https://doi.org/10.18593/r.v48.33062

Valores, função social e ethos democrático: paradoxos e possibilidades da escola no atual cenário neoliberal

Values, social function and democratic ethos: paradoxes and possibilities of the school in the current neoliberal scenario

Valores, función social y ethos democrático: paradojas y posibilidades de la escuela en el actual escenario neoliberal

Sidinei Cruz Sobrinho1

Instituto Federal de Educação, ciência e Tecnologia Sulriograndense - Campus Passo Fundo; Doutorando em Educação. https://orcid.org/0000-0002-8826-5745

Chaiane Bukowski2

Universidade Federal da Fronteira Sul - Campus Erechim; Doutoranda em Educação.

https://orcid.org/0000-0002-4343-2888

Angelo Vitório Cenci3

Universidade de Passo Fundo; Professor do Programa de Pós-graduação em Educação.

https://orcid.org/0000-0003-0541-2197

A perda de sentido da escola e do saber não é mais do que um aspecto da crise política, cultural e moral das sociedades capitalistas nas quais a lógica predominante traz em si mesma a destruição do vínculo social, em geral, e do vínculo educativo, em particular (LAVAL, 2004, p. 316).

Resumo: O capitalismo neoliberal carrega consigo a pretensão de moldar a escola em consonância com a sociabilidade do mercado. Por essa razão, busca impor sobre ela valores econômicos estranhos aos valores da cultura, minar a dimensão pública de sua função social e fragilizar ou suprimir a orientação para a formação de um ethos democrático. O presente artigo visa discutir como o neoliberalismo leva adiante esse esforço e, tomando por base a crítica de Christian Laval à “empresificação” da escola no neoliberalismo, busca identificar os paradoxos e as possibilidades da escola no atual cenário neoliberal. A metodologia consiste em revisão bibliográfica, em análise de manifestações do governo brasileiro sobre a educação e na hermenêutica das principais políticas educacionais em curso no país. O estudo tem por finalidade provocar a reflexão crítica em relação a lógica neoliberal que avança sobre a educação brasileira, bem como sugerir enfrentamentos necessários para assegurar a formação de um ethos democrático.

Palavras-chave: neoliberalismo; educação; escola; Estado Democrático de Direito.

Abstract: Neoliberal capitalism carries with it the intention of shaping the school in line with the sociability of the market. For this reason, it seeks to impose economic values on it that are foreign to cultural values, undermine the public dimension of its social function and weaken or suppress the orientation towards the formation of a democratic ethos. This article aims to discuss how neoliberalism takes this effort forward and, based on Christian Laval’s critique of the “corporation” of school in neoliberalism, seeks to identify the paradoxes and possibilities of school in the current neoliberal scenario. The methodology consists of a bibliographic review, an analysis of the Brazilian government’s manifestations about education and the hermeneutics of the main educational policies in progress in the country. The purpose of the study is to provoke critical reflection in relation to the neoliberal logic that advances in Brazilian education, as well as to suggest necessary confrontations to ensure the formation of a democratic ethos.

Keywords: neoliberalism; education; school; Democratic state.

Resumen: El capitalismo neoliberal lleva consigo la intención de configurar la escuela en consonancia con la sociabilidad del mercado. Por ello, busca imponerles valores económicos ajenos a los valores culturales, socavar la dimensión pública de su función social y debilitar o suprimir la orientación hacia la formación de un ethos democrático. Este artículo tiene como objetivo discutir cómo el neoliberalismo lleva adelante este esfuerzo y, a partir de la crítica de Christian Laval a la “corporación” de la escuela en el neoliberalismo, busca identificar las paradojas y posibilidades de la escuela en el actual escenario neoliberal. La metodología consiste en una revisión bibliográfica, un análisis de las manifestaciones del gobierno brasileño sobre la educación y la hermenéutica de las principales políticas educativas en curso en el país. El estudio tiene como objetivo provocar una reflexión crítica en relación a la lógica neoliberal que avanza en la educación brasileña, así como sugerir confrontaciones necesarias para garantizar la formación de un ethos democrático.

Palabras clave: neoliberalismo; educación; escuela; Estado Democratico de derecho.

Recebido em 24 de agosto de 2023

Aceito em 31 de outubro de 2023

1 INTRODUÇÃO

A essência epistêmica da epígrafe apresentada acima é essencial para dar sustentabilidade à tese que compõe este artigo. Isto porque, no decorrer desta investigação, argumenta-se sobre o valor cultural da escola e a função social da educação na democracia, inconcebível sem a garantia dos vínculos sociais que, na própria etimologia do termo (demo = povo; kratós = poder), reiteram a necessidade do poder ao povo. Tal função indica tornar-se necessário analisar as interferências do neoliberalismo nos aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos que estruturam o Estado Democrático de Direito, particularmente no Brasil. Não por acaso, como refere Laval (2019, p. 18), o Brasil está hoje na “vanguarda da escola neoliberal”, com um “capitalismo escolar e universitário” marcado pela “intervenção direta e maciça do capital no ensino”. Esse quadro implica que, se a lógica do interesse privado se manter tão acentuadamente predominante sobre o interesse público, poderá destruir o vínculo social democrático porque deixa de considerar o ethos que sustenta a condição de uma existência em comum e da coesão social. Ocorre que o ethos democrático depende, por excelência, do estabelecimento de vínculos sociais baseados na prevalência do interesse público sobre o privado. Trata-se, pois, aqui, da discussão de questões plausíveis para o cumprimento da função social da educação/escola na formação de um ethos democrático, pois, como apropriadamente defende Biesta, “em sociedades democráticas, deve haver uma discussão corrente sobre os objetivos e fins da educação (pública) – por mais difícil que essa discussão seja” (BIESTA, 2012, p. 814).

