https://doi.org/10.18593/r.v49.34677

Ética e integridade na pesquisa em educação na perspectiva da complexidade

Ethics and integrity in education research from the perspective of complexity

Ética y la integridad en la investigación educativa desde la perspectiva de la complejidad

Sidinei Pithan da Silva1

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul; Produção vinculada ao PPGEC da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

https://orcid.org/0000-0001-6400-4631

Vânia Lisa Fischer Cossetin2

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul; Produção vinculada ao PPGEC da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

http://orcid.org/0000-0001-8722-9235

Fernando Jaime González3

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul; Produção vinculada ao PPGEC da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

https://orcid.org/0000-0002-7033-663X.

Resumo: O presente texto reflete acerca do tema da ética e da integridade na pesquisa em educação na perspectiva da complexidade a partir da relação entre educação, ciência e ética. Metodologicamente, este escrito orienta-se por uma perspectiva crítico-hermenêutica e baseia-se, teoricamente, na filosofia de Edgar Morin e de seus intérpretes. A referida opção teórica permite situar a problemática no bojo do pensamento complexo pela consideração da amplitude e da dinâmica do fenômeno educativo, sobretudo de uma ética que implique a relação entre o mundo, a pesquisa, a humanidade e o conhecimento. Assume relevância, no âmbito da perspectiva complexa, a própria problemática do conhecimento, de seu alcance e validade, ou seja, do paradigma que comanda e organiza a pesquisa. O enfoque paradigmático moderno, ao excluir o sujeito do objeto, em sua ambiciosa busca pela certeza, isolou e separou a subjetividade do investigador do objeto investigado, e com isso, aboliu a responsabilidade moral do pesquisador. Toda a forma de pesquisa em educação, para se haver com o tema da ética e da integridade, precisa lutar contra as cegueiras, a fragmentação e a simplificação do conhecimento, que colaboram para a tecnificação e objetificação do mundo. O problema cognitivo, que é tarefa da educação, tem um significado antropológico, político, social e histórico, como também, ético. O ato de conhecer se entrelaça com o ato moral, no sentido de que implica uma responsabilidade, a qual emerge no seio de um ato individual de religação com um outro, com uma sociedade, em escala planetária.

Palavras-chave: teoria da complexidade; ética em pesquisa; formação humana.

Abstract: This text reflects on the theme of ethics and integrity in educational research from the perspective of complexity, based on the relationship between education, science and ethics. Methodologically, this writing is guided by a critical-hermeneutic perspective and is theoretically based on the philosophy of Edgar Morin and his interpreters. This theoretical option allows us to situate the problem within the framework of complex thinking by considering the breadth and dynamics of the educational phenomenon, especially an ethic that involves the relationship between the world, research, humanity and knowledge. In the context of the complex perspective, the very problem of knowledge, its scope and validity, in other words, the paradigm that commands and organizes research, becomes relevant. The modern paradigmatic approach, by excluding the subject from the object, in its ambitious quest for certainty, has isolated and separated the subjectivity of the investigator from the object investigated, and thereby abolished the moral responsibility of the researcher. Any form of research in education, in order to deal with the issue of ethics and integrity, needs to fight against the blindness, fragmentation and simplification of knowledge, which contributes to the technification and objectification of the world. The cognitive problem, which is the task of education, has an anthropological, political, social and historical significance, as well as an ethical one. The act of knowing is intertwined with the moral act, in the sense that it implies a responsibility, which emerges within an individual act of reconnection with another, with a society, on a planetary scale.

Keywords: complexity theory; research ethics; human formation.

Resumen: El presente texto reflexiona sobre el tema de la ética y la integridad en la investigación educativa desde la perspectiva de la complejidad, tomando como base la relación entre educación, ciencia y ética. Metodológicamente, este escrito se orienta por una perspectiva crítico-hermenéutica y se fundamenta teóricamente en la filosofía de Edgar Morin y sus intérpretes. Esta opción teórica permite situar la problemática dentro del pensamiento complejo, considerando la amplitud y la dinámica del fenómeno educativo, especialmente en lo que respecta a una ética que implica la relación entre el mundo, la investigación, la humanidad y el conocimiento. Asume relevancia, sobre todo en el marco de la perspectiva compleja, la problemática misma del conocimiento, su alcance y validez, es decir, del paradigma que guía y organiza la investigación. El enfoque paradigmático moderno, al excluir al sujeto del objeto, en su ambiciosa búsqueda de la certeza, aisló y separó la subjetividad del investigador del objeto investigado, aboliendo con ello la responsabilidad moral del investigador. Toda forma de investigación en educación, para abordar el tema de la ética y la integridad, debe luchar contra las cegueras, la fragmentación y la simplificación del conocimiento, que contribuyen a la tecnificación y objetivación del mundo. El problema cognitivo, que es tarea de la educación, tiene un significado antropológico, político, social e histórico, así como también ético. El acto de conocer se entrelaza con el acto moral, en el sentido de que implica una responsabilidad que emerge en el seno de un acto individual de religación con otro, con una sociedad, a escala planetaria.

Palabras clave: teoría de la complejidad; ética en investigación; formación humana.

Recebido em 10 de abril de 2024

Aceito em 10 de julho de 2024

1 INTRODUÇÃO

O desafio de pensar o tema da ética e da integridade na pesquisa em educação na perspectiva da complexidade, leva-nos a considerar o problema do conhecimento e, nele, de sua relação com a educação, a ciência e a ética. Nossa escolha teórica permite-nos uma aproximação com os escritos de Edgar Morin, procurando situar a forma como o autor entende e conceitualiza a relevância de uma epistemologia da complexidade, de uma abordagem complexa do fenômeno educativo e, sobretudo, de uma ética para pensar nossa relação com o mundo, a pesquisa, a humanidade e o conhecimento. O percurso assumido neste estudo, portanto, evidencia uma relação complexa entre epistemologia, educação e ética, de tal forma que a constituição de um novo sentido epistemológico, ou mesmo de uma nova ciência, implica nova ética, um sentido renovado acerca do que entendemos por educação e pelo que significa pesquisar em educação.

Edgar Morin é um pensador francês, que completou em 2024, 103 anos de vida, e, tornou-se bastante conhecido no Brasil e no mundo por apresentar novos pressupostos acerca da racionalidade, do conhecimento e da educação (Petraglia, 1995; Marques, 2006; Libâneo; Santos, 2010; Silva, 2019; Carvalho, 2021; Silva, 2023). Suas pesquisas abordam temas amplos, cuja ênfase na educação assinala a necessidade de uma reforma do pensamento (Morin, 2001b) rumo a uma abordagem mais complexa do sujeito, do conhecimento, do método, dos fenômenos e do mundo (Morin, 2001a). Esta exigência culmina numa proposta de ética planetária ou mesmo de uma antropoética para o gênero humano (Morin, 2005). É possível encontrar os desdobramentos na educação da epistemologia da complexidade, pressuposta por Edgar Morin, nas seguintes obras: Os sete saberes necessários à educação do futuro (2000b); A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (2001b); A religação dos saberes: o desafio do século XXI (2002a); Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem no erro e na incerteza humana (2003); Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação (2015) e Reinventar a educação: abrir caminhos para a metamorfose da humanidade (Morin; Díaz, 2016).

