http://dx.doi.org/10.18593/r.v41i1.9263

NARRATIVAS COMO TRAVESSIAS CURRICULARES: SOBRE ALGUNS USOS DA PESQUISA NA1 FORMAÇÃO DE PROFESSORES

LIFE STORIES AS COMPLICATED CONVERSATIONS: TELLING ABOUT RESEARCH WITHIN TEACHER’S EDUCATION

NARRATIVAS COMO TRAVESÍAS CURRICULARES: SOBRE ALGUNOS USOS DE LA INVESTIGACIÓN EN LA FORMACIÓN DOCENTE


Maria Luiza Süssekind*

Professora Adjunta da Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio); Pesquisadora Líder do Grupo de Pesquisa Práticas Educativas e Formação de Professores; Coordenadora do GT Currículo/Anped

Viviane Lontra**

Professora de Educação Básica do Setor Multidisciplinar do Colégio de Aplicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Resumo: Apostando em inventar no trabalho de campo para dar conta das pesquisas multilocalizadas na formação de professores em que habitamos diversos espaçostempos por meio de nossas redes de conhecimentos e subjetividades trabalhamos com metodologias inventadas a partir do fazer com e criadas nos contextos das pesquisas nosdoscom os cotidianos, como os muitos usos das narrativas e conversas. Tomamos os currículos como conversas complicadas que se desdobram em uma profusão de narrativas, aqui interpretadas sob a ideia de travessias curriculares, políticas, epistemológicas e metodológicas de formação e autoformação de professores.

Palavras-chave: Pesquisas multilocalizadas. Formação de professores. Narrativas. Estudos do cotidiano. Currículos como conversas complicadas.

Abstract: Betting on “inventing” fieldwork to account for multi-sited research and practice within teacher education considering that we inhabit universities, schools, memories and many spacetimes within our networks of knowledge and subjectivities we need to work with invented methodologies from the “doing together” created in the contexts of ELS, as the many uses of narrative and conversations. Taking curricula as “complicated conversation” that unfolds in a profusion of narratives here interpreted under the idea of curriculum as educational, political epistemological and methodological crossings.

Keywords: Multi-sited research. Teacher’s education. Life stories. Everyday Life Studies. Curriculum as complicated conversations.

Resumen: A través de la apuesta por la “invención” en el trabajo de campo para “dar cuenta de las investigaciónes multilocalizadas” en la formación docente en donde vivimos diferentes “espaciotiempos” por medio de nuestras “redes de conocimientos y subjetividades”, trabajamos con “metodologías inventadas” desde el “hacer con” y creadas en los contextos de las pesquisas “nosdoscom” (endelcon los) cotidianos, como los múltiples “usos de las narrativas” y conversas. Comprendemos los currículos en cuanto “conversas complicadas” que se despliegan en una profusión de narrativas, interpretadas en este artículo por medio de la idea de “travesías curriculares, políticas, epistemológicas y metodológica de la formación y autoformación docente.

Palabras clave: Investigaciones multilocalizadas. Formación docente. Narrativas. Estudios del cotidiano. Currículos como conversas complicadas.

1 INTRODUZINDO A TRAVESSIA...

São os seguintes fatores e circunstâncias que mais contribuíram para escrevermos esse texto: em primeiro lugar, trata-se de (com)partilhar resultados de nossas pesquisas2 que, dentre diversos objetivos, pretende desinvisibilizar, na formação docente, “o que acontece” (PAIS, 2003, p. 28-29) cotidianamente e de forma permanente, indo além dos documentos curriculares, estruturas sociais e modos fixos de pesquisá-los, como forma de dar potência às nossas redes de conhecimentos e subjetividades, superando um modo monocultor de entender os reconhecimentos e diferenças (SANTOS, 2004, p. 792). Em segundo lugar, a escrita nos implicou trocas de experiências com currículos, capturando momentos em que nos percebemos estimulando entre estudantes, pesquisadores e professores uma relação apoiada no movimento práticateoriaprática (ALVES, 2001, p. 15), inventando metodologias e Suleando (SANTOS, 2010) epistemologias e assumindo que as conversas são complicadas por seus cosmopolitismo, historicidade, alegoricidade e dissenso (PINAR, 2012, p. 195). Em terceiro lugar, a criação desse relato de pesquisa debruçou-se no estudo de narrativas singulares capturadas em “conversas complicadas” (PINAR, 2012, p. 193), que se passaram nos cotidianos de um colégio de aplicação de uma universidade federal e dos cursos de formação de professores em outra universidade federal, ambos no Rio de Janeiro, em que percebemos homens comuns criando (CERTEAU, 1994) conhecimentos em situações de formação que valorizam o dissenso, a copresença e as práticas orientadas para justiça cognitiva (SANTOS, 2010, p. 40) que achamos importante divulgar.

Os aspectos descritos levaram-nos a valorizar o papel do “outro” nas travessias de (des)formação, compreendendo o outro como legítimo (MATURANA, 1998, p. 27), homem comum, herói anônimo (CERTEAU, 1994) que só encontra a si mesmo no outro, nas redes. Com Pérez (2004, p. 80-81) compreendemos que:

[...] cada um de nós é uma rede de subjetividades, tecida nas múltiplas e diferentes relações que estabelecemos nos múltiplos contextos cotidianos em que vivemos. Formamo-nos e somos formados nestas e por estas redes e nas relações múltiplas e complexas que existem entre elas. Nossa ação se desenvolve num espaço-tempo de vida que nos rodeia, no qual estamos mergulhados e a partir do qual tecemos um significado existencial.

