse sentido, aprender com o que nos acontece, investigando narrativamente o próprio processo formativo, provoca deslocarmo-nos para modos outros de pensar e praticar a formação docente e a própria docência. Provoca-nos perguntar, insistentemente, como nos ensinou Jacotot/Rancière (2004): e você, o que pensa?

A aposta, insistimos, tem sido em processos formativos que tem como alimento a pergunta pelo que pode ser, pelo que está sendo e pelo porquê de estar sendo. Portanto, possibilidades de reconhecer outras realidades existentes ou por inventar. Formação narrativa como exercício do pensamento, como movimento de perguntar, de investigar, desejar, descobrir, criar...

Notas explicativas:

1 O projeto PIBID, em nossa universidade, é constituído por 8 subprojetos envolvendo cinco cursos de licenciaturas (Pedagogia, Música, Filosofia, Letras e Ciências) e 13 escolas públicas.

2 Importante dizer que, por compreender as crianças como sujeitos de direito, em nossas ações investigativas, conversamos e negociamos primeiro com elas e, posteriormente, com os pais e/ou responsáveis, embora nesta escola de Educação Infantil os pais e/ou responsáveis assinem, no ato da matrícula, autorização para o uso de imagem e produção das crianças para fim de pesquisa cadastrada na Instituição, por se tratar de um Colégio de Aplicação. No entanto, é importante ressaltar que, se o responsável consentir e a criança não, prevalece o posicionamento desta em relação à pesquisa.

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 16 de outubro de 2015

Aceito em: 06 de janeiro de 2016

Endereço para correspondência: Avenida Pasteur, 296, Urca, 22290-240, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; carmensanches.unirio@gmail.com

Roteiro, Joaçaba, v. 41, n. 1, p. 135-154, jan./abr. 2016