Esta presença e imbricação do debate ético e político com o epistemológico, o filosófico e o histórico-social no âmbito das obras sobre educação, marcam o sentido que Edgar Morin pretende imprimir quando trata da relação entre racionalidade, ética e ciência. Adentrar no conjunto das obras de Edgar Morin, a fim de identificar um lugar para a ética e a integridade no âmbito da pesquisa em educação, representa, portanto, um desafio, sobretudo se pretendemos repensar nossa forma de relacionarmo-nos com o conhecimento; uma luta, no fundo, travada desde um pressuposto hermenêutico, o qual desdobra-se em uma nova epistemologia e reconhece que nossa relação com o mundo e com o real se dá sempre na forma de um paradigma (Morin, 2001a). Logo, a ambição do paradigma da complexidade, quando desdobrada para o campo da pesquisa em educação, consiste em enfrentar e questionar os limites do paradigma simplificador moderno, bem como favorecer a construção de novos pressupostos que nos ajudem a enfrentar a crise profunda de nossas sociedades (Morin, 2015). Neste horizonte assumido, cumpriria, todavia, respondermos à pergunta: Então, qual seria o sentido de assumir uma perspectiva ética e que considere a integridade na pesquisa em educação sob o enfoque da complexidade?

Nosso movimento teórico, para pensar o problema, parte de uma discussão geral e ampla sobre os pressupostos do paradigma da complexidade para, em seguida, analisar o horizonte do fenômeno educacional e, após, explicitar as dimensões acerca do sentido da ética e da integridade na pesquisa em educação. Uma hipótese central orienta nossa pesquisa, a qual destaca a máxima de Edgar Morin (2001a, p. 10), tomada desde Rabelais, que afirma que “Ciência sem consciência é apenas a ruína da alma”; logo, que a prática da investigação científica e filosófica em educação nos desafia a pensar o conhecimento não apenas como algo factual e objetivo, mas que implica uma presença subjetiva, valorativa, interpretativa, teórica e teorizante que demanda responsabilidade para com o mundo. O foco da ética e da integridade na pesquisa em educação, neste enfoque, desafia-nos a permanentemente problematizar o conhecimento do conhecimento, a questionar os reducionismos das teorias e das pesquisas, o fechamento produzido por interpretações unidimensionais e fragmentadoras, que mutilam o real e produzem cegueiras. De outra parte, também implica uma autoética, que, sem deixar de se alimentar de uma antropoética, assume a autocrítica, a qual se torna a “melhor auxiliar contra a ilusão egocêntrica e em favor da abertura do outro” (Morin, 2005, p. 95).

Para entender tal movimento explicitamos os sentidos que orientam o enfoque paradigmático da complexidade, e sua importância na pesquisa em educação, para em seguida, tematizarmos um vínculo entre o problema do conhecimento e da pesquisa em educação, a partir do debate sobre a racionalidade e a subjetividade. Ao final, sinalizamos como o tema da ética e da integridade em pesquisa nos desafia a pensar na ideia de um sujeito pesquisador que se reconhece integrado à vida em sua dimensão planetária. Para tanto, torna-se ele desafiado a construir um conhecimento que religa, e, portanto, que dialoga com o mundo a partir de uma racionalidade aberta, enciclopedante e autocrítica.

2 EPISTEMOLOGIA, CONHECIMENTO E PESQUISA NO HORIZONTE DO PARADIGMA COMPLEXO

O enfoque da complexidade nasceu ao longo da trajetória de vida e de pesquisa de Edgar Morin (Morin, 2020). Para enunciar os detalhes de todo o caminho, teríamos de abordar diferentes obras e momentos do autor, no entanto, por questões de pertinência do presente texto, cumpre mencionar que algumas obras biográficas têm um papel significativo para explicitar este caminho, tais como: Meus demônios (2003b), O meu caminho (2009), Meus filósofos (2013), A aventura de O Método e para uma racionalidade aberta (2020). Alguns indícios e indicadores destes pressupostos tentaremos formular de forma a entender como a ideia de complexidade nasceu e se configura marginal ainda, mas já a fornecer pistas sobre as provocações implicadas na pesquisa e seus desafios éticos. Outros autores, na atualidade, têm se ocupado com esta problemática. Rouanet (2007), por exemplo, em seu texto “Por um saber sem fronteiras”, argumenta sobre como duas visões apresentam-se em relação à modernidade e ao iluminismo. Ao buscar evidenciar que há uma crítica que parte de uma visão pessimista da história e outra otimista, o autor sinaliza seu posicionamento otimista de que a mutação ainda não aconteceu.

O tema da crítica à modernidade, entende o autor, implica reconhecer a necessidade de questionar a “tecnociência”, que nos tira “a visão do todo”, e possibilitar ao homem uma possibilidade de recuperar sua “capacidade de pensar o ser e programar seu destino” (Rouanet, 2007, p. 353). Talvez este seja também o caso de Edgar Morin, que, sem se furtar de questionar o iluminismo e o humanismo moderno, procura criar as condições para pensar e projetar um novo iluminismo e um novo humanismo (Morin, 2020). O autor recorda-nos da máxima kantiana de que “O Iluminismo depende da educação, e a educação depende do Iluminismo” (Kant apud Morin, 2001b, p. 87). Interessa-nos aqui pensar e entender que, ao fundo, nesta concepção de Kant, se assenta a crença de que o progresso da educação depende do progresso da razão. O humanismo moderno postula algo que se situa no âmbito da crença e da fé na ciência. O Iluminismo confunde-se, portanto, com a ciência e a ideia de racionalidade dela decorrente. A crítica da modernidade, é uma crítica a uma forma de racionalidade, de ciência e de conhecimento. Tanto Rouanet (2007) quanto Edgar Morin (2001a) parecem reconhecer que o trato com o problema do conhecimento não é algo marginal, mas central e constitutivo, e que o questionamento da tecnociência nos desafia a pensar em novas humanidades (Morin, 2020), e, para tanto, precisaríamos de um novo paradigma. Rouanet (2007) assim argumenta:

A teoria da complexidade, de Edgar Morin, pode encaminhar-nos para uma conclusão. Ao contrário do paradigma cartesiano, baseado na simplificação e na parcelização, o paradigma da complexidade não separa o sujeito do objeto, o objeto do seu contexto, o todo das partes, as partes do todo, as partes entre si, a razão da emoção, a ciência da ética, o indivíduo da sociedade, a sociedade do indivíduo, os grupos e sociedades particulares da humanidade como um todo. O paradigma da complexidade pode ser o fio condutor para pensarmos a mutação que está à nossa frente.

O termo epistemologia, aqui enunciado, não se confunde com as ambições do pensamento moderno e iluminista de tornar o tribunal da razão o centro e juiz de todas as coisas (Marques, 1993). Está em questão, pelo contrário, uma própria crítica da razão, conduzida desde uma forma que permita apontar seus limites. Na visão de Rouanet (2007, p. 362), “é hoje arquievidente que as fronteiras rígidas são indesejáveis”, pois, adverte ele, “a rigidez das fronteiras intracientíficas transformou o saber num arquipélago de particularismos autárquicos, impedindo a percepção do conjunto”. Trata-se, desse modo, de compreendermos como nossa forma de entender e validar o conhecimento (nosso paradigma) produziu, ao longo de três séculos, uma crescente compartimentalização no campo da ciência. Isso não tem apenas conotação interna à ciência, adverte Rouanet (2007), mas também mostra o seu enclausuramento, “impedindo a comunicação da ciência, com a religião, a moral, e a política, levando a uma ciência autossuficiente, isolada em seu universo microscópico, impermeável ao restante do mundo humano” (Rouanet, 2007, p. 362). Nesse aspecto, na tentativa de responder o que seria uma epistemologia complexa, Edgar Morin, em sua obra Inteligência da complexidade (2000c, p. 68), considera não haver “mais a existência de uma instância soberana”, na qual “o epistemólogo” controlaria “de maneira irredutível e irremediável todo o saber”. O problema da epistemologia estaria em reconhecer o princípio da incerteza no exame de cada instância constitutiva do conhecimento, e em “fazer comunicar” as instâncias separadas, o que não seria uma tarefa individual, de um pesquisador isolado, necessitando do “encontro e intercâmbio entre todos os pesquisadores e universitários” (Morin, 2000c, p. 69).