Então, longe da ideia de que há um momento em que a formação se cristaliza, as narrativas e relatos potencializados nos encontros de formação, de vida, de pesquisa, sugerem que nós, heróis anônimos, aprendemos a ser professores nas redes que tecemos nos cotidianos das escolas e salas de aula, no ineditismo, no acontecimento (GERALDI, 2010, p. 81). Formados no caos, na não linearidade, na surpresa, na incerteza, nas situações onde é preciso usar muito mais do que aprendemos na vida escolar, na circulação entre diferentes saberes e nãosaberes, no entendimento de que em todo conhecimento há uma ignorância e de que em toda ignorância há um conhecimento (SANTOS, 2004, p. 790), na (des)formação, possibilitada mediante a (re)invenção, (re)descoberta de práticas; de nós mesmos e dos “outros”, não como um “outro eu”, e sim o outro enquanto tal, o outro que está, inclusive, no eu (GALLO, 2010, p. 239).

Entendendo com Certeau que a arte de dizer é uma arte de fazer e portanto de pensar (1994, p. 152) tomamos os relatos de formação como fundadores das práticas, pretendemos seguir as tramas, pistas e alegorias indiciariamente (GINZBURG, 1989, p. 143), desinvisibilizando os processos de formação que se desenham na trajetória e pela ação dos atores sociais em múltiplos contextos com os quais se tecem conhecimentos, experiências, sentidos e sentimentos no se fazer professor (SÜSSEKIND, 2012, p. 5-9). Uma formação em que ora somos aprendentesensinantes, ora somos ensinantesaprendentes, onde é preciso usar os sentidos, a intuição, as pistas, os indícios (GINZBURG, 1989), táticas gazeteiras e operações astuciosas (CERTEAU, 1994, p. 98, 104).

Na travessia não é que algo passe da imobilidade ao movimento, de uma posição decaída a outra erguida. [...] A travessia é a diferença entre o tempo que passa e o que passa no tempo. Ou, talvez, a diferença que há no interior do tempo que passa: diferença enquanto intensidade, tempo enquanto profundidade. (SKLIAR, 2014, p. 26).

Partimos da premissa de que nós, professores, sempre em formação, aprendemos na relação que reconhece um tempo que não virá a ser, mas que está sendo. Um tempo que vai se construindo de modo precário, em pistas (GINZBURG, 1989, p. 148), em idas e voltas e deslizes, sempre na expressão verbal do gerúndio. Nas palavras do poeta Skliar (2014, p. 26), um tempo que se constrói na travessia: “segundos que não querem passar, mesmo passando. A percepção os retém, lembra-se deles e os faz durar além de suas próprias forças”, dessa forma não acreditamos na existência de um espaçotempo definido para a formação, ressaltando, particularmente nesse texto, suas características de não linearidade, coletividade e multilocalidade e entendemos que ela é caracterizada por sua “cotidianidade, permanência e relação de subjetividades e saberes em rede.” (SÜSSEKIND, 2011, p. 21).

As narrativas que dão as dobras do texto escrito a quatro mãos e muitas vozes se tecem nos/dos/com os cotidianos das aulas, ora na universidade, ora na escola básica. Seus usos nos possibilitam refletir acerca dos conhecimentos práticosteóricospráticos dos professores em formação, tecendo histórias, memórias, experiências e conhecimentos que são (com)partilhados, (re)pensados, (re)inventados. No exercício de narrar, de inscrever no escrito, deixamos registradas as vivências, as experiências (re)contadas, (re)criadas, (re)pensadas, a história de cada um. Na dimensão de ator, autor, leitor e costureiros de nossas próprias narrativas nesse relato, aprendemos sobre nós e sobre os outros, já que, como vimos em Macedo (2012, p. 717) sem diferença não há educação.

Como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1994, p. 205), imprimimos a nossa marca nas redes que tecemos, perambulando pelas retóricas (CERTEAU, 1994, p. 174) curriculares que conversamos (PINAR, 2012) e narramos como travessias de formação. Escrevendo, lendo/relendo narrativas e relatos, tornamo-nos coautores/coenunciadores dos textos uns dos outros, numa relação que não se ata com hierarquia, mas se tece numa busca de horizontalidade e copresença com aprendentesensinantes e ensinantesaprendentes, todos entendidos/respeitados como protagonistas (FERRAÇO, 2003, p. 168) da pesquisa, cada um como uma “rede de sujeitos gerada pelo enredamento das diferentes formas de inserção social” (OLIVEIRA, 2008, p. 13) em travessias próprias e coletivas. Assim, entendemos que a formação assim como o currículo “não é que algo passe da imobilidade ao movimento” (SKLIAR, 2014, p. 26), e, nesse sentido, o professor é um artista, e “a conversa complicada é o seu meio” (SÜSSEKIND; PINAR, 2014, p 16). Para Pinar (2012), currículo é mais que narrativa: é autobiográfico, é uma conversa complicada, é experiencial.

