http://dx.doi.org/10.18593/r.v41i1.9267

NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA NA PESQUISA-FORMAÇÃO:1 DO SUJEITO EPISTÊMICO AO SUJEITO BIOGRÁFICO

NARRATIVES OF EXPERIENCE IN TRAINING RESEARCH: FROM THE EPISTEMIC SUBJECT TO THE BIOGRAPHICAL SUBJECT

RELATOS DE EXPERIENCIA EN LA INVESTIGACIÓN-FORMACIÓN: DE LO SUJETO EPISTÊMICO A LO SUJETO BIOGRÁFICO

Maria da Conceição Passeggi*

 Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfic (BIOgraph)

Resumo: Tematizamos as narrativas da experiência como dispositivos de pesquisa-formação. Iniciaremos pela noção de sujeito epistêmico e sujeito empírico como concepções propícias ao exercício de biografização. A experiência constitui o conceito central da pesquisa-formação com o uso de narrativas. Abordaremos as noções de capital biográfico, aprendizagem biográfica, memória biográfica como modo de conceber o sujeito biográfico. Tais noções nos ajudam a compreender que a formação ocorre ao longo da vida e em todas as circunstâncias da vida. Utilizamos nas análises memoriais autobiográficos e entrevistas narrativas. As conclusões planteiam uma epistemologia do sujeito biográfico que enlaça nas narrativas da experiência razão e emoção, o público e o privado, o padecer e o empoderamento.

Palavras-chave: Narrativas autobiográficas. Experiência. Sujeito biográfico. Reflexividade.

Abstract: We discuss narratives of experience as instruments in Training Research. We begin with the notion of the epistemic subject and the subject empirical as propitious concepts within the area of biographicalization. Experience constitutes the central concept of Training Research with the use of narratives. We conceive the biographical subject using the notions of biographical capital, biographic learning, and biographical memory. These notions help us understand that training is a life-long process that includes all areas of life.  We analyze autobiographic memories and open ended (narrative) interviews. The conclusions of this research outline an epistemology for the biographical subject that weaves through the narratives of experience, reason and emotion, the public and private, the disempowering and the empowering.

Keywords: Autobiographical narratives. Experience. Biographical subject. Reflexivity.

 

Resumen: En este artículo se reflexiona sobre los relatos de experiencia como dispositivos de investigación-formación. Comenzamos con la noción de sujeto epistémico y sujeto biográfico como concepciones que conducen el acto de biografización. La experiencia es el concepto básico de la investigación-formación con el uso de narrativas. Se discuten las nociones de capital biográfico, aprendizaje biográfica, memória biográfica como una manera de concebir el sujeto biográfico. Tales nociones nos ayudan a entender que la formación se lleva a cabo durante toda la vida y en todas sus circunstancias. En el análisis, se utilizaron escritos autobiográficos y entrevistas narrativas. Los resultados plantean una epistemología del sujeto biográfico que conecta, en los relatos de experiencia, la razón y la emoción, lo público y lo privado, el sufrimiento y el empoderamiento.

Palabras clave: Narrativas autobiográficas. Experiencia. Sujeto biográfico. Reflexividad.

1 À GUISA DE INTRODUÇÃO: O ADULTO EM FORMAÇÃO

Quando pensamos na formação de professores,2 nem sempre nos perguntamos qual é a concepção de sujeito que nos orienta no que denominamos de formação inicial, pós-graduada ou continuada. Um dos desafios parece ser o seguinte: enquanto não se conceber os professores como um adulto em formação, uma pessoa plena de experiências, com capacidade para refletir sobre si, e que tem muito mais para nos contar sobre a escola do que a produção científica atual dispõe sobre o tema, não se avançará, suficientemente, quanto à compreensão das relações que se estabelecem entre formandos e seu processo de formação. No ensino superior, o que se pode observar, sem dificuldades, no contexto da formação inicial ou continuada, é que quase invariavelmente, ao (re)ingressarem, como alunos, na sala de aula, os professores tendem a experienciar um processo de “regressão” ao se sentir novamente de volta aos bancos da escola. Pelo menos, inicialmente, passam a adotar, consciente ou inconscientemente, uma atitude de expectativas sobre “o que fazer” para obter o que vieram buscar (conhecimentos, certificado, saberes...), o que gera uma atitude de dependência em relação à instituição formadora e de espera quanto aos professores formadores, que teriam por função “orientar”, mostrar de que lado nasce o sol ou de onde virá a luz para iluminá-los. Por sua vez, os professores universitários, formadores de professores, tendem a acompanhar o mesmo movimento de relações verticalizadas. Aqui me situo entre os últimos, reconhecendo que pouco ainda se sabe sobre a formação dos professores enquanto “adultos em formação”, e não “alunos em formação”. Este talvez seja um dos pontos obscuros em nossa profissão e provocador de dúvidas e dificuldades e, portanto, um campo aberto à pesquisa educacional. Como lembram Altet, Paquay e Perrenoud (2001, p. 11), ao tematizarem sobre a profissionalização dos formadores de professores, “ainda que os professores em formação sejam adultos, os formadores de professores não se consideram nem são considerados como formadores de adultos e não participam da cultura desenvolvida no mundo das empresas ou de outras administrações públicas.”

