http://dx.doi.org/10.18593/r.v40i2.5891

DA EDUCAÇÃO ESCOLAR À EDUCAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO: FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-CULTURAIS

FROM SCHOOL EDUCATION INTO DEVELOPMENT: PHILOSOPHICAL AND CULTURAL FOUNDATIONS

Maria Pinto Antunes*

Docente e Investigadora do Departamento de Teoria da Educação, Educação Artística e Física do Instituto de Educação da Universidade do Minho. Directora do Mestrado em Educação e Coordenadora da área de especialização em Educação de Adultos e Intervenção Comunitária do referido Mestrado

Resumo: Nos nossos dias, não obstante as reformulações a que constantemente é sujeito, o sistema educativo, enquanto demasiado centrado na razão e nos conhecimentos teórico-científicos, continua a ser criticado pelo seu desajustamento à atual conceção holista do homem, da vida e do conhecimento. O exercício a que nos propomos neste ensaio procura evidenciar que o facto de alguns dos pressupostos da narrativa cultural e filosófica da modernidade continuarem a estar subjacentes ao sistema educativo atual explica, em grande medida, a manutenção do dito desajustamento. O texto sugere, ainda, a necessidade de uma recontextualização dessa narrativa como condição a uma nova conceção e ação educativas.

Palavras-chave: Educação escolar. Educação para o desenvolvimento. Fundamentos filosófico-culturais.

Abstract: In spite of all the transformations it has gone under, the educational system continues being criticized for its maladjustment to the current holistic conception of man, life and knowledge, the reasons for criticism lying in its overly centering on reason, theoretical and scientific knowledge. This essay suggests that such maladjustment is maintained due to the fact that some of the assumptions of the cultural and philosophical narrative of modernity continue to underlie the current education system. The text further highlights the need for a re-contextualization of this narrative in order to promote a renewed conception of education and of educational action.

Keywords: School education. Education for development. Cultural and philosophical foundations.

1 INTRODUÇÃO

A crise mundial da educação dos anos 1960 continua tão atual como há cinco décadas. Desse facto constituem testemunho: o questionamento a que o sistema educativo continua a ser submetido, a denúncia do seu isolamento e desajustamento face ao contexto socioeconómico e cultural, o desemprego e o mal-estar generalizado de jovens, adultos e idosos.

A clivagem entre o sistema educativo e a vida prática, o que aprendemos e os conhecimentos de que necessitamos para resolver problemas quotidianos constitui, parece-nos, um iato cultural de longa data. Relativamente mais recentes, poderemos considerar os dados resultantes de investigações apuradas que, de algum modo, ajudam a compreender as razões dessa clivagem.

Se, como Goleman (1999, p. 40, grifo do autor) refere, os resultados de 25 anos de estudos empíricos levaram “[...] à conclusão que as competências emocionais eram duas vezes mais importantes na sua contribuição para a excelência que o puro intelecto e a especialização”, por que razão estará a literacia emocional, quase completamente, excluída das experiências de aprendizagem e educação?

Embora se considerando outros prováveis fatores de ordem muito diversa, neste nosso ensaio vamos procurar evidenciar que uma boa parte da resposta a essa questão se centra no pressuposto de que o sistema educativo tem como princípio orientador uma narrativa cultural e filosófica que concebe os conhecimentos científicos como os conhecimentos validados e reconhecidos e, consequentemente, os conhecimentos relevantes a serem considerados no processo educativo. Nesse pressuposto se fundamenta a centralização do sistema educativo em uma conceção de educação escolar, alicerçada em conhecimentos científicos racionais e metodologias passivas baseadas na transmissão, na assimilação e na memorização do saber.

Em segundo lugar, pretendemos apresentar a cultura poetizada de Rorty (1989) como uma proposta de recontextualização do contexto cultural favorável a uma conceção de educação ao longo da vida integral e promotora do desenvolvimento holístico das pessoas e das comunidades.

2 A NARRATIVA CULTURAL TRADICIONAL ENQUANTO FUNDAMENTO DE UMA CONCEÇÃO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR

Essa narrativa cultural e filosófica, que teve o seu início longínquo em Platão e se desenvolveu com os filósofos do Iluminismo, situou as questões do saber ao nível do objetivo do universal e do comensurável. A história da ciência e da investigação leva-nos a constatar que, nos três séculos que se seguiram, a racionalidade, a objetividade e a comensurabilidade continuaram a constituir o padrão de toda a investigação.

No horizonte dessa narrativa cultural, conhecimento válido é sinónimo de conhecimento científico, racional, objetivo, estabelecendo-se uma nítida separação entre conhecimento racional e não racional, entre o que se pode explicar e o que se pode apenas compreender. A linguagem científica é entendida como aquela que melhor se adapta e/ou representa a realidade e, nesse sentido, os conhecimentos teórico-científicos são aqueles para os quais as finalidades educativas se direcionam, uma vez que são esses conhecimentos que são fixados como rigorosos e exatos.

Seria, no entanto, interessante desvendar a história da construção dessa narrativa cultural e filosófica no sentido de encontrarmos os princípios em que se sustenta.