O enfoque epistemológico, neste caso, consiste numa forma de questionar e refletir não somente sobre os aspectos do mundo objetivo, mas sobre os paradigmas que nos orientam nesta investigação. Edgar Morin (2000a) tem consciência, e isso fica claro na sua obra Ciência com consciência, em que o paradigma da complexidade difere do paradigma sistêmico, holonômico, no sentido de que, enquanto este reintroduz o princípio da totalidade contra o princípio da particularidade, correndo o risco de uma nova metafísica, o paradigma da complexidade mantém aberta a reflexão acerca do próprio problema do paradigma e do conhecimento. Teríamos de, então, pensar, como ele enuncia em O método 3: o conhecimento do conhecimento (Morin, 1999), a necessidade de um conhecimento do conhecimento ou, mesmo, em uma paradigmatologia. A complexidade, neste sentido, consistiria numa forma de luta contra o reducionismo e o determinismo, seja do todo, seja da parte. O paradigma simplificador e cartesiano moderno ensinou-nos a recortar as partes e estudar fenômenos isolados, independentemente do conjunto e da totalidade (Morin, 2002e). O paradigma sistêmico, emergente no século 20, de outra parte, recomenda-nos entender a relação parte-totalidade, de forma a permitir situar toda parte no interior de alguma totalidade (Morin, 2000a). Mario Osorio Marques (2002, p. 96), ao dissertar sobre a “complexidade como pano de fundo da intercomplementaridade das ciências”, se interroga sobre: Por que o todo? Segundo ele:

Porque a sociedade é um conjunto de partes, e isso não só quer dizer que a parte pertence ao todo, mas que o todo está no interior das partes. Nós mesmo somos indivíduos que estamos dentro da sociedade, mas a sociedade como um todo está presente em nós desde antes do nosso nascimento. Recebemos a linguagem, as normas, os direitos, as proibições, a todo momento a presença da sociedade entre nós. O pensamento complexo se prolonga para o plano da ética, da solidariedade e da política. Uma ética da compreensão, da tolerância que nos leva a, embora tenhamos nossa opinião, permanecermos tolerantes, pois o contrário da verdade não é um erro, mas uma verdade contrária [...].

O pressuposto do paradigma complexo não exclui a possibilidade antevista no século 17 de que é necessário conhecer as partes para conhecer o todo (cartesiano), tampouco de que é imprescindível, como se afirmara no século 20, que é importante conhecer o todo para conhecer as partes (paradigma sistêmico). Antes, afirma que é importante assumir a ideia de que a própria problemática do conhecimento ou, mesmo, a questão da vigilância epistemológica acerca dos paradigmas que nos orientam na pesquisa, protege-nos de uma retomada da ontologia clássica e medieval (Morin, 2001a). Em sua obra A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, Morin (2001b) comenta sobre a necessidade de reintroduzir o conhecimento em todo conhecimento. Segundo ele, “Esse princípio opera a restauração do sujeito e revela o problema cognitivo central: da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução feita por uma mente/cérebro, em uma cultura e época determinadas” (Morin, 2001b, p. 96). Ele, ainda, repete: “a reforma do pensamento é de natureza não programática, mas paradigmática, porque concerne à nossa aptidão para organizar o conhecimento” (p. 96).

Para tentar entender um sentido ampliado deste foco no problema da epistemologia e da complexidade no campo da pesquisa, poderíamos recorrer, também, ao debate que trava Ward (2019) em seu esforço para responder O que é filosofia? O autor argumenta que filosofia é uma atividade. De acordo com ele, “é a atividade de descobrir a maneira correta de pensar sobre as coisas” (p. 12). A atividade de filosofar, diferentemente da científica, não se resume a pensar os objetos, mas se interroga sobre as teorias que permitem pensar e conceber os objetos. Explicando isso, a partir da ideia do que seria ser um médico medieval, o autor procura evidenciar como é diferente fazer uma disciplina e fazer filosofia dessa disciplina. Uma prática amparada na medicina medieval, ele argumenta, associa a doença a quatro humores. Ele, no entanto, adverte: “sempre podemos dar um passo atrás e fazer mais perguntas sobre o paradigma e os pressupostos por trás dessa teoria: podemos perguntar o que significa exatamente, os humores estarem em equilíbrio ou desequilíbrio” (Ward, 2019, p. 13). Algo semelhante ocorre com a perspectiva do paradigma da complexidade; ele sempre desafia-nos a estarmos em atividade, em reflexão acerca dos pressupostos que direcionam nossos olhares no campo da pesquisa. O paradigma, explica Morin (2002e, p.31), “é invisível para quem sofre os seus efeitos, mas é o que há de mais poderoso sobre as suas ideias”. Não cumpre ao pesquisador apenas seguir na investigação sem compreender os pressupostos da ciência que lhe orienta, mas, antes, assumir uma postura filosófica em forma de atividade interrogativa acerca dos pressupostos que delimitam sua investigação, e “questionar se esse paradigma é o melhor para a tarefa” (Ward, 2019, p. 14).

3 EDUCAÇÃO, CONHECIMENTO E PESQUISA: SOBRE RACIONALIDADE, SUBJETIVIDADE E ÉTICA

Em sua obra intitulada Os sete saberes necessários à educação do futuro, Edgar Morin (2000b), a convite da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), publica, em 1999, na França, aquilo que entende serem os problemas centrais da educação do século 21, e todos eles giram em torno da problemática do conhecimento. O autor define, com esta obra, um desafio a todos que se aventuram no campo da educação, e, porque não dizer, da pesquisa em educação. Após ter escrito os seis volumes de O Método (Morin 2002a, 2002b, 1999, 2001c, 2003, 2005), sua obra magistral, ele, agora, procura pensar o que seria vital para as sociedades humanas no século 21. Na referida publicação o autor aponta o problema: 1) das cegueiras do conhecimento; 2) dos princípios do conhecimento pertinente; 3) do ensino da condição humana; 4) do ensino da identidade terrestre; 5) da necessidade de enfrentar as incertezas; 6) do ensino da compreensão; e 7) da ética do gênero humano. Vamos abordar, de forma direta, neste texto, os problemas: das cegueiras do conhecimento; e da ética do gênero humano.

O enfoque de Edgar Morin (2001a), altamente marcado pela reflexão acerca dos acontecimentos do século 20 (Morin, 1986), introduz um elemento novo na teorização crítica, dando continuidade à tradição da crítica da razão instrumental, iniciada com Adorno e Horkheimer (2006) e continuada por Habermas (2001; 2002). Sob este aspecto, a noção de racionalização assume um lugar especial, uma vez que passa a ser o alvo da crítica (Morin, 2000b). O autor quer salvaguardar a ideia de racionalidade, mas questionar o que denomina de racionalidade fechada. Esta é responsável, no campo do pensamento, por um tipo de pensamento mutilador, o qual é incapaz de compreender que “o conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo externo” (Morin, 2000b, p. 20). Tendo em vista, possivelmente, os sentidos fenomenológicos sugeridos por Husserl (2008), os traços hermenêuticos pressupostos pela abordagem de Gadamer (1999), bem como os aspectos do enfoque de Rorty (1988) e de Habermas (2012) acerca da pragmática da linguagem e os de Popper (2008) acerca da falseabilidade, Edgar Morin (2000a, p. 20), define que “o conhecimento, sob forma de palavra, de ideia, de teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução e, por conseguinte, está sujeito ao erro”. Na leitura de Morin (2001a, p. 39), “Popper troca a certeza pelo falibilismo, porém não abandona a racionalidade”. Isso significa que “o que é racional na ciência, é que ela aceita ser testada ou mesmo criar situações em que uma teoria é questionada, ou seja, aceita a si mesma como biodegradável” (Morin, 2001a, p. 39).