A relação que se estabelece, comumente, entre educação e adultos, no Brasil, talvez por um viés histórico (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001), remete-nas às imagens do jovem e do adulto “analfabetos”, ou “analfabetos funcionais”, alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Raramente, associamos os alunos universitários, os professores, os profissionais a um adulto em formação, o que merece ser problematizado, pois a universidade forma, essencialmente, adultos. Nesse sentido, ou se prioriza a relação estatutária “professor-aluno”, como acontece na escola, ou se priorizam os conteúdos disciplinares, o que tende a tornar invisível a relação adulto-adulto, e, por conseguinte, uma relação de maior horizontalidade, fundada na “co-operação” entre profissionais, ou futuros profissionais da educação, em permanente formação.

O pensamento de Paulo Freire é nesse sentido incontornável, pois a percepção que o guiou não foi a do analfabeto, mas essencialmente a do adulto como pessoa, como ser capaz de compreender a razão de sua condição de analfabeto e, eventualmente, apoderar-se de seu poder de superação e de emancipação. Não é sem razão que o pensamento de Freire orientou a percepção de muitos educadores na formação continuada fora do Brasil. Para citar como exemplo apenas a que mais conheço, lembro o movimento das histórias de vida em formação, na Europa e no Canadá, nos anos 1980. Os pioneiros desse movimento mais conhecidos no Brasil, Gaston Pineau, Pierre Dominicé, Matthias Finger, Marie-Christine Josso e, para nós da lusofonia, António Nóvoa, preocuparam-se com esse adulto em formação e buscaram em seus estudos entender o que ele tinha a dizer sobre suas experiências e o que podiam fazer com elas, daí o recurso às narrativas da experiência profissional ou existencial e aos fatos pessoais vividos. Convinha, pois, repensar uma teorização sobre essas narrativas de si que as demarcassem como um procedimento próprio da educação, diferentemente do seu uso em outras ciências humanas, que aspiram ao distanciamento, à neutralidade, à objetividade do pesquisador.

Nesse sentido, o movimento biográfico internacional, que se consolidou a partir dos anos 2000, mais particularmente no Brasil,3 tem avançado no sentido de conceber a especificidade epistemológica das narrativas de si como prática de formação geradora de uma outra forma de produzir conhecimento em Educação, adotando, para tanto, um posicionamento crítico que, sem desconsiderar as aprendizagens disciplinares, centra-se no sujeito da formação e não apenas na formação em si mesma, abstraída de quem se forma.

2 DO SUJEITO EPISTÊMICO AO SUJEITO BIOGRÁFICO

A noção de “sujeito” encerra em si mesma uma ambiguidade histórica, como lembra Etienne Balibar (2012, p. 70), se, por um lado, ela designa “sujeição, assujeitamento, submissão a uma autoridade, a um poder”, ou à própria linguagem, por outro lado, ela remete à subjetivação, à “emancipação, a um poder de decidir ou de pensar por si mesmo.” (BALIBAR, 2012, p. 70, tradução nossa). Mas, se ao invés de se pensar a noção de sujeito encerrada nessa dicotomia de sujeito assujeitado-sujeito empoderado, ou seja, a do herói ou do anti-herói da história narrada, seria mais prudente concebê-lo na complexidade dialética de nossa própria humanidade e de nossas múltiplas faces. Essa é a perspectiva proposta por Ricoeur (1994), quando sugere que, enquanto sujeitos, nós “sofremos e agimos” ao mesmo tempo, o tempo todo.

Gostaria de abordar essa controvertida noção de sujeito pela ideia de uma travessia: do sujeito epistêmico ao sujeito biográfico, para, em seguida, discutir as narrativas da experiência no contexto da pesquisa-formação. É bem verdade que são apenas aproximações, pois, como se sabe, trata-se de um tema tão amplo e tão complexo quanto a própria história do pensamento ocidental sobre o humano. Retomo dois momentos: o primeiro remonta a cinco séculos antes de Cristo e o segundo ao nascimento da ciência moderna.

Na memória coletiva ocidental, a emergência do sujeito (e não do indivíduo) seria contemporânea da célebre inscrição do Oráculo de Delfos: “Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.” Quero pensar que se encontram nela amalgamados o sujeito epistêmico (sujeito do conhecimento), capaz de conhecer, de refletir, de sistematizar; e o sujeito biográfico (sujeito do autoconhecimento), capaz de conhecer-se, de refletir sobre sua própria natureza, o que o faz humano, em que e porque se diferencia de outros seres ou a eles se assemelha, para daí depreender teorias. O que importa é que o autoconhecimento constitui a condição necessária para conhecer: “os deuses”, simbolicamente, tudo o que nos governa, e “o universo”, simbolicamente, tudo o que nos rodeia, empírica e culturalmente, pois o lugar onde habitamos é feito de coisas e de ideias sobre as coisas.

O segundo momento, o da ciência moderna, que emerge no século XVI, permite-nos deixar de lado muitos séculos de discussões sobre o humano para tomar como hipótese que a ruptura entre o sujeito do conhecimento e o sujeito biográfico se evidencia com o advento da pesquisa científica. E aqui quero lembrar o que diz Boaventura de Souza Santos (2002, p. 81) a respeito do sujeito: “A ciência moderna consagrou o homem como sujeito epistémico, mas expulsou-o enquanto sujeito empírico.” Com efeito, é a partir daí que o sujeito do conhecimento, racional, abstrato (com certeza vital para ciência moderna) cresce em significações na pesquisa científica. E a tendência para se fazer ciência, inclusive em educação, foi a de esquecer o sujeito empírico (com certeza vital para as ciências sociais e humanas) ou seja, o sujeito de carne e osso, feito ao mesmo tempo de razão e emoção, transpassado pela experiência e capaz de refletir sobre si mesmo e sobre ela.