Atravessadas nas conversas, as narrativas capturam os currículos nos cotidianos, como bricolagem dos praticantes (CERTEAU, 1994, p. 89, 86). E, consequentemente, são invisibilizadas pelos modos hegemônicos de pesquisar guiados pelo Ego Cartesiano e pela razão científica, que, em sua indolência, jogam as narrativas, os conhecimentos em rede, as práticas curriculares e as artes de formação em direção ao abismo do não conhecimento (SANTOS, 2007, p. 41). Daí ser importante “reinventar os limites e funções da pesquisa de campo.” (MARCUS, 2004). Numa perspectiva inversa à razão indolente, presente nas formas hegemônicas de fazer pesquisa, e seguindo uma racionalidade cosmopolita proposta por Santos (2010), percebemos a necessidade de, nas relações de formação, expandir o presente e contrair o futuro. Segundo Santos (2007, p. 95), “só assim será possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje.”

Diante de antigas questões: como nos tornamos professores? Qual o papel da escola básica na formação docente? Qual o lugar da Universidade na formação do profissional de educação? Pretendemos, por meio de uma investigação indiciária (GINZBURG, 1989), caçar pistas nas narrativas dos professores em formação que trazem para a discussão algumas respostas recentes como a potência das conversas e das redes no processo formativo do professor que se (des)forma em relações de criação, burla, criação, subversão (CERTEAU, 1994) de subjetividades e conhecimentos.

2 TRAVESSIAS CURRICULARES: CONVERSANDO E NARRANDO COM A DIFERENÇA

Segundo Süssekind (2010, p. 110), narrativas são artes de formação, de pensarfazer de forma única e reflexiva porque “quando alguém nos faz um relato, ambos passamos por uma experiência única de conhecimento, pensamos e transformamos a nós mesmos e o mundo.” Somos praticantes que bricolam currículos nos cotidianos enquanto conversamos, contamos, fofocamos nossas artes de formação.

As experiências vividascompartilhadas nos múltiplos e multilocalizados espaçostempos de formação, que, no exercício de (re)pensar, de captar sentidos e de pesquisar a nossa prática narramos, acabam por nos oferecer indícios (GINZBURG, 1989) do quanto nos implicamos em aprender com. Deslocando a visão de professores transmissores de conhecimentos previamente elaborados para a de professores-autores das próprias práticas-teorias, abrimo-nos para a possibilidade de criar, de inventar, de construir novas formas de aprenderensinar e pesquisar por conta da relação de legitimidade e (re)conhecimento que acontece com o grupo, no reconhecimento da diferença, com o outro. Pesquisamos a formação a partir de pistas, sinais, alegorias e tramas (GINZBURG, 1989, p. 37, 190, 191) daquilo que acontece no dia a dia e que interpretamos, narramos e compartilhamos. Assim, valorizamos os aspectos artesanais da pesquisa e mesmo do fazer na formação, seja na universidade ou na escola, ou em seus entrelugares e deslizamentos. Esse modo de pesquisar (GINZBURG, 1989; MARCUS, 2004) encontra suas fontes no fugaz e acontecimental, no deslizante, forjado na invisibilidade, no silêncio, nas astúcias. É amigo do kairós e não dos planejamentos e modelos, realiza-se nas narrativas, conversas, relatos, fofocas (SÜSSEKIND, 2012, p. 10; CERTEAU, 1994, p. 40, 50, 83, 99, 169; ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 121). Consequentemente, nossos entendimentos de formação, prática e currículo são tecidos pelas noções que também nos esforçamos por costurar ao longo deste artigo.

Sempre quis ser professora. Cursei o antigo Normal e fiz Pedagogia. Ao entrar numa sala de aula de um CIEP no Morro do Alemão vi que pensava que sabia tudo, mas não sabia absolutamente nada. Foram momentos de muita aprendizagem, descobertas, desesperos. Aprendi a ser professora com aqueles alunos. Não adiantava chegar com planejamento lindo, era preciso “sentir o clima” antes de qualquer proposta, era preciso ouvir os silêncios, os gritos. Era preciso usar muita intuição, todos os sentidos. Era preciso paciência, controle emocional, respeito ao outro. Era preciso me sentir parte daquele grupo e sim, conseguimos ser um grupo! Nossa sala era nosso mundo. Não dava pra ficar seguindo cartilhas e orientações vindas de outras instâncias, era preciso criar a nossa. (Narrativa #1, 2013)3 (Informação verbal).

Refletindo sobre as primeiras experiências docentes, a professora narra processos de formação tecidos cotidianamente e desinvisibiliza algumas redes de saberes e fazeres que contribuíram no “ser professora” daquela escola, naquele espaçotempo singular. Ao relatar que aprendeu a ser professora com aqueles alunos percebemos que a concepção de que há um lugar fixo onde se finaliza a formação está sendo questionada, desnaturalizada. Desnaturalizamos também a ideia de que se aprende com a teoria e se pratica na escola. Aqueles estudantes contribuíram para aquela turma. Será que o que ela aprendeu com aqueles estudantes serviria para outra turma? Outros estudantes? Outra escola? Muito além dos manuais, usou sentidos e intuição para decifrar silêncios e gritos, para sentir o clima”, para pensar a proposta da aula, para possibilitar o acontecimento (GERALDI, 2010).

Mergulhadas nos estudos do cotidiano, aprendemos que com/nas salas de aula também ocorrem as relações com o outro que podem produzir legitimidade e o conosco. Quando buscamos horizontalidade e copresença com os saberes e com os nãosaberes, as travessias curriculares se constituem como espaçotempo de descobertas, de aprendizagem diversificada, de (des)formação significativa e provisória do ser professor.