Este artigo está estruturado em três momentos. O primeiro concentra a abordagem sobre a função social da escolarização e as armadilhas neoliberais de colonização da educação, redirecionando os valores democráticos do interesse público para os valores do interesse privado. Trata-se de evidenciar o quanto a lógica neoliberal contradiz a função social da educação democrática. A segunda seção afere a anterior uma base empírica por meio da hermenêutica da concepção e função de educação no Estado Democrático de Direito no Brasil, presentes na Constituição Federal de 1988 [CF/88] e na Lei de Diretrizes e Bases Lei 9.394/96 [LDB]. A terceira seção tem como eixo, em decorrência dos movimentos anteriores, a tematização de paradoxos a serem superados e de perspectivas a serem indicadas na atual conjuntura educacional para poder ir-se além do modelo da escola neoliberal e criar condições para a educação orientada por um ethos democrático. Por fim, são apresentadas, à guisa de conclusão, as principais considerações elaboradas durante o percurso investigativo e resultados que, antes de se pretenderem conclusivos, apontam para a pertinência e a urgência de se aprofundar esse estudo e de se buscar estratégias consistentes para evitar a perigosa destruição do “vínculo social, em geral, e do vínculo educativo, em particular”, como referido por Laval na epígrafe deste trabalho.

2 OS VALORES GERENCIAIS E AS ARMADILHAS NEOLIBERAIS NA EDUCAÇÃO

Enquanto herança do ideário iluminista, a educação seria, por excelência, o espaço legítimo para a promoção da autonomia e da emancipação humana. Porém, na conjuntura atual verifica-se e intensificam-se, por meio de vários fatores, aspectos problemáticos, tais como a desvalorização dos professores (e demais profissionais da educação), educação ainda seletiva e meritocrática, aumento das desigualdades sociais, desinvestimento do poder público e evasão escolar, entre outros. Dardot e Laval (2016) argumentam que o Estado se submete às condições definidas pelas empresas privadas, o que ocasiona o enfraquecimento da ação pública. Sob essa premissa, também na educação o “culto da inovação” e da suposta “modernização” gera uma crise generalizada que dá espaço a uma série de reformas, no mínimo questionáveis. Resulta assim, naquilo que Laval (2004) define como uma das principais mudanças educacionais que vem ocorrendo na última década, a saber, o crescimento da dinâmica reformadora e o controle dela pela ideologia neoliberal. As instituições educacionais, em conformidade com o neoliberalismo, comprometem o processo pedagógico ao priorizarem questões econômicas e mensurações de resultados que passam a estabelecer as finalidades educacionais sob a lógica do privado.

Ao juntar-se as peças desse grande “quebra-cabeças” que caracteriza o neoliberalismo, verifica-se que as instituições educacionais se inclinam cada vez mais para a concepção de educação neoliberal na medida em que passam a concebê-la, de acordo com a lógica do capital humano, “como um bem essencialmente privado”, “cujo valor é, antes de tudo, econômico” (LAVAL, 2004, p. XI). Em outras palavras, por essa ótica entende-se que as ideologias se camuflam nas reformas educacionais usando, inclusive, termos próprios daqueles discursos e concepções das correntes defensoras do modelo republicano de educação, defensor da “escola única” e da formação humana integral e cidadã. Desse modo, o discurso se direciona, ao menos no âmbito formal, não para a eliminação, mas para a pertinência de “modernização” da educação, a qual se dá, em razão da necessidade de controle dos gastos e da qualidade diante da massificação educacional, sob adoção do controle de eficácia, adotado da empresa privada, cujo objetivo principal é traduzido pelo jargão do “fazer mais com menos” (LAVAL, 2004, p. 188).

No mundo globalizado os valores neoliberais influenciam, consolidam e se universalizam nos vínculos sociais. Por este viés, vale mencionar a organização da educação na lógica da “escola-supermercado”, como Laval (2004) define ao exemplificar, pelo modelo americano, que o estudante passa a buscar os “saberes” que deseja consumir naquele momento específico para determinados fins, conforme seus interesses e necessidades pessoais. Portanto, neste formato de “escola-supermercado” é o aluno-consumidor e não mais a escola que tende a construir os programas de ensino. Por uma perspectiva próxima, Giroux (2003, p. 53) destaca que pela ótica da “cultura empresarial” a questão de “cidadania é retratada como uma questão totalmente privatizada, cujo objetivo é produzir indivíduos competitivos, interessados em si mesmos, competindo pelo seu próprio ganho material e ideológico”. Destarte, entende-se que a instituição educacional se esvazia no que tange ao sentido cultural, social, do acesso ao amplo conhecimento produzido historicamente pela humanidade e que possibilita ao ser humano reconhecer-se como sujeito desse constructo.

Laval (2004, p. 301) chama a atenção em relação à contradição no que tange à educação neoliberal, visto que este modelo “ataca os valores que estão instalados no coração do ofício de ensinar e que dão sentido ao aprendizado”. Assim, a falta de esclarecimento de sua finalidade suscita o entendimento, próprio à lógica da teoria do capital humano, de que cada sujeito independente necessita buscar os recursos para assegurar melhores oportunidades neste mercado competitivo. Tal lógica afronta a própria finalidade, a linguagem e a ética da profissão docente. As instituições educacionais estão carregadas de discursos, ocasionando conflitos de pensamento “entre os professores, [...] administradores e experts, adeptos da modernidade e fascinados pelo modelo do privado, [ocasionando assim] o enfraquecimento da ética cultural dos professores” (LAVAL, 2004, p. 303).