Pensar em travessia é, antes de tudo, uma provocação para considerar, por um lado, o que produziu, ao longo da história ocidental, a dicotomia entre o sujeito epistêmico (do conhecimento) e o sujeito biográfico (do autoconhecimento), presente na inscrição de Delfos, por outro lado, na possibilidade de religar conhecimento e autoconhecimento nas narrativas da experiência, consideradas como prática pedagógica na perspectiva da pesquisa-formação. Para conceber essa indissociabilidade, nada mais sutil do que a metáfora das duas faces de uma folha de papel, utilizada por Saussure (2006, p. 131), para se referir à impossibilidade de se isolar o som da palavra pronunciada do pensamento. Do modo semelhante, o sujeito epistêmico seria o anverso e o sujeito biográfico o verso, por isso “não se poderia cortar um sem cortar ao mesmo tempo o outro.”

Essa indissociabilidade do sujeito do conhecimento e do autoconhecimento é importante para conceber os professores em formação, notadamente, na “sociedade biográfica” (ASTIER; DUVOUX, 2006), em que o sujeito enfrenta a injunção do desafio biográfico. Desafio de falar de si, de refletir sobre si mesmo, de “fabricar uma história de si”. É inegável que hoje as prováveis trajetórias já não são mais traçadas por antecipação como anteriormente (uma formação, um tipo de profissão e aposentadoria). As carreiras se fazem em ziguezague, não é raro ter diplomas em diferentes áreas do conhecimento, mais de uma aposentadoria, talvez por isso se peça que se explicitem os benefícios e atropelos de um percurso “personalizado”. Cada pessoa se torna responsável pelos desvios de rota, eventuais sucessos e fracassos. O que se pretende não é apenas que esse indivíduo crie sua própria “marca”, mas que ele saiba falar dela e por ela. Essa exigência chega a atingir certa perversidade: é preciso mostrar-se como um “produto vendável”, “empregável”, “casável”. O marketing de si próprio, de sua própria história, de seu cotidiano, chama a atenção nas redes sociais. Como nos lembra Sibilia (2008) em “O show do eu. A intimidade como espetáculo”, as pessoas se tornam protagonistas de suas histórias (reais ou ficcionais) e passam a viver dessas histórias. Além disso, já não basta “ser”, é preciso “saber ser” em permanente metamorfose, transformando-se, adequando-se, continuadamente. Como sugere Dosse (2009), no desafio biográfico, o sujeito encontra-se na idade hermenêutica; a da reflexividade e da pluralidade das identidades, em que as histórias rompem com a linearidade dos fatos na narração.

É em meio a virada atual da subjetividade, ou para alguns, da desubjetivação, que cumpre olhar com mais atenção para a pessoa em formação, de que ponto de vista ela percebe seu modo de ser, de conceber o mundo e de se conceber no mundo. Nessa situação de crise das identidades plurais, é importante desenvolver a capacidade de reflexão crítica, pois a ausência dessa crença destitui o ser do que é inerente à sua humanidade: a capacidade de refletir sobre sua experiência, de conhecer e de se autoconhecer para conhecer “os deuses” e “o universo”.

Delory-Momberger (2008, p. 102) cita uma passagem de David Hume (1711-1776), em seu Tratado da natureza humana, que permite conceber, do ponto de vista ontológico, o surgimento do sujeito biográfico na infância como uma epifania, momento em que nos revelamos a nós mesmos como um eu:

Certa manhã, quando ainda bem criança, estava eu à porta da casa e olhava para a esquerda em direção ao fogo quando, subitamente, a intuição íntima: Eu sou um eu (Ich bin ein Ich), brilhou como um relâmpago vindo do céu; seu brilho desde então ficou presente em mim; meu eu tinha se percebido a si mesmo pela primeira vez, e para sempre.

Para Bruner (1997, p. 78), a função “mais poderosa” da cultura (escolar, familiar, religiosa, midiática ou histórica) é a de exortar os indivíduos a encontrarem um equilíbrio entre o que a cultura proíbe e o que ela gratifica. Por sua vez, as capacidades “mais poderosas” do humano, desde a infância, são a de “refletir” para avaliar o que a cultura lhe oferece e “projetar alternativas” para (sobre)viver nessa cultura e, eventualmente, transformá-la. Adotar tal disposição como um princípio epistemológico e político permite conceber os professores como seres capazes de reconhecer o poder da cultura sobre eles, mas também de avaliar e projetar alternativas para viver melhor e contribuir para que outros também vivam melhor nas suas relações com o poder que emana da cultura.

3 NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA: O PARADIGMA DA PESQUISA-FORMAÇÃO

As ciências da educação confrontam-se a uma alternativa difícil: fazer-se reconhecer no mundo dito científico, utilizando os mesmos métodos que as outras ciências sociais, ou aceitar deliberadamente mudar de paradigma de pesquisa, em função da especificidade epistemológica do saber da educação.

(Pierre Dominicé, 2000, p. 84)

A institucionalização da formação continuada, no início dos anos 1970, na Europa, torna difícil manter a perspectiva do sistema educativo canônico que priorizava essencialmente crianças e adolescentes, a quem a instituição escolar deve/pode dizer o que é melhor aprender para garantir o futuro. Ora, para o adulto, seu horizonte biográfico se estreita, suas prioridades tornam-se urgentes, suas preocupações devem encontrar soluções mais imediatas. Para Josso (2010, p. 63), a formação do adulto deve ter como objetivo o alargamento de suas “capacidades de autonomização e, portanto, de iniciativa e de criatividade”, que possam alargar seu horizonte biográfico. O paradoxo, como sugere a autora, é que a sua autonomia parece se estreitar drasticamente quando o adulto se encontra numa situação educativa institucional.

