https://doi.org/10.18593/r.v49.32918

A inclusão escolar de alunos com deficiência: um olhar em Paulo Freire e Carlos Skliar1

Inclusión escolar de estudiantes con discapacidad: una mirada a Paulo Freire y Carlos Skliar

School inclusion of students with disabilities: a look at Paulo Freire and Carlos Skliar

Sandra Aparecida de Bem Stefanes2

Fundação Catarinense de Educação Especial; Psicóloga.

https://orcid.org/0000-0002-2264-7695

Janine Moreira3

Fundação Catarinense de Educação Especial; Docente do curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação. https://orcid.org/0000-0001-8421-277X

Resumo: Neste artigo, compartilhamos um olhar sobre as contribuições de Paulo Freire e Carlos Skliar em relação à inclusão escolar de alunos com deficiência na escola. Seu objetivo é problematizar a inclusão escolar a partir do conceito de diálogo de Paulo Freire e de alteridade de Carlos Skliar. Consideramos que estes conceitos acarretam novas possibilidades e caminhos sobre questões de exclusão das diferenças e incentivam novos debates educacionais. A pesquisa foi bibliográfica, com uma abordagem qualitativa. Freire contribui com a educação inclusiva ao ressaltar a necessidade de agir sobre a realidade social com o objetivo de modificá-la, ação que é interação, colaboração a partir do diálogo. E a alteridade que Skliar nos apresenta acarreta questionamentos sobre quem é o “outro” a ser incluído, o que questiona o padrão de normalidade. Os desafios para a educação implicam em desenvolver revisões contínuas e profundas no empenho de se reconhecer a alteridade e promover o diálogo, na busca de não mais ser necessário buscar a inclusão, por não haver mais exclusões, não haver mais “o outro” a quem se deva incluir e por todos terem o direito de dizer a sua palavra em comunidade.

Palavras-chave: inclusão escolar; pessoa com deficiência; diálogo; alteridade.

Resumen: En este artículo, compartimos una mirada a las contribuciones de Paulo Freire y Carlos Skliar en relación a la inclusión escolar de estudiantes con discapacidad en la escuela. Su objetivo es problematizar la inclusión escolar a partir del concepto de diálogo de Paulo Freire y la alteridad de Carlos Skliar. Creemos que estos conceptos traen nuevas posibilidades y caminos en temas de exclusión de diferencias y fomentan nuevos debates educacionales. La investigación fue bibliográfica, con enfoque cualitativo. Freire contribuye a la educación inclusiva haciendo hincapié en la necesidad de actuar sobre la realidad social para cambiarla, una acción que es interacción, colaboración basada en el diálogo. Y la alteridad que nos presenta Skliar nos lleva a cuestionar quién es el “otro” a incluir, lo que cuestiona el estándar de normalidad. Los desafíos para la educación implican desarrollar revisiones continuas y profundas en el esfuerzo por reconocer la alteridad y promover el diálogo, en la búsqueda de que ya no sea necesario buscar la inclusión, porque no hay más exclusiones, ya no hay “el otro” para a quién debe incluirse y que todos tienen derecho a hablar en comunidad.

Palabras clave: inclusión escolar; persona discapacitada; diálogo; alteridad.

Abstract: In this article, we share a look at the contributions of Paulo Freire and Carlos Skliar in relation to the school inclusion of students with disabilities in school. Its objective is to problematize school inclusion based on Paulo Freire’s concept of dialogue and Carlos Skliar’s otherness. We believe that these concepts bring new possibilities and paths on issues of exclusion of differences and encourage new educational debates. The research was bibliographical, with a qualitative approach. Freire contributes to inclusive education by emphasizing the need to act on social reality in order to change it, an action that is interaction, collaboration based on dialogue. And the alterity that Skliar presents us with leads to questions about who is the “other” to be included, which questions the standard of normality. The challenges for education imply developing continuous and deep revisions in the effort to recognize otherness and promote dialogue, in the search of no longer being necessary to seek inclusion, because there are no more exclusions, there is no longer “the other” to whom it must be included and that everyone has the right to speak their word in community.

Keywords: school inclusion; disabled person; dialogue; alterity.

Recebido em 11 de julho de 2023

Aceito em 05 de junho de 2024

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, fruto de uma dissertação de mestrado em educação, refletimos sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência a partir dos conceitos de Diálogo de Paulo Freire e de Alteridade de Carlos Skliar. Algumas questões nos conduziram a essa reflexão: Existe a inclusão de alunos com deficiência nas escolas? Caso exista, como vem acontecendo? Quais os fatores que facilitam e dificultam o processo de inclusão? A partir delas, nos propusemos a buscar respostas para a seguinte questão: quais as implicações do conceito de “diálogo” e de “alteridade” para a inclusão escolar de alunos com deficiência?

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa. Foram consultadas obras dos respectivos autores, assim como obras sobre inclusão e, a partir delas, fomos respondendo à questão central apresentada. Assim, o objetivo central deste texto é problematizar a inclusão escolar a partir do conceito de diálogo de Paulo Freire e de alteridade de Carlos Skliar.

O processo educativo, segundo o educador brasileiro Paulo Freire (1979, 1987, 1996, 2001), se dá quando o ser humano tem a possibilidade de refletir sobre si próprio, situar-se em um determinado momento, diante de certa realidade e, na possibilidade de poder fazer uma autorreflexão, descobrir-se como um ser inacabado que está em uma constante busca de “ser mais”, sua condição ontológica, esse perene movimento de transcender-se. É importante destacar que a autorreflexão, para Freire, não é um ato isolado, que se faz na interioridade do ser. O ser humano é um ser de relação, por isso de diálogo, e refletir sobre si mesmo só é possível na reflexão sobre o mundo junto aos outros, em comunhão. Não existe o ser em si, isolado, e sim um ser eminentemente social, que se humaniza apenas junto a outros. Veremos que, ainda que Freire não tenha discutido a questão da deficiência, podemos pensá-la a partir de seu conceito de opressão.

Essa compreensão, na perspectiva da pessoa com deficiência, tem um sentido particularmente relevante na medida em que sua condição é cercada de muitos preconceitos por parte da sociedade dita normal, que se enxerga como não tendo incompletude em si mesma.

Quando falamos em educação, é muito importante pensar sobre a perspectiva a partir da qual se olha essa mesma educação. O olhar é uma atitude, um ponto de início, mostra a posição de quem olha, de que ângulo olha, de que distância está desse lugar e em que ambiente coloca ou encontra quem é olhado (Skliar, 2019). São estes olhares que encontram o “outro”, que constituem a alteridade, no olhar do fonoaudiólogo e educador argentino Carlos Skliar.

Muitos olhares de educadores e gestores da educação partem de uma posição privilegiada. Existem muitos esclarecimentos sobre como se constrói o olhar pedagógico, seu desenvolvimento e sua posição perante a desigualdade de saberes, de experiências e funções. Muito além da linguagem técnica e especializada, das fichas e históricos escolares, das avaliações e dos diagnósticos e do dia a dia escolar, percebe-se que algumas avaliações sobre quem pode ou não aprender, quem pode ou não ser incluído, quem pode ou não ter futuro, estão subordinadas às escolhas e posições dos olhares (