Richard Rorty na sua obra Philosophy and the mirror of nature (1979) investiga a génese e o processo de construção dessa narrativa, que denomina filosofia centrada na epistemologia. Não obstante o facto de fazer uma referência a Platão, enquanto fonte longínqua dessa tradição, a sua análise de desconstrução é centrada nos seus fundadores Descartes, Locke e Kant. Rorty (1979) considera que todos os erros dessa narrativa radicam na distinção primordial, estabelecida pelos gregos, entre particular e universal, pois, ao hipostasiar os universais e ao concebê-los como algo mais que abstração dos particulares, atribuíram aos universais uma autonomia e uma realidade ontológica que eles não possuem de facto.

Seguindo o pensamento de Rorty (1979), essa tradição se construiu na base de uma metáfora ocular (metáfora mente-espelho) que supõe que a mente enquanto uma essência vítrea que tem um acesso privilegiado à realidade a representa com exatidão. “A imagem que retém cativa a filosofia tradicional é a da mente como um grande espelho, que contém várias representações” (RORTY, 1979, p. 12). Essa forma de conceber a mente como uma essência de cristal que representa com exatidão a realidade que nos rodeia, conduziu ao pressuposto objetivista/ontologista de uma conceção de conhecimento entendido como uma cópia exata da realidade e fomentou o estabelecimento de um conjunto de dicotomias que viriam a marcar decisivamente toda a cultura ocidental: epistemologia/hermenêutica; explicação/compreensão; ciências naturais/ciências humanas; facto/valor; razão/emoção; etc.

Na perspetiva dessa narrativa cultural, a crença na objetividade científica e nas representações privilegiadas do mundo a que a mente tem acesso, concedeu às ciências da natureza a capacidade de explicar, pois são passíveis de comprovação experimental e constituem o domínio privilegiado do quantificável, do universal e do comensurável fazendo, por isso, parte da dimensão cognitiva e racional da cultura – a epistemologia. As ciências humanas, enquanto preocupadas em compreender os motivos, as intenções das ações, constituem o campo privilegiado do incomensurável, do individual escapando ao rigor da predição e comprovação exatas e, por isso, são consideradas como ciências da compreensão, constituindo outra dimensão da cultura – a hermenêutica (RORTY, 1979; WRIGHT, 1979; APLE, 1985). Essa divisão dicotómica da cultura decorre da ilusão fundada na crença de que a ciência natural é predicativa e explicativa, descurando-se a dimensão intencional do agente no processo de investigação.

No horizonte de compreensão da nova epistemologia é comummente aceito que a investigação científica nunca parte do zero, que não há um acesso direto e privilegiado ao mundo em si, o desocultamento dos sentidos do mundo faz-se, sempre, a partir dos “olhares intencionais” e condicionados do sujeito da produção científica. Desde logo, são os “sistemas de expetativas” (POPPER, 1972), os “paradigmas” (KUHN, 2006), os “pré-conceitos” (GADAMER, 1977, 1982), com a sua força antecipadora de pré-compreensão diferencial, que organizam e condicionam as estratégias intencionais de abordagem/apropriação do mundo. Não obstante o facto de encontrarmos nos autores referidos divergências no que se refere ao estatuto da ciência e seus mecanismos de validação de enunciados, encontramos uma certa convergência no sentido de entender que os processos de validação científica se constroem no quadro das formas de intencionalidade que estruturam a consciência/mente na sua relação com o mundo e não em um quadro de objetivação e correspondência com os factos. Nas palavras de Popper (1972), não há efetivamente um critério que, de forma absoluta, possa decidir sobre a verdade das teorias, o que é possível é não, necessariamente, prová-las, mas questioná-las, tentando a sua refutação, considerando-se que a sua validade se manifesta na sua resistência às tentativas de falsificação. Assim, mantêm-se como interpretação satisfatória, não pela sua aderência aos factos, mas antes e apenas, porque não foram desmentidas ou falsificadas por eles.

Nesse horizonte de visibilidade, a tarefa do investigador, para além de perceber dados sensoriais e conceber ideias, compreende, também, interpretar e consensualizar pressupostos e procedimentos em constante intercâmbio com a comunidade científica. Estabelecer procedimentos metodológicos, definir conceitos e escolher pontos axiais ou paradigmáticos são tarefas que implicam momentos compreensão, de conversação e consensualização.

À comunidade de experimentação corresponde uma comunidade semiótica de interpretação. Este acordo que se produz no plano da intersubjetividade, precisamente porque constitui a condição de possibilidade da ciência objetiva, nunca pode ser substituído por um procedimento da ciência objetiva. […] O cientista da natureza não pode querer explicar algo por si só. Inclusivé unicamente para saber o que deve explicar tem que entrar em acordo sobre isso com outros. (APLE, 1985, p. 106-108).

Como diria Ricoeur (1986, p. 127) “[...] explicar e compreender não constituem polos de uma relação de exclusão, mas momentos relativos de um processo complexo que se pode chamar interpretação.” Em qualquer processo de investigação não temos, por um lado, a explicação e, por outro, a compreensão. O que acontece é uma relação de interpretação pela qual o homem lê/interpreta o mundo. É no seio dessa relação que se desenvolvem, na sua complementaridade dialética, a compreensão e a explicação.