Insere-se, nesse contexto, os princípios da profissionalização entendida como mera correlação da melhor educação igual à melhor oportunidade de emprego. A educação começa a sofrer uma mutação da figura de uma “instituição” em constante produção e reflexão de si mesma, para a de uma “organização”, produtora de serviços e organizada pelos critérios de qualidade e competitividade a serem medidos pela sua eficácia. Ball (2010) aborda o conceito de “gerenciamento” para delinear a tônica desse cenário educacional e argumenta que a competitividade e as conquistas materiais passam a se transformar em eixos norteadores dos processos educativos. É sob essa lógica que se insere o discurso da “formação ao longo da vida”, de modo que se justifica, por exemplo, que o jovem mais desprovido de condições socioeconômicas, após ter tido acesso a um kit básico de conhecimentos operacionais, deixe o ambiente educacional para atuar profissionalmente e assim, por seu próprio esforço, ao progredir no mundo econômico, retorne à educação para a continuidade do estudo.

Ao restringir a educação aos preceitos do mercado, seguindo os direcionamentos do capital humano e da cultura empresarial, são enfraquecidos os sentidos educacionais e as condições para se assegurar certo nível de coesão social e uma sociedade democrática. Dewey (1979, p. 93) já constatara que “o amor da democracia pela educação é um fato cediço”, pois um governo que se constitui a partir da escolha da sociedade já está fadado ao fracasso se os que o elegem não passarem por um processo educativo adequado. O autor entendera que o espaço educativo, como função social, requer um ensino com intencionalidades esclarecidas, comunicadas e elaboradas conjuntamente para que a educação seja consciente por todos os envolvidos, visando “libertar as aptidões assim formadas para um mais amplo desenvolvimento, purgá-las de algumas de suas rudezas e fornecer objetos que tornem sua atividade mais rica de significação” (DEWEY, 1979, p. 19).

2 A FUNÇÃO SOCIAL DA EDUCAÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NO BRASIL

Embora a realidade da educação brasileira chame a atenção por ter se tornado a “vanguarda da escola neoliberal”, a colonização da educação pelo neoliberalismo é, em maior ou menor escala, um fenômeno mundial. A esse respeito é oportuno observar-se o papel desempenhado pelas corporações globais em usar as escolas e as universidades para moldar os educandos e as famílias para o mercado. No limite, trata-se da pretensão da modelagem da subjetividade humana e da própria sociedade como um todo a esse modelo reducionista de sociabilidade, como respaldam Spring (2018), Alemán (2016) e Dardot e Laval (2016). Vários estudos, documentos oficiais e políticas públicas já demonstram essa realidade com robusta fundamentação. Os discursos dos organismos e avaliações internacionais (OCDE, Fórum Econômico Mundial, Banco Mundial, PISA etc.) explicitam a defesa da lógica do capital humano e induzem, por diferentes estratégias, o direcionamento das políticas educacionais nos mais diversos países para atender exclusivamente ao mercado pervertendo, assim, a própria concepção de educação, democracia e Estado de Direito. Por conseguinte, ao fazer com que a escola comece a sofrer uma metamorfose de instituição para organização (LAVAL, 2004), a estratégia colonizadora do capitalismo neoliberal faz com que o interesse privado passe claramente a preponderar sobre o interesse público e sobre a finalidade pública da educação.

Nessa conjuntura resta, então, perguntar: qual é a principal função do Estado Democrático de Direito senão a de garantir a coesão social e o que é essa coesão social senão o interesse público sem o qual o interesse privado e, com ele, os direitos individuais subjetivos ficam em risco e à mercê de movimentos totalitários, centralizadores, oligárquicos, excludentes, opressores e tudo o mais que diverge da mais básica ideia de democracia?

Tal cenário é o que tem motivado muitos pesquisadores a cogitarem o fim ou, no mínimo, o grave enfraquecimento das democracias liberais no mundo4. No Brasil, a realidade segue o fluxo quase ininterrupto do desmanche das instituições democráticas, dos direitos humanos, sociais, culturais e ambientais, da dignidade humana, da educação democrática e da crescente corrosão das estruturas que, parcamente, ainda sustentam algum resquício de Estado Democrático de Direito. É o caso também das instituições de educação pública e da finalidade pública da educação, claramente amparada na Constituição Federal de 1988. Esta, diante do poder das ações do mercado sobre as ações do Estado, ironicamente ainda é chamada de Constituição Cidadã. Isso porque, do ponto de vista da concepção republicana (República Federativa do Brasil), o que mais se tem visto enfraquecer, principalmente nas políticas educacionais em curso, é justamente a possibilidade de exercício da cidadania. É nessa lógica de preponderância do privado sobre o público que ganha fôlego a tese do surgimento do surgimento do “estado pós-democrático”. Nas palavras de Casara (2017, p. 39), com a desmoralização e o descrédito na força política do Estado, e “com a ascensão da razão neoliberal [...], o mercado foi elevado à posição de principal regulador do mundo-da-vida [sic]. O mercado [...] foi elevado a núcleo fundamental responsável por preservar a liberdade econômica e política”.