Eu aprendi mesmo é no lixão, na primeira turma que peguei na minha vida. Lá aprendi a olhar no olho, a entender que o que eu penso pode não ter a mínima importância. Aprendi coisas sobre o lixo que nunca tinha ouvido falar. Os professores eram muito unidos, nós nos reuníamos sempre para conversar sobre formas diferentes de trabalhar, líamos em conjunto, trocávamos ideias, chorávamos juntos. Era triste, mas muito bom. (Narrativa #2, 2014) (informação verbal).

A-travessar currículos e formação, aprendemos, é um movimento de “conversar”, de fazer “junto” como nos sugere Michel de Certeau (1994, p. 43,47) com sua noção de “fazer com” em que toda prática social é uma arte de fazer saberes... A narrativa da professora evidencia a importância das trocas, da rede estabelecida com outros professores que se reuniam, solidariamente, para aprenderensinar, para chorar junto, para buscar caminhos diferentes. As redes de conhecimentos, saberes, fazeres, poderes, subjetividades são para os autores nativos e convidados ao campo dos estudos do cotidiano (SÜSSEKIND, 2012, p. 7), as tessituras sociais por onde nos deslocamos em nossas práticas sociais, pesquisas e onde entendemos que os conhecimentos, artes e práticas são bordados, criados, inventados e também compartilhados e conservados, ou não.

Com este relato vamos a Ferraço (2008, p. 103) e entendemos que a ampliação da forma dominante e cartesiana de aprender a partir do olhar possibilitou sentimentos, atitudes e sentidos outros, como compartilhar, enredar, ajudar, ouvir, tocar, degustar, cheirar, intervir, discutir etc. Sabemos, com Maturana (1998, p 58), que a conversa é formadora de gente, e muda a gente com o outro. Com Certeau, entendemos a importância de fazer do lixo um próprio (1994, p. 201) no relato citado. Nele, a arte de ler pode ser comparada à arte de conversar, já que:

[...] as retóricas da conversa ordinária são práticas transformadoras “de situações de palavra”, de produções verbais onde o entrelaçamento das posições locutoras se instaura a um tecido oral sem proprietários individuais, as criações de uma comunicação que não pertence a ninguém. A conversa é um efeito provisório e coletivo de competências na arte de manipular “lugares comuns” e jogar com o inevitável dos acontecimentos para torná-los “habitáveis”. (CERTEAU, 1994, p. 50).

Se os currículos são travessias, se são conversas complicadas, cosmopolitas e historicizadas, que trazem a glocalidade em múltiplas dimensões, que rizomaticamente impedem a fixidez e sugerem liquidez e fugacidade, as salas de aula são, por isso, espaços de acontecimento, de diferença e invenção, de “manipular lugares comuns” conquistando seus próprios. Com Esteban (2006), compreendemos as salas de aula como lugares de diálogos entre os diferentes, com suas diferenças:

Lugar praticado de gritos e silêncios onde as identidades se embaraçam, as fronteiras se borram e o caos emerge. Espaço que evidencia a diferença e potencializa a desordem por propiciar o encontro com o outro que se desdobra no encontro com os muitos outros que cada um abriga em si. (ESTEBAN, 2006, p. 9).

***

As narrativas a seguir bricolam uma experiência narradapartilhada em setembro de 2014, após uma aula-passeio de uma turma de alfabetização a um parque. As estagiárias, professoras em formação, ficaram responsáveis por todo o planejamento desse dia e combinaram com as crianças uma caça ao tesouro com os objetivos de estimular a leitura e o trabalho em equipe. Escreveram e esconderam as “pistas” da caça ao tesouro no parque onde as crianças, divididas em grupos, deviam encontrar, ler e procurar outras pistas.

No dia seguinte ao passeio, na roda de conversas, que entendemos potencializar as trocas de informações, os compartilhamentos de experiências, emoções e descobertas, as crianças relataram suas “aventuras” e, posteriormente, as professoras registraram suas (des)construções e (des)aprendizagens nas/das intervenções. A narrativa da professora em formação a respeito do trabalho da professora regente da turma evidencia a tensão multilocalizada e hierárquica presente em muitas situações de estágio supervisionado. Ao refletirmos sobre uma intervenção feita com João4 percebemos, mais uma vez, a importância do “fazer com” (CERTEAU, 1994), da busca de horizontalidade e copresença (SANTOS, 2010) quando se busca justiça nas relações com os conhecimentos e o papel bastante relevante que a prática da conversa parece ter nesses aprendizados da formação de professores. Para nós, a conversa é uma forma de buscar justiça cognitiva.

Justiça cognitiva é uma noção que aparece em Santos (2010) e sugere que a pluralidade e a coexistência de diferentes conhecimentos são emancipatórias e criam justiça no campo dos conhecimentos. Essa pluralidade parte do reconhecimento da existência de conhecimentos, vítimas dos epistemicídios cometidos pela Ciência e pela Técnica na Modernidade, em condição de igualdade política-epistemológica. Em 1997, o pensador indiano Shiv Visvanathan usou a expressão “cognitive justice” no livro A Carnival for Science: Essays on science, technology and development pela primeira vez, no mesmo contexto, dando novo sentido político ao termo justiça social.