No âmbito de uma conceção holista e antifundamentalista do conhecimento, qualquer experiência de investigação, quer do mundo social humano quer do mundo natural, é entendida como, necessariamente, condicionada pelo sistema histórico-cultural em que ocorre, ou seja, é condicionada e autolimitada pela escolha (arbitrária) do estado inicial que coloca em marcha e atribui coerência ao sistema de investigação. Diremos que, em última instância, o que determina toda e qualquer investigação científica é um paradigma preestabelecido que, com as suas diretrizes, orienta e autolimita o mundo da cultura. A escolha desse padrão de referência, do ponto inicial arbitrário torna-se, incontornavelmente, necessária, pois é em razão dele que se joga a coerência e a validade da investigação. Nesse sentido, é importante reter que o objetivo último da investigação racional não é a pretensão de aproximações noéticas mais precisas do real, mas que a verdade racional se afere em decorrência de um ato de escolha (estado inicial) que exprime preferências (RORTY, 1979; APLE, 1985; DAVIDSON, 1986).

Em consequência, desvanece-se a fundamentação trans-subjetiva da especificidade das ciências da natureza (explicativas) e das ciências humanas (compreensivas). Epistemologia e hermenêutica não devem ser entendidas como polos opostos que dividem a cultura entre si, mas como polos interativos da tarefa de compreensão/leitura do mundo. O processo de investigação, quer em nível das ciências da natureza quer em nível das ciências do homem, pressupõe dimensões comensuráveis e dimensões incomensuráveis, dimensões explicativas referentes àquilo que sabemos explicar perfeitamente (epistemologia) e dimensões incomensuráveis concernentes àquilo que não sabemos explicar perfeitamente (hermenêutica). A distinção não se deve colocar entre epistemologia e hermenêutica, entre ciências naturais e ciências humanas, a distinção se estabelece entre o que sabemos explicar perfeitamente e o que não sabemos explicar perfeitamente, ou seja, é uma questão de familiaridade (RORTY, 1979).

Compreende-se, então, que na natureza tudo é complexo e que o investigador, a partir de um ponto inicial arbitrário, de um paradigma preestabelecido, procura captar alguma dessa complexidade. Mesmo em nível das ciências ditas físicas e positivas, o real (interpretado e descrito) é entendido como o que é percetível pelos processos de investigação e a verdade científica deixa de ser entendida como objetiva e correspondência exata do real, como verdade independente da apreensão gnoseológica, mas antes como verdade garantida e limitada pelo paradigma inerente à sua construção. Em última instância, é o paradigma escolhido que define a lógica interna da prática científica, definindo o âmbito dos problemas a resolver, os indicadores e factos significativos e os processos legítimos de validação dos conhecimentos. Cada paradigma abre o espaço de um certo olhar sobre a realidade, mas, tal abertura, constitui-se, simultaneamente, um fechamento, na medida em que, face ao paradigma constituinte de sentido, há dimensões que ficam de fora do seu horizonte de visibilidade. Assim, o conhecimento de algo é sempre um conhecimento parcial construído e, outrossim, limitado por um determinado interesse cognoscitivo que constitui o sentido (APLE, 1985). O investigador interpreta, compreende e explica o mundo à medida das estruturas que o caracterizam e o definem, a linguagem que fala, a tradição de que é herdeiro, a cultura a que pertence, os pré-conceitos que transporta, os paradigmas em que foi educado e, em consequência, o mundo é interpretado e descrito de formas diferenciadas.

No âmbito de uma conceção holista e antifundamentalista do conhecimento, os discursos científicos resultantes dessas interpretações são descrições do mundo, construídos na base de um consenso ou acordo estabelecido dentro de uma determinada comunidade científica e entendidos como interpretações satisfatórias até o momento em que os factos as refutem. A ciência é racional não porque tenha um fundamento, mas porque é uma empresa que se autocorrige (POPPER, 1972; RORTY, 1979). A justificação da sua validade é alcançada no âmbito de uma dimensão retórica, consensual e praxeológica. A justificação não é, pois, uma questão de relação especial entre ideias (palavras) e objetos, mas de conversação, de prática social (RORTY, 1979).

O modelo dos discursos científicos, no entanto, não esgota as formas de interpretar o mundo; existem outros discursos que revelam novos universos de sentido, e, nessa perspetiva, devemos estar abertos e promover a conversação entre todos os tipos de discurso, a todas as formas de interpretar e descrever o mundo (RORTY, 1989).

Seguindo essa linha de pensamento, a educação não deve abraçar e se centrar apenas nos discursos científicos, mas se integrar e se abrir às possibilidades de interpretação do mundo que outro tipo de discursos oferece, pois, contrariamente àquilo que pretendem nos fazer crer, não há quaisquer princípios universais e absolutos que nos permitam inferir que esses são os conhecimentos exatos e válidos.

3 A CULTURA POETIZADA ENQUANTO FUNDAMENTO DE UMA CONCEÇÃO DE EDUCAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO

Ao circunscrever o vasto domínio da educação à instrução e o amplo mundo do conhecimento e dos saberes ao conhecimento científico e racional, o sistema educativo tem vindo a fomentar um empobrecimento da experiência de aprendizagem e educação, quer no âmbito da educação formal quer no âmbito da educação não formal. A compreensão do sistema educativo institucionalizado pressupõe, como acabamos de constatar, ultrapassar os limites do contexto estritamente educativo. Ela situa-se e explicita-se no contexto de toda uma tradição filosófica e cultural que tem vindo a privilegiar uma noção estreita de inteligência e de racionalidade, ou seja, uma racionalidade não afetada pela emoção, pela incomensurabilidade (RORTY, 1989; DAMÁSIO, 1995, 2000, 2003; GOLEMAN, 1997, 1999; STEINER; PERRY, 1997). Nesse sentido, repensar a educação pressupõe repensar essa tradição cultural.