Nesse sentido, uma das grandes contribuições do movimento socioeducativo das histórias de vida em formação (PINEAU; LE GRAND, 2012; JOSSO, 2010; DOMINICÉ, 2000), foi a de conceitualizar a prática de narrativas em que o narrador toma suas experiências como objeto de reflexão, sob a denominação de pesquisa-formação (DOMINICÉ, 2000; JOSSO, 2012), ou de tornar a pesquisa-ação um processo de formação, como propõe Pineau (2005), ao acrescentar mais um traço de união: pesquisa-ação-formação, em resposta à necessidade de um novo paradigma em educação que emergia diante das especificidades da formação de um público adulto.

Gaston Pineau (2005) retraça quarenta anos de história das Ciências da educação, na França, enfatizando os laços entre sua história pessoal e acadêmica com a emergência desse novo paradigma que ele chamará de “paradigma atropoformador de pesquisa-ação-formação”. Esquematizando as definições de Khun, Pineau (2005) propõe uma modelização paradigmática das relações entre pesquisa, ação e formação, ao responder perguntas que estruturam e legitimam um campo científico, relacionadas a elementos práticos (Quem investiga o que?); aspectos ideológicos (Por que?); metodológicos e epistemológicos (Como?). Em síntese, o que diferencia o modelo clássico da pesquisa educacional e o modelo emergente da pesquisa-formação seriam os seguintes:

a) Quem pesquisa? No modelo tradicional são os pesquisadores em seus laboratórios e grupos de pesquisa, cuja prioridade é a da produção científica nas mais diversas áreas de conhecimentos. O que diferencia o paradigma da pesquisa-formação é que nele se acrescenta, além dos formadores e de instituições não universitárias, a própria pessoa em formação, legitimada a se formar mais pela produção de conhecimento fundado em suas práticas e experiências, do que pelo consumo de conhecimentos produzido sobre elas. Com isso, cresce o número de agentes sociais envolvidos na pesquisa e essa massa crítica emergente passa a ser considerada como uma nova força paradigmática, com tendência a democratizar as instâncias produtoras do conhecimento. Como afirma Ferrarotti (2014), as pessoas, e em nosso caso os professores, estão preocupados com os problemas que os inquietam e buscam uma ciência de mediações suscetível de lhes trazer respostas.

b) O que se pesquisa? No modelo clássico, os objetos de pesquisa são as práticas instituídas pela escola (ensino, aprendizagem, educação especial; reeducação, etc.), fundamentados na definição canônica de que a educação é a ação das gerações adultas (na escola, na família, no trabalho, etc.) sobre as novas gerações, com vistas a aplicar os resultados da pesquisa na otimização da ação educativa e instrumentação mais adequada. No modelo emergente da pesquisa-formação, sobressaem-se as práticas não instituídas e aprendizagens experienciais (pessoais; sociais, existenciais) introduzidas pelos novos agentes e relacionadas a seus problemas, que se constituem os objetos de investigação com amplas aberturas para os diferentes tipos de aprendizagem (formais, não formais e informais), que vão além do que é potencialmente previsto na clássica divisão das etapas escolares (educação infantil, ensino fundamental, médio, superior, pós-graduação).

c) Como se pesquisa? No modelo clássico, adotam-se as metodologias disciplinares baseadas na divisão sujeito/objeto; teoria/prática; pesquisa/ação, e segundo uma epistemologia positivista com uma visão pouco crítica de um saber analítico, preciso, verdadeiro, sistematizador. No modelo da pesquisa-formação adotam-se metodologias interativas com traços de união na constituição de um novo paradigma: o da pesquisa-formação, ou o da pesquisa-ação-formação. A perspectiva epistemológica se institui numa perspectiva transdisciplinar, ou mesmo pós-disciplinar, como propõe Ferrarotti (2013, p. 23, tradução nossa), para conceber o método (auto)biográfico nas ciências sociais e humanas: “Isso quer dizer que é preciso ir buscar instrumentos heurísticos e metodológicos no lugar onde eles se encontram: na história social, na filosofia, na antropologia social e cultural, na etnografia, na psicologia e na psicanálise, mas também na literatura e na poesia.”

d) Finalmente, por que se pesquisa? Se no modelo clássico o objetivo é a explicação e compreensão teórica para depreender leis e princípios aplicáveis à ação educativa; no modelo da pesquisa-formação destacam-se três objetivos principais: o objetivo da compreensão teórica; o objetivo praxeológico de engenharia e de estratégia de formação; e o objetivo emancipatório. Entendo que o último é o mais importante dos três, pois se trata de perceber a pesquisa como parte integrante da formação e não alheia a ela, pois a pesquisa é o que torna possível o processo de conscientização de formar-se com e pela pesquisa. Do ponto de vista axeológico, a dicotomia entre compreensão teórica e aplicação prática é substituída pela inclusão do objetivo emancipatório de conscientização e autonomização, que levará incondicionalmente em conta as experiências individuais de aprendizagem do sujeito da formação.

4 A EXPERIÊNCIA DO SUJEITO BIOGRÁFICO NO CENTRO DA PESQUISA-FORMAÇÃO

[...] subestimar a sabedoria que resulta necessariamente da experiência sociocultural é, ao mesmo tempo, um erro científico e a expressão inequívoca de uma ideologia elitista. (Paulo Freire, 1992, p. 85).