No que se refere às conversas curriculares, entendemos que os currículos são sempre negociados. Assim, os currículos têm que apre(e)nder os conhecimentos novos sem des-apre(e)nder os antigos. Este movimento não pode ser de aculturação. Ao contrário, ecologia e justiça nas práticas curriculares implicam considerar que sempre que for para seu enriquecimento, na igualdade e na diferença, os estudantes têm direito a aprender aquilo que desconhecem e, sempre que for para lhes assegurar fluxos identitários e a autoestima que a eles se associa, eles devem ter seus próprios conhecimentos valorizados, num re-conhecimento. Solidariedade é, nessa perspectiva, uma relação de troca igualitária entre diferentes, na qual ambos se enriquecem, por meio de reconhecimento mútuo e aprendizagens diferentescomuns a partir do acesso a conhecimentos diferentes e criação de aprendizados diferentes.

As narrativas a seguir (professora da turma, professora em formação na situação de estágio supervisionado e estudante) sublinham os diferentescomuns de três autores e seus pontos de vista diferentes e enredam o protagonismo do estudante na situação de formação do professor, além das relações entre conversas e travessias curriculares nessa formação.

Hoje as crianças estavam fazendo um relato escrito sobre o passeio ao Parque Lage. Percebi que algumas estavam escrevendo errado, mas venho percebendo que a professora não corrige os erros de todas as crianças. Às vezes ela conversa com um ou com outro. Eu não sabia como devia agir, para mim, elas só deviam escrever quando soubessem para não ficarem errando tanto. Fiquei perto do João. Sua escrita está demais, mas como faltavam acentos e algumas letras, fiquei orientando para que fizesse certinho. Ele me olhou com a cara séria e disse que eu estava atrapalhando. A professora percebeu minha angústia, conversou comigo e disse que o mais importante era o que a criança estava escrevendo e não como ela escrevia e então percebi que tenho que parar de olhar de cima. (Narrativa #3, 2014) (informação verbal).

Imagem 1 – Relato de João5 , estudante do 1º ano do Ensino Fundamental, 2014

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Fonte: Arquivo da pesquisa.

Hoje, a professora em formação “AL”, observou a escrita das crianças sobre a aula-passeio ao Parque Lage. Percebi que ficou bastante admirada com o fato das crianças contarem suas experiências de forma autônoma, mas percebi também certo incômodo por não me ver interferir na escrita das palavras grafadas de forma diferente da ortografia dominante. Ela me observava bastante e sugeri que circulasse pela sala atendendo às solicitações de algumas crianças que, preocupadas com a ortografia, perguntavam, de forma aleatória, uma ou outra letra correta a ser grafada: X ou CH? S ou Z? João estava empolgado em contar seu encontro com o morcego e, dessa vez, não mostrou preocupações ortográficas. Como “AL” estava próxima dele, resolveu orientá-lo, corrigindo sua escrita: a palavra “nós” tem acento; a palavra “parque” tem um R no meio [...] Miguel parou de escrever, falou alguma coisa e ela se afastou. Aproximei-me e conversamos sobre os diferentes momentos de cada criança e sobre o respeito às produções. Parece que João ensinou bastante hoje [...] sua escrita e seu desenho refletem a “aventura muito legal” que ele viveu. Depois ficamos lendo e relendo os relatos das crianças [...] quanta beleza! (Narrativa #4, 2014) (informação verbal).

Lembramos de Maturana (1998, p. 31, 35) que diz que devemos valorizar os saberes das crianças, aceitando-as e respeitando-as como legítimo outro na convivência. Dessa maneira, poder ouvir uma criança significa validar, legitimar suas percepções. Ouvindo João, a professora em formação se (des)formou, se (des)orientou, aprendeuensinou! “Lendo” a cena por meio das narrativas também nos (des)formamos e aprendemosensinamos. E isso porque conversar, narrar, escrever são artes do fraco (CERTEAU, 1994, p. 226), que nos permitem gazetear em espaços sem um próprio.

Com Süssekind (2014, p. 12), temos compreendido conversas e relatos como vestígios de momentos de aprendizagem que acontecem no/com o cotidiano e se constituem como arte de fazerpensarfazer. Possibilitam um olhar para além do que podemos enxergar porque precisam dos sentidos, das intuições, dos improvisos, do olhar cuidadoso. São travessias curriculares, instáveis relacionais e situacionais nas quais aprendemos com as conversas. As escritas, despreocupadas com o academicismo em seu formato, dão tom especial à ideia de compartilhar narrativas de práticas na escola, tendo na pauta a coexistência de conhecimentos, a superação da linearidade, das dicotomias e das hierarquias.

Como os relatos, cremos que as conversas precedem os discursos sociais (SÜSSEKIND, 2007, p. 23) e possuem uma função descritiva e formativa das práticas. Partindo de Certeau, relatos e conversas parecem ser tessituras de “narrativas que organizam os espaços e os tempos, além de possuírem uma função descritiva e criativa a respeito das práticas sociais.” (SUSSEKIND, 2011, p. 23). Ainda (SUSSEKIND, 2011, p. 24), relatos e narrativas configuram possibilidades e pistas para o conhecimento de si e do outro. Utilizá-las como prática curricular emancipatória é um caminho para a luta pela justiça cognitiva, para apagar as linhas abissais (SANTOS, 2010) traçadas nas relações hierárquicas e epistemicidas nas salas de aula.