O projeto de uma cultura poetizada que Rorty nos permite conhecer, mais concretamente em Contingency, irony and solidarity (1989), alerta-nos, precisamente, para o facto de assimilar conhecimentos não ser o único modo de nos edificarmos. No âmbito de uma cultura poetizada tomar conhecimento dos saberes científicos fornece apenas algumas, entre muitas outras formas pelas quais podemos progredir no nosso processo de autocrescimento.

O projeto da cultura poetizada é um projeto que abandona, definitivamente, uma conceção de linguagem entendida como uma “estrutura claramente definida” capaz de representar e exprimir, adequadamente, a realidade (DAVIDSON, 1984; RORTY, 1989) e, consequentemente, a ideia de que existe uma linguagem (científica) que é uma representação exata do mundo.

Toda a atividade humana é, simultaneamente, natural e cultural (LÉVI-STRAUSS, 1971), e é nessa complexa imbricação que, como todas as outras, a atividade de construção do conhecimento se operacionaliza. Entenda-se, então, que não há processo de construção de conhecimento isento de intencionalidade (RORTY, 1979; APLE, 1985). Trata-se de uma atividade, que como todas as outras, constrói-se e é subsidiária de pressupostos antropológicos, sociopolíticos, económicos, científicos, técnicos, artísticos, éticos, estéticos, religiosos e axiológicos, eleitos ou impostos. Por isso, que toda a atividade humana de construção de conhecimento está imersa nas díades explicação/compreensão, facto/valor, razão/emoção, sendo importante ressalvar que a inovação emerge de processos mentais que relevam do domínio da criatividade, da imaginação, da emoção, da intuição.

Parece razoável reter a ideia de que não há uma realidade a-histórica, à qual uma linguagem ou discurso (científico, literário, etc.) pode ou não se adaptar, nem uma linguagem adequada que a represente fielmente (DAVISON, 1984, 1986; RORTY, 1989). A natureza não fala e, como tal, não pode nos proporcionar uma linguagem para falarmos dela. Nesse sentido, quando falamos de algo falamos sempre em decorrência de um vocabulário ou discurso, instrumento criado por nós – para descrever o mundo – contextualizado em uma época e na especificidade de um cultura (RORTY, 1989).

Rorty (1989) partilha com Davidson (1986) a convicção de uma teoria coerencial da verdade, ou seja, que a verdade não supõe uma correspondência entre as palavras/crenças e as coisas (mundo empírico), mas, sim, uma coerência entre as palavras/crenças e o sistema de crenças de uma determinada prática comunitária. Ao entender a verdade como algo que funciona no interior de um sistema coerente de conhecimentos, crenças, no interior de uma prática comunitária, a questão da verdade desloca-se, assim, de um ponto de vista epistemológico para um ponto de vista político, no qual todas as decisões devem ser entendidas como político-culturais referentes a um contexto histórico, concreto, ou seja, devem ser tomadas como contingentes e passíveis de serem retrabalhadas noutros termos e noutros vocabulários. Nesse horizonte de compreensão, deixa de fazer qualquer sentido a perspetiva da cultura filosófica tradicional que entende que a linguagem e, de modo particular, a linguagem científica é a que melhor representa os factos, considerando-se não ser possível encontrar um laço que permita ligar o esquema de representações (linguagem) com o conteúdo que queremos representar (mundo) (RORTY, 1979; DAVIDSON, 1984; RORTY, 1989).

[…] precisamos abandonar a distinção esquema-conteúdo de uma só vez. Devemos admitir que não há maneira de levar a noção de “esquema” a fazer aquilo que os filósofos tradicionalmente queriam fazer com ela, ou seja, esclarecer determinados constrangimentos especiais que a racionalidade emprega e que explicam porque é que as nossas teorias devem “corresponder à realidade” (RORTY, 1979, p. 295).

Esse projeto cultural concebe a linguagem como um instrumento que permite descrições e redescrições da realidade, alicerçando-se à volta da possibilidade de explorar essas potencialidades de descrição. Não há, efetivamente, um metavocabulário que represente fielmente a realidade, todos os artefactos culturais (teorias científicas, conceções filosóficas, poemas, etc.) são entendidos como sistemas proposicionais que descrevem a realidade, ou seja, discursos, vocabulários ou formas de descrevê-la. Nessa perspetiva, todos são entendidos como tendo a sua validade, todos descrevem uma perspetiva da vida e, deste modo, deveremos abandonar a “[...] tentativa de captar todos os ângulos da vida numa única perspetiva, de os descrever num único vocabulário.” (RORTY, 1989, p. 16). Partindo dessa agnição, a cultura poetizada demarca-se de todas as distinções caras à cultura tradicional: ciências naturais/ciências humanas, ciência/arte, facto/valor, etc., incentivando e fomentando a participação de todos os discursos na conversação cultural. Assim, a cultura poetizada promove e incentiva o contacto não somente com vocabulários científicos, mas com todo o tipo de experiências e vocabulários: científicos, filosóficos, artísticos, poéticos, literários, éticos, etc.