Se tomada a Carta Magna (BRASIL, 1988, art. 205), vê-se que esta trata de uma concepção de educação como direito de todos, e não apenas dos mais aptos que, por suposto “mérito”, foram selecionados para ingressar nas instituições de ensino (públicas ou privadas). A “tirania do mérito” (SANDEL, 2020) apregoa a ideia falsa de uma ordem social e econômica fundamentalmente baseada no esforço e no mérito individual e na culpabilização dos próprios indivíduos pelos fracassos pessoais. Diferentemente, a Constituição Federal postula a educação como dever do Estado, da família e com a colaboração da sociedade civil, estado que demonstra nesse cumprimento do dever seu caráter republicano original de envolvimento e coesão social para além dos interesses individuais e meramente privatistas. É asseverado ainda pela Constituição uma visão de educação que prepare os educandos para e no exercício da cidadania, o que exige superar a função meramente instrumental de transmissão de saberes específicos e ou tecnicistas para o exercício de uma profissão, mas que compreende o trabalho como dimensão humana e que inclui o pleno desenvolvimento humano do indivíduo e da sociedade como um ethos democrático em desenvolvimento. Quer dizer, a Carta propõe claramente uma educação que prevê não apenas o desenvolvimento econômico, mas a “promoção humanística, científica e tecnológica do País” (BRASIL, 1988, art. 214, V).

No mesmo sentido, as Diretrizes e Bases da Educação Nacional [LDB] (BRASIL, 1996), que regulam as regras gerais dispostas pela CF/88, reiteram a concepção de educação democrática cuja função vai muito além do treinamento mecânico de indivíduos para o empreendedorismo alienante do neoliberalismo. A LDB resgata, ao menos formalmente, a amplitude da abrangência da educação nacional, incluindo a importância da “convivência humana”, os “movimentos sociais e organizações da sociedade civil” e, também, as “manifestações culturais” (BRASIL, 1996, art. 1º). Essa abrangência deveria guiar-se pelos “princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana” (BRASIL, 1996, art. 2º), dentre vários outros exórdios que explicitam a formação humana integral e a função social da educação brasileira na Constituição e que visariam o desenvolvimento e fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Contudo, porque, mesmo com tal concepção em relação a defesa naquelas leis que deveriam ser a mais elevada tradução do espírito de sociedade de um povo, a Constituição Federal é deturpada, ignorada e solapada por legislações e políticas educacionais menores, explicitamente dominadas por grupos privados e interesses hegemônicos?

Estas considerações levam a questionar por quais motivos – apesar da explícita função democrática de educação expressa na lei maior [CF/88], e na principal lei sobre educação [LDB] do Estado brasileiro – Laval (2019) teria afirmado que o Brasil está na vanguarda do neoliberalismo educacional. Torna-se evidente a análise de Laval quando estudadas as políticas públicas de governo para a educação no Brasil. A título de exemplo, no ano de 2019 o ministro da educação de então afirmou “que o ensino superior deve ficar reservado à ‘elite intelectual’ do país” (GAZETA, 2019, online). O presidente da república, Jair Bolsonaro, ainda em campanha política, em 2018, já afirmava que “essa tara por diploma superior não pode existir. [...] se você no Ensino Médio colocar algo técnico, você melhora nossa economia” (EXAME, 2018, online), revelando a clara proposta de uma política educacional tecnicista, excludente e direcionada apenas de forma questionável para o desenvolvimento econômico. Essa postura resulta ainda na desvalorização do diploma, tal qual bem Laval (2019) apresenta claramente como sendo um dos resultados da colonização da educação pelo neoliberalismo e da desvalorização da educação formal humana e democrática.

Não bastasse, ainda em 2019 o Governo Federal lançou o Programa Future-se, “um modelo baseado em uma série de dispositivos do mercado financeiro, a ‘carteira de ações’”, (ESTADÃO, 2019, online) que escancara a privatização e a transformação da universidade em uma organização empresarial (LAVAL, 2019). Na mesma lógica, o programa apresentado pelo MEC anunciou o objetivo de transformação do papel do professor de trabalhador intelectual para empreendedor técnico operacional do ensino. Nas palavras do secretário da educação superior, “o objetivo é estimular o empreendedorismo. [...] professores poderão entrar como sócios ou coautores desses projetos e, a partir disso, incrementar sua renda” (ESTADÃO, 2019, online). É, portando, explícita a concepção neoliberal de educação, por parte do governo que deveria, por obrigação democrática, fazer valer a concepção de educação humana integral prevista na CF/88.

Na educação básica o movimento colonizador do neoliberalismo e o redirecionamento da função da educação para os interesses do capital tem sido ainda mais enfático e evidente. Esse aspecto pode ser identificado na (a) Reforma do Ensino Médio pela lei 13.415/2017, que segmenta o ensino médio por itinerários formativos excludentes do acesso ao conhecimento produzido historicamente pela humanidade, (b) na Base Nacional Comum Curricular [BNCC] que, embora assuma o discurso da educação integral, se organiza por habilidades e competências típicas das teorias do capital humano e, (c) no forte ingresso na educação básica e técnica pelas multinacionais e organizações privadas de ensino ligadas ao Banco Mundial, Banco Itaú, OCDE, e outras, como Instituto Ayrton Senna, que tem direcionado a implementação da BNCC e a formação de professores no Brasil. Estes e inúmeros outros motivos e fatos identificáveis nas políticas educacionais em curso no Brasil, que o espaço desse artigo impede aprofundar, são suficientes para se compreender por que razões Laval (2019) afirma que o Brasil está seguindo os preceitos do neoliberalismo convertendo sua escola na vanguarda da escola neoliberal. Não bastasse, como bem destaca o autor, o notável crescimento “do ensino privado no Brasil nos últimos vinte anos, sob a dominação de grandes oligopólios cotados em bolsa (Kroton, Estácio, Anhanguera, etc.), faz do país um caso único no mundo” (LAVAL, 2019, p. 13).