2.1 TRAVESSIAS POLÍTICO-EPISTÊMICO-METODOLÓGICAS: AS ARTES DE PESQUISAR OS COTIDIANOS NA FORMAÇÃO

Temos defendido em pesquisas e escritas anteriores (SÜSSEKIND, 2007, 2010, 2011) junto com Alves (2001) e outros autores que se identificam como estudiosos dos cotidianos que “reimaginar a modalidade tradicional da pesquisa de campo” (MARCUS, 2004, p. 135) é um movimento necessário. Argumentamos com Marcus (2004, p. 147) que a multilocalidade e a cumplicidade que redefinem a relação nuclear de colaboração na pesquisa de campo permitem alternativas interessantes de pesquisa que se frutificam em novos âmbitos temáticos. A pesquisa de campo, entendida como campo de experimentação metodológica, ou “arte de pesquisar” (CERTEAU, 1994, p. 37) assume que “é impossível encontrar duas escolas iguais” (EZPELETA; ROCKWELL, 1989, p. 50), potencializando as ideias de ineditismo, interpretação e autoria do pesquisador. Como um romance de imagens e roteiros, a escrita que emerge do campo multilocalizado denuncia o esgotamento do modelo de observação malinovskiano e de suas condições de neutralidade e afastamento.

Enfim, pudemos assumir na pesquisa “o lado que estamos” (BECKER, 1967) e, ao mergulhar nas escolas, podemos defender que o cotidiano é o campo privilegiado da “reflexividade transformadora.” (PAIS, 2003, p. 164). E, buscando um “olhar positivo da escola” (EZPELETA; ROCKWELL, 1989, p. 58) decidimos enxergar o que subsome nas ausências produzidas pelo hegemônico. Para nós, as escolas são aquilo que têm de belas e vivas (VICTORIO FILHO, 2003, p. 81) pr’além do “dado real e concreto” (EZPELETA; ROCKWELL, 1989, p. 58), onde a normatividade e o controle estão presentes, mas “não determinam toda a trama de inter-relações entre sujeitos ou o sentido das práticas observáveis.”

Assim, esse movimento em relação ao antigo objeto de pesquisa não somente realoca a prática na relação com a teoria epistemologicamente, mas redefine a relação pesquisador e pesquisados. Para Marcus (2004, p. 149):

[...] o peso da crítica e ética da relação tradicional na pesquisa de campo que gera os dados etnográficos, como foi revelada pelas provas reflexivas escrupulosas da perspectiva pós-moderna quebrou o tantinho de inocência e ingenuidade necessárias para manter a distância na relação entre o etnógrafo e o objeto – por isso a cumplicidade.

Como dito anteriormente (SÜSSEKIND, 2007, 2012), o objeto de pesquisa, elevado à condição de sujeito pela antropologia, passa a ser protagonista e pesquisador de si mesmo (FERRAÇO, 2003) nos estudos nosdoscom os cotidianos (ALVES, 2003) em educação. Polemologicamente, este movimento é político, epistemológico e metodológico (SÜSSEKIND, 2007, 2010, 2012).

Não é preciso lembrar a longa história de debates dentro da própria teoria das ciências sociais sobre a relação sujeito/objeto, sobre a démarche interpretação/análise, sobre neutralidade da pesquisa e sobre o que é realidade. Os estudos nosdoscom os cotidianos em educação tomam, como premissa, a inexistência da realidade como algo dado a priori. Não existe realidade para além daquilo que é narrado, contado, relatado, interpretado, o que dá relevo à interação acontecimental entre pesquisador e pesquisados. A interpretação dos relatos também cria realidade. Nesse sentido, a multilocalidade não somente reconhece os multifrequentamentos, os múltiplos fluxos identitários e as glocalidades, que não podem ser ignoradas nas pesquisas de campo atualmente, como abre espaço para a noção de redes de conhecimentos e subjetividades.

Esses debates, contudo, sempre foram reféns da ideia do que é comum, ordinário. Recentemente, os estudos do cotidiano em educação foram reconhecidos em obra de Pinar (2011) sobre o campo do currículo no Brasil por sua originalidade em relação à tradição científica, seus debates e procedimentos. Uma de suas virtudes, pr’além daquilo que Pinar diz ser a inversão de tudo o que os cientistas fazem, é a assumpção da ordinariedade, e não extraordinariedade, dos fenômenos humanos, e, portanto, cotidianos e, com isso, a decisão política de estar do lado dos professores. Em conversa, Pinar “me disse” (SÜSSEKIND, Vancouver, Canadá, 2012) que o movimento com os cotidianos no campo do currículo no Brasil é para ele o mais interessante no debate internacional contemporâneo.

Deslizando, paradigmaticamente, a relação a objetos/sujeitos de pesquisa, assumimos o compartilhar e a cumplicidade da pesquisa entre pesquisadores e “pesquisados” e deslocamos as ideias de objetividade e neutralidade para o campo do regime de verdade (FOUCAULT, 1980) da Ciência Moderna. Professores, estudantes, sociedade e o próprios pesquisadores buscam emergir suas reflexões de tramas de narrativas, emaranhadas por múltiplas e inter-relacionadas redes de subjetividades e conhecimentos, enfrentando as hierarquias, as invisibilidades e inexistências que levam ao epistemicídio da infância, do feminino, do gênero, da raça, da oralidade, da arte, dos outros...