Uma cultura poetizada seria uma cultura que não insistiria para que encontrássemos a parede real por detrás das paredes pintadas, os verdadeiros critérios de verdade por oposição aos critérios que são apenas meros artefactos culturais. Seria uma cultura que, precisamente por reconhecer que todos os critérios são artefactos desse tipo, teria por objectivo a criação de artefactos cada vez mais variados e coloridos. (RORTY, 1989, p. 53-54).

Nesse ambiente cultural, o processo educativo e/ou de autocriação ou desenvolvimento das pessoas pressupõe uma racionalidade abrangente, uma noção mais rica de inteligência que supõe a interação entre todos os tipos de discurso visando ao êxito e/ou à edificação pessoal. Como Goleman (1999, p. 13) refere, investigações levadas a cabo a partir de “[...] análises científicas de dados recolhidos em centenas de empresas, levam-nos a desmitificar a noção falsa, mas muito difundida, de que aquilo que determina o êxito [pessoal e profissional] é apenas o intelecto.”

Importante no processo educativo é estimular a curiosidade e a vontade de saber mais e promover o encontro com novas experiências, pessoas, vocabulários, culturas. Incentivar o diálogo, o respeito pela opinião dos outros, a diversidade cultural e a diversidade de pontos de vista alternativos, pois, como Goleman (1999, p. 11) adverte, hoje somos “[...] avaliados por uma nova bitola. Não apenas pela nossa inteligência ou habilitações mas também pela forma como nos gerimos a nós próprios e uns aos outros.” Se entendermos a individualidade como uma teia autorrecombinatória que vamos construindo ao longo da vida, em razão do encontro com novas pessoas, vocabulários, comunidades (RORTY, 1989), entenderemos que o processo educativo/formativo de um indivíduo, ao longo da vida, mais do que na assimilação de informações, pontua-se na possibilidade de criar condições para o desenvolvimento de competências que lhe permitam retrabalhar de forma idiossincrática os contextos familiares face ao contacto com novos horizontes de visibilidade (ANTUNES, 2001).

Nesse sentido, o objetivo fundamental do sistema educativo será promover a maior diversidade possível de aprendizagens, de práticas e de culturas, pois as oportunidades de autocriação aumentam com as possibilidades de educação, ou seja, de contacto com diversificados vocabulários, crenças, práticas, culturas e experiências humanas.

A tarefa educativa passa, então, a ter, para além de uma dimensão estritamente cognitiva, uma dimensão emocional, artística, técnica e cívica, ajudando as crianças, jovens e adultos a desenvolverem competências não apenas cognitivas, mas também emocionais, sensitivas, cívicas e sociais. Esse programa educativo que contempla não somente o aprender a conhecer, mas também o aprender a fazer, o aprender a viver com os outros e o aprender a ser (DELORS, 1996) evidencia um ideário referencial que contempla as necessidades de realização pessoal e profissional que os resultados da obra de Goleman (1999, p. 43) evidenciam, uma vez que, como nos diz, “[...] as competências emocionais perfazem dois terços ou mais dos ingredientes de um desempenho espectacular.”

O peso que a narrativa da modernidade tem na nossa “formação” e na nossa cultura é tão grande que a nossa primeira reação, face a essa afirmação, traduz-se em uma boa dose de incerteza relativamente à sua validade. No entanto, os resultados que Goleman (1999) apresenta da investigação levada a cabo aos executivos da América Latina, Alemanha e Japão, que compara executivos com êxito e executivos que falharam às suas funções, mostram que “[...] os gestores que falharam possuíam quase todos elevados conhecimentos e QI. Em todos os casos, a sua fraqueza fatal situava-se na área da inteligência emocional [...] e falharam apesar das suas grandes qualidades em conhecimentos e capacidades cognitivas.” (GOLEMAN, 1999, p. 50).

O caso do advogado brilhante de que nos fala Damásio no seu livro O Erro de Descartes (1995), que ao ser submetido a uma cirurgia lhe foram acidentalmente cortados os circuitos que ligam os lóbulos pré-frontais à amígdala, tornou muito claro que o nosso êxito pessoal e profissional depende de um misto de razão e emoção, pensamento e sentimento. Como nos é propocionado constatar, pela história narrada, apesar de não apresentar quaisquer deficiências cognitivas e de os seus testes neuropsicológicos serem normais, o advogado tornou-se incapaz de realizar o seu trabalho, perdeu o emprego, a mulher deixou-o e perdeu a casa. Esses resultados eram estranhos e surpreendentes para Damásio até o dia em que compreendeu a falha. O seu paciente não tinha, como refere Goleman (1999, p. 60, grifos do autor) “[...] sentimentos acerca dos seus pensamentos e por isso não tinha referências.” Esse exemplo mostra que

[…] a noção de que existe “pensamento puro”, racionalidade desprovida de sentimentos, é uma ficção, uma ilusão baseada na desatenção aos humores subtis que nos perseguem ao longo do dia. Temos sensações acerca de tudo o que fazemos, pensamos, imaginamos, recordamos. O pensamento e o sentimento estão inextricavelmente entrelaçados. (GOLEMAN, 1999, p. 60).