Em síntese, a análise da concepção de educação presente nas principais legislações brasileiras sobre a matéria [CF/88 e LDB], comparada com a concepção de educação nas políticas públicas educacionais (legislações menores, programas de governo; financiamento educacional; (des)valorização dos profissionais da educação, etc.) demonstra que, enquanto aquela carrega o sentido da educação para o desenvolvimento do bem estar social que, por sua vez, exige a preponderância do interesse público (coesão social, erradicação da pobreza e da marginalização, direitos sociais e coletivos, etc.), esta, por sua vez, resume-se à função da educação para um modelo reducionista de desenvolvimento econômico com toda a complexidade que a sociedade atrelada ao neoliberalismo exige. Essa última prospera apenas sob a lógica do indivíduo atomizado e do trabalho precarizado, que busca fazer prevalecer o interesse privado acima de tudo e de todos, inclusive acima da própria dignidade pessoal.5

Todavia, há que se ponderar que o movimento colonizador do neoliberalismo ainda não liquidou com a dimensão cultural e social intrínseca à escola e que o campo de batalha está aberto para a reação contra hegemônica. Se ainda há espaço para se falar sobre e se defender a democracia, não há que se decretar a morte ou a pós-democracia. Ao contrário, cabe a resistência e a ação para que, a exemplo do que já se obteve sucesso em momentos anteriores, no Brasil e no mundo, se provoque o enfraquecimento da selvageria neoliberal, permitindo que, de algum modo, a soberania popular, a dignidade humana, a cidadania e o enfraquecimento das desigualdades sociais, fortaleçam a democracia.

Cabe perguntar-se então quais ações podem se dar, ao menos a partir da própria educação formal para que se possa contrapor a lógica dominante. O capitalismo “não pode inteiramente se apoderar do mundo cultural e social, [nem] mesmo o ‘gerir’ [...] sem engendrar um mal-estar, uma resistência, conflitos consideráveis” (LAVAL, 2004, p. 291). Afinal, se há contradições na própria escola neoliberal, seria uma boa estratégia explorar essas contradições para enfrentar e, no mínimo, enfraquecer a lógica colonizadora do neoliberalismo na educação, assim como para identificar-se novas perspectivas à educação. Duas questões podem nos orientar a esse respeito: Quais são as contradições da escola neoliberal? Quais são as possibilidades de ir-se além dela?

3 PARADOXOS E POSSIBILIDADES DA ESCOLA NO CENÁRIO NEOLIBERAL

Se a escola ainda não se tornou de todo uma empresa, também ainda não se converteu em uma organização simplesmente, graças aos movimentos internos de resistência de seus agentes ou das próprias sociedades em sua defesa e de seus valores culturais. Ocorre, como lembra Laval, que a contradição fundamental que perpassa a escola neoliberal reside no fato de que “nenhuma sociedade pode funcionar se o liame social se resume às ‘águas geladas do cálculo egoísta’” (LAVAL, 2004, p. 316). A universalização do cálculo egoísta tende a resultar em anomias sociais e, nesse sentido, a lógica da escola neoliberal, quando universalizada, é autodestrutiva. Por essa razão, a atual perda ou solapamento de sentido da escola e do saber precisa ser entendida como um aspecto da própria crise política, moral e cultural que marca a sociedade neoliberal. Como alerta o autor, a lógica predominante de tal modelo de sociedade é caracterizada pela “destruição do vínculo social, em geral, e do vínculo educativo, em particular” e a crise da educação é uma crise de legitimidade da própria cultura na medida em que essa reduz-se aos imperativos frios de “utilidade social e de rentabilidade econômica” (LAVAL, 2004, p. 316 e 319). Essa dupla destruição – do vínculo social e do vínculo educativo – tende a afetar diretamente a identidade da escola enquanto instituição, assemelhando esta cada vez mais a uma organização orientada por imperativos de produtividade e pela produção de capital humano.

Com efeito, a transformação da escola em organização, regida pela lógica empresarial, tende a mudar drasticamente sua natureza como instituição, de modo a situá-la entre a lógica da produção e a lógica do consumo. Com isso mudam também os valores estruturantes da educação, passando para o primeiro plano a eficiência, a eficácia, o rendimento, a profissionalização e a mensuração – os valores econômicos - ao invés da formação humana e da cultura. Nesse caso, valores comuns tendem a ser suplantados por valores individualistas levando muito mais à formação de sujeitos massificados e bem ajustados ao que o mercado deles espera do que a cidadãos críticos, ativos, imaginativos e mais humanizados. Como destaca Laval, “o mercantilismo desacredita todo o discurso sobre os valores desinteressados da cultura, sobre as virtudes e a dignidade humana, sobre a igualdade de todos em face da herança cultural ou das chances de inserção profissional” (LAVAL, 2004, p. 303). O mercantilismo educacional, prossegue o autor, desconsidera o fato de que “o saber constitui um universo simbólico relativamente separado das práticas sociais e produtivas e que essa própria separação é uma condição de inteligibilidade e de transformação do mundo real” (LAVAL, 2004, p. 311). Essa distância do saber em relação às práticas reais e produtivas sempre marcou o espaço da escola e é ela que assegura uma esfera de negatividade, condição de possibilidade para a renovação das práticas, instituições e sistemas sociais.