Gallo (2010, p. 245) compreende o educar como uma criação coletiva que se coloca para além de qualquer controle. Lançando convites aos outros, o educador mostra caminhos sem esperar e sem controlar a direção dos outros, da mesma forma, muda seu próprio sentido por aquilo que também recebe dos outros.

Apesar de sempre ouvir da Professora que ninguém ensina nada a ninguém e conseguir entender o que essa frase realmente quer dizer, acredito que aprendi sim, porque quis aprender tudo que me foi ensinado durante os sábados de aula. Acredito inclusive que, não seria a professora que sou hoje com meus alunos se vocês não tivessem me ensinado a ouvi-los antes de julgá-los e mandá-los para fora de sala e, ao invés disso, tivessem me dado uma receita de bolo sobre didática. (Narrativa #5, 2015) (informação verbal).

Curiosamente, na mesma linha da estudante de licenciatura, Ted Aoki, um professor canadense que se afetava para pensar sobre diferenças e as sabedorias curriculares dos professores, sugere que não apenas as dicotomias do pensamento científico precisam ser superadas para se conhecer a escola – e ele cita as ideias de mais/menos, bom/mau aluno, líder/seguidor, entre outras – mas que o próprio sujeito cartesiano é insuficiente, pouco humano e por demais antropocêntrico para tal fim. E, completa, lembrando aos arquitetos dos currículos, que tenham como principal preocupação ouvir atentamente as histórias contadas pelos professores sobre o que acontece na vividez da vida nas escolas como é vivida por professores e alunos (AOKI, 2005, p. 291-301).

Aoki aproxima-se de Ferraço (2003, p. 163) para quem tudo acontece, nas escolas, no miudinho do cotidiano. O pensamento da cotidianidade e da ordinariedade aproxima-se de Aoki (2005), ao entender que relatos, conversas e narrativas são práticas de formação, trazem histórias de si mesmos e dos currículos pensadospraticados (OLIVEIRA, 2012) sustentam-se, teoricamente, na necessidade de ouvir o que os praticantes da vida cotidiana (CERTEAU, 1994) têm a dizer.

Isso porque as narrativas, os relatos e as conversas transformam-se em espaçotempo de formação, de compartilhar as “artes do fraco” (CERTEAU, 1994), reinventando o ser professor de cada um de nós. Astúcia e oportunidade de pensar currículo, pesquisa e formação como travessia. Narrar, pesquisar, professorar e conversar é aprender a caminhar, a viver, aprender a atravessar e deixar-se atravessar pela experiência com o outro.

Com Geraldi (2010, p. 96) aprendemos que “somente quem aprende a percorrer caminhos inexistentes, porque eles se fazem no percurso, será capaz de compreender as respostas e os caminhos antes percorridos.” No percurso, no roteiro, no relato, na conversa, temos o espaço da tática, do cotidiano fugaz que não teme a incerteza, vai além das dicotomias hierarquizantes na vida e na escola e joga com a complexidade. É a narrativa, o relato da experiência vivida sendo também tessitura de sinais, tramas da cultura escolar, alegorias da sociedade e não “apenas” memórias, desejos ou ideários pessoais – de classe, de gênero ou outro qualquer, como relata a estudante de licenciatura a seguir.

Acreditava que o professor era o dono do saber, contudo, após as aulas de Didática e ao entrar em sala de aula e dar de cara com tanta diversidade, vi que todo professor é apenas um mero aprendiz. Nem que eu tivesse estudado nas melhores escolas e universidades do mundo estaria preparada para ensinar alguma coisa para alguém. A única certeza que me resta enquanto professora é que vou continuar aprendendo com as experiências que esses alunos me trazem, muito mais do que aprendi na minha escola particular franciscana. (Narrativa #6, 2015) (informação verbal).

Ao tomarmos a conversa (CERTEAU, 1994; ALVES, 2001; FERRAÇO, 2003) e as narrativas em todas as suas formas (relato, fofoca, briga, mensagem, escrivinhações, etc.) como alegorias de cultura (MARCUS, 1998), como extratos de narrativas produtoras e organizadoras de saberesfazeres fugazes e gazeteiros que não localizam pertencimento, não têm um próprio, configuram táticas de praticantes em rede, e, por sua vez, inviabilizam autorias e propriedades, bricolam origens e se estabelecem como artes de sucata, faladas ou escritas, definimos seu reconhecimento epistemológico.

Por serem travessias curriculares e políticoepistêmicometodológicas, as conversas não passam simplesmente “da imobilidade ao movimento, de uma posição decaída a outra erguida.” (SKLIAR, 2014, p. 26). Rizomaticamente, as conversas desdobram, deslizam e bricolam as artes de ser professor, enredam conhecimentos aliados. As conversas se fazem na “velocidade que está no meio.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37).

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...e...e...” Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metodológico, pedagógico, iniciático, simbólico...). [...] É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para a outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.

Como fonte de pesquisa, usar a conversa em seu rizomático modo de se comportar envolve uma opção que é ao mesmo tempo política e epistemológica (OLIVEIRA, 2013) ainda mais que metodológica, por evidenciar a busca de uma produção pós-abissal de um conhecimento prudente e não indolente (SANTOS, ٢٠١٠, 2004, 2000). Exige tanto o reconhecimento da produção intencional de ausências no campo da produção cultural na sociedade em geral e, sobretudo, multiplicada e redimensionada no espaçotempo da escola, quanto um entendimento pós-estrutural e pós-essencial da experiência pessoal e social e dos saberes do senso comum para a superação da linearidade pela coexistência, da hierarquia, dos epistemicídios e das monoculturas, justiça cognitiva e tradução (SANTOS, 2004, 2007, 2010). Há travessias curriculares que, por vezes, trazem imagens desestabilizadoras.