Ao evidenciarem os fatores que estão em jogo, quando pessoas com elevado QI falharam onde outras com um QI igual, ou até mesmo inferior, atingem o êxito, esses exemplos nos mostram que a diferença reside nas competências emocionais, sociais e cívicas (literacia emocional), que compreendem o autocontrole, a empatia, a arte de escutar, resolver conflitos e cooperar, a persistência, o zelo e a capacidade de motivarmos a nós próprios e aos outros (GOLEMAN, 1997). Assim, um sistema educativo que pretende uma educação/formação de sucesso não pode se fixar apenas no aprender a conhecer, mas com igual empenho, como foi novamente reforçado na VI Confintea (UNESCO, 2010), no aprender a fazer, aprender a viver com os outros e no aprender a ser. “Todas estas habilidades podem ser ensinadas às crianças, dando-lhes uma melhor possibilidade de utilizar o potencial intelectual, seja ele qual for, com que a lotaria genética as tenha dotado.” (GOLEMAN, 1997, p. 20).

Ao conceber o ser humano como uma totalidade e não uma dualidade corpo/espírito (SANTOS, 1996; LAZORTHES, 1993; DAMÁSIO, 1995; WHITEHEAD, 1995; GOLEMAN, 1997; JONCKHEERE, 2001; JAMES, 2005), entendemos que as emoções, em articulação com a cognição, são fatores igualmente importantes se considerar no processo educativo/formativo. Nessa perspetiva, a cultura poetizada fomenta um novo ideário orientador do sistema educativo que parte de uma noção mais abrangente de racionalidade, uma noção de inteligência que privilegia e valoriza da mesma forma todas as dimensões do homem e todas as áreas da cultura, promovendo o encontro, a interação e a complementaridade de discursos pertencentes a diferentes esferas da vida e a diferentes áreas do universo cultural. Não obstante o que é ensinado, os sujeitos-atores inventam e reconstroem uns com os outros a maneira de ver o mundo e agir sobre ele, e tais práticas não são alheias ao universo subjetivo da literacia emocional, ou seja, a construção do sentido da vida, das relações e do mundo não é alheia às experiências emocionais (TOURAINE, 1965, 1984; DAMÁSIO, 1995; GOLEMAN, 1997, 1999). É, pois, importante e urgente a adoção de uma nova visão do que o sistema educativo pode fazer para educar o ser humano no seu todo, contemplando de igual modo a mente e o coração (SANTOS, 1991a, 1991b; GOLEMAN, 1997).

Concebendo o ser humano na sua globalidade corpórea intrinsecamente ligada à relação com o seu interior (emoções, pensamento, inteligência, afetividade), revela-se incontornável proceder a uma recontextualização da educação no sentido de criar condições para um desenvolvimento, ao longo da vida, integral e holístico. Nessa perspetiva, o processo educativo deve abandonar o ideário de uma tarefa preocupada, fundamentalmente, na transmissão/assimilação de conhecimentos teóricos, científicos, rigorosos, entendidos como os supostos e imprescindíveis conhecimentos úteis à participação na vida ativa. Mesmo porque, como Dominicé (1988) refere, contrariamente ao que a maior parte dos pedagogos pensa, aquilo que se aprende não deriva dos programas curriculares. Os conhecimentos derivam de uma vasta rede de informações e estão, fundamentalmente, relacionados à forma como se volta a trabalhar ou modificar o que os agentes da educação quiseram ensinar. O processo educativo deve focalizar-se em criar condições para que os seres humanos sejam capazes de exaurir toda a sua razoabilidade, de crescer em uma perspetiva integral e holística que abarca o conhecer, o sentir e o agir.

Nesse sentido, o fenómeno educativo deve passar a centrar-se mais na dinâmica de como aprender e como pensar do que no que deve ser aprendido e pensado, ou seja, na capacidade de aprender a aprender (UNESCO, 1976). A preocupação fundamental da educação deve centrar-se mais em levar os educandos a desenvolverem as suas capacidades, competências, ideias e opiniões pessoais acerca de assuntos propostos do que a reproduzirem detalhadamente esses assuntos.

4 REFLEXÕES FINAIS

A cultura poetizada proponente de uma noção abrangente de racionalidade supõe uma reinterpretação e recontextualização das virtualidades, das dimensões e das práticas educativas abrindo possibilidades à conceção de educação que encontramos nos documentos da Unesco (1976) entendida como:

[…] a totalidade de processos organizados, seja qual for o conteúdo, o nível ou o método, sejam formais ou não formais, prolonguem ou substituam a educação inicial oferecida nas escolas e universidades e na forma de aprendizagem profissional, graças às quais as pessoas desenvolvem as suas atitudes, enriquecem os seus conhecimentos, melhoram as suas competências técnicas ou profissionais e lhes dão uma nova orientação e fazem evoluir as suas atitudes e comportamentos na dupla perspetiva do enriquecimento integral e da participação no desenvolvimento económico e cultural equilibrado e independente.