O reconhecimento da experiência adquirida no mundo do trabalho virá fortalecer a proposta da pesquisa-formação como um paradigma não aplicacionista em educação, pois ele permite elastecer a temporalidade das aprendizagens na perspectiva de uma formação ao longo da vida (life learning), e admitir que as aprendizagens se fazem em todos os ambientes e nos mais diversos aspectos da vida (lifewide learning). Essa virada paradigmática enfatiza também a complementaridade e o efeito cumulativo das aprendizagens: formais (adquiridas nos sistemas educacionais e validadas por um diploma); não formais (desenvolvidas no seio de atividades profissionais e sociais) e informais (realizadas na vida cotidiana e de modo não intencional ou inconsciente). Segundo esse novo paradigma, o professor como ser aprendente é capaz de compreender a historicidade de suas aprendizagens, realizadas e por se realizar, ao longo da vida (life learning), em todas as circunstâncias (lifewide learning), e de produzir teorias e conhecimentos sobre seus modos de fazer, de ser e de aprender. Sua autonomização (emancipação) advém da sua disposição para dar sentido a suas aprendizagens, explícitas ou tácitas, que lhes são úteis para se posicionar como sujeito e tomar decisões. O que se pode deduzir que não é fácil sentir-se um adulto em formação, assim como não o é repensar as funções de ser formador de adultos professores.

Se as palavras não são apenas representação da realidade, mas uma forma de perspectivar o mundo, como defende Thomasello (2003), a etimologia do termo experiência, do latim experientia, ae, ajuda-nos a compreender a razão do seu papel central na formação do adulto. Larrosa (2002) lembra a associação subjacente entre experiência e perigo, à medida que expereri (provar) contém a raiz - per – de “perigo”, e ex significa “saída de”. Nesse sentido, ex-perire (experiência) significaria ter provado do perigo, ter sobrevivido aos seus riscos e ter aprendido algo no encontro com eles.

A formação remeteria, pois, a viver uma situação em que padecemos uma provação (uma experiência) e por causa dela somos colocados diante de nós mesmos (e do outro). Para superar a prova, tateamos em busca de soluções, o que de nós exige entendimento, julgamento e capacidade de avaliação. Retomamos de Delory-Momberger (2005, p. 126) os termos em alemão Erlebnis e Erfahrung, equivalentes à experiência, aos quais a autora recorre para falar da constituição da experiência para o sujeito e da natureza do saber que ele adquire no seu percurso biográfico. Erlebnis designa à experiência mais imediata e pessoal, que se pode traduzir por experiência vivida ou uma vivência significativa. Erfahrung associa-se a impressões sensoriais e ao entendimento cognitivo que integra a experiência num todo narrativo e num processo de aprendizagem. Como afirma Martin Jay (2009, p. 27), o termo em alemão Erfahrung permite vincular perigo (Gefahr) a viagem (Farht), ancorando a experiência numa temporalidade mais longa, articulando a relação entre experiência e memória, o que induz à possibilidade de que se “ganhar” experiência ao longo da vida, o que nos permitirá conceitualizar a noção de capital biográfico como resultante dessa experiência que nos constitui humana e historicamente, ao qual recorremos como referência para refletir, agir ou reagir.

Essa potencialidade formadora de fazer experiências, refletir sobre elas para aprender sobre nós mesmos e o mundo, torna inseparável o sujeito e o objeto de conhecimento. Ou seja, é preciso se expor, sem medo de padecer sob o impacto da experiência para poder dela tirar lições para a vida e aprender com ela sobre nós mesmos. Nesse sentido, é que entendemos o que conceituam Alheit e Dausien (2006) por aprendizagem biográfica. Desejamos aqui retomar o que afirma Contreras (2010, p. 63) para resituar essa aprendizagem na formação docente: “sin embargo, el saber que necesitamos para vivir (y para vivir-nos como docentes) es aquel que está unido a nosotros, que nos constituye, que hace cuerpo con nosotros, que tenemos in-corporado. O que significa anular as fronteiras entre o que sabemos e o que somos, entre o sujeito biográfico e o sujeito epistêmico. A aprendizagem é autobiográfica ou não é aprendizado. O conhecimento é autoconhecimento ou não é conhecimento do qual possamos dispor.

É nesse contexto que se fortalece a valoração do biográfico, da arte de refletir sobre a própria experiência consigo mesmo e com o outro (JOSSO, 2010; LARROSA; PASSEGGI, 2011). Essa virada biográfica, que surge e se consolida em educação, cria um campo semântico com noções fundadas na vida (bio) e no uso de instrumentos semióticos (grafia), derivando daí noções a serem estudadas, debatidas e melhor conceituadas: memória biográfica; reflexividade biográfica; aprendizagem biográfica, biografização (ALHEIT; DAUSIEN, 2006; DELORY-MOMBERGER, 2008; ALHEIT, 2012; PASSEGGUI, 2014b). É nessa perspectiva que se pode sustentar a defesa, o reconhecimento e a legitimidade da experiência como lugar de pesquisa-formação, mediante a construção de uma narrativa refletida sobre a docência como objeto de investigação, levada a cabo pelos próprios professores, exige novas formas de pensar sobre o que fazer para acompanhar quem pesquisa sua prática. Como sugerem Alheit e Dausien (2006), convém investigar com maior acuidade os processos de formação biográfica, pois eles têm seus próprios princípios, o que nos falta, dizem-nos ainda os autores, é “uma teoria elaborada e sistemática da aprendizagem biográfica” (ALHEIT; DAUSIEN, 2006, p. 193). Daí a necessidade de pesquisas nessa área que atentem para as especificidades da formação inicial e continuada de professores, fundamentadas no biográfico.