O neoliberalismo, sob a lógica do capital humano e de sua visão economicista de mundo, visa uma mutação do sistema educativo em que escola pública não é apenas “diminuída e empobrecida”, mas é também pensada como “outra escola”. Para Laval, essa outra escola é bem ilustrada mediante o empenho em conceber a educação como algo a ser levado adiante ao longo de toda a vida. Esse empenho implica “uma dilatação e uma flexibilização da relação pedagógica, ela mesma em relação direta com as necessidades das empresas em matéria de tecnologia e organização. [...] É a base de uma empregabilidade que deverá ser regenerada sem cessar por dispositivos de enriquecimento do capital humano” (LAVAL, 2004, p. 299). O problema aqui é o que Han denomina de “excesso de positividade”. Essa ausência de distanciamento para com o mundo e para com a imediatez que o cerca, assim como em relação ao conhecimento, e a redução da educação a capital humano, marca relações de positividade em excesso que acabam impondo um peso demasiadamente alto sobre o sujeito para com suas decisões e sua forma de se relacionar com o mundo. A sociedade do desempenho, argumenta o autor, provocou um “cansaço” e um “esgotamento” excessivos, próprios de um mundo que se tornou pobre em negatividade (HAN, 2017, p. 70).

O excesso de positividade na vida social e nos processos educativos resulta na falta da alteridade e da assimilação de valores comuns, tendendo a transformar o saber e as relações humanas em mercadorias. Ele cria o sujeito do desempenho, rápido, eficiente, adaptável e flexível. Todavia, o excesso de positividade leva à exaustão dos sujeitos em uma sociedade impulsionada pelo desempenho e pelo suposto mérito individual que, paradoxalmente, produz depressivos, fracassados e outros tantos descartáveis e “inúteis”. A escola neoliberal corre o risco de, ao trocar os valores da cultura pelos econômicos, alimentar a formação de sujeitos esvaziados de si, atomizados, pobres de valores comuns e de mundo, assim como de imaginário político e social. Uma educação orientada pelo excesso de positividade resulta na dificuldade em criar condições para que crianças e jovens possam imaginar um outro mundo possível como saída para o brete do “não há alternativas” do neoliberalismo.

O modelo gerencialista e tecnocrático da escola neoliberal muda a relação com o saber (CHARLOT, 2013), tornando-o mais e mais instrumental, e a função docente, transformando o professor em um técnico, operador do ensino. A relação do saber, antes, deveria passar pelo acesso às formas simbólicas, aos saberes fundamentais, aos saberes socialmente construídos e às grandes obras primas da humanidade, ao invés de reduzir-se apenas a uma busca por habilidades e competências operacionais. Esse sentido instrumental, reduzido, individualista e utilitarista do saber, orientado apenas à empregabilidade e à preparação para competir em um mercado global em permanente mudança e eivado de incertezas, muda a relação dos agentes escolares para com o saber, reduzindo-a e empobrecendo-a demasiadamente.

O saber escolar, como bem o indicara Charlot, implica sempre uma determinada relação com o saber. Por essa razão, saber é algo “produzido pelo sujeito confrontado a outros sujeitos” e a “a ideia de saber implica a de sujeito, de atividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo [...], de relação desse sujeito com os outros [...]” (CHARLOT, 2013, p. 61 – grifos nossos). Trata-se da relação de um sujeito que, mediante o saber escolar, precisa dar sentido à experiência e aprender para se constituir como humano e para compreender articuladamente o mundo em que vive. Por essa razão, a relação com o saber é uma relação consigo e com o outro, mas também com o mundo e com a humanidade. Jamais poderá ser concebida aos moldes do capital humano onde cada indivíduo levaria adiante um cálculo privado de custo-benefício visando a constituição do seu capital pessoal, de modo a fazer com que o investimento e o esforço empregado na educação pessoal resultem, como recompensa, simplesmente em melhor remuneração individual futura.

O modelo de self-service resultante da escola neoliberal dissocia ensino e aprendizagem reduzindo esta aos interesses individualizados dos alunos já orientados pelas certezas, competências e habilidades predefinidas pela sociabilidade de mercado. A esse modelo pode-se contrapor a concepção de Biesta de que, mesmo o engajamento dos educandos em formas bem-organizadas de aprendizagem, é algo aberto e sempre implica riscos. Trata-se do risco de não aprender o que se queria aprender, de aprender coisas que nem se teria imaginado aprender ou, ainda, de aprender coisas que nem se teria imaginado desejar aprender (BIESTA, 2013, p. 45). Se a ação pedagógica é uma atividade em que ato e produto não se separam e é impossível de ser de todo controlada, a possibilidade de resultar em algo outro, aquém ou além do esperado, é uma constante. Na linguagem aristotélica, ela seria caracterizada fundamentalmente como práxis, distinta da esfera da produção (a poiesis) em que ato e produto se separam. Ocorre que, diferentemente, a escola neoliberal oscila entre duas lógicas estruturantes que pertencem à mesma constelação de sentido, a saber, a produção e o consumo. Nesse sentido, como refere Laval, “de um lado, a escola deveria se parecer a uma empresa: o imaginário é então aquele da produção, do trabalho, do rendimento [...]. Mas, de outro, ela deveria ser considera como um ‘centro comercial’. O imaginário é aqui o do consumo com seus valores de escolha e de satisfação hedonista” (LAVAL, 2004, p. 309 – grifos do autor).