Concebida nesse sentido, a educação é um processo que procura satisfazer às necessidades vitais e socioculturais propiciadoras do desenvolvimento pessoal e do desenvolvimento das comunidades. Nesse sentido, é um processo que contempla todas as faixas etárias (crianças, jovens, adultos e idosos), promove variedade na natureza dos projetos (humana, social, cultural, económica cívica, ecológica, etc.) e diversidade nos conteúdos e nas modalidades de intervenção (UNESCO, 1976, 1997, 2010). É um processo de autoconstrução participada promotor de trans(formações) pessoais, culturais, sociais, económicas e políticas e, desse modo, um processo de desenvolvimento individual e comunitário.

No ideário desse projeto educativo, “[...] o homem é o agente da sua própria educação mediante a interação permanente das suas ações e reflexões.” (UNESCO, 1976). Desse ponto de vista, o desenvolvimento, ao qual a educação está incontornavelmente vinculada, não é o resultado de um aumento de escolarização, ou graus académicos, mas, sim, da implicação e participação dos agentes sociais na (trans)formação das suas condições de vida e das comunidades que os integram. O desenvolvimento é resultado da transformação social fomentada pela alteração da visão do mundo e do modo de agir no mundo que a educação possibilita, fomenta e promove (ANDER-EGG, 1976; GARCÍA; SÁNCHEZ, 1997; CANÁRIO, 1999; ÚCAR, 2009), não descurando que o desenvolvimento, por sua vez, condiciona ou amplia as oportunidades de educação. Enquanto agente do seu processo educativo/formativo, o homem é um sujeito ativo que se envolve e participa, que toma consciência das suas necessidades e rentabiliza as suas capacidades e recursos tomando a iniciativa de um processo de promoção das suas condições de vida, ou seja, de um processo de desenvolvimento individual e da comunidade.

Nessa perspetiva, a educação é um processo que envolve todos, realizando-se em todos os contextos da comunidade, ou seja, a educação é um processo permanente e comunitário que em face aos problemas a resolver se procuram soluções, por meio da investigação, da troca de ideias e informações e da intervenção e prática autocrítica sob o compromisso do desenvolvimento e bem-estar da vida individual e comunitária. Enquanto dinâmica de procura de soluções para as situações individuais, interpessoais e sociais, a educação mediante a participação e a cooperação subscreve o que a literatura pedagógica denomina, hoje, educação para o desenvolvimento (CARRASCO, 1997; ÚCAR, 2009), ou seja,

[…] um processo dinâmico, interativo e participativo que visa à formação integral das pessoas; a consciencialização e compreensão das causas e problemas do desenvolvimento e das desigualdades locais e globais num contexto de interdependência; a vivência da interculturalidade, o compromisso para a ação transformadora alicerçada na justiça, equidade e solidariedade; a promoção do direito e do dever de todas as pessoas e de todos os povos de participarem e contribuírem para um desenvolvimento integral e sustentável. (CENTRO DE INTERVENÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO AMÍLCAR CABRAL, 2002).

Partindo dessa definição, mesmo não a tomando como definitiva e acabada mas como um guia para a reflexão e a ação, é importante destacar que a educação para o desenvolvimento é um processo de aprendizagem e educação que contempla a sensibilização, a reflexão, a formação e a ação. É um processo comprometido com a formação integral a partir de princípios fundamentais como a justiça, a solidariedade, a equidade social, a cooperação, a corresponsabilidade, o diálogo e a participação. O seu objetivo é a transformação social, a melhoria das condições de vida, a ser alcançada por meio da implicação dos agentes sociais ao longo da vida recorrendo a metodologias ativas e participativas promotoras da construção coletiva e colaborativa do conhecimento e da ação (INSTITUTO PORTUGUÊS DE APOIO AO DESENVOLVIMENTO, 2009).

O conceito de educação para o desenvolvimento se originou na confluência de conceções teóricas e projetos de intervenção apostados na consciencialização dos problemas e na promoção de capacidades para, mediante a participação ativa e empenhada dos cidadãos, trabalhar na sua solução. Assim, esse conceito encerra em si uma mudança de paradigma, quer no que se refere ao universo educativo, quer no que diz respeito ao conceito de desenvolvimento.

Referente ao conceito de educação, no contexto dos tempos difíceis que vêm marcando as últimas décadas, os organismos e entidades representativas da comunidade internacional têm vindo a destacar o papel incontornável da educação na construção de uma sociedade local e global mais equitativa e justa, consequentemente, mais sustentável, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista ambiental. Na sequência do pensamento de Freire (1975, 1967), a educação é entendida como prática de libertação, como fator de trans(formação) social mediante a tomada de consciência dos problemas e a aquisição de competências por parte dos cidadãos para resolvê-los, tornando-se um mecanismo de combate às desigualdades de poder e de riqueza. No pressuposto de que todos são educandos e educadores, a educação para o desenvolvimento reforça e se reafirma na complementaridade entre educação formal, não formal e informal, conferindo às metodologias ativas e participativas um relevo crescente. Enquanto um instrumento promotor da erradicação ou amenização da pobreza e das desigualdades, da promoção da saúde, da alfabetização generalizada, da proteção do meio ambiente, da obtenção da paz, da cidadania e da interculturalidade, a educação passa a ser entendida como a estratégia passível de favorecer as alterações comportamentais necessárias no sentido da construção de uma sociedade mais sustentável e justa para todos (UNESCO, 2005).