Está colocado no problema das cegueiras do conhecimento algo altamente importante no campo da pesquisa em educação, e que se desdobra em preocupações éticas: o fato de que “a educação deve se dedicar, por conseguinte, à identificação da origem dos erros, ilusões, cegueiras” (Morin, 2000b, p. 20). O campo epistemológico, assinalado e compartilhado pelo paradigma moderno e simplificador da ciência, ignorou ou isolou e separou a subjetividade do investigador do objeto investigado (Morin, 2001a). A ciência clássica, adverte-nos Morin (2000c, 113), permaneceu “fiel à ideia de que suas teorias matematizadas constituíam um espelho da linguagem da natureza”. Com isso, favoreceu um tipo de comportamento, no campo da pesquisa, de caráter objetificador, que ignora ou menospreza a dimensão subjetiva, intersubjetiva, interpretativa e valorativa no campo das ciências. Edgar Morin (2000b, p. 20) lembra reiteradamente que “o conhecimento comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro e da ilusão na subjetividade do conhecedor, de sua visão de mundo e de seus princípios de conhecimento”. O ponto de vista que exclui o sujeito no âmbito da produção do objeto conhecido, no fundo lhe retira a responsabilidade moral acerca dos resultados e implicações sociais e históricas da pesquisa (Morin, 2005). Responsabilidade, escreve Edgar Morin” (2001b, p. 117), “é noção humanista ética que só tem sentido para o sujeito consciente”. Logo, na perspectiva da complexidade, se pretendemos compreender o sentido da ética na pesquisa em educação, é importante salvaguardar a noção de racionalidade e de subjetividade.

O autor entende que o conhecimento científico consiste, em sua evolução, em uma forma poderosa de enfrentar e detectar erros e ilusões; no entanto chama a atenção para o fato de que os “paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver ilusões, e nenhuma teoria científica está imune para sempre contra o erro” (Morin, 2000b, p. 21). Sobre este aspecto, Edgar Morin aposta na ideia de racionalidade como o que melhor pode nos proteger contra o erro e a ilusão, mas destaca que ela comporta, também, “uma possibilidade de erro e de ilusão quando se perverte, como acabamos de indicar, em racionalização” (Morin, 2000b, p. 23). Trata-se, neste último caso, de um tipo de teorização que se “crê racional porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução ou na indução”, mas que se furta à “contestação de argumentos” e à “verificação empírica” (Morin, 2000b, p. 23). É importante assinalar que a aventura de Edgar Morin no campo do conhecimento consiste em apontar os limites da capacidade humana de conhecer (razão) e, neste sentido, permitir uma atividade integradora, de religação, entre filosofia, artes e ciências (razão complexa); tarefa que, de algum modo, permite reconhecer a necessária potencialidade da integração entre os princípios da reflexividade (filosofia), da imaginação (artes) e da objetivação (ciências) (Morin, 2001a). Morin (2001a), argumenta, por exemplo, que os princípios clássicos do paradigma simplificador moderno se organizavam em torno da redução e da simplificação, e se imaginava que “a aparente complexidade dos fenômenos podia ser explicada com princípios simples” (p. 27).

O pesquisador, ao estar ciente de que uma racionalidade aberta “dialoga com o real que lhe resiste”, acaba por “operar o ir e vir incessante entre a instância lógica e a instância empírica”, ou, mesmo, reconhece que o conhecimento é o “fruto do debate argumentado das ideias, e não a propriedade de um sistema de ideias” (Morin, 2000b, p. 23). O enfoque de Edgar Morin acerca da racionalidade procura incorporar a problemática dos limites da lógica, e, por isso, assinala que uma teoria não é o conhecimento, mas uma possibilidade para conhecer (Morin, 2001a). Da mesma forma que não menospreza a lógica e sua coerência, evidencia que ela, em si mesma, pode se converter em doutrina, e, logo, em uma forma de racionalização. Há entendimentos éticos e políticos implicados em toda esta formulação, uma vez que o tipo de conhecimento e de perspectiva paradigmática que se pretende inserir, no âmbito da complexidade, não menospreza ou ignora o paradigma das ciências empírico-formais (interesse técnico) que pretende conhecer para dominar a natureza, ou mesmo o paradigma das ciências histórico-hermenêuticas (interesse prático) que pretende conhecer para ordenar ou controlar a sociedade, mas subentende que o desafio, na atualidade, consiste em criar um paradigma crítico-reflexivo que permita projetar a emancipação humana, e isso significa ir além do paradigma do pensamento redutor (Morin, 2001a, p. 47). De acordo com Morin (2001a, p. 47): “Habermas diz o seguinte: na medida em que a ciência precisa, em primeiro lugar, conquistar a objetividade, ela dissimula os interesses fundamentais aos quais ela deve não só os impulsos que a estimulam, mas também as condições de toda objetividade possível”.

Este é o foco do debate que nos mobiliza quando projetamos a pesquisa em educação não apenas como um modo funcional de aumentar o poder técnico e científico, ou de ampliar o controle e a disciplina social, mas como uma esfera ampla e reflexiva que problematiza as próprias condições para a construção do conhecimento e a instauração de uma democracia cognitiva que favoreça uma política da civilização e uma antropoética (Morin, 2005). Para além do pressuposto racionalizador, que assume feições de lógica mecânica e pressupõe uma subordinação dos dados e informações da empiria, à lógica de teorias fechadas, cumpre abrir um diálogo incessante com o real, o que implica não apenas capacidade abstrativa, mas, sobretudo, uma racionalidade verdadeira, não somente teórica, porém crítica, mas também autocrítica. Lembra-nos Edgar Morin (2001b, p. 121) que, “embora o conhecimento científico elimine de si mesmo toda competência ética, a práxis do pesquisador suscita ou implica uma ética própria”, o que significa que há uma ética referente ao conhecimento “que anima todo pesquisador que não se considera um simples funcionário” (Morin, 2001b, p. 121).

O próprio ato de investigar e problematizar o paradigma, que comanda e controla seu estudo, permite ao pesquisador entender “o princípio de seleção das ideias integradas no discurso ou na teoria, ou postas de lado e rejeitadas” (Morin, 2000b, p. 25); mais do que isso, permite a ele entender que o paradigma também determina as operações lógicas-mestras implicadas na sua pesquisa, uma vez que: a) “ele está oculto sob a lógica e seleciona as operações lógicas que se tornam preponderantes”, tais como “exclusão, inclusão, disjunção-conjunção, implicação-negação”; e b) “ele produz validade e universalidade à lógica que elegeu”. Isso significa que o paradigma, tal como entende Edgar Morin (2000b), “designa as categorias fundamentais da inteligibilidade e opera o controle de seu emprego”, o que denota que “os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles” (p. 25). O problema do conhecimento e da racionalidade mostra-nos que há, em nossa relação com a pesquisa em educação, não apenas uma vinculação direta com o real e o fenômeno estudado, mas um modo mediato que denominamos de paradigma, o qual controla nossa forma de perceber, de analisar e de selecionar o que pretendemos conhecer. O paradigma pode, portanto, “ao mesmo tempo, elucidar e cegar, revelar e ocultar” (Morin, 2000b, p. 27). Edgar Morin (2002b) justifica a relevância de enfrentar as cegueiras do conhecimento sinalizando que muitos modos de sofrimento e de desorientação “foram causados por erros e ilusões ao longo da história humana, e de maneira aterradora, no século XX” (Morin, 2000b, p. 33). Logo, o problema cognitivo, que é tarefa da educação, tem um significado antropológico, político, social e histórico, e, acrescentaríamos, ético.