Todavia, essas transformações também têm seu preço e encetam contradições. Na visão de Laval, a principal das contradições reside no fato de que o gerencialismo “introduz uma linha hierárquica do tipo tayloriano em uma atividade profissional que não pode ser realizada sem autonomia, em uma profissão que exige uma ética profundamente interiorizada, incompatível com uma prescrição e um controle estreito da tarefa” (LAVAL, 2004, p. 304-5 – grifos do autor). O problema é que o ofício docente e a ação pedagógica, que lhe é própria, possui uma “convicção presa ao corpo” (LAVAL, 2004), que não se limita a um modelo de tarefa controlável e que não resulta em um produto previsível. O docente não se identifica com um colaborador, gerente ou mero técnico/operador de ensino. Não é um serviçal que deve estar disponível para atender prontamente aos interesses e necessidades de seu aluno-cliente, em um tipo de relação self-service em que seu papel é dar conta de uma “demanda” individual, oferecendo-lhe um “produto” separável de si, previamente elaborado e simplesmente adaptável a seus interesses. Essa mudança desestabiliza o ofício docente, a ação pedagógica e as referências profissionais próprias da docência e dos valores culturais intrínsecos a ela. O gerencialismo, observa Ball, tende a levar à destruição dos sistemas ético-profissionais escolares, por substituí-los por modelos de sistemas educacionais empresariais competitivos (BALL, 2005, p. 544). Por essa razão, enfraquecer e banalizar tal ofício implica paradoxalmente a perda da eficácia do sistema educativo e da própria ação pedagógica.

Entre os valores fundamentais do ofício docente está aquilo que Hannah Arendt (2000) chamara de “responsabilidade pelo mundo”, algo colocado ao adulto e ao docente de modo intransferível. Trata-se de apresentar o mundo aos novos, tarefa que implica ao mesmo tempo tanto a preservação ou continuidade do mundo (que é velho) quanto sua renovação. Arendt enfatizara que, enquanto relação entre adultos e crianças que é, a educação tem de ser “conservadora”. É precisamente em razão de que o mundo encontra-se permanentemente sujeito à novidade e à instabilidade, provocada pela ação dos recém-chegados, que os educadores precisam assumir responsabilidade pelo mundo (amor mundi), preservando-o. Tal responsabilidade significa contribuir para que as práticas sociais, instituições e sistemas sociais, legados a duras penas pelas gerações passadas, não sejam continuamente modificadas ou destruídas arbitrariamente pelos interesses privados e imediatos de algumas pessoas. Por outro lado, ela necessita garantir para o mundo o que é novo em cada ser recém-chegado a ele, justamente para poder renová-lo continuamente. Por essa razão, a tarefa de toda a educação é exigente e demanda uma temporalidade própria, pois consiste em “preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho” (ARENDT, 2007, p. 243). O contraponto a essa responsabilidade é o risco perigoso do aligeiramento, do presentismo e do espontaneísmo pedagógico, baseados na implementação da “utopia da criança que espontaneamente refaz os saberes do mundo” (LAVAL, 2004, p. 307) ou do cliente que supostamente sabe e define o que a escola deve lhe oferecer como quando vai a um supermercado.

O importante, como destaca Laval (2004), é que a adoção dos valores dogmáticos de competitividade e de mercado não são simplesmente aceitos pelos educadores que ainda possuem referências éticas e políticas da escola centrada na cultura e na dimensão emancipadora do conhecimento. Ocorre que, ressalta ainda ele, a ação educativa não pode estruturar-se apenas com base em “competências”, “técnicas”, “métodos”, pois esses só fazem sentido por referência a uma instituição que “suporta simbolicamente a troca” e que se coloque como “horizonte comum dos educadores e educandos”; a falta dessa dimensão resulta num “adestramento puro e simples, em uma relação de força brutal” (LAVAL, 2004, p. 312). O fato é que a escola atual é atravessada por contradições culturais que ressoam e geram múltiplas tensões sobre ela. Além disso, as estruturas de socialização que vigem na sociedade neoliberal não estão unificadas de forma a integrarem um todo homogêneo que possa impor uniformemente e ao mesmo tempo às pessoas as mesmas normas e os mesmos valores, ideais e motivos para viver (LAVAL, 2004, p. 292).

É, por conseguinte, difícil à sociedade de mercado controlar de todo, como almeja fazer, a formação de crianças e jovens em seu modo de ser, pensar e fazer. Por mais potente e sedutor que seja o imaginário neoliberal ele não consegue se impor de forma total sobre os indivíduos. Há muitas resistências e outras tantas possibilidades para recuperar o sentido originário da escola como instituição. Por essa razão, podemos, com base em Laval, indicar um conjunto de aspectos que permitem conceber a educação e a escola hoje para além da lógica reducionista e empobrecedora do neoliberalismo. Dentre eles, estão a “redefinição do corpus de saberes que compõem a ‘cultura comum’”, a “mudança das práticas pedagógicas no sentido de uma maior atividade intelectual dos alunos e de um acesso mais universal ao domínio da cultura escrita” e a “reafirmação e apoio às finalidades culturais, éticas e políticas da escola”, além do avanço em termos do “compartilhamento mundial dos bens comuns do conhecimento” (LAVAL, ٢٠١٩, p. ٣٥١-٢).