5 OS MEMORIAIS DE FORMAÇÃO COMO NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA DOCENTE

A reflexão que proponho toma como base as pesquisas desenvolvidas, nesses últimos 15/16 anos, com orientandos e pesquisadores colaboradores do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Auto.Biografia, Representações e Subjetividades (GRIFARS-UFRN-CNPq). Ela é, portanto, produto de um pensamento coletivo, que se iniciou no final dos anos 1990, sob o marco de uma ruptura epistemológica que tomava como objeto de estudo os memoriais de formação (narrativas da experiência docente), concebidos como prática de formação de professores, ditos “leigos”, que deviam cursar o ensino superior para continuarem a exercer a docência, alguns deles com mais de 20 anos de magistério. O desafio que assumíamos ao tomar os memoriais como objeto de estudo se projetava contra a ideia de uma “ilusão biográfica” na pesquisa educacional, na tentativa de legitimar a palavra de professores “leigos” e de um saber feito de experiência.

Ao ler pela primeira vez os memoriais de formação de seis professoras leigas para participar de bancas examinadoras, compreendi que as pesquisas que vinha desenvolvendo sobre a relação professor-aluno em sala de aula, encontravam ali uma entrada privilegiada para um aspecto inexplorado da formação: a pessoa do professor e o modo como ele (re)construía em seus memoriais sua formação intelectual e profissional. O Grifars passou a se constituir como grupo de pesquisa, num trabalho conjunto4 com as professoras da instituição que orientavam os memoriais, as professoras em formação e orientandas de iniciação científica e pós-graduandas. Éramos todas mulheres professoras que pouco sabíamos sobre um novo gênero autobiográfico em construção. Nossa crença se assemelhava a de Joseph Jacotot, “o mestre ignorante”, de quem nos fala Jacques Rancière (2007, p. 9), pois de certo acreditávamos que “Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas”, essa condição de não saber colocava-nos em pé de igualdade, por isso avançamos tateando, observando, gravando e transcrevendo, durante um ano, os encontros que aconteciam em grupos, reunindo professoras formadoras e leigas para a discussão e orientação dos memoriais. Pudemos acercar-nos do processo de biografização (DELORY-MOMBERGER, 2008), e de seu efeito sobre os professores que narravam sua história nos grupos reflexivos (PASSEGGI, 2011), que recuperavam a autoestima e lançavam um novo olhar sobre seus alunos e sobre sua prática docente. Essa abertura para a pessoa em formação atraiu jovens pesquisadores interessados em fazer de suas práticas objeto de investigação, o que permitiu diversificar e ampliar o campo de pesquisa em educação.

Ultimamente, as análises da fala das crianças em pesquisas que realizamos com colegas no Brasil, na França e na Colômbia, exigiram que buscássemos aprofundar teoricamente algumas noções que nos permitissem sustentar a importância da palavra da criança para a pesquisa (auto)biográfica, entre elas o lugar da noção de reflexividade autobiográfica (PASSEGGI, 2014b), entendida como uma disposição da criança, do jovem, do adulto a se voltar sobre si mesmos para explicitar o que sentem ou até mesmo perceber que fracassam na tarefa de biografização, ao reelaborarem, narrativamente, a experiência vivida. Sabemos que essa capacidade não é suficientemente desenvolvida nos processos de escolarização, que fixados nas aprendizagens das disciplinas formais deixam pouco espaço para compreender como os aprendentes mobilizam seu capital biográfico e como eles aprendem com a reflexão sobre saberes inscientes ou tácitos.

6 O SUJEITO BIOGRÁFICO E O TRABALHO DE BIOGRAFIZAÇÃO NAS NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA

Por considerar o processo de reflexão crítica como uma atitude fundante para a formação humana, tenho me dedicado a examinar a importância das narrativas da experiência para pensar o sujeito da formação como sujeito biográfico. A análises de inúmeros memoriais, a orientação de mestrados, doutorados e pós-doutorados sobre as escritas de si partilhadas em grupos reflexivos vieram aprofundar e ampliar o que havia percebido na pesquisa com a escrita dos memoriais pelas professoras leigas. Com a escrita desses memoriais, apostava-se, por um lado, na capacidade de escrever e refletir sobre suas experiências, e, por outro lado, que elas tinham muito a ensinar e não apenas a aprender. De fato, ao reingressarem, como professoras “leigas”, elas eram destituídas de sua identidade docente. E o que de fato impressionava, na leitura das gravações nos grupos reflexivos, era como se transformava, ao longo do ano, a percepção dessas professoras sobre a escrita de si, sobre elas mesmas como autoras de suas histórias, sobre seus alunos e a prática docente.

O que muito me ajudou a conceber o processo de mediação biográfica (PASSEGGI, 2008) no âmbito da pesquisa-formação foram os estudos de Delory-Momberger (2008, 2005), de Dominicé (2000, 2006), de Gaston Pineau (2005) e, particularmente, de Josso (2010) e de Paul Ricoeur (1994, 1990). Vou aqui apenas sintetizar o que já desenvolvi em outros textos (PASSEGGI, 2008, 2010, 2011, 2012, 2014a; 2014b; 2015; PASSEGGI, et al., 2014). Inspirada, inicialmente, nas metáforas utilizadas pelas professoras para falar da escrita dos memoriais, identifiquei três momentos do processo de biografização: o da evocação, o da reflexão e o da conscientização. Esses três momentos foram enriquecidos com os estudos de Ricoeur (1994) sobre a tríplice mimese, e de Josso (2010) sobre as figuras antropológicas do formador e da pessoa em formação.