Ao evidenciar a relação complexa entre indivíduo/espécie/sociedade, a qual é produtora da antropoética, Edgar Morin (2000b) estabelece os desafios da educação do futuro, os quais se situam no campo de uma ética do futuro. Quando tematiza o problema da cognição, das teorias e das ideias, o autor não deixa de nos desafiar e nos inserir na luta para civilizar nossas ideias e teorias. No campo da antropoética teríamos, segundo ele, uma missão antropológica, que seria de: a) “trabalhar para humanização da humanidade”; b) “pilotar o planeta, obedecendo à vida e guiando a vida”; c) “alcançar a unidade planetária na diversidade”; d) “respeitar no outro, ao mesmo tempo, a diferença e a identidade quanto a si mesmo”; e) “desenvolver a ética da solidariedade”; f) “desenvolver a ética da compreensão”; e g) “ensinar a ética do gênero humano” (Morin, 2000b, p. 106).

O significado desta leitura complexa é sugerido em termos de uma educação que se pretenda como forma de ensinar para a democracia. Em uma democracia há uma relação complexa entre indivíduo e sociedade, posto que os indivíduos são cidadãos, pessoas jurídicas que possuem liberdades e responsabilidades, podendo se tornarem solidárias com sua cidade. Já em uma sociedade autoritária ou totalitária, os indivíduos são colonizados e apenas obedecem (Morin, 2000b, p. 107). Esta aposta na regeneração da democracia, via educação, também pressupõe regenerar o civismo, e este a solidariedade e a responsabilidade, o que implica o desenvolvimento da antropoética (Morin, 2000b, p. 112). Ao teorizar sobre a sala de aula, Edgar Morin precisa (2000b) testar seus modos de pensar para verificar o alcance da ideia de democracia e de antropoética no âmbito escolar e na educação. De acordo com ele, “a sala de aula deve ser um local do debate argumentado, marcado por regras necessárias à discussão, como também de espaço de aprendizagem e compreensão do pensamento do outro, da escuta e do respeito” (Morin, 2000b, p. 112). Assim, pontua o autor: “a aprendizagem da compreensão deve desempenhar um papel capital no aprendizado democrático” (Morin, 2000b, p. 113).

Recordemos que o pensamento complexo nutre-se de uma perspectiva de busca da autonomia, mas a faixa etária dos estudantes torna importante que ocorra um princípio de autoridade, bem como a formulação de regras de questionamento das decisões consideradas arbitrárias e um conselho de classe formado pelos alunos. Esta operação conceitual, que busca pensar o contexto e, ao mesmo tempo, globalizar, ou seja, interpretar este em um cenário que exige pensar a relação com uma idealidade desejada, um devir democrático e autônomo, projeta e cria as condições para Edgar Morin pensar sua pesquisa em educação. Esta não se resume numa aplicação direta de formas da filosofia política para o contexto do ensino; há uma cadeia de complexidades que necessitam ser explicitadas, e que o pensamento, articulado pelo método criado e adotado, precisa ajudar a evidenciar.

O projeto de uma antropoética no campo da educação, por isso, exige que se pense não apenas o que se deseja como idealidade para o devir humano, no sentido de uma democracia, mas que se considere o caráter dialógico e complexo que une, de forma complementar e antagônica, uma vida democrática: consenso e conflito, liberdade e igualdade, espírito cívico e aceitação das regras do jogo, por exemplo (Morin, 2000b, p. 109). Este projeto, adverte Edgar Morin, encontra-se sob o signo de uma noção de Humanidade que é biológica, mas que se inclui na biosfera. A Humanidade, conforme ele, é realidade vital, pois está, “pela primeira vez, ameaçada de morte”; ela tornou-se uma “comunidade de destino, e somente a consciência desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo, uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos e cada um” (Morin, 2000b, p. 114).

O enfoque de Edgar Morin, que pontua a crise da razão moderna, e que nos desafia a pensar em um novo humanismo na educação, lança-nos para um novo modo de pensar a pesquisa, o conhecimento, bem como sua lógica e sentido na educação. “Nesse sentido”, argumenta o autor, “o humanismo regenerado se propõe a buscar a hominização pela humanização, introduzindo nela os imperativos antropoéticos” (Morin, 2020, p. 109). Os problemas globais, ou as realidades mais desafiadoras da vida social, passam a interessar a cada cidadão, educador e pesquisador. A crise em que vive a humanidade atinge em cheio a educação; ela é multidimensional, é uma policrise. O paradigma moderno ensinou-nos a recortar os problemas, a dicotomizar, separando o que é contextual do que é global. O desafio do paradigma da complexidade não consiste em refutar o pensamento moderno, a ciência moderna, o humanismo moderno, mas, sim, a superar, regenerar, permitindo-nos pensar o global no contextual e o contextual no global. Em meio ao cenário da pandemia da Covid-19, Morin (2021) escreve sua obra É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus, e, nela, é possível entendermos o projeto de conhecimento do autor:

O humanismo regenerado, reconhecendo o Homo complexus, compreende que é preciso aliar razão e paixão incessantemente, que a afetividade humana pode conduzir ao amor ou ao ódio, à coragem ou ao medo, que a razão sozinha e gélida é desumana, que a técnica pode trazer o melhor e o pior, que a mente humana não parará de produzir mitos para se pôr a serviço deles, que o injustificado, o jogo e as paixões, mesmo em nossa civilização, em que o interesse econômico é hipertrofiado, não permitem que este reine absoluto. Isso significa que toda arte política, assim como toda esperança humanista, precisa levar em conta ambiguidades, instabilidades e versatilidades humanas (p. 85).

Neste aspecto, aprendemos a ver, com Edgar Morin, que as noções de conhecimento e de razão que herdamos do iluminismo são necessárias, mas não suficientes. A educação precisa recriar as premissas em torno da noção de racionalidade, de subjetividade e de conhecimento que alimentaram a vida no Ocidente, favorecendo uma ética do gênero humano em escala global e planetária. Isso leva-nos a questionar toda forma de racionalização, ou mesmo de colonialismo epistemológico, que menospreza, ou oculta, a existência da racionalidade no interior de outras culturas; projeto que vincula, de maneira articulada, uma política da civilização, com uma reforma do pensamento e uma antropoética. Este projeto deve ajudar-nos a reconhecer e enfrentar uma forma de dominação, barbárie e opressão em escala planetária.

É interessante notar que, entre os problemas do conhecimento e da ética, Morin (٢٠٠٠b) desafia-nos a pensar e ensinar a condição humana e a identidade terrena, colocando-nos o problema de enfrentar as incertezas. Também pontua um lugar especial para o estudo da compreensão e da ética da compreensão. Em obra posterior, Morin (٢٠٠١b, p. ١٣) utiliza a metáfora da cabeça-bem-feita e retoma o problema do conhecimento pertinente, que nos permite perceber a complexidade, as interações entre parte e totalidade, as entidades multidimensionais e os problemas essenciais; também retoma o tema do ensino da condição humana e do enfrentamento das incertezas, acrescentando a tarefa do aprender a viver e da aprendizagem cidadã. O tema da religação da cultura das humanidades e da cultura científica é assinalado como uma das grandes questões da educação. No âmbito da pesquisa em educação, isso representa uma capacidade geral para pensar e resolver problemas, sobretudo os gerais e globais.

O autor tem em vista uma capacidade argumentativa, religante e enciclopedante no campo do conhecimento. Nela seria importante que a filosofia ajudasse no “desenvolvimento do espírito problematizador”, entendendo que é uma “força de interrogação e reflexão, dirigida para os grandes problemas do conhecimento e da condição humana”, bem como se “alimentasse da ciência e da literatura” (Morin, 2001b, p. 23). O sentido da aventura do conhecimento e um dos princípios fundamentais do método para a pesquisa (em educação) cunhados pelo autor, aparece na seguinte frase: “É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto” (Morin, 2001b, p. 89).