As questões sociais, ambientais e éticas adquirem, no âmbito da educação para o desenvolvimento, um estatuto de relevo e referência, considerando-se o papel que a educação pode desempenhar na questão da sustentabilidade da comunidade humana e ambiental. A sua verdadeira aposta será promover conhecimentos e habilidades no sentido de formar cidadãos impulsionadores de mudanças que possibilitem um futuro viável, ou seja, a sobrevivência da espécie e a plena universalização dos Direitos Humanos (GIL; VILCHES, 2005).

Quanto ao conceito de desenvolvimento, considerando-se os controversos debates a que temos vindo a assistir nos últimos anos acerca dos seus variados significados, enfoques e perspetivas, é importante realçar que este deixa de ser entendido como puro crescimento económico veiculado à redutora lógica de mercado e assunto de Estado, passando a conceber-se na perspetiva do que pode ser considerado como um “bom desenvolvimento”. Não obstante a ambiguidade concetual da expressão, a retórica política e intracomunitária conota-a a um modelo de desenvolvimento empenhado em garantir o desenvolvimento económico, o bem-estar social e a qualidade de vida das populações, assim como o equilíbrio do ecossistema, constituindo-se uma responsabilidade individual/coletiva. Nas últimas décadas, efetivamente, tem vindo a tornar-se crescente a importância conferida à sociedade civil e aos agentes sociais nas questões concernentes ao desenvolvimento entendido como desenvolvimento integral, equilibrado e sustentável dos seres humanos e das comunidades, a alcançar por meio dos princípios da participação e da solidariedade tendo como finalidade o bem-estar e a justiça social (INSTITUTO PORTUGUÊS DE APOIO AO DESENVOLVIMENTO, 2009).

É importante relevar que no âmbito de uma conceção de educação para o desenvolvimento, esses dois processos sociais (educação e desenvolvimento) são entendidos como fenómenos que se influenciam e condicionam reciprocamente fazendo parte de uma mesma realidade. A educação é simultaneamente causa e consequência do desenvolvimento; outrossim, é possível afirmar que o desenvolvimento é causa e, também, consequência da educação. Se a educação se suporta no desenvolvimento económico e social envolvente, o desenvolvimento económico não prescinde da educação. Nesse sentido, “[...] todo o esforço por promover o desenvolvimento se faz acompanhar por um esforço educativo.” (SIGUÁN, 1978).

A educação enquanto um processo aberto aos fenómenos da vida, à interação social e às realidades socioeconómicas e culturais deve orientar as suas práticas no sentido de conceder resposta às necessidades de conhecimento e formação que favorecem e ampliam as habilidades e oportunidades de acesso a melhores condições de vida. De modo recíproco, a obtenção de melhores condições de vida proporciona uma melhor formação, favorecendo oportunidades, conhecimentos e competências que permitem uma melhor interpretação do mundo e transformação social. Educação e desenvolvimento são, portanto, duas realidades interdependentes com a mesma finalidade: a melhoria das condições de vida das populações.

Considerando-se o caráter dinâmico da educação e a consequente evolução da noção de educação para o desenvolvimento, poderemos dizer que não obstante o facto de ter iniciado a sua intervenção, fundamentalmente, nos países em vias de desenvolvimento, a educação para o desenvolvimento foi se estendendo a todos os países contando com um percurso histórico de mais de quatro décadas. Constituindo-se um processo de formação integral de pessoas, procura gerar alterações estruturais e práticas na sociedade, mediante a participação ativa dos agentes sociais, consciencializando-os dos problemas e desigualdades e do seu papel na mudança e construção de estruturas mais justas (ANDER-EGG, 1976; GARCÍA; SÁNCHEZ, 1997; CARRASCO, 1997).

Apoiada nesse conceito ou em outras denominações similares, essa conceção de educação tem vindo a ganhar forma e conteúdo enquanto uma prática educativa emancipadora e transformadora, comprometida com a defesa dos valores, dos direitos humanos, da dignidade das pessoas e dos povos, da paz, da interculturalidade e do meio ambiente.

A educação para o desenvolvimento encerra em uma conceção de educação e aprendizagem emancipatória e dialógica baseada em uma pedagogia de humanismo crítico, muito posta em relevo na VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confitea) em que se afirma que a aprendizagem ao longo da vida constitui “[...] uma filosofia, um marco concetual e um princípio organizador de todas as formas de educação, baseada em valores inclusivos, emancipatórios, humanistas e democráticos, sendo abrangente e parte integrante da visão de uma sociedade do conhecimento.” (UNESCO, 2010).

Trabalhar na perspetiva de uma conceção de educação para o desenvolvimento é um desafio dirigido e dinamizado por todos, setor público e privado, estruturas governamentais e sociedade civil; instituições educativas e entidades empresariais, considernado-se a natureza intersetorial e integrada da educação ao longo da vida fomentando a relevância da complementaridade entre os processos formais, não formais e informais com a finalidade de alcançar a equidade e a inclusão social, a redução da pobreza, a construção de sociedades mais justas, solidárias, sustentáveis e baseadas no conhecimento (UNESCO, 2010).

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Recebido em: 22 de setembro de 2014

Aceito em: 22 de maio de 2015

Endereço para correspondência: Universidade do Minho, 4800-058, Campus Guimarães, Braga, Portugal; mantunes@ie.uminho.pt

Roteiro, Joaçaba, v. 40, n. 2, p. 273-292, jul./dez. 2015