Ricoeur (1994) concebe a tríplice mimese como momentos de prefiguração, configuração e refiguração do tempo pela tessitura do enredo da história. À medida que as professoras avançam no processo de pesquisa-formação e vão aprofundando seus questionamentos durante a escrita do memorial, elas ressignificam, ao mesmo tempo, o próprio memorial e a si mesmas como professoras e autoras de sua história.

Quando iniciam o processo de escrita, momento que denominei de iniciático, elas questionam a validade de escreverem sobre a própria experiência. A metáfora que utilizam para se referir ao memorial é a do “bicho-papão”, que provém da própria representação de si como pessoa intimidada face ao desafio biográfico. Trata-se aqui da Mimese I, o momento de prefiguração, que se caracteriza pela evocação ainda desordenada dos fatos e sobre o que, ou quem se deseja pesquisar. Que fatos marcaram a minha vida? O que me inquieta na prática docente? O que me dá satisfação? Inicia-se aqui o processo de autoria do memorial. Embora ainda hesitantes, as professoras são convidadas a escreverem sua história e elas vão adotando modelos biográficos de outros memoriais. Nesse primeiro momento, identificam-se, respectivamente, as pessoas da formadora e da professora em formação com as figuras do Ancião (que tem maior experiência) e a do Herói (que luta para se sobrepor aos obstáculos).

O segundo momento, o maiêutico, acontece quando as professoras em formação começam a se apropriar de sua capacidade de reflexão, recorrendo ao seu capital biográfico, e interrogam-se sobre saberes tácitos, razões, consequências e formas alternativas de conceber a experiência docente e suas práticas. Nesse momento, o memorial é concebido como um processo criativo de si mesma, “o filho” que nasce da reflexão, pelo parto das ideias, e se materializa na primeira versão escrita do memorial. Relacionei esse segundo momento à Mimese II, momento da configuração do tempo em que a professora-narradora constrói um enredo para dar uma forma ao que lhe parece informe, sentido ao que pode parecer insignificante. Nessa construção do enredo, as professoras buscam compreender o que aconteceu (experiência) e o que lhes aconteceu. Aqui razão e emoção andam juntas. É nesse esforço de dar sentido ao que também lhes acontece no processo de biografização que se dá o encontro do sujeito epistêmico com o sujeito empírico, mediante a ação do sujeito biográfico, que busca em suas suas aprendizagens, razões, emoções, inflexões. É o sujeito epistêmico que vai buscar princípios, razões, causas, que lhe permitirão transformar uma “curiosidade ingênua” sobre sua experiência em “curiosidade epistemológica”, como sugere Freire (2011), e que lhes permitirá integrar a experiência vivida num todo narrativo (Erfahrung). As professoras se questionam, pesquisam, vão buscar as razões, outras vozes, voltam à sala de aula, reveem seus alunos com outros olhos. É nesse momento que ganha sentido a noção de pesquisa-formação, momento em que elas se (re)conhecem em processo de formação pela pesquisa que realizam sobre sua prática. A sua percepção de mundo muda, todos e tudo passam a fazer sentido, a reflexão sobre as experiências ajudam a tirar “lições” da vida. E é nos grupos reflexivos que se manifestam suas mudanças em andamento, ao trocarem ideias, repassarem entre elas os textos que leram, falarem com mais carinho dos seus alunos... A figura antropológica do formador se transmuta: o Ancião torna-se Animador, aquele que dá alma, vida, e que acredita no outro. Por sua vez, a do narrador também se transforma: a professora passa da figura de Herói à figura de Artista, a de quem cria, e vai se concebendo no ato de escrita como autora, constituindo-se aos poucos em sujeito biográfico. Pelo processo de reflexão aprofundada, o sujeito biográfico religa o sujeito epistêmico ao sujeito da experiência. O sujeito se transforma naquilo que ele aprende com a narração.

Finalmente, o terceiro momento corresponde à fase de conclusão e defesa do memorial, que, uma vez concluído, obriga a certo distanciamento do universo criado pelo texto. Esse distanciamento dá lugar à metáfora da viagem: “Escrever o memorial foi uma viagem”. Metáfora que justifica as narrativas de experiência como pesquisa-formação. Esse processo de interpretação da interpretação, dada pela escrita, chamei de momento hermenêutico, o que faz pensar na experiência como “saída do perigo” e das aprendizagens feitas no encontro com ele. O terceiro momento é o da Mímese III, o da refiguração do mundo criado pelo texto, e que permite a quem narra ter acesso a um novo tempo de teorização ou de sistematização da própria experiência de pesquisa-formação: o da produção do conhecimento incorporado, na e pela escrita. Como afirma Dominicé (2000), a formação pertence a quem se forma. Nesse terceiro momento, a formadora se transforma na figura do Balseiro, que deve conduzir para a outra margem a professora-narradora, transformada, por sua vez, em Expert. É esta quem dirá aonde quer ir e prosseguirá seu caminho assumindo depois a figura do Ancião junto a quem ela iniciará na tarefa de refletir sobre si no processo de formação.

A professora-narradora sai fortalecida pelo processo de autoria. Seu discurso não se distancia de sua prática, anda com ela, o que lhe dá mais confiança, aumenta sua autoestima e a encoraja a continuar aprendendo, teorizando, conhecendo e conhecendo-se de forma mais autônoma. Possivelmente com menos medo de se expor a novas experiências, e poder assim ir vivendo e sofrendo, padecendo e agindo, avaliando(se) dentro e fora do discurso, na sua práxis cotidiana. O sujeito biográfico se afirma no processo de biografização, como sujeito epistêmico (do conhecimento) e sujeito biográfico (do autoconhecimento) suscetível de melhor conhecer “os deuses” e “o universo”.

