http://dx.doi.org/10.18593/r.v40i2.7225

CIÊNCIA(S) NO CONTEXTO “PÓS”: ASPECTOS TRANSICIONAIS NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

SCIENCE (S) IN THE CONTEXT POST: TRANSITIONAL ASPECTS OF SCIENTIFIC KNOWLEDGE PRODUCTION

Graziela Fatima Giacomazzo*

Docente na Unidade Acadêmica de Humanidades, Ciência e Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc); Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Educação e Cultura Digital - CNPq/Unesc

Resumo: O artigo apresenta um estudo sobre os aspectos transicionais entre a Ciência Acadêmica e Pós-Acadêmica, a Ciência Normal e Pós-Normal, a Ciência Moderna e Pós-Moderna, e a Ciência Modo 1 e Modo 2. Das perspectivas que intencionam descrever as mudanças produzidas a partir da segunda metade do século XX, nas pesquisas científicas e tecnológicas, foram identificadas as noções de ciência que situam como elemento central desses processos uma complexa configuração das relações entre universidade, indústrias, governo e sociedade e nos modos de se fazer ciência em contextos nomeados “novos” e de prefixo “pós”. A Ciência, do mesmo modo que a sociedade, pela sua dinâmica e movimento contínuo, apresenta-se em transição, e, portanto, há mudanças na produção do conhecimento científico.

Palavras-chave: Ciência. Produção do conhecimento. Transição.


Abstract: This article presents a study on the transitional aspects of the Academic and Postgraduate Academic Science, Normal and Post-Normal science; Modern and Postmodern science and Science Mode 1 and Mode 2. Of the prospects that intend to describe the changes produced from the second half of the twentieth century, the scientific and technological research, in the the science notions that place as a central element of these processes a complex configuration of relations have been identified between universities, industries, government and society and in the ways of doing science in contexts named “new” and the prefix “post”. Science, in the same way that society, by its dynamic and continuous movement, comes in transition and, therefore, there are no changes in the scientific knowledge production.
Keywords: Science. Knowledge production. Transition.

1 INTRODUÇÃO

As reflexões que envolvem a história da Ciência propiciam reconfigurações a partir dos conhecimentos prévios sobre ela. No dizer de Sousa Santos (2002), seriam as trajetórias de vida — acadêmicas, pessoais e coletivas, valores e crenças — que, muitas vezes, circulam anônimas nas produções científicas das quais se é autor ou coautor. Compreendê-la torna-se, ao mesmo tempo, fascinante e desafiador, pois “[...] não há Ciência, há Ciências.” (GIL, 1974, p. 158). Segundo Morin (2010), a complexidade da Ciência ocorre igualmente por ser inseparável de seu contexto histórico e social. “Assim, a ciência é intrínseca, histórica, sociológica e eticamente complexa. É essa complexidade específica que é preciso reconhecer.”(MORIN, 2010, p. 9).

O ato de estar, enquanto ação investigativa, no contexto dos grandes pensadores, de suas ideias e teorizações, torna-se, às vezes, difícil, pois se trata de uma história do mundo e de tudo o que o ser humano construiu e está construindo, uma história que não parou no tempo, está presente com todas as suas virtudes e suas negligências. Como afirma Ziman (1979, p. 17), “[...] querer dar uma resposta à pergunta Que é Ciência? demonstra tanta presunção quanto tentar definir o sentido da própria vida.” Para Morin (2010), é a única questão para a qual ainda não se tem resposta. “É por isto que, mais do que nunca, se impõe a necessidade de autoconhecimento do conhecimento científico, que deve fazer parte de toda política da ciência, como da disciplina mental do cientista.” (MORIN, 2010, p. 21).

Estudar as noções de ciência acadêmica que foram se constituindo ao longo da história, dizem Santiago, Carvalho e Ferreira (2013), colabora para que se analisem diferentes lugares de produção do conhecimento e, consequentemente, possíveis impactos que essa “revolução” cultural empresarial/empreendedora coloca para as universidades. Isso serve ao intuito de compreender e identificar elementos constitutivos do novo modo de produção do conhecimento em transição, ao propósito de contrapor e/ou propor pensar a temática fundamentada nas ideias que se sucedem na história da ciência e, assim, no ensino nas universidades.

A Ciência, do mesmo modo que a sociedade, pela sua dinâmica e movimento contínuo, apresenta-se em transição e, portanto, há mudanças na produção do conhecimento científico. Essas mudanças incluem, entre outras questões,

[...] a distinção entre a base disciplinar e a base inter e transdisciplinar da ciência; a relação entre a ciência básica/fundamental, a ciência “autointeressada” e a ciência aplicada, estratégica e tecnociência; as fronteiras entre ciência e mercado; e o controle e a regulação da ciência e do seu espaço e tempo (longo, médio ou curto prazo). (SANTIAGO; CARVALHO; FERREIRA, 2013, p.595).

Na história da Ciência, como na estruturação dos conhecimentos dentro dos currículos, os pressupostos metodológicos e epistemológicos se repetem e se reproduzem ao longo da história.

A produção e transmissão de conhecimento científico constituem uma atividade social que pressupõe a integração numa comunidade sociocultural. Os efeitos do processo de integração e operação institucional da comunidade científica repercutem diretamente na mediação entre os processos de ensino aprendizagem (educação) e o contexto social (sociedade). (MATTEDI; SPIESS, 2010, p. 74).