Na [universidade] existe um Coletivo de Mulheres que abarca meninas de toda a universidade. Assim como qualquer coletivo, existe uma enorme divergência de opiniões em debates. Tenho reparado em diversos grupos feministas que participo, em meio a discussões acaloradas, muitos argumentos acadêmicos dão forma a réplicas e contestações. Isso me incomodou. [...] Assim que o debate foi levantado, um dos primeiros comentários foi “você devia estudar mais ao invés de perguntar coisas que já foram debatidas aqui, e que estão presentes em livros básicos que qualquer mulher que se diz feminista deve saber.” Eu não me contive e falei sobre a elitização que eu via dentro do feminismo [...] Eu não poderia contar que após poucos meses eu começaria a ter aulas de didática que abordavam diversas vezes a questão do conhecimento. E isso interferiu em posteriores decisões, seja em vivências ou discussões de qualquer âmbito. O argumento daquele que lê e possui conhecimento maior, a ponta de arrogância que nos faz sentir detentores de inteligência maior que a do outro; esses foram alguns dos pontos que passaram a entrar em desconstrução na minha vida com muita constância. (Narrativa #7, 2015) (informação verbal).

As travessias curriculares e metodológicas trazem redes de referências que nos permitem estabelecer conversas teóricas, políticoepistemológicas e educacionais bem complicadas com diferentes sistemas de pensamento, nossas memórias e história, convicções e crenças e nos levam a fazer nossas próprias escolhas profissionais, didáticas e curriculares, de modo autônomo, refletindo e ampliando os espaçostempos de autoformação em seus mais diversos aspectos.

3 CONVERSAS QUE ATRAVESSAM MAS NÃO TERMINAM...

Como referencial para pensar essa permanente transformação das pessoas nos cotidianos, emaranhadas em bricolagens e redes de conhecimentos e subjetividades, criando e subvertendo as práticas curriculares, os conhecimentos e o mundo, assumimos o pensamento de Certeau (1994) e suas noções de praticantes, usos, táticas e estratégias emergentes nas narrativas na, com, sobre e da escola na formação de professores. Ampliamos a perspectiva certeauniana exercitando a arqueologia das invisibilidades e a sociologia das emergências (SANTOS, 2004) realçando, nos cotidianos, os conhecimentos silenciados, as práticas de justiça cognitiva, tanto no modo de aprenderensinar quanto espaçotempo de formação e autoformação que são as pesquisas.

Por intermédio das conversas, narrativas e relatos podemos trocar e compartilhar táticas e práticas, podemos reinventá-las. Reinventa-se, desse modo, não somente as metodologias, mas os conhecimentos e as práticas sociais, simultaneamente. Como isso acontece o tempo todo, em todos os lugares, os relatos inventam, mas não conservam conhecimentos-possibilidades de superação das hierarquias e do abismo paradigmático (SANTOS, 2007) que foi socialmente constituído com o objetivo de separar os que produzem o dito conhecimento daqueles que são vistos como reprodutores de ideias ou produtores de conhecimento socialmente inexistente ou de pouca relevância (SANTOS, 2007, p. 37). Para superar isso, também é preciso confiar na existência de saberes e subjetividades em redes (SANTOS, 1995; OLIVEIRA, 2007; ALVES, 2001) e que, em qualquer espaço social, as interações cotidianas permitem a construção do que Ginzburg chama de “patrimônio cognoscitivo” (1989, p. 151) que é, muitas vezes, tornado invisível ou inexistente (SANTOS, 2000, 2004, 2010) pela abissalidade e pelo olhar científico, hegemônico nas práticas de pesquisa e nos conhecimentos sobre as escolas e hierarquizadores dos processos de formação.

Notas explicativas:

1 Entendemos com Geertz (2001) que o trabalho de campo se faz na aldeia.

2 “Práticas curriculares e artes de formação nos entrelugares da universidade-escola: conversar, escrivinhar, fofocar e fazer com nos cotidianos”; Coordenado por Autor 1, do Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores GPPF; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; financiado pelo PIBID/Capes.

3 No sentido de proteger e valorizar as vozes dos professores e estudantes que tecem as redes e as conversas que produziram as narrativas utilizadas, guardamos as autorias de modo a indicá-las, mas sem personalizá-las.

4 Todos os nomes de estudantes são fictícios.

5 Foi muito legal quando nós fomos no Parque Lage e foi muito legal quando nós fomos na torre que tinha um morcego dentro que com uma lanterna eu o tentei acordar e foi muito legal a gruta que tinha passagens que dá voltas. E foi muito legal o caça ao tesouro. E fomos caverna que tinha muitos peixes e o meu grupo achou. (Relato da aula-passeio realizada no Parque Lage, João, 7 anos, 2014). Mantivemos a formatação, pontuação e as palavras usadas originalmente pela criança.

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Recebido em: 15 de outubro de 2015

Aceito em: 20 de fevereiro de 2016

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Roteiro, Joaçaba, v. 41, n. 1, p. 87-108, jan./abr. 2016