7 CONSIDERAÇÕES EM ABERTO

Quero crer que quando se critica o uso de narrativas da experiência como prática de formação e não lugar de produção de conhecimentos, isso se deve não às potencialidades da pesquisa-formação, mas, talvez, ao fato de no processo de biografização não se completar os três movimentos da “tríplice mimese”: prefiguração (evocação); configuração (reflexão autobiográfica); refiguração (conscientização).

Para finalizar, retomo a noção de sujeito biográfico, concebendo-o numa tríplice dimensão para considerar seus desejos, emoções e práticas, muitas vezes esquecidos pelas instituições que privilegiam a formação de alunos, professores, cientistas, trabalhadores, e não a da pessoa em si mesma. As análises das narrativas de professores e de crianças (PASSEGGI et al, 2014) exigiram que buscasse aprofundar teoricamente a noção de sujeito para sustentar a importância da reflexividade autobiográfica na perspectiva da pesquisa-formação. Conforme anunciado anteriormente, a noção de reflexividade autobiográfica é então entendida como probabilidade de o indivíduo (criança, jovem, adulto) voltar-se sobre si mesmo para tentar explicitar o que sente ou até mesmo perceber que fracassa nessa difícil tarefa de (re)elaboração da experiência vivida.

O que importa é que ao narrar sua experiência, a criança, o jovem, o adulto dotam-se da possibilidade de se desdobrar como espectador e como personagem do espetáculo narrado; como objeto de reflexão e como ser reflexivo. Essa relação dialógica e dialética entre ser e a representação de si confere ao humano um modo próprio de existência: como sujeito biográfico que religa o sujeito epistêmico e o sujeito empírico, no mundo da vida e do texto. O sujeito biográfico se constitui pois pela narrativa e na narrativa, na ação de pesquisar, de refletir e de narrar: como ator, autor e agente social.

A condição de ator seria aquela de quem interpreta papéis preexistentes, em cenários preexistentes, sem autocrítica, podendo conduzir ao exercício mecânico de modelos e estereótipos criados em diversos cenários sociais: na família, na escola, no mundo do trabalho. A condição de autor, central na pesquisa-formação, é aquela da pessoa que ao narrar suas experiências toma consciência dos papéis, herdados, improvisados, nos cenários da vida. E é a partir da reflexão autobiográfica sobre esse agir alienante que os professores assumem a autoria do seu texto, de uma história que ainda não existia porque não tinha sido ainda narrada, refletida. A condição de agente social é aquela de quem age no mundo da vida, não para exercer papéis preconcebidos, mas em virtude de uma ação refletida situada no seu próprio horizonte biográfico. O sujeito biográfico assume a responsabilidade pela continuidade de sua história e de seu agir com o outro no mundo da escola. Como agente ele se situa para além do eu, e por isso mesmo num horizonte ético, a favor do bem comum. É nesse sentido que se pode falar de conscientização. Retomo a noção de biografização como pesquisa-formação, que se realiza pela linguagem e na linguagem no ato de narrar, ou de biografar-se.

É evidente que essa reflexão não dá conta da complexidade da problemática lançada inicialmente. De fato, ela seria um programa para muitos pesquisadores, trata-se aqui apenas de trazer alguma luz sobre a ambivalência do sujeito, entre submissão e emancipação, e pensar que o sujeito biográfico pode religar o sujeito do conhecimento ao sujeito do autoconhecimento, negligenciado pelas ciências da educação. Assim, trata-se apenas de uma tentativa de teorização que seja “suficientemente boa” para continuar a avançar com os professores e seus formadores no conhecimento do adulto educador em formação.

Fica aqui uma pergunta, para esse novo tempo, momento em que se criam os mestrados profissionais mais voltados para a investigação da prática pelos professores, no contexto da formação docente. Essa possibilidade de religar o sujeito epistêmico ao sujeito empírico, mediante a ação do sujeito biográfico, que pesquisa, reflete e narra com base em suas experiências, pode ser considerado como uma nova epistemologia na pesquisa qualitativa e na formação de professores, ou tudo isso é apenas uma utopia, uma mera “ilusão biográfica”? Os resultados de muitos anos de pesquisa nos permitem dizer que os professores que refletem a respeito de suas experiências e as lições aprendidas na docência, que tiveram a possibilidade de refletir sobre a docência com seus pares, seriam mais suscetíveis de responder a situações difíceis e/ou imprevistas com maior segurança por ter aprendido a melhor se compreender em situações de risco e a sair delas.

Notas explicativas:

1 Uma versão deste texto foi apresentada e discutida por ocasião do I Congresso do Profletras (UFJF, Juiz de Fora-MG, setembro/2015) e do Congresso da AFIRSE (UFRN, Natal, setembro 2015).

2 Embora reconheça a importância da distinção de gênero, recorro ao termo professores, alunos, formandos, no plural, para evitar sobrecarregar o texto com parênteses.

3 A produção científica resultante das seis edições do Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica (livros, revistas, Anais, mídia) é significativa dessa mudança em Educação.

4 Projetos de pesquisa: 1) Narrativas da infância. A criança como agente social. (Proc. N. 311269/2013) – Pq- CNPq – 2014-2017. 2).

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Artigo Recebido em: 15 de outubro de 2015

Aceito em: 19 de fevereiro de 2016

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Roteiro, Joaçaba, v. 41, n. 1, p. 67-86, jan./abr. 2016