Diante do exposto, apresentam-se, neste artigo, os conceitos que delineiam as reflexões sobre Ciência a partir das perspectivas teóricas dos autores eleitos para este estudo, pois, “[...] como qualquer outra atividade social, a ciência não existe no ar, ela é uma obra produzida pelos homens que se desenvolve em determinado contexto social, dentro de certo tipo de organizações e instituições.” (DIAS DE DEUS, 1974, p. 15).

Das perspectivas que intencionam descrever as mudanças produzidas a partir da segunda metade do século XX, nas pesquisas científicas e tecnológicas, foram identificadas as noções de ciência que situam como elemento central desses processos uma complexa configuração das relações entre universidade, indústrias, governo e sociedade e nos modos de se fazer ciência em contextos nomeados “novos” e de prefixo “pós”. São estudos provenientes, em grande parte, da Sociologia, Economia e Filosofia, os quais, de acordo com Buedo e Vielba (2009, p. 721), possuem uma visão comum da ciência como um sistema dinâmico que depende “[...] no sólo de factores internos a sus organizaciones y al que hacer de los científicos, sino también por determinantes externos de caráter social o político.”

Segundo Almeida (2007, p. 14), há uma antiga distinção entre uma epistemologia interna/endógena e uma epistemologia externa/exógena das ciências, ambas necessárias. A dimensão interna da epistemologia caracteriza-se por analisar as condições e critérios de cientificidade a partir dos recursos e instrumentos de cada disciplina. “[...] Ela estuda as condições teóricas da produção científica que, em cada momento, lhe determinam possibilidades e limites. Estuda o estado da problemática do campo científico [...]” e, assim, por meio dos seus questionamentos e interrogações, define problemas e conduz as pesquisas a partir de um quadro teórico, metodológico e técnico disponível. A dimensão externa da epistemologia, segundo Almeida (2007), deve, igualmente, ser convocada se o objetivo for compreender o que uma ciência é ou está sendo.

Por ela se analisam as inúmeras redes de interação e de causalidade que articulam os processos científicos aos processos globais do seu contexto, eles próprios desdobrados nas dimensões pertinentes de âmbito político, econômico, social, institucional, simbólico. (ALMEIDA, 2007, p. 14).

Faz parte, também, analisar as condições sociais da produção científica, ou seja, “[...] os elementos do contexto social susceptíveis de interferir em geral indiretamente no plano da investigação. Importa exemplificar o fato das ciências manterem relações diferenciadas com os processos sociais.” (ALMEIDA, 2007, p. 14). Considerando-se tais contextos de análise da ciência, elegeram-se para este estudo quatro noções de ciência que se denominam Ciência Pós-Acadêmica, Ciência Pós-Normal, Ciência Pós-Moderna, e Ciência Modo 2 de produção do conhecimento científico. Elaborou-se um quadro representativo, apresentado a seguir, com as respectivas noções e seus representantes, que são pesquisadores que se ocupam em investigar tais mudanças. O Quadro 1 contribui para que se visualizem essas noções, mas não serve como seu organizador hierárquico – em uma ordem crescente ou decrescente –, pois essas noções circulam no âmbito acadêmico de diversas formas. O termo transição é utilizado por designar situações ainda não marcadas em sua totalidade e/ou pertencentes a um dos polos/noção estudados ou que ainda não foram completamente identificados.

Quadro 1 – Ciência(s) em transição

Fonte: o autor.

A partir dessa apresentação, abordam-se as ideias dos teóricos anteriormente citados e suas respectivas obras, evidenciando as contribuições e os aspectos mais significativos sobre a temática, conceituação, caracterizações, tendências e princípios.

2 DA CIÊNCIA ACADÊMICA À CIÊNCIA PÓS-ACADÊMICA

Os estudos que melhor identificam o conceito de Ciência Pós-Acadêmica são os do Físico e Epistemólogo Ziman (1994, 2000). Esse autor assume a denominação Ciência Pós-Acadêmica, em contraste aos imperativos da Ciência Acadêmica do sociólogo Robert K. Merton, descritos em 1942, por constatar a existência de uma nova forma de organização e gestão da atividade científica. As obras que abordam, centralmente, esse tema são: Prometeus Bound: Science in a Dynamic Steady State (1994) e Real Science: What it is, and What it Means (2000). Outros livros desse autor colaboram para o debate, tendo como pano de fundo as seguintes temáticas: o conhecimento confiável, o conhecimento público, a credibilidade da ciência, a força do conhecimento e a dimensão científica da sociedade – temas que procuram analisar e refletir sobre a ciência ao longo de sua história.

Inicialmente, apresentam-se os pressupostos da Ciência Acadêmica de Merton (1942), em que o conceito de ciência é diverso, e esse vocábulo é usado para indicar:

  1. Um conjunto de métodos característicos por meio dos quais os conhecimentos são comprovados;
  2. Um acervo de conhecimentos acumulados, provenientes da aplicação desses métodos;
  3. Um conjunto de valores e costumes culturais que governam as atividades denominadas científicas; ou
  4. Qualquer combinação dos itens anteriores. (MERTON, 1974, p. 39).

O autor, com essa definição, apresenta, de forma geral, a estrutura cultural da ciência, a ciência como instituição, seus usos e costumes. É o que conduzirá seu trabalho posterior à definição de um ethos da ciência. Ethos da ciência “[...] é um conjunto de prescrições tanto morais como técnicas”, em que “[...] a meta institucional da ciência é o alargamento dos conhecimentos certificados.” (MERTON, 1974, p. 40-41).

Na configuração de um ethos da ciência, Merton (1974) institui quatro passos de imperativos institucionais (mores): Comunalismo, Universalismo, Desinteresse e Ceticismo Organizado, que compreendem o ethos da ciência moderna, reconhecidos na literatura pelo acrônimo CUDOC.

Para Ziman (2000), essas normas caracterizam a Ciência Acadêmica em sua forma tradicional de produzir conhecimento científico, mas não servem para compreender a dinâmica social que rege a Ciência Pós-Acadêmica condicionada pelos interesses industriais e comerciais. “[...] Queda caracterizada por su carácter apropiable o interesado, por estar sujeta a la autoridad de los gestores, por proyectos realizados por encargo, y llevada a cabo por expertos locales.” (BUEDO; VIELBA, 2009, p. 728).

Santiago e Carvalho (2011, p. 406), ao analisarem as mudanças nos modos de produção do conhecimento, reforçam que, apesar das relações que desde a primeira metade do século XX algumas universidades foram estabelecendo com a indústria, “[...] o sistema ideológico e de normas tácitas mertoniano (MERTON, 1974; BOURDIEU, 2006) [...] prevaleceu, até o final dos anos 1970, como uma referência dominante da cultura científica.”

Em relação às características da Ciência Pós-Acadêmica descrita por Ziman (2000), estas se relacionam com o Modo 2 de produção do conhecimento, conforme Gibbons et al. (1994). Dessa forma, emerge um ethos alternativo ao Mertoniano, denominado PLACE.

PLACE é o acrônimo elaborado a partir das iniciais das palavras: Proprietário, Local, Autoritário, Comissionado e Especializado. Contudo, PLACE, em contraste ao ethos Mertoniano CUDOC, não apresenta características normativas, tais quais foram instituídas por Merton. Trata-se, segundo Buedo e Vielba (2009, p. 729), de um estudo ensaístico que não “[...] se apoya sistemáticamente en el análisis empírico de los sistemas de I+D contemporáneos (HICKS et al., 1996; KRIGE 1996) ni en la comparación de indicadores a lo largo del tempo.

O contexto que motivou Ziman (1994) foram os novos desafios impostos aos cientistas, ou seja, “[...] a Ciência Acadêmica está a tornar-se industrial, pós-acadêmica, a sua face altera-se passando a exigir uma nova descrição sociológica, uma nova epistemologia, uma nova filosofia.” (JORGE, 2004, p. 28).

Nessa perspectiva, relacionam-se as ideias de universidade empreendedora de Etzkowitz (2009) e seu conceito de Hélice Tríplice das interações entre universidade-indústria-governo, considerado a chave para a inovação em sociedades cada vez mais baseadas no conhecimento. Essa intersecção da hélice tríplice faz surgir organizações híbridas que incorporam o DNA dessa abordagem.

A universidade é o princípio gerador das sociedades fundadas no conhecimento, assim como o governo e a indústria são as instituições primárias na sociedade industrial. A indústria permanece como o ator-chave e lócus de produção, sendo o governo a fonte de relações contratuais que garantem interações estáveis e intercâmbio. (ETZKOWITZ, 2009, p. 2).

A universidade tem em seus estudantes sua vantagem competitiva, pelo fluxo contínuo de admissão em seus cursos, principalmente de graduação, trazendo o aporte às novas ideias, o que não ocorre em laboratórios de pesquisa e desenvolvimento de empresas e governo “[...] que tendem a se ossificar, perdendo o fluxo do capital humano que é construído na universidade.” (ETZKOWITZ, 2009, p. 2).

Mesmo que as ideias de Etzkowitz sejam as mais conhecidas na atualidade, é justo e fundamental reconhecer e citar um dos fundadores do Pensamento Latino-americano sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS), o renomado argentino Jorge Sabato. Este, para descrever o modelo cognitivo da Política de C & T (PCT) aos economistas da época (1968), estilizou as relações entre Governo, Empresa e Universidade em uma figura geométrica, surgindo, assim, o “Triângulo de Sabato” (SABATO, 1975).

Naquela época, o pensamento dominante era o de que, para ser viabilizado e sustentável, o desenvolvimento demandava investimento elevado e inteligente na geração e no desenvolvimento de tecnologia. Sabato defendia essa posição desde 1968, quando era diretor da Comissão de Energia Atômica da Argentina. Fala-se até hoje do modelo do “triângulo de Sabato” como estratégia para o desenvolvimento dos países cujos setores industriais são débeis e dependentes. (SARAVIA, 2005, p. 1).

O modelo de Jorge Sabato preconizava um relacionamento harmônico, em que ao governo caberia adotar um papel de liderança na promoção dos projetos de alta tecnologia, contribuindo com os recursos. Às universidades e aos centros de pesquisa caberia apoiar, fornecendo profissionais para trabalharem nos projetos e nas empresas privadas e entidades públicas envolvidas. Para Sabato, a aplicação do modelo “[...] possibilitaria maior eficiência na assimilação de tecnologia e na exportação de bens com maior valor agregado, permitindo que a conjugação ciência/tecnologia funcionasse como catalisadora da mudança social.” (SARAVIA, 2005, p. 1).

Renato Dagnino, professor do departamento de política científica do Instituto de Geociências (IG) da Universidade de Campinas (Unicamp), defende a ideia de introduzir um quarto vértice no “Triângulo de Sabato”, o dos Movimentos Sociais, ao que vem nomeando de “Quadrado de Dagnino”. O novo vértice é necessário para tensionar a PCT e a agenda da pesquisa universitária, fazendo com que dela participem aqueles que continuam sendo excluídos da produção do conhecimento (DAGNINO, 2008).

Vive-se uma época em que os recursos disponíveis para a investigação são inferiores à procura, há um número crescente de cientistas, com ideias inovadoras e criativas, as quais, contudo, necessitam de investimentos muito altos.

Como Ziman refere, começamos a ouvir os cientistas acadêmicos a falarem de imperativos inéditos de accountability (prestação de contas), over beads (custos indiretos), avaliações, massa crítica, propriedade intelectual, num clima de muito maior ansiedade política e de concorrência por financiamentos. (JORGE, 2004, p. 27).

Com base nessas tendências agregadas à escassez emerge outra missão para a universidade, a “capitalização do conhecimento”, ou seja, conectar-se aos usuários do conhecimento de forma mais próxima e estabelecer-se como um ator econômico por mérito próprio. Para tanto, é necessário, entre outras ações, constituir um ethos empreendedor entre administradores, corpo docente e estudantes (ETZKOWITZ, 2009, p. 37). Essa “nova missão” comunga com a reconversão do capitalismo tecida “[...] pela ideia de que a sustentação dessa reconversão reside na nova economia ou na economia do conhecimento.” (SANTIAGO; CARVALHO; FERREIRA, 2013, p. 599). Os autores chamam a atenção para o conceito de capitalização do conhecimento, o qual se torna um dos objetivos para transformar o conhecimento em uma nova forma de “acumulação do capital”.

3 DA CIÊNCIA NORMAL À CIÊNCIA PÓS-NORMAL

No início dos anos 1990, paralelamente a outros enfoques que foram surgindo a respeito da produção do conhecimento científico, Silvio Funtowicz1 e Jerry Ravetz2 (1992) adotam o nome de Ciência Pós-Normal, derivado do aporte teórico de Thomas Kuhn (1962), descrito no livro The Structure of Scientific Revolution, no qual o autor introduz o conceito de Ciência-Normal. Segundo Funtowicz e Ravetz (1997, p. 222),

Adotamos o termo “pós-normal” para caracterizar a ultrapassagem de uma era em que a norma para a prática científica eficaz podia ser a rotineira resolução de quebra-cabeças (KUHN, 1962), ignorando-se as questões mais amplas de natureza metodológica, social e ética suscitadas pela atividade e por seus produtos.

Em sua experiência acadêmica e científica e no convívio com outros cientistas – 1958/1959 – Thomas Kuhn deparou-se com os desacordos expressos acerca do método e dos problemas científicos entre as comunidades científicas sociais e naturais; no dizer de Kuhn (1997, p. 12), “entre as quais eu fora treinado”. Na tentativa de descobrir essas diferenças, Kuhn reconhece o papel desempenhado na pesquisa, o qual denominou “paradigma”. “Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” (KUHN, 1997, p. 13). Esse reconhecimento Kuhn traduziu, metaforicamente, como a peça que faltava em seu “quebra-cabeça”. A partir dessa constatação, emergiu o ensaio que sustenta a pesquisa científica denominada Ciência Normal, mediante a resolução de quebra-cabeças.

A ciência normal representa a investigação feita em obediência a um paradigma em oposição à ciência extraordinária que não o possui. “A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma, frequentemente nem são vistos.” (KUHN, 1997, p. 45). A pesquisa realizada assim é restritiva, reduzindo drasticamente a visão do cientista. Contudo, a confiança depositada no paradigma Kuhn (1997) faz os cientistas acreditarem serem estas as características importantes. “Por exemplo, a ciência normal frequentemente suprime novidades fundamentais, porque estas subvertem necessariamente seus compromissos básicos.” (KUHN, 1997, p. 24).

Continuando suas ideias sobre ciência, Kuhn (1997) apresenta vários conceitos que são o constructo da ciência normal, entre os quais a prioridade dos paradigmas, a anomalia, a crise paradigmática e suas emergências, as revoluções científicas e as mudanças de concepção de mundo em decorrência destas e a invisibilidade, resolução e progresso por meio das revoluções.

São denominados revoluções científicas os episódios considerados extraordinários. Isso ocorre quando um problema comum resiste aos procedimentos e às regras existentes na comunidade científica, e os seus membros não conseguem evitar as anomalias que derrubam a tradição existente na prática científica, originando as investigações extraordinárias. “As revoluções científicas são os complementos desintegradores da tradição à qual a atividade da ciência normal está ligada.” (KUHN, 1997, p. 25). Faz-se importante registrar qual era o lugar dos leigos, pessoas comuns da sociedade, na ciência normal:

Na ciência normal, os leigos eram efetivamente excluídos do diálogo. Só tinham a chance de serem escutados numa situação “pré-revolucionária”, tal como Kuhn a definiu, quando o paradigma dominante (cognitivo e social) não se mostrava mais capaz de produzir resultados que lembrassem quebra-cabeças sendo solucionados de maneira estável e progressiva. (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 228).

De acordo com essa teoria, uma comunidade científica é constituída por praticantes de uma especialidade científica.

Estes foram submetidos a uma iniciação profissional e a uma educação similares, numa extensão sem paralelos na maioria de outras disciplinas. Neste processo absorveram a mesma literatura técnica e dela retiraram muitas das mesmas lições. Normalmente as fronteiras dessa literatura-padrão marcam os limites de um objeto de estudo científico e em geral cada comunidade possui um objeto de estudo próprio. (KUHN, 1997, p. 220).

Como objeto de estudo, na ciência acadêmica o conceito de “matriz disciplinar” é mais abrangente do que o conceito de teoria científica, “[...] “disciplinar” porque se refere a uma posse comum, aos praticantes de uma disciplina particular; “matriz” porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada.” (KUHN, 1997, p. 226).

Nas palavras de Funtowicz e Ravetz (1997), no modelo tradicional de ciência, imaginava-se que esta avançava continuamente por meio de um conhecimento seguro que exercia um controle sobre o mundo natural, disciplinar, especialista, fragmentado e dicotômico. A ciência tradicional residia, em grande parte, no poder de fazer abstração das incertezas nos conhecimentos e valores, em um universo de fatos inquestionáveis, apresentados dogmaticamente e assimilados por estudantes acríticos.

Hoje, visualiza-se a ciência como algo que põe em confronto complexidades, que lida com incertezas e defronta decisões tecnológicas e ambientais urgentes, em escala local e global. O controle da qualidade dos resultados da pesquisa nesse contexto científico novo e mais amplo não pode mais ser delegado a comunidades isoladas de especialistas. (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 220).

A renovação e o enriquecimento desse modelo demanda o estabelecimento de maior diálogo com todos os envolvidos nas pesquisas a respeito da qualidade e das políticas científicas praticadas no exercício de um debate genuíno e comprometido. Esse movimento é denominado pelos autores “comunidade ampliada de pares”.

Antes de abordar o conceito de “comunidade ampliada de pares”, faz-se necessário dizer que a abordagem que Funtowicz e Ravetz (1997) defendem se relaciona diretamente ao tema dos problemas ambientais. Estes requerem soluções que, além da aplicação dos fatos científicos, necessitam ações no sentido de rever as patologias, ou seja, uma ciência que não seja despojada de valores e neutra do ponto de vista ético. “Um método novo, baseado no reconhecimento da incerteza, da complexidade e da qualidade guiará o novo empreendimento científico que chamamos de ciência pós-normal.” (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 220). Para os autores, esses atributos foram excluídos da representação da ciência vigente entre pesquisadores, filósofos e popularizadores da ciência.

Diante dos problemas que originaram a ciência pós-normal, os autores orientam para a configuração do empreendimento científico, no sentido de incluir uma expertise complementar, cujas raízes e filiações residam fora do círculo ao qual pertencem os envolvidos na criação ou regulação oficial do problema. “Os novos participantes não apenas enriquecem as comunidades tradicionais de pares, criando o que se pode chamar de ‘comunidades ampliadas de pares’ como são necessários para a transmissão de habilidades e para a garantia da qualidade dos resultados.” (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 228).

A ampliação da “comunidade de pares” vai além de uma ação ética ou política. O que se busca é enriquecer a pesquisa científica. Para isso, conhecer as condições locais e pessoais é imprescindível, posto que as pessoas dependentes das soluções que, muitas vezes, determinam e ameaçam suas vidas, sabem como estas se materializam em seu cotidiano, sem contar que possuem informações que não são publicadas e divulgadas pelos órgãos oficiais.

Tais conhecimentos de caráter local e pessoal não se oferecem naturalmente aos especialistas que atuam em disciplinas determinadas, predispostos pelo treino e emprego a adotarem concepções abstratas e genéricas sobre a legitimidade de problemas e a relevância de informações. (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 229).

Funtowicz e Ravetz (1997) afirmam que as comunidades restrita e ampliada atuarão com mais qualidade se agirem de modo complementar. Essa perspectiva possibilita uma prática mais humanista, enfraquecendo o ideal lógico de predição científica, dando lugar à meta mais pragmática de previsão das políticas.

3 DA CIÊNCIA MODERNA À CIÊNCIA PÓS-MODERNA

Para abordar o conceito de Ciência Pós-Moderna, elegeu-se Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português que, ao longo de suas obras, contextualiza o tema da(s) Ciência(s) nas dimensões que interessam neste estudo. Ainda, as interlocuções com a linha de pesquisa Universidade: teoria e prática nos estudos doutorais propiciaram as proximidades com as ideias desse autor.

Na obra Um discurso sobre as Ciências (1987; 2002), versão ampliada de Oração da Sapiência, proferida na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86, Sousa Santos (2002) apresenta o contexto histórico e social da evolução da Ciência desde o século XVI, nascimento do cientista moderno, até o século XXI. Posteriormente, outras obras trataram de fazer a crítica e as reflexões no intuito de compreender a prática científica para além da consciência ingênua, normativa, imperativa, oficial dos cientistas e das comunidades/instituições científicas, aprofundando o diálogo entre essa prática com outras do conhecimento de que se tecem a sociedade e o mundo. Isso se faz partindo da “[...] ideia de que vivemos uma fase de transição paradigmática que procura definir o perfil teórico e sociológico da forma de conhecimento que, nesta fase, transporta os sentidos emergentes da ciência pós-moderna.” (SOUSA SANTOS, 2002, p. 11).

Apresenta-se, a partir de Sousa Santos (2002), como essa história foi sendo construída e determinando os modos de ser, pensar e agir no âmbito da Ciência Moderna e Pós-Moderna. A opção toma por base também as influências desse autor nos processos de democratização e emancipação da Educação. Oliveira (2008, p. 9), ao apresentar o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, destaca que “[...] a amplitude da obra, a sua qualidade incontestável e a sua diversidade permitem pensar em possibilidades múltiplas de escrever sobre elas e seu autor também em diferentes campos.”

A Ciência Moderna origina-se a partir da revolução científica do século XVI, como um modelo de racionalidade no domínio das ciências naturais, tendo como representantes e legitimadores Copérnico, Galileu, Newton, Bacon e Descartes. Representava uma luta apaixonada contra todas as formas de dogmas e de autoridade, ou seja, uma nova visão do mundo e da vida, em contraste com a ciência Aristotélica e Medieval.

Com isso, instaura-se o método científico que assenta na redução da complexidade, afirmando que o mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. É o modelo de racionalidade no domínio das ciências naturais.

René Descartes é tido como o pai do racionalismo moderno. Em seu Discours de la méthode, de 1637, insatisfeito com a sua própria educação, decidiu submeter tudo que antes havia aceito como verdadeiro a uma dúvida metódica a fim de construir uma ciência mais segura de Deus, do Homem e da Natureza. Matemático eminente, atribuiu o sucesso dos matemáticos ao método que usavam: começavam com as verdades mais simples, os axiomas básicos, e evoluíam passo a passo ao conhecimento mais complexo. Sua intenção era, de fato, projetar matematicamente ordem no mundo físico para se poder entendê-lo racionalmente. (TRINDADE; PRIGENZI, 2002, p.10).

Somente no século XIX esse modelo se estende às ciências sociais emergentes como um modelo global de racionalidade científica. Mesmo assim, distingue-se e defende-se do senso comum e dos estudos humanísticos (filosóficos, teológicos, jurídicos, literários).

Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. É esta a sua característica fundamental e a que melhor simboliza a ruptura do novo paradigma científico com os que o precedem. (SOUSA SANTOS, 2002, p. 10-11).

O conhecimento científico avança como um conhecimento funcional do mundo, que deve ser especialista, rigoroso, restrito, objetivo, disciplinar, dicotômico. Essas são as formas de policiar as fronteiras da ciência moderna que não considera o senso comum e a empiria e que impõe um juízo de valor que sustenta, produz e reproduz suas normas. A matemática ocupa lugar central na ciência moderna. Conhecer significa quantificar, o rigor científico afere-se pelo rigor das medições. “A matemática fornece à ciência moderna, não só um instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria.” (SOUSA SANTOS, 2000, p. 14).

Segundo Sousa Santos (2000), a ciência moderna assenta-se em um modelo dicotômico, que separou a natureza do homem, o sujeito do objeto, a objetividade da subjetividade. As ciências sociais emergem em contraste ao modelo positivista (ciência moderna), fundam-se na subjetividade por meio dos métodos de investigação qualitativos e buscam um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo dos fatos e acontecimentos.

Os traços de que os modelos de racionalidade científica da ciência moderna ou paradigma dominante, conhecidos e aplicados até os dias atuais, vivem uma profunda crise são considerados evidentes, irreversíveis e fortes por Sousa Santos (2000), Morin (2010), Castells (2006), Etzkowitz (2009), Ziman (2000); Gibbons et al. (1994), Funtowicz e Ravetz (1997); Santiago e Carvalho (2011), Santiago, Carvalho e Ferreira (2013) e outros teóricos do conhecimento científico.

Pautada pelas condições teóricas e sociais, a crise do paradigma da ciência moderna é assim retratada por Sousa Santos (2002, p. 35):

É antes o retrato de uma família intelectual numerosa e instável, mas também criativa e fascinante, no momento de se despedir, com alguma dor, dos lugares conceituais, teóricos e epistemológicos, ancestrais e íntimos, mas não mais convincentes e secularizantes, uma despedida em busca de uma vida melhor a caminho doutras paragens onde o optimismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde finalmente o conhecimento volte a ser uma aventura encantada.

O perfil do paradigma emergente, proposto por Sousa Santos (2002), ocorre por meio dos sinais que a crise do paradigma dominante permite, mas não são determinados por este. O paradigma a emergir não é apenas um paradigma científico (conhecimento prudente), é também um paradigma social (para uma vida decente). Esse paradigma emergente é anunciado por um conjunto de teses que descrevem o conhecimento científico pós-moderno, quais sejam: todo o conhecimento científico-natural é científico-social; todo o conhecimento é local e total; todo o conhecimento é autoconhecimento; e todo o conhecimento científico visa se constituir em senso comum. Nessa última tese do conhecimento científico no paradigma emergente, Sousa Santos (2002) propõe o estabelecimento de um diálogo com todas as formas de conhecimento, em especial o conhecimento do senso comum, considerado vulgar, prático, mistificado, superficial, mas que faz parte do cotidiano, orientando as ações. Também é indisciplinar, imetódico, não se produz de forma orientada, mas espontaneamente. Por ser retórico e metafórico é mais persuasivo, contrapondo-se às formas de ensinar formais.

Diante dos aspectos mais relevantes discutidos pelo autor na apresentação das teses, tem-se que o senso comum assume papel importante no paradigma emergente se for interpenetrado pelo conhecimento científico, para o surgimento de uma nova racionalidade. Para tanto, será necessário inverter a ruptura epistemológica, tendo como alvo o conhecimento do senso comum. “Na ciência moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum.” (SOUSA SANTOS, 2002, p. 57).

Portanto, na ciência pós-moderna, o conhecimento científico somente se realiza quando se converte em conhecimento do senso comum. Na perspectiva de Sousa Santos (2000, 2003, 2006), a prática científica deve ser compreendida para além da consciência ingênua.

4 DA CIÊNCIA MODO 1 À CIÊNCIA MODO 2

Os contornos desse Novo Modo de Produção do Conhecimento, denominado Modo 2, são observados e estudados por Gibbons e seus colaboradores. São duas as obras principais: The Dynamics of science new production of knowledge: the dynamics of science and research in contemporary societies (1994), cujos autores são Michael Gibbons, Martin Trow, Peter Scott, Simon Schwartzman, Helga Nowotny e Camille Limoges. E a obra intitulada Re-thinking science: Knowledge and the public in an age of uncertainty (2001), sob a autoria de Helga Nowotny, Peter Scott e Michael Gibbons. Complementando as duas principais obras, há outras duas publicações também relevantes: “Mode 2” Revisited: The New Production of Knowledge (2003) de Helga Nowotny, Peter Scott e Michael Gibbons, na qual os autores revisam alguns conceitos, e a publicação Pertinencia de la educación superior en el siglo XXI (1998), de autoria de Michael Gibbons. Os autores são pesquisadores de instituições da Inglaterra, Canadá, Austrália, Brasil e Estados Unidos. As ideias publicadas nas respectivas obras conquistaram grande importância no meio acadêmico e político, atraindo a atenção de pesquisadores e gestores, conforme constatou Buedo e Vielba (2009) ao abordarem as mudanças mais recentes na pesquisa científica e tecnológica, por meio de diferentes correntes de pensamento, entre elas o Modo 2.

Na obra revista e publicada em 2001, os autores, diante das críticas recebidas pela ausência de estudos empíricos, esclarecem que, nas duas publicações (1994, 2001), os escritos são ensaios de reflexão que buscam oferecer uma análise detalhada das tendências descritas respectivamente. Diante disso, tem-se que o Modo 2 de conhecimento serve ao propósito de contrastar com o Modo 1, cuja pesquisa científica realiza-se de forma disciplinar, homogênea e hierárquica, assim definida por Buedo e Vielba (2009, p. 722): “És decir, la producción de conocimiento se realiza en organizaciones jerárquicas permanentes (universidades y centros de investigación) con el objetivo de avanzar en el conocimiento de la realidad para satisfacer los propios intereses académicos y disciplinarios.”

Segundo Gibbons (1998), a estrutura disciplinar do Modo 1 desempenha papel central na gestão e na organização das universidades na atualidade, o que as tornam as principais legitimadoras dessa forma de produção do conhecimento, considerando-se a estrutura disciplinar em ciências, ciências sociais ou ciências humanas. Esse modelo também organiza o ensino nas universidades, delineando os currículos de graduação. Assim, a estrutura disciplinar é o elo essencial que liga ensino e pesquisa e que sustenta o argumento de que, nas universidades, eles estão perfeitamente adequados e indissociáveis. Nesse sentido, a pesquisa não apenas contribui para o estoque de conhecimento especializado, mas também para transformá-lo. Nas palavras de Gibbons (1998, p. 5 tradução nossa),

[...] esta estrutura fornece as diretrizes para pesquisadores sobre quais são os problemas importantes a serem investigados, como devem ser enfrentados, quem deve enfrentá-los e o que deve ser considerado como contribuições importantes para o campo. Resumindo, a estrutura disciplinar define tanto o que é “boa ciência” e prescreve, também, o que os alunos precisam saber se quiserem se tornar cientistas.

Para os autores, o Modo 2, no futuro, mudará a forma com que as universidades têm exercido a docência e a pesquisa, além de proporcionar critérios que redefinirão a sua relevância (GIBBONS et al., 1994). Essas mudanças estão diretamente relacionadas às mudanças sociais, políticas e econômicas no contexto mundial de globalização, acrescidas da evolução e abrangência exponencial das tecnologias de informação e comunicação.

Em suas análises, Gibbons (1998, p. 6) define os seguintes atributos para especificar as características do Modo 1 e do Modo 2: a dinâmica do Modo 2 centra-se, principalmente, no livre fluxo de informações e na comunicação aberta entre diferentes áreas do conhecimento e diferentes setores da sociedade, em múltiplas direções – eletrônica, organizacional e socialmente relevantes; no Modo 1, os problemas são definidos e resolvidos em um contexto (grande parte acadêmico) regido pelos interesses de uma comunidade específica. Por outro lado, no Modo 2, o conhecimento é produzido em um contexto de aplicação. O Modo 1 é disciplinar, homogêneo, organizacionalmente hierárquico e tende a preservar sua estrutura; já o Modo 2 é transdisciplinar, heterogêneo e estruturalmente transitório. Nos dois se apresentam formas distintas de controle de qualidade, pois no Modo 2 há a preocupação, fundamentalmente, com a responsabilidade social e, assim, ele se torna mais reflexivo (GIBBONS et al., 1997, p. 14).

Os atributos da produção do conhecimento no Modo 2 são assim definidos: conhecimento produzido no contexto da aplicação, transdisciplinaridade, heterogeneidade e diversidade organizacional, responsabilidade e reflexividade social, os quais são descritos conforme Gibbons et al. (1994,1997) e Gibbons (1998). A título de ilustração, no Quadro 2, a seguir, apresentam-se algumas características entre o Modo 1 e o Modo 2 de produção do conhecimento científico, na definição e solução de problemas, no campo da pesquisa, na organização, na difusão dos resultados, nas formas de financiamento, nos resultados e impacto social e na qualidade destes.

Quadro 2 – Características Modo 1 e Modo 2

CARACTERÍSTICAS

MODO I

MODO II

Definição e solução de problemas

Predomina o contexto essencialmente acadêmico de uma comunidade científica.

Mais no contexto da aplicação, em uma base de consulta a diferentes interesses.

Campo de pesquisa

Disciplinar, homogêneo.

Transdisciplinar, heterogêneo.

Modo de organização

Hierárquico, especialistas.

Colaboração temporária sobre determinado problema, envolvendo a pluralidade de instituições.

Difusão de resultados

Canais institucionais.

No núcleo de uma rede, em volta de um produto, que depois é absorvido pela sociedade para reconfiguração de novos problemas.

Financiamento

Essencialmente institucional.

Um conjunto de projetos a partir de uma variedade de recursos públicos e privados.

Avaliação de impacto social

Ex-post, no momento de interpretação e difusão dos resultados.

Ex-ante, na definição dos problemas e estabelecimento de prioridades de pesquisa.

Controle de qualidade dos resultados

Essencialmente pelo sistema de avaliação por pares, o controle concerne à contribuição científica individual.

A qualidade não é mais unicamente científica. O controle inclui a pluralidade de interesses intelectuais, sociais, econômicos e políticos.

Fonte: adaptado de Gibbons et al. (1994 apud SANTANA, 2009, p. 79).

O Modo 2 de produção do conhecimento, na perspectiva de Gibbons et al. (1994), altera o Modo 1, “[...] onde os cientistas se mantinham independentes, controlando seu campo de trabalho, repartindo os recursos recebidos e estabelecendo entre eles suas prioridades, temas e metodologias”. (SANTANA, 2009, p. 76). O Modo 2 busca representar, portanto, segundo os autores, o rompimento com os modos fragmentados de produção do conhecimento caracterizado pela separação das disciplinas, departamentos, comunidades científicas, em uma estrutura linear das instituições. Nos estudos sobre comunidade científica, Santana (2009), de forma detalhada, explica o comportamento científico em diferentes contextos de tempo e lugar, elucidando como as opções teóricas e metodológicas de se fazer ciência foram acontecendo ao longo da história.

Mais recentemente, Leite e Lima (2012), em suas pesquisas, investigaram a forma como o conhecimento se dissemina e as transformações e progressos que impactam nesse processo com os avanços tecnológicos e sociais. Nesse estudo, os autores constataram que a produção do conhecimento está ocorrendo fortemente na “[...] constituição de redes de colaboração entre investigadores, um fenômeno que pode ser estimulado para propiciar uma maior circulação da inovação na pesquisa acadêmica.” (MIORANDO; LEITE, 2012, p. 183).

O Modo 2 está associado ao conceito de sociedade em rede, não linear, constituindo novas morfologias sociais e modificando as formas de organização e de produção. Além de definir atributos ao novo modo, Gibbons (1998) os relaciona às novas demandas das universidades no que diz respeito à produção do conhecimento. Nesse sentido, considera que o Modo 2 é mais distribuído socialmente. “La producción de conocimiento socialmente distribuída está adquiriendo la forma de uma red mundial com um numero de interconexiones que aumenta continuamente al crearse nuevos puntos de producción.” (GIBBONS, 1998, p. 39). O autor complementa essa ideia afirmando que o Modo 2 depende fortemente de todas as formas mais avançadas de telecomunicações e da informática, sendo o Modo 2 tanto uma necessidade (causa) quanto um usuário de todos esses sistemas inovadores que intensificam as redes e a transformação da informação. Portanto, a concepção de um novo modo de produção do conhecimento científico incorpora fortemente o livre fluxo de informações em que diferentes atores, instituições, comunidades e organizações colaboram entre si.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mudanças em curso se referem às transformações situadas e identificadas de ordem econômica, social, política, cultural e tecnológica. O ethos da ciência, na contemporaneidade, estabelece relações institucionais endógenas e exógenas, o que solicita a colaboração, o comprometimento, as relações entre conhecimento científico e o conhecimento do senso comum.

Assim, verifica-se que há aspectos transicionais a serem considerados na dinâmica da produção do conhecimento científico. A Ciência no contexto “Pós” obriga uma reflexão sobre e uma reformulação dos modos de organização tradicional da investigação científica. Sem dúvida, a transformação das condições sociais, econômicas e políticas da ciência distanciam-se mais ainda dos imperativos do ethos mertoniano compatível com a investigação acadêmica. Em relação à produção do conhecimento científico, pode-se aprimorar a explicação científica para uma compreensão societária no sentido de engendrar novos ideais para a própria ciência. É fundamental estabelecer diálogos com outras práticas e outros modos de conhecer o mundo em toda a sua complexidade.

Diante do exposto, tem-se que a produção insulada não é o único modo de trabalho dos pesquisadores no século XXI. São muitas as relações possíveis de se estabelecer a partir dos princípios dos novos modos de produção do conhecimento com as exigências e as transformações que a sociedade, no século XXI, impõe à Universidade e, assim, à pesquisa e ao ensino.

Notas explicativas

1 Epistemólogo e Matemático, atualmente investigador e assessor do Centro Comum de Investigação, Instituto de Informática e Sistemas de Segurança (ISIS) em Varese (Itália) (BUEDO; VIELBA, 2009, p. 735).

2 Epistemólogo e Matemático, foi professor de História e Filosofia da Ciência na Universidade de Leeds e pesquisador nos Métodos de Investigação Consultoria Ltda., em Londres. É Professor Associado no Instituto James Martin, da Universidade de Oxford. Tem trabalhado com governança de tecnologias emergentes, com foco em nanotecnologia. (BUEDO; VIELBA, 2009, p. 735).

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Recebido em: 10 de maio de 2015

Aceito em: 17 de agosto de 2015

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