Por fim, há a questão, não menos importante, do cidadão investido pela escola republicana de uma responsabilidade coletiva e educado com base em valores comuns, que na escola neoliberal cede dando lugar ao cliente, na forma atomizada do homem empreendedor empresário de si mesmo. Buscar, no contexto neoliberal uma educação voltada para um ethos democrático demanda ao menos dois grandes desafios. Um deles é político, de maneira que os valores da cultura e a função social e pública da escola sejam assegurados, assim como o direito de todos e todas à educação de qualidade. Nesse sentido, o antigo ideal de toda educação republicana, de formar não apenas o trabalhador, mas sobretudo o ser humano e o cidadão, são mais vigentes do que nunca. O outro, é de ordem ética. Se o que marca a racionalidade do neoliberalismo e seu modelo de escola é o esforço em moldar toda a sociedade de acordo com a lógica reducionista do mercado e a homogeneização do discurso sobre o homem em torno dessa mesma lógica, há que se resgatar o lugar de formação do cidadão investido de uma responsabilidade coletiva, capaz de compartilhar valores comuns e de imaginar um outro mundo possível. Trata-se de postular uma alternativa à ética neoliberal e sua concepção de educação, mediante a formação de sujeitos capazes de questionarem permanentemente o instituído e, ao mesmo tempo, de fomentar valores universalmente desejáveis, como é o caso da democracia, da justiça social e da solidariedade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A colonização neoliberal no ensino vem ganhando espaço e, da mesma forma, os movimentos de resistência estão sempre presentes, de maneira que novas configurações sociais passam a interferir nos processos educativos. Partindo desta questão, o presente estudo sinalizou como os princípios neoliberais estão afetando a democracia, visto que o conhecimento com finalidades mercadológicas contribui para um percurso formativo focado no sucesso individual. Destaca-se, dessa forma, a relevância do espaço educacional como possibilidade de contribuir para a formação do pensamento crítico, a fim de reconstruir os espaços sociais que propiciem a efetiva democracia. Concordamos com Laval (2004) que uma nova política democrática vinculada à escola não pode limitar-se apenas às políticas de compensação em razão das brutais desigualdades e exclusões que marcam as sociedades neoliberais. Fundamental, nesse sentido, é buscar-se um princípio de igualdade em que a educação se constitua em um direito para todas as pessoas.

O neoliberalismo impacta fortemente os valores e princípios educacionais. Nessa direção, compreende-se que o espaço público como instituição capaz de assegurar a equidade necessita traçar estratégias para garantir os direcionamentos descritos nos documentos norteadores das políticas educacionais (BRASIL, 1988; BRASIL, 1996). Em outras palavras, somente há um “verdadeiro Estado Democrático de Direito se existir também uma correlata cultura de respeito à Constituição e, em especial, de respeito aos direitos e às garantias fundamentais” (CASARA, 2017, p. 62). Todavia, pode-se afirmar que apesar dos fins democráticos estabelecidos nos documentos basilares, esses direcionamentos não são suficientes para assegurar a igualdade pretendida. Quando os direcionamentos conduzem para uma civilização utilitarista, com estímulo ao empreendedorismo individual, em que a escolarização segue as influências das organizações empresariais, evidenciando os interesses capitalistas, torna-se necessário combater essas práticas e discursos, pois enfraquecem o sistema educativo.

Na conjuntura brasileira os argumentos neoliberais alicerçados em jargões como “inovação” e “mudança”, acabam por desvalorizar a educação formal, aproveitando para estabelecer a preponderância do privado sobre as instituições públicas, desrespeitando à Constituição, além dos preceitos humanos e democráticos. Nessa direção, observa-se nos debates políticos, bem como através dos direcionamentos em relação às políticas educacionais, que estas vem seguindo as concepções neoliberais quando se coloca em pauta que o acesso à educação deveria ser para uma determinada camada da população e quando a utilização do espaço público segue as regras do privado. Nesse sentido, concordamos ainda com Laval e seu argumento de haver a necessidade de reconstruir ou recuperar, no âmbito das representações sociais e dos programas políticos, o sentido da “educação como bem público e bem comum” (LAVAL, 2004, p. 321). Diante desse cenário, vale considerar que a escola ainda não é apenas “um campo de ruínas”, “corroída pelo egoísmo utilitarista”, mas “um campo de batalha” que exige articulação para encontrar formas alternativas ao neoliberalismo educacional (LAVAL, 2004).

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência:

Sidinei C. Sobrinho - Rua Morom, 2781, apt. 602, centro, Passo Fundo, RS, CEP 99010-035. sidineicsobrinho@gmail.com

Chaiane B. - Rua Lázaro Dante Rubbo, n. 454, bairro Copas Verdes, Erechim, RS, 99704-632. chaiane_bukowski@yahoo.com.br

Angelo Vitório Cenci. Rua Bento Gonçalves, 805/701, Passo Fundo, RS, 99010-010. angelo@upf.br


1 Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Graduado em Direito pela Faculdades Planalto; Professor de Educação Técnica e Tecnológica no Instituto Federal de Educação, ciência e Tecnologia Sulriograndense - IFSul campus Passo Fundo.

2 Mestre em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul; Graduada em Pedagogia pela
Faculdade Anglicana de Erechim.

3 Doutor e pós-doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

4 Nesse sentido, veja-se Elias (1994); Giddens (2002); Sennett (2009); Crouch (2004); Dardot; Laval (2016); Stanley (2019); Levitsky; Ziblatt (2018); Runciman (2018); Casara (2017), dentre outros.

5 Esse fenômeno levou Richard Sennett (2011) a falar, há mais de 20 anos, na “corrosão do caráter” no âmbito do capitalismo neoliberal.