Nesta aventura, Morin (2001b) mostra-nos como o debate sobre a ambivalência e a complexidade da razão, da ciência, do progresso, do sujeito, precisa assumir destaque na educação, e que a reforma do pensamento e da própria racionalidade torna-se uma necessidade democrática: “O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível com uma reorganização do saber” (Morin, 2001b). Este enfoque será retomado na obra Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação (Morin, 2015), na qual o autor segue na reflexão sobre o problema do conhecimento do conhecimento, da religação de saberes, mas apresenta o problema do aprender a viver, de bem viver, e do método da complexidade. Segundo ele, “é necessário compreender a si mesmo para compreender os outros” (Morin, 2015, p.39), o que significa ao pesquisador em educação, ser capaz de se examinar, se autocriticar. Cumpre-nos assinalar, agora, o lugar da ética e da integridade na pesquisa em educação, tendo em vista este entendimento de conhecimento e educação que Edgar Morin assinala.

4 ÉTICA, INTEGRIDADE E PESQUISA EM EDUCAÇÃO SOB O ENFOQUE DO PARADIGMA DA COMPLEXIDADE

A renúncia moriniana do paradigma simplificador rendeu efeitos sobre o modo como a ética passou a ser por ele concebida (Morin, 2005), na qual teria constatado a necessidade de atentarmos para a vida planetária e para o destino da humanidade, logo, para os rumos da própria pesquisa, das ciências e da educação neste contexto. Na versão de Edgar Morin (2005, p. 21), “todo olhar sobre a ética deve perceber que o ato moral é um ato individual de religação; religação com um outro, religação com uma comunidade, religação com uma sociedade e, no limite, religação com a espécie humana”. No entendimento do autor, “a ciência moderna alicerçou-se sobre a separação entre juízo de fato e juízo de valor, ou seja, entre, de um lado, o conhecimento e de outro a ética” (Morin, 2005, p. 25). Este pressuposto de que todo ato moral implica um ato individual, que envolve religação, e de que somos herdeiros de um paradigma simplificador, conduz a uma grande questão ética para os nossos tempos, e que desafia, sobremaneira, a pesquisa em educação: o problema do paradigma técnico-científico, que se orienta por uma crescente compartimentalização, movida por uma competência parcial e hiperespecializada, que se movimenta a partir de uma racionalidade instrumental. Esta, de certa forma, corrompe a ideia de integridade do sujeito e da pesquisa, uma vez que exime o pesquisador, da ideia de realizar uma autocrítica acerca dos fundamentos e métodos que orientam sua pesquisa, bem como dos resultados e consequências que a mesma produz no curso da vida social.

Como vimos, a modernidade pôs seu assento no indivíduo, racional e centrado em si mesmo, com enormes dificuldades de ver-se integrado a um corpo social, menos ainda de conceber-se dentro de uma visão geral nos termos de uma dimensão humana planetária. Não por acaso, manteve-se a dissonância entre a parte e o todo, o indivíduo e a sociedade; consoante Edgar Morin (2005), uma configuração que rendeu sérias consequências para o campo da ética, uma vez que, segundo ele, o individualismo leva ao descomprometimento com o outro, sobretudo quando este outro surge como um estranho e não mais como um igual; e isso tanto no âmbito da identificação enquanto ser da espécie quanto da sua constituição como ser social. Sob este aspecto do individualismo, Morin (2005, p. 29) argumenta:

O desenvolvimento do individualismo conduz ao niilismo, que produz sofrimento. A nostalgia da comunidade desaparecida, a perda dos fundamentos, o desaparecimento do sentido da vida e a angústia que disso resultam podem acarretar a volta aos antigos fundamentos comunitários nacionais, étnicos e/ou religiosos que trazem segurança psíquica e religação ética. [...] O século XX, século do individualismo, viu muitas adesões dos indivíduos mais críticos à fé nacional e à fé totalitária, que integram totalmente a pessoa e fornecem-lhe uma certeza ética.

Nesse sentido, ao buscar um contraponto ao individualismo, é interessante observarmos que Morin assume uma posição, digamos assim, conciliatória, no que atine aos valores universais conservados pela modernidade e os valores contingentes defendidos pela pós-modernidade. O que ele argumenta é que a ética estaria justamente na possibilidade de religar os saberes, o que não é de se estranhar, uma vez que a religação dos saberes é o grande eixo da teoria da complexidade, desdobrado em três princípios fundamentais, a saber: o dialógico, o recursivo e o hologramático. Além de expressarem aquilo que permite a religação dos saberes, tais princípios são, também, modos de compreender e de elucidar a vida humana (Morin, 2001b), uma vez que eles obrigam à revisão de nossos entendimentos e comportamentos. Nisso, em parte, encontramos o que seria a ética para Morin: em poucas palavras, a indissociação entre a dimensão prática e teórica da vida humana, ou mesmo entre a factual e a valorativa, concebida na dinâmica entre todo e parte, o contextual e o global. Talvez esta proposição assemelhe-se ao que propõe Prieto (2003, p. 156), quando afirma que não temos mais como escolher entre o universal (moderno) e o particular (pós-moderno), ou mesmo entre o estrutural e o histórico, pois estaríamos “condenados a analisar tudo na sua contradição”.

É importante sublinhar, sob este aspecto, que a proposição moriniana da religação dos saberes não implica dissolução das especialidades. Ela encontra-se na possibilidade de fazê-las dialogar, estreitando suas fronteiras, permitindo maior permeabilidade e compartilhamento de seus conteúdos, rompendo, assim, com a estrutura rígida que, até então, impedia justamente a ampliação dos horizontes compreensivos a respeito do mundo e das questões fundamentais que estão na base da reflexão ética; ética esta que, a partir do pensamento complexo, vai tomar indivíduo, espécie e sociedade como uma tríade indissociável, de modo que nenhuma das pontas desta triangulação pode ser pensada e concebida senão em íntima relação com as outras duas. Do ponto de vista do conhecimento e do desenvolvimento de pesquisas, é sempre importante ter em mente que o discurso moderno segue orientando o modo como pensamos e fazemos educação bem como pesquisa em educação; isso tanto no que se refere ao amplo leque de teorias que dispomos à mão quanto aos procedimentos paradigmáticos e metodológicos para a sua consecução. Neste contexto, Morin (2001b) vai sugerir que nada é possível sem uma reforma do pensamento, antes mesmo que uma reforma da educação seja feita, por exemplo; não somente porque o mundo é dinâmico e está em constante transformação, mas porque as novas configurações de mundo exigem uma visão planetária desta complexidade. Ao tematizar as relações entre a ética da solidariedade e a complexidade, neste contexto, Morin (2002f, p.11), se interroga:

Então por que estamos desarmados perante a complexidade? Porque nossa educação nos ensinou a separar e isolar as coisas. Separamos os objetos de seus contextos, separamos a realidade em disciplinas compartimentadas uma das outras. Mas, como a realidade é feita de laços e interações, nosso conhecimento é incapaz de perceber o complexus – o tecido que junta o todo. Ao mesmo tempo, nosso sistema de educação nos ensinou a saber coisas deterministas, que obedecem a uma lógica mecânica; coisas das quais podemos falar com muita clareza e que permitem, evidentemente, a previsão e a predição. Vivemos num mundo onde cada vez mais há incertezas. A crença no determinismo universal, que era o dogma da ciência no século passado, desmoronou. O problema é como enfrentar e rejuntar a incerteza.

Tal constatação vai permitir a Morin (2000b) conceber a ética como algo que precisa se colocar como um dos sete saberes necessários à educação do futuro, mas não no sentido de que mais uma vez ela venha a se apresentar como dimensão isolada, como mera parte a compor o todo, senão como grande articuladora das dimensões educacionais. O autor parte do suposto de que é preciso reorganizar o processo de aquisição e produção do conhecimento e dos novos princípios organizadores do nosso modo de conhecer (Morin, 2000a). Essa condição requer aquilo que Morin (2001b) denomina de circuito recursivo, ou seja, cada reforma precisa ser, simultaneamente, produzida e produtora, desdobrando-se, justamente, nos princípios já anteriormente mencionados: o dialógico, o hologramático e o recursivo ou do elo recorrente, o que nos permite deduzir que aprender a pensar ou a pensar bem deve levar também a agir bem. O motivo é relativamente simples: quanto mais ampliamos nossa capacidade compreensiva maiores são as chances das tomadas de decisão acertadas no campo da ética. Para tanto, precisamos superar a perspectiva da lógica clássica, que reflete uma ontologia muito determinada, que separa e reduz, criando uma forma de - ou isso ou àquilo, ao invés de - isso e àquilo. Ciurana (2003, p.48), nos recorda que “pensar de forma dialógica é fazer dialogar num mesmo espaço intelectual o complementar, o concorrente e o antagônico”. Necessitamos, segundo ele, pensar para além da lógica da identidade, e de uma visão estática de sujeito/ mundo/ sociedade, e pensar “o equilíbrio no movimento, a estabilidade no processo, o ser no devenir” (Ciurana, 2003, p. 50). Mas, em que medida esta percepção complexa e dialógica da realidade se vincula com a questão ética? Morin (2005, p.142), nos responde, afirmando que o pensamento complexo “estabelece a ligação cognitiva; abre uma via indo e vindo da religação cognitiva à religação ética” (Morin, 2005, p. 142).

De outra parte, a crítica de Edgar Morin (2005) ao individualismo e ao egocentrismo não o retira da condição de sugerir a necessidade de identificar e reconhecer, no campo do pensamento, a questão da subjetividade e da individualidade. A questão ética, segundo ele, só poderia emergir no momento em que assumimos, no interior da pesquisa, a problemática de um sujeito moral que possui uma individualidade e que, logo, pode se tornar crítico e autocrítico. Este aspecto da crítica, e da autocrítica, nos conduz também ao problema da integridade, uma vez que ela, de certo modo, se refere a um sujeito e a uma individualidade. Há, no âmbito da complexidade, não apenas um sujeito cognitivo, mas, sobretudo, um sujeito moral, e que, por isso, ainda pode fazer escolhas, agir. A sua integridade, ou sua capacidade de julgar e fazer escolhas justas e honestas no campo da pesquisa, num determinado campo de conhecimento, e de uma comunidade científica, amplia-se quando ele reconhece que há uma problemática que vincula o conhecimento objetivo com o conhecimento subjetivo, intersubjetivo e o histórico-social. Esta forma de analisar a questão da integridade na pesquisa em educação, no âmbito da complexidade, leva-nos a pressupor que há a necessidade de assumir uma ética do conhecimento articulada com um conhecimento da ética.

A ética do conhecimento luta contra a cegueira e a ilusão, éticas inclusive, e o reconhecimento das incertezas e das contradições, as éticas inclusive. O princípio de consciência (intelectual) deve esclarecer o princípio de consciência (moral). Daí o sentido da frase de Pascal (“Trabalhar para pensar bem, eis o princípio da moral”): a ética deve mobilizar a inteligência para enfrentar a complexidade da vida, do mundo, da própria ciência (Morin, 2005, p. 60).

A ética moriniana considera não apenas os aspectos subjetivos e intersubjetivos, implicados em todo conhecimento, mas também os biológicos, os sociais, os culturais e os históricos, que condicionam este conhecimento. Logo, assume o problema das diversidades/multiplicidades do mundo ao mesmo tempo em que reconhece a universalidade/unicidade. Tal ética leva em conta as idiossincrasias contextuais na mesma medida em que busca relações que apontem para a universalidade e, de alguma forma, para uma identidade planetária; tudo isso com vistas a fazer com que cada indivíduo se encontre ligado ao todo, havendo a possibilidade de se dar sentido à existência. Logo percebemos, assim, que as exigências que se impõem ao campo educativo e da pesquisa em educação não são pequenas. O paradigma simplificador, no campo de uma ética do conhecimento, leva-nos a “pensar mal”, pois: a) “fragmenta e compartimenta os conhecimentos”; b) “tende a ignorar os contextos”; c) “só vê a unidade ou a diversidade”; d) “ignora a relação recursiva – passado, presente futuro”; e) “privilegia o cálculo”; f) “rejeita contradições”; g) “permanece cego ao sujeito individual”; h) “opera com o princípio da redução e disjunção”; i) “mutila a compreensão e limita os diagnósticos”; e j) “exclui a compreensão humana” (Morin, 2005, p. 61).

O reconhecimento da complexidade do mundo e do conhecimento é uma das condições para podermos chegar a bem articular ética, integridade, pesquisa e educação nos termos de Morin (2005). Um conjunto de outras condições coloca-se como imperativo para tal consecução, como certa disposição subjetiva para a própria revisão das nossas certezas e convicções paradigmáticas, além de competência interpretativa que nos permitirá melhor avaliar e decidir diante dos desafios que nos são infligidos pelos mais variados contextos. O paradigma complexo, no campo de uma ética do conhecimento, leva-nos a trabalhar para “pensar bem”, e isso significa, de certo modo, uma busca pela integridade, no âmbito da pesquisa, uma vez que que implica uma subjetividade reflexionante que: a) “religa e liberta os conhecimentos do fechamento”; b) “abandona o ponto de vista mutilado das disciplinas e busca um conhecimento poli e transdisciplinar”; c) “comporta um método para tratar o complexo”; d) “distingue e religa”; e) “reconhece a multiplicidade na unidade e a unidade na multiplicidade”; f) “supera o reducionismo e o holismo ligando as partes ao todo”; g) “reconhece os contextos e o complexo”; h) “relaciona passado, presente, futuro”; i) “inclui o cálculo como meio de conhecimento”; j) “concebe uma racionalidade aberta”; k) “reconhece e enfrenta incertezas”; l) “concebe a dialógica como forma de superar a lógica clássica”; m) “concebe a autonomia, a consciência humana, o sujeito”; n) “chega aos seus diagnósticos levando em conta o contexto e a relação local-global”; o) “sugere uma consciência solidária”; e p) “reconhece os poderes que cegam ou geram ilusões no espírito humano” (Morin, 2005, p. 62-63).

Ao buscar uma ética do sujeito responsável Edgar Morin (2001c, p.69), nos explica que: “O problema consiste em evitar o realismo trivial (adaptar-se ao imediato) e o irrealismo trivial (subtrair-se às constrições da realidade)”, [...] sendo que o importante é “ser realista no sentido complexo do termo (compreender a incerteza do real, saber que há o possível, mesmo que ainda esteja invisível no real), o que frequentemente pode parecer irrealista”. O autor sempre nos recorda do problema da ação, do acontecimento, da incerteza, como algo sempre desafiador, que suscita uma escolha, um juízo, um diagnóstico, o que nos parece vital para certa postura ética, e que mobiliza certa presença subjetiva no sentido da integridade do ato moral associado ao ato epistêmico. Para tanto, embora aponte vários elementos relevantes, eles se tornam possíveis a partir da ideia de que “a restauração do sujeito é uma pré-condição para o conhecimento objetivo”, e isso “comporta a exigência do autoexame, a consciência da responsabilidade pessoal, e o encargo autônomo da ética (auto-ética)” (Morin, 2001c, p. 71). O problema da ética e da integridade na pesquisa, podem ser assim articulados de forma a entender a complexidade da ética e da responsabilidade, na esfera individual, social e planetária:

O problema da responsabilidade deve ser colocado em termos complexos. De um lado, cada um deve reconhecer-se responsável por suas palavras, por seus escritos, por seus atos. De outro modo, tomando como base a ecologia da ação, ninguém é responsável pelo modo como suas palavras são entendidas, com seus escritos são compreendidos, como seus atos são mal interpretados, distorcidos. [...] Há uma outra responsabilidade, que é oriunda de nossa comunidade de destino planetário. E ela que sempre relembra nossa parcela de responsabilidade nesse destino comum, e não somente no que diz respeito ao presente, mas também ao futuro, como apontou Hans Jonas. Aqui ainda devemos nos sentir responsáveis – como se a luta por inteiro dependesse unicamente de nós -, mas também não responsáveis por todas as barbáries cometidas por inconsciência ou vilania (Morin, 2001c, p. 71-72).

Nesta perspectiva, nosso horizonte compreensivo e investigativo se refaz, dando-nos condições para concebermos uma ética da solidariedade e da responsabilidade, sobretudo em contextos de pesquisa em educação. Nesta abordagem complexa, como vimos, é importante ter em vista: a) uma ética da religação, que permite comunicar, solidarizar, fraternizar e refutar tudo que disjunta, discrimina, despreza; b) uma ética do debate, a qual prioriza a primazia da argumentação; c) uma ética da compreensão, a qual é complementar à explicação, e permite reumanizar o conhecimento político e educacional, não apenas tratando tudo como se fosse objeto; d) uma ética da magnanimindade, que quebra o ódio, e introduz a generosidade, a nobreza, ao invés da vingança e da punição; e) uma ética da resistência, no sentido de que “a regressão bárbara parece estar cada vez mais provável” (Morin, 2001c), e por isso, a ética da religação, se torna cada vez mais necessária. A noção de integridade na pesquisa em educação, sob este aspecto da complexidade, carece de um conhecimento da ética e de uma ética da complexidade integrada a uma epistemologia da complexidade. Esse movimento, de certo modo, se realiza a partir da atividade de um sujeito poético, ético e epistêmico, que, em sua complexidade existencial, cultural, social e histórica, é capaz de religar, argumentar, compreender, explicar, valorar, escolher, amar e se solidarizar.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema da ética e da integridade na pesquisa em educação sob a ótica da complexidade está em relação direta com a questão do conhecimento, da educação, da ciência e da ética. A teoria da complexidade de Edgar Morin tem se mostrado importantíssima para a compreensão desse debate, uma vez que ela articula as dimensões epistemológicas, educativas e éticas, imprescindíveis para o desenvolvimento de pesquisas em ciências humanas, ainda mais quando sabemos que o paradigma da complexidade consiste em enfrentar e questionar os limites do paradigma simplificador moderno que, em boa medida, segue orientando as pesquisas no campo educacional e também as práticas educativas.

O pressuposto moriniano indicou, desde o início, a reflexão e a investigação científica e filosófica em educação como grandes campos que nos desafiam a pensar o conhecimento, desde a sua perspectiva factual e objetiva até a sua dimensão subjetiva, a qual requer a consideração dos valores, da interpretação e da responsabilidade ética do sujeito pesquisador relativamente ao mundo que aí está em jogo, o que tem nos impelido a problematizar os reducionismos das teorias e das pesquisas e as interpretações unidimensionais e fragmentadoras, mutiladoras das compreensões de mundo.

Neste contexto, o enfoque epistemológico requer, acompanhando Morin (2001a), ser revisto. Isso implica um modo particular de questionar e refletir sobre os aspectos do mundo objetivo e sobre os paradigmas que nos orientam nesta investigação. Para ele, o paradigma da complexidade mantém aberta a reflexão acerca do próprio problema do paradigma e do conhecimento, da relação entre todo e parte, indivíduo e sociedade, local e global, tendo como principais objetivos evitar o reducionismo e o determinismo bem como a simplificação tipicamente cartesiana.

Na sequência, vimos que o conhecimento científico consiste em uma forma poderosa de enfrentar e detectar erros e ilusões, contexto no qual Morin aposta na ideia de racionalidade como o que melhor pode nos proteger contra eles, ainda que também comportando a dimensão do erro e da ilusão. A racionalidade, nesse sentido, diz respeito ao reconhecimento da potencialidade da integração entre os princípios da reflexividade (filosofia), da imaginação (artes) e da objetivação (ciências).

Por fim, no que diz respeito à ética e sua relação com a educação e a pesquisa em educação, o pensamento de Morin (2001a) passou a mostrar que a ética estaria justamente na possibilidade de religar os saberes, possibilidade esta que não pode ser concebida longe da ideia de que se trata de uma determinada postura do sujeito que se vê obrigado à revisão de seus próprios entendimentos e comportamentos. Não por outra razão, Morin pensa a indissociabilidade entre a dimensão prática e teórica da vida humana no seio mesmo do desenvolvimento das pesquisas educacionais.

Com isso, se percebe que o pensamento da complexidade carrega em si uma herança crítica e autocrítica, que é atravessada pela esperança no futuro comum do mundo. O pesquisador em educação, neste caso, se ocupa com a reflexão acerca dos destinos da humanidade, do conhecimento e da educação, reconhecendo ao mesmo tempo que “a imaginação tem como tarefa inventar um possível, mesmo que ele seja hoje improvável” e, de que, “a crítica exige imaginação e a imaginação exige crítica” (Morin; Nair; 1997, p. 8). Os aspectos da ética e da integridade na pesquisa em educação, portanto, não se distanciam dos pressupostos investigativos, de método, na medida que articulam as dimensões explicativas, lógicas, e racionais, que buscam a objetividade, com as compreensivas, e imaginativas, que problematizam as formas subjetivas, intersubjetivas, paradigmáticas, teóricas, valorativas, contextuais que a tornam possível.

A responsabilidade pelo devir do mundo, não é apenas utópica, mas atual e engajada, reconhecendo o nexo complexo entre passado, presente e futuro. A ética da complexidade, na pesquisa em educação, portanto, nos leva a historicizar todo fenômeno, lendo o mundo que estamos vivendo, de uma forma distinta e integrada, contextual e global. Ela não apenas complexifica o objeto/fenômeno estudado, evidenciando sua multidimensionalidade, como também, nos desafia a complexificar e integrar o sujeito observador/conhecedor. É uma ética da religação que não dicotomiza, sujeito e mundo, e que, portanto, se vale de uma epistemologia complexa, e de uma nova hermenêutica do real, a qual não tem um fundamento último, mas que se dá sempre sob forma de uma escolha teórica, comunicativa, simbólica e paradigmática. Para o campo da educação, isso representa a possibilidade de uma racionalidade aberta, dialogante, reflexiva, e, portanto, crítico-emancipatória, capaz de questionar interesses que se ocultam no interior do debate científico e que tem alta relevância social, política e cultural (Habermas, 2001).

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência:

Sidinei Pithan da Silva - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Humanidades e Educação, Unijuí, Rs, Rua do Comércio 1364
São Geraldo, 98700000, Ijuí, RS. sidinei.pithan@unijui.edu.br.

Vânia Lisa Fischer Cossetin - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Humanidades e Educação, Rua do Comérico, 3000,
Universitário, 98700000, Ijuí, RS. vania.cossetin@unijui.edu.br.

Fernando Jaime González - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Humanidades e Educação, Rua do Comérico, 3000,
Universitário, 98700000, Ijuí, RS. fjg@unijui.edu.br.


  1. 1 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná; Professor e Coordenador do Colegiado de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

  2. 2 Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

  3. 3 Doutor em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.