http://dx.doi.org/10.18593/r.v40i2.6527

OS FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO MODERNA SOB SUSPEITA: A CRÍTICA PÓS-ESTRUTURALISTA E A PRODUÇÃO DE IDENTIDADES E DIFERENÇAS1

THE FOUNDATIONS OF MODERN EDUCATION UNDER SUSPICION: THE POST-STRUCTURALIST CRITICISM AND THE PRODUCTION OF IDENTITIES DIFFERENCES

Sirley Lizott Tedeschi*

Professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)

Ruth Pavan**

Professora do Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado na Universidade Católica Dom Bosco

Resumo: No texto analisam-se os fundamentos da educação moderna e as implicações na produção das identidades e diferenças dos sujeitos. Toma-se como referência o campo teórico pós-estruturalista e se entende que a educação na modernidade incorpora o conceito de sujeito epistêmico e a pedagogia do método e das técnicas de ensino. Reporta-se aos estudos de Nietzsche e Foucault em uma tentativa de pensar a educação, considerando a natureza produtiva do poder, sua relação com o saber e a produção de identidades e diferenças. Esses autores possibilitam contestar as identidades hegemônicas produzidas pela racionalidade moderna mostrando sua constituição no mundo cultural e social e abrindo espaços para a constituição de outras subjetividades, outras identidades, outras diferenças.

Palavras-chave: Modernidade. Educação. Identidade. Diferença.

Abstract: The paper analyzes the foundations of modern education and the implications in the production of the identities and differences of the subjects. Has referred to the post-structuralist theoretical field and understands that education in modernity incorporates the concept of epistemic subject and pedagogy method and teaching techniques. It refers to studies of Nietzsche and Foucault in an attempt to think of education as the productive nature of power, their relationship to knowledge and the production of identities and differences. These authors make it possible to challenge the hegemonic identities produced by modern rationality showing its constitution in the cultural and social world and opening spaces for the creation of other subjectivities, other identities, other differences.

Keywords: Modernity. Education. Identity. Difference.

1 INTRODUÇÃO

O processo de formação humana, aqui entendido como educação, está vinculado a uma determinada concepção de racionalidade, e essa racionalidade é constituidora de uma determinada visão de mundo. A racionalidade subjacente ao processo educativo “[...] consiste na capacidade de descrever, interpretar e compreender seu próprio modo de agir e de pensar a educação enquanto uma experiência existencial que vincula o humano ao mundo.” (BOMBASSARO, 2010, p. 169). Se partirmos de uma posição epistemológica que vincula o processo formativo ao conhecimento, a relação entre educação e racionalidade será estabelecida.

Nesse sentido, a análise da produção das identidades e diferenças na educação leva-nos a investigar a concepção de racionalidade subjacente à modernidade e suas implicações no campo educacional e na constituição dos sujeitos. Reportamo-nos, para tal análise, ao campo teórico denominado pós-estruturalismo.

De acordo com Peters (2000, p. 39), “[...] o pós-estruturalismo questiona o cientificismo das ciências humanas, adota uma posição anti-fundacionalista em termos epistemológicos e enfatiza um certo perspectivismo em questões de interpretação.” Nesse caso, Nietzsche tem importância fundamental para o desenvolvimento do pós-estruturalismo, pois “[...] ataca todos os valores transcendentes que pretendem uma independência ante as lutas e valorações históricas que os engendram.” (WILLIAMS, 2013, p. 30). Ao criticar a noção de verdade e enfatizar a interpretação e as diferentes relações de poder, produz uma ruptura ou descontinuidade em relação à racionalidade hegemônica da modernidade.

Conforme Peters (2000), Nietzsche teria influenciado Foucault a desenvolver sua análise das relações de poder, do discurso e da constituição do sujeito. Dizendo de outra forma, Foucault fez um diagnóstico das estruturas de saber-poder e das tecnologias da produção do sujeito. Nesse sentido, essa perspectiva teórica vem ao encontro da análise que nos propomos a desenvolver.

2 RACIONALIDADE MODERNA: METAFÍSICA DA SUBJETIVIDADE2 E RACIONALISMO CIENTÍFICO

A concepção de racionalidade que se tornou hegemônica na sociedade ocidental advém dos gregos, mais especificamente do pensamento socrático-platônico. A metafísica platônica separa o mundo sensível (das aparências, da multiplicidade) de um mundo inteligível (das essências, da unidade) e assegura que o que é possível conhecer é o que é uno e estável. No que se refere ao mundo sensível, o conhecimento, à primeira vista, coloca-se como impensável em razão de constantes transformações.

Porém, Platão sugere uma possibilidade de conhecimento das imagens e das matérias do mundo sensível: que estas se submetam aos objetos ideais do mundo inteligível, com o propósito de lhes copiar o modelo. Dessa forma, constitui-se a filosofia da representação,3 uma vez que as cópias (mundo sensível) são feitas à imagem e semelhança de seus modelos (mundo ideal). Quem/o que não se submeter aos modelos de forma a se tornar semelhante é qualificado como não conhecedor/não conhecimento.

De acordo com Deleuze (1988), ao opor mundo inteligível a mundo sensível ou o modelo à cópia, Platão reforça a disparidade entre cópia e simulacro. O simulacro é compreendido por Deleuze (1988, p. 437) como um sistema que:

[...] afirma a divergência e o descentramento; a única unidade, a única convergência de todas as séries é um caos informal que compreende todas elas. Nenhuma série goza de um privilégio sobre a outra, nenhuma possui a identidade de um modelo, nenhuma possui a semelhança de uma cópia [...] Cada uma é constituída de diferenças e se comunica com as outras por meio de diferenças de diferenças. As anarquias coroadas substituem as hierarquias da representação.

O simulacro não representa um “[...] declínio da coisa em si [...] uma cópia, uma representação, uma identificação diminuída de uma identidade plena.” (WILLIAMS, 2013, p. 109). O que afirma Deleuze é a não existência dessa identidade plena como condição para as cópias, negando a primazia do modelo sobre a imagem, do original sobre a cópia.

A partir do conceito de simulacro, a intenção de Deleuze (1988) é promover uma filosofia da multiplicidade. Pretende romper com o platonismo, contrapondo-se à filosofia da representação – sustentada na ideia de que cabe à razão transformar em unidade a multiplicidade que caracteriza os sentidos – por meio da ideia de simulacro, ou seja, pela valorização da multiplicidade.

Esse modelo de racionalidade, criticado por Deleuze (1988), serviu como uma poderosa arma de formatação e colonização do pensamento. Na mesma perspectiva, afirma Skliar (2003, p. 99):

[...] a mesmidade ocupando o centro, correndo por suas fronteiras cada vez mais para fora e concentrando tudo e todos na periferia, nas bordas, naquilo que se supõe ser marginal, ser excluído, ser expulso. E a periferia, as bordas, o marginal, o excluído, cuja única razão de sua existência deveria ser esforçar-se para entrar, para estar incluído, para estar no centro, para ocupá-lo e assim ser, finalmente, como os demais.

Nesse caso, a representação do outro é construída a partir da mesmidade e para a mesmidade. O outro, produzido e inventado pelo pensamento colonizador, “[...] deve sempre coincidir com o que inventamos e esperamos dele e, se essa coincidência não ocorre, “[...] a invenção e a espera se tornam mais destrutivas, mais violentas e, finalmente, mais genocidas.” (SKLIAR, 2003, p. 114).

Podemos afirmar que, na modernidade, é o mesmo modelo de racionalidade que prevalece. O pensamento cartesiano, ao estabelecer a existência de uma alma distinta do corpo, reforça o dualismo platônico e a ideia de que a verdade é dada pela razão. Desse modo, tudo o que é corpóreo se torna um empecilho para a alma atingir o conhecimento. Isso justifica a atitude de Descartes na Terceira Meditação ao afirmar: “[...] fecharei agora os olhos, tamparei os ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos uma vez que mal se pode fazê-lo, reputá-las-ei como vãs e como falsas.” (DESCARTES, 1996, p. 277).

Ao colocar corpo e alma em dimensões distintas, o dualismo cartesiano cria uma série de binarismos – sujeito/objeto, intelectual/manual, pensamento/ação, interior/exterior, natureza/cultura. Nessas oposições, um dos termos sempre é valorizado em detrimento do outro. Cada dicotomia privilegia um dos termos, revelando uma hierarquia que concebe o primeiro termo como uma cópia mais fiel, mais próxima e semelhante à ideia.

De acordo com o dualismo platônico (mundo sensível e mundo inteligível) e cartesiano (corpo e alma), quanto mais próximo da ideia se encontra o primeiro termo da dicotomia, mais este se aproxima da ideia de bem ou de verdade. O segundo termo, mais distante da ideia, “[...] é inferior, maldito, impuro, indigno, [...] mais próximo do simulacro, sempre submerso na dessemelhança, oposto ao modelo do Mesmo, que deve ser mantido nas profundezas do oceano, no fundo da caverna, porque é Mal.” (HEUSER, 2008, p. 72).

Assim, “[...] o outro da oposição binária não existe fora do primeiro termo, mas dentro dele, como sua imagem velada, como sua expressão negativa, como sendo necessitada de correção normalizadora.” (SKLIAR, 2003, p. 115). Embora os termos da oposição binária dependam um do outro, a dependência não ocorre no mesmo nível – enquanto o primeiro precisa do segundo para a sua autoafirmação o segundo depende do primeiro para o seu forçado isolamento.

Concordando com Skliar (2003), é preciso questionar o saber/poder que origina o pensamento binário, visto que produziu, no Ocidente, um pensamento que podemos caracterizar como tirânico. Fomos habituados a pensar a partir da lógica identitária, e esta, por sua vez, subordina o movimento da diferença. Identidades e diferenças tendem a ser naturalizadas, cristalizadas; desse modo, esquece-se de que são constituídas no mundo cultural e social.

Nietzsche já contrariava a forma metafísica de pensar baseada em binarismos: “[...] entre orgânico e inorgânico não existe traço distintivo fundamental – e tão-pouco entre físico e psíquico ou, se se quiser, ‘material’ e ‘espiritual’. Em face desta concepção de mundo, devem vir abaixo as velhas dicotomias da metafísica.” (MARTON, 1993, p. 533). Ao questionar o sentido das oposições binárias e mostrar que o que sustenta o nosso pensamento é fruto de nossas escolhas, Nietzsche desconstrói a separação entre fatos e valores. Dessa forma, questiona a a-historicidade da filosofia e a desloca para o plano da vida. Depois de Nietzsche, as formas platônicas ideais e as ideias cartesianas claras e distintas que dificultaram o movimento da diferença foram fortemente colocadas sob suspeita.

Podemos afirmar que o modelo de racionalidade da tradição metafísica atinge seu apogeu com Kant, considerado um grande expoente da filosofia iluminista do século XVIII. O Iluminismo representa o que podemos denominar projeto de emancipação da humanidade. Nas palavras de Kant (2015, p. 1):

Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. (KANT, s/d, p. 1).

O projeto iluminista kantiano consagra o sujeito epistêmico como um sujeito universal e dotado de razão que almeja a autonomia intelectual e o progresso da ciência fundamentado em uma razão científica, com métodos também científicos.

É preciso considerar que, no projeto iluminista, o homem conquista a liberdade ou a maioridade quando se liberta de todas as tutelas e imposições e consegue seguir sua própria lei, ou seja, a razão. Por um lado, a liberdade é entendida como “[...] libertação de qualquer tipo de tutela, e aí a liberdade aparece como heróica porque exige valor, coragem e esforço.” (LARROSA, 2004, p. 86). Por outro lado, somente se tem a liberdade na forma de autonomia; então, ser livre significa proporcionar a si sua própria lei e a ela obedecer. O indivíduo deve escutar a voz da razão em sua própria interioridade.

A liberdade como autonomia funda obrigações, mas obrigações próprias. É, portanto, uma forma de autogoverno cuja não-arbitrariedade está garantida pela razão, isto é, que não emana da arbitrariedade de um sujeito singular, ou de uma vontade contingente, mas da vontade de um sujeito racional e, portanto, ao menos na fábula kantiana, universal. (LARROSA, 2004, p. 87).

A crítica ao Iluminismo é apresentada por Adorno e Horkheimer, que se propuseram a “[...] introduzir a razão no mundo por meio de um pensamento entendido como teoria crítica e como práxis.” (LARROSA, 2004, p. 98). A crítica consiste em mostrar que a razão se tornou o principal mecanismo de dominação e controle.

Para os autores da Escola de Frankfurt, “[...] desde sempre o iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores. Mas completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1996, p. 17). O poder emancipador da razão é colocado em suspeita com o poder da ciência positivista, e o grande desafio é construir modos de existência fora do modelo da racionalidade moderna.

A filosofia do sujeito, derivada da metafísica da representação, resulta na aplicação de uma racionalidade que tem como finalidade dominar o mundo, os homens e as relações que estes estabelecem entre si. Dessa forma, incorpora tanto o subjetivismo (racionalista-idealista) quanto o objetivismo (empirista-positivista).

Diante dos inúmeros acontecimentos – violência, pobreza, armas nucleares, guerras, problemas ecológicos –, o projeto universal que traria felicidade à humanidade perde sua força, e os ideais metafísicos – verdade, ciência, liberdade, sujeito, cidadania – abrem-se para a desconstrução. Os metarrelatos, inclusive o Iluminismo, cedem espaços para:

Discurso disperso, fragmentado em pequenos relatos, nos quais se fazem ouvir as vozes da diferença; nessa medida, trata-se de uma espécie de compromisso filosófico – também político com as minorias – tanto de ordem sexual como de ordem étnica ou cultural – e ideológico com a alteridade, com os excluídos do discurso moderno, aqueles a quem as tentativas de universalização de um modelo de homem branco, ocidental, adulto, heterossexual, normal e civilizado tinham mantido à sombra do iluminismo: mulheres, negros, gays, lésbicas, doentes mentais, “selvagens” e crianças. (HEUSER, 2008, p. 64).

Conforme Lyotard (1993), devemos suspeitar de argumentos e pontos de vista com pretensões universais e totais, pois “[...] não existe qualquer discurso-mestre que possa ser considerado neutro ou que possa representar uma síntese ou expressar qualquer suposta unidade ou universalidade epistemológica.” (PETERS, 2000, p. 44).

Ao suspeitar, interrogar, questionar, desestabilizar as metanarrativas modernas, não se pretende substituí-las por outras; pelo contrário, o que se almeja é abandonar as pretensões universalistas fundamentadas na ideia de unidade e eliminação da diferença e possibilitar as micronarrativas, sempre contextualizadas, sempre heterogêneas, sempre em mudança.

3 EDUCAÇÃO MODERNA: OS FUNDAMENTOS PEDAGÓGICOS DO PROCESSO EDUCATIVO

A filosofia na modernidade, caracterizada pela tradição metafísica, que coloca no centro os princípios racionais e o sujeito epistêmico, influencia diretamente a concepção pedagógica moderna e estabelece seus fundamentos. É “[...] sob os auspícios da tradição dos grandes sistemas filosóficos que se articulam os fundamentos da educação” (HERMANN, 2002, p. 141), e a forma como a ideia de fundamento foi entendida na filosofia metafísica ocidental leva a supor que há uma garantia absoluta para a verdade. Para o campo educacional, “[...] fundamentos seguros conduzem a uma intervenção pedagógica segura, podendo, assim, instrumentalizar-se o processo de formação humana.” (HERMANN, 2002, p. 142).

Em decorrência da forte influência da filosofia, que até Hegel é concebida como aquela que a tudo ilumina e fundamenta, a pedagogia moderna assume os ideais humanistas/racionalistas, da centralidade do sujeito e da consciência. Com isso, as teorias pedagógicas incorporam, por um lado, o sujeito epistêmico (universal, racional, idêntico), e este passa a delinear o processo educativo. Por outro lado, influenciada pela racionalidade científica, a pedagogia assume o método científico e as técnicas como centrais na aprendizagem do sujeito epistêmico. Essa pedagogia é caracterizada por confiar que a aprendizagem dos conteúdos escolares pelo sujeito depende dos procedimentos técnicos de ensino.

As teorias pedagógicas modernas estabelecem um tipo essencial e ideal de ser humano a ser realizado via processo educativo. A tarefa atribuída à educação é executar as promessas da modernidade na formação de um sujeito plenamente livre, guiado exclusivamente pela razão. O sujeito passa a ser compreendido como aquele que possui consciência de seus pensamentos e é, portanto, responsável por suas ações.

Educar o homem racionalmente é o que legitima e justifica todo o processo educativo. A educação precisa ser racional porque a razão foi concebida pela filosofia metafísica como “[...] naturalmente igual em todos os homens” (DESCARTES, 1993, p. 39) e como fundamento de tudo o que existe. A pedagogia moderna coloca a razão como fundamento e garantia de todas as suas ações. O que se vislumbra é um homem universal, a-histórico, racional, essencializado, com autonomia moral, capaz de promover o progresso científico e tecnológico e, como consequência, o bem-estar social.

Ao preconizar um sujeito abstrato e universal passível de generalização, a educação opera com uma forma de pensamento que essencializa a identidade e a diferença e, em decorrência disso, produz exclusões de várias formas. De outro modo, podemos pensar que “[...] a identidade e a diferença não são entidades preexistentes, que estão aí desde sempre ou que passaram a estar aí a partir de algum momento fundador, elas não são elementos passivos da cultura, mas têm que ser constantemente criadas e recriadas.” (SILVA, 2004, p. 96).

Contudo, é a filosofia kantiana que se posiciona como legitimadora da concepção moderna de educação. Kant (1999), ao apresentar sua proposta de educação, coloca a racionalidade como essencial no processo educativo e afirma que “[...] a arte da educação ou pedagogia deve ser raciocinada, se ela deve desenvolver a natureza humana de tal modo que esta possa conseguir o seu destino.” (KANT, 1999, p. 21).

Ao perpetuar o espírito das luzes, Kant pretende promover, na e pela educação, o acesso de cada membro da comunidade à sua maioridade e à sua autonomia. Isso significa que “[...] o sujeito ético ou moral não se submete aos acasos da sorte, à vontade e aos desejos de outros, à tirania das paixões, mas obedece apenas à sua consciência – que conhece o bem e as virtudes – e à sua vontade racional – que conhece os meios adequados para chegar aos fins morais.” (CHAUÍ, 1994, p. 342).

É preciso estar ciente de que, ao incorporarem a ideia do sujeito epistêmico, as pedagogias modernas trabalham em defesa da identidade como “[...] valor ou sentido que seria anterior à diferença, mais originário que ela e que, em última instância, a excederia e a comandaria.” (DERRIDA, 2001, p. 36). Muitos mecanismos de disciplinamento e controle foram inventados em defesa da identidade entendida como essencial e verdadeira, com o objetivo de corrigir as identidades desviantes. Nesse processo, a escola desempenha papel fundamental. Conforme Veiga-Neto (2000, p. 182),

O projeto iluminista de escolarização única/igualitária, universal e obrigatória, está se revelando uma impossibilidade histórica na medida em que ele se insere na lógica da própria modernidade, uma lógica ambígua, que está implicada, per se, tanto com a domesticação da diferença quanto com o diferencialismo e a desigualdade e, por conseqüência, com a exclusão.

Queremos dizer que as concepções iluministas – da consciência, do sujeito e da universalidade da razão – procuram fixar e estabilizar a identidade, impossibilitando o movimento da diferença. Mais apropriados nos parecem os movimentos que tendem a subverter e desestabilizar a identidade, abrindo espaço para a dinâmica da produção das identidades e diferenças.

Convém, ainda, salientar que a racionalidade moderna iluminista que serve de fundamento para a educação é uma racionalidade técnico-científica. Esta, conforme Gallo, “[...] é a busca, a um só tempo, de uma objetividade e de uma universalidade do conhecimento, para que o mesmo possa ser reconhecido como válido e verdadeiro.” (GALLO, 2006, p. 556). Pelo método científico, o homem pode ter acesso à realidade, e o conhecimento passa a ser compreendido como representação dessa realidade.

A racionalidade técnico-científica, aliada à ideia de progresso, é incorporada no sistema educacional por meio da adequação de seus procedimentos pedagógicos. As teorias pedagógicas creem na possibilidade de garantir o destino da educação, já que esta age sobre as estruturas estáveis do sujeito epistêmico. Assim, sempre que os procedimentos técnicos fornecidos pelo método científico constituírem o fundamento da atividade pedagógica, as aprendizagens do sujeito epistêmico estarão garantidas.

Trata-se de uma racionalidade soberana, asséptica, crente na objetividade, na neutralidade e na imparcialidade, imune a contradições e emoções, alicerçada no princípio de causalidade com fins de generalizações e previsões. Apresenta-se como desinteressada da verdade e busca sustentação em duas concepções de conhecimento – o racionalismo e o empirismo.

Isso ocorre porque, nos dois casos, o processo de conhecimento se desenvolve, essencialmente, considerando a capacidade cognitiva de representação do sujeito. Uma teoria do conhecimento que tem por base o conceito de verdade como representação coloca a consciência do sujeito epistêmico como condição fundamental para a apreensão da realidade. Assim, a certeza da apreensão do objeto passa, primeiro, pela autoconsciência do sujeito.

Essa forma de representação da realidade “[...] tem como conseqüência a objetificação presente no modo de proceder das ciências modernas, gerando a racionalidade instrumental e as mais diversas formas de dominação.” (PRESTES, 1997, p. 84). Em outras palavras, o conhecimento – compreendido como representação mental da realidade e fundamentado na razão – contém a possibilidade de transformar e dominar os fenômenos e objetos do mundo.

De uma racionalidade metafísico-cartesiana, que apreende as verdades sem nenhuma referência externa, passamos pelos ideais iluministas e construímos uma proposta educacional para a modernidade de acordo com a racionalidade técnico-científica, que tem como finalidades a dominação e a manipulação do mundo e do ser humano. Segundo Deacon e Parker,

A educação no mundo moderno está, cada vez mais, sendo denunciada como um dos últimos e minados bastiões de uma época cujos ídolos – a razão, o progresso e o sujeito autônomo – têm sido irreparavelmente maculados por guerras mundiais, totalitarismo, pobreza e fome em massa, destruição ambiental, e cujos próprios avanços científicos e sucessos produtivos estão inextrincavelmente entrelaçados com dominação e devastação de formações naturais e sociais. (DEACON; PARKER, 2011, p. 97).

Percebe-se, por um lado, como os discursos educacionais da sociedade ocidental moderna são construídos a partir da crença iluminista no poder da razão de iluminar, transformar e avançar nas melhorias sociais e, por outro lado, como as propostas educacionais coerentes com a fé iluminista “[...] supõem sujeitos unitários autoconscientemente engajados numa busca racional da verdade e dos limites de uma realidade que pode ser descoberta.” (DEACON; PARKER, 2011, p. 98).

O pós-estruturalismo questiona o conhecimento entendido como razão orientada a descobrir a verdade inerente à realidade; questiona o sujeito concebido como unitário, coerente, autônomo, racional; ressalta a positividade do poder e sua relação com o saber; discorda de que o poder é negativo, centralizado e homogêneo – “[...] o produto intencional de um sujeito soberano que o possui e o exerce de uma forma repressiva sobre outros (relativamente) menos poderosos.” (DEACON; PARKER, 2011, p. 99).

É o ceticismo em relação aos ideais iluministas, que tendem a fixar a identidade e a diferença, o que caracteriza a crítica pós-estruturalista da razão e consegue abalar as bases de sustentação do pensamento moderno.

4 NIETZSCHE E FOUCAULT: A CRÍTICA PÓS-ESTRUTURALISTA DA EDUCAÇÃO

A crítica pós-estruturalista da razão já se encontra em Nietzsche quando este adota uma perspectiva:

[...] anti-epistemológica ou pós-epistemológica; um anti-essencialismo; um anti-realismo em termos de significado e de referência; um anti-fundacionalismo; uma suspeita relativamente a argumentos e pontos de vista transcendentais; a rejeição de uma descrição do conhecimento como uma representação exata da realidade; a rejeição de uma concepção de verdade que julga pelo critério de uma suposta correspondência com a realidade; a rejeição de descrições canônicas e de vocabulários finais; e, finalmente uma suspeita relativamente às metanarrativas. (PETERS, 2000, p. 51).

Com Nietzsche, a história da filosofia não pode mais ser pensada a partir da metafísica, pois todos os conceitos, teorias e proposições passam a ser escolhas, opções e, portanto, contingências. Ao questionar valores transcendentais, metafísica, religião e moral, cria um vazio de sentido, e o homem moderno desencantado percebe que “[...] o que existe é criado pelo homem, fruto de nosso impulso explicativo proveniente da lógica que tudo enquadra em categorias.” (HERMANN, 2002, p. 143). Se não dispomos mais de um saber fundamentado em causas últimas, perdemos todas as referências e a verdade não passa de:

Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora se entram em consideração como metal, não mais como moedas [...] (NIETZSCHE, 1993, p. 80).

Desconstruindo a ideia clássica de verdade, Nietzsche desconstrói o humanismo ao explicitar o caráter de invenção da ideia de homem. Após a crítica nietzschiana, fica difícil sustentar “[...] a ideia moderna de subjetividade, com suas conotações humanistas, qualquer interpretação do ultra-homem, como super-homem, super-humanizado.” (CRAGNOLINI, 2005, p. 1198).

A profundidade da crítica de Nietzsche aos pressupostos fundamentais da modernidade exige que o discurso educacional recoloque a pergunta pelo sentido da educação, visto que “[...] desautoriza um ideal com validade universal, as sólidas verdades que asseguram a intervenção pedagógica, as certezas emancipatórias e as expectativas de controle sobre o comportamento correto.” (HERMANN, 2002, p. 145). Em outras palavras, “[...] trata-se [...] de uma teoria que cancela, ou, pelo menos, suspende o conceito clássico de formação.” (HERMANN, 2002, p. 143).

O sujeito descentrado não tem mais controle sobre seus sentimentos e sobre a realidade. A unidade entre mundo e sujeito é desfeita, pois o que se mostra é uma diversidade de perspectivas em que o indivíduo se constitui não somente como ser racional, mas também como ser sensível, com impulsos, desejos e necessidades. Por isso, a necessidade de “[...] desapegar-se de toda figura essencial e constitutiva do humano, para constituir-se, paradoxalmente, em figura – que se des-figura – da desapropriação e da não conservação de si.” (CRAGNOLINI, 2005, p. 1201).

Nesse caso, “[...] o sujeito só se torna compreensível na diferença, uma vez que racionalidade e liberdade só são reconciliáveis numa ilusão humanística.” (HERMANN, 2002, p. 150). Daí que uma educação que pretende ir além de uma “ilusão humanística” precisa considerar e aceitar a contingência como parte do processo educativo.

Nesses termos, a crítica de Nietzsche refere-se a uma proposta educacional que se volta para um ideal a ser alcançado e que esquece a realidade, o indivíduo, a vida, com suas contingências e arbitrariedades – esquece-se de “[...] denunciar que o ideal é sempre uma segurança, uma familiaridade e que, por se considerar bom e justo, requer a repressão dos impulsos da vida.” (HERMANN, 2002, p. 150).

Da mesma forma, Foucault (2005) critica a época clássica da representação, em que cabe ao sujeito reproduzir a ordem do mundo em vez de produzi-la. Se até então o conhecimento era concebido como representação da realidade, a partir de Foucault (2005, p. 204-205),

Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico [...]; um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso [...]; o saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam [...]; finalmente um saber se define por possibilidade de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso. Há saberes que são independentes das ciências; mas não há saber sem uma prática discursiva definida e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma.

Foucault abandona a ideia do sujeito epistêmico, forte aliado da educação. Argumenta que não é o sujeito moderno que se encontra na origem dos saberes; pelo contrário, ele é um produto dos saberes. As práticas discursivas não representam uma atividade do sujeito, mas antes indicam a existência de um conjunto de regras a que o sujeito se submete ao praticar o discurso. Dessa maneira, “[...] é o discurso que constitui a prática, de modo que tal concepção materialista implica jamais admitir qualquer discurso fora do sistema de relações materiais que o estruturam e o constituem.” (VEIGA-NETO, 2003, p. 54).

A teoria da verdade como representação da realidade é desconstruída por Foucault. A verdade é compreendida como implicada com o poder e como criadora da realidade. Nas palavras de Foucault, “[...] creio é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder [...] A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder.” (FOUCAULT, 2000, p. 12).

Ao analisar o discurso racional da modernidade – compreendido como uma intricada rede de saber/poder –, Foucault desconstrói uma das metanarrativas modernas caras à educação – a ideia do sujeito epistêmico desde sempre dado. Afirma que seu propósito “[...] não foi analisar o fenômeno do poder e nem elaborar os fundamentos de tal análise [...] ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (FOUCAULT, 2013, p. 273). A esse respeito, afirma Veiga-Neto (2003, p. 131):

Em vez de aceitar que o sujeito é algo sempre dado, como uma entidade que preexiste ao mundo social, Foucault dedicou-se ao longo de sua obra a averiguar não apenas como se constitui essa noção de sujeito que é própria da modernidade, como também de que maneiras nós mesmos nos constituímos como sujeitos modernos, isto é, de que maneira cada um de nós se torna essa entidade a que chamamos de sujeito moderno.

Pensar os sujeitos como constituídos historicamente em meio a relações de poder e saber, envoltos por múltiplas forças e jogos de verdade, evidencia que “[...] nos tornamos sujeitos pelos modos de investigação, pelas práticas divisórias e pelos modos de transformação que os outros aplicam e que nós aplicamos sobre nós mesmos.” (VEIGA-NETO, 2003, p. 136). Dito de outra forma, tornamo-nos sujeitos mediante uma dupla sujeição – a sujeição em relação ao outro e a sujeição que liga o sujeito à sua identidade.

Diante disso, não faz sentido perguntar pelo que somos, mas recusar o que somos – “[...] temos de imaginar e construir o que podemos ser para nos livrarmos desse duplo constrangimento político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno.” (FOUCAULT, 2013, p. 283).

Isso nos remete a uma análise sobre o espaço escolar, suas relações de poder e saber e sua implicação na constituição de subjetividades.

Uma instituição escolar: sua organização espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se encontram, cada um com uma função, um lugar, um rosto bem definido – tudo isso constitui um bloco de capacidade-comunicação-poder. A atividade, que assegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou de tipos de comportamento. Aí se desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas [...] e através de uma série de procedimentos de poder. (FOUCAULT, 2013, p. 285-286).

As comunicações reguladas a que se refere Foucault – perguntas e respostas, lições, ordens, códigos de obediência – e os procedimentos de poder – vigilância, enclausuramento, hierarquia piramidal, recompensa e punição – constituem o poder disciplinar. A disciplinarização das sociedades europeias (século XVIII) não se propôs a tornar os indivíduos mais obedientes ou transformar a sociedade em uma espécie de escola ou prisão, mas, sim, “[...] tentou um ajuste, cada vez mais controlado – cada vez mais racional e econômico – entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder.” (FOUCAULT, 2013, p. 286).

A escola moderna é um dos espaços que produz sujeitos dóceis e úteis por meio do poder disciplinar. Na escola, “[...] não só se ensinam atitudes, capacidades, saberes; ensina-se também um modo de ser sujeito; ali se constitui subjetividade.” (KOHAN, 2000, p. 61). Em outras palavras, os indivíduos que frequentam a escola têm seu modo de ser e de existir transformados.

Devemos conceber as relações de poder como imanentes aos espaços escolares e aos discursos educacionais e também ressaltar que “[...] as relações de poder não são simplesmente danosas – negativas, externas, centralizadas, homogêneas, repressivas e proibitivas; são também benéficas – positivas, internas, dispersas, heterogêneas, produtivas e provocativas.” (DEACON; PARKER, 2011, p. 105). O poder emana de múltiplas fontes, e, no espaço escolar, exercem poder tanto o aluno quanto o professor.

Ao ressaltar a positividade do poder, Foucault desconstrói outra metanarrativa moderna – a ideia de que o poder emana de uma única fonte ou de um único centro. Disso decorre o questionamento das pedagogias que se sustentam na utopia de identificar as fontes e origens do poder para transcender seu caráter necessariamente regulativo e de controle. Uma educação para a libertação, como pretendem as pedagogias críticas, não é possível, pois elas próprias se caracterizam pelas relações de poder. Sempre “[...] estamos necessariamente no poder, que dele não se escapa, que não existe, relativamente a ele, exterior absoluto.” (FOUCAULT, 1988, p. 90).

Contrariando as formas clássicas de conceber o saber e o poder, Foucault descarta a possibilidade de que “[...] só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só pode desenvolver-se fora de suas injunções, suas exigências e seus interesses.” (FOUCAULT, 1996, p. 29). Ele propõe que “[...] temos antes que admitir que o poder produz saber [...]; que saber e poder estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.” (FOUCAULT, 1996, p. 30).

Uma das grandes contribuições de Foucault para o campo educacional foi mostrar que, ao mesmo tempo que “[...] os saberes e poderes buscam a disciplina, a docilidade dos corpos, o autogoverno, [...] pretendem domar os processos de subjetivação, [...] estes fogem, buscam as brechas, resistem o tempo todo” (FERRARI, 2010, p. 10), possibilitando que os sujeitos sejam constituídos a partir desse jogo de forças entre poder e resistência. Não podemos “[...] desconhecer o caráter estritamente relacional das correlações de poder.” (FOUCAULT, 1988, p. 90).

Na escola, embora o governo dos sujeitos se coloque como imanente ao processo educacional, existe sempre a possibilidade de desestabilização, pois a recusa das posições particulares de sujeitos sempre é possível, mesmo quando o que se percebe é um comportamento de obediência às normas. É sempre possível envolvermo-nos em práticas de liberdade, entendidas como “[...] nossa real capacidade de mudar as práticas em que somos constituídos ou nos constituímos como sujeitos morais.” (VEIGA-NETO, 2003, p. 32).

Ao desconstruir metanarrativas que servem de apoio aos discursos educacionais modernos, Foucault tem possibilitado reconceitualizar a educação. Por um lado, argumenta que a noção de identidade do sujeito, como uma subjetividade racional unificada, coerente, como um processo natural e necessário, foi uma invenção da modernidade e teve um papel central no processo de escolarização, que em nome da razão, colocada como absoluta, procurou evitar o movimento da diferença e instituiu mecanismos de opressão e exploração. Por outro lado, compreende o processo de construção das subjetividades como histórico, arbitrário, contingente. Desse modo, “[...] o sujeito deixa de ser definido como uma categoria unitária, estável e como fundamento ou origem da experiência. A identidade individual e a subjetividade tornam-se um efeito do discurso na medida em que são produzidos dentro do discurso.” (DÍAZ, 1999, p. 27).

Essa perspectiva possibilita ao campo educacional repensar sua participação na construção das subjetividades. As identidades e as diferenças são pensadas considerando-se o caráter múltiplo, diverso, híbrido dos sujeitos escolares.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

As categorias modernas dos fundamentos, da universalidade, das essências, do conhecimento a priori, da verdade, da unidade, da identidade, são transgredidas. A transgressão consiste em questionar a pretensão da racionalidade moderna de fixar-se no centro e colocar-se como única. Afirmando a emancipação, o sujeito soberano, consciente e capaz de conhecimento objetivo tem servido para “[...] que certos grupos imponham suas visões particulares, disfarçadas como universais, às de outros grupos.” (SILVA, 2011, p. 259). Dessa forma, a educação, ao incorporar a racionalidade moderna, tem silenciado as vozes dos grupos que não estão representados no discurso universal e hegemônico e, em decorrência, tem dificultado o movimento da diferença.

Novas categorias surgem a partir das rupturas ou descontinuidades da tradição do pensamento ocidental. Desconstrução, descentramento, fragmentação, indeterminação e hibridação são categorias importantes para pensar os processos educacionais a partir da crítica pós-estruturalista. Não é mais possível falar, em uma perspectiva pós-estruturalista, de Identidade, de Diferença, de Mesmo, de Outro, mas em identidades e diferenças. Os significados já não são mais fixos, estáveis, duradouros; são sempre adiados, remetidos a outros significados, sempre abertos, em movimento, em constante devir.

Nesse sentido, as reflexões que Nietzsche e Foucault possibilitam auxiliam a pensar, repensar, reconceitualizar a educação e os processos de subjetivação nela imbricados. Os sujeitos escolares já “[...] não são universais, não são absolutos, não se separam da sua existência e história, de forma que são resultados de processos múltiplos e diferenciados, nos impedindo de falar de uma subjetividade como totalização e centrada no indivíduo.” (FERRARI, 2010, p. 12).

Desse modo, é possível contestar e desestabilizar as identidades hegemônicas sustentadas pelos regimes vigentes de representação e abrir promissores espaços para a constituição de outras subjetividades, outras identidades, outras diferenças.

Notas explicativas

1 A pesquisa foi financiada pelo Obeduc/Capes e se trata de uma versão revisada de um trabalho apresentado em evento científico no México em 2013. Cabe esclarecer que, desde a sua gênese, o artigo foi elaborado com a participação ativa dos dois autores. Porém, no evento, foi apresentado por apenas um autor.

2 Compreendemos por metafísica da subjetividade: “[...] primado da subjetividade, precedência do sujeito no processo de conhecimento [...] Significa que o pensamento metodicamente conduzido encontra primeiramente em si os critérios que permitirão estabelecer algo como verdadeiro.” (SILVA, 1993, p. 8).

3 Representação é entendida como a crença em que o homem possui as mais variadas ideias e que estas representam a verdadeira ordem do mundo. Conforme Silva (1993), “[...] para uma teoria realista do conhecimento [...] a representação é apenas o reflexo de objetos particulares ou então a transfiguração abstrata da ordenação do mundo material [...] Em Descartes o que ocorre é o inverso: tudo o que temos primeiro são representações das quais se trata de atestar a realidade.” (SILVA, 1993, p.10).

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Recebido em: 02 de março de 2015

Aceito em: 19 de agosto de 2015

Endereço para correspondência: Avenida Vereador João Rodrigues de Melo, s/n, Jardim Santa Monica, 79500-000, Paranaíba, Mato Grosso do Sul, Brasil.

Roteiro, Joaçaba, v. 40, n. 2, p. 357-376, jul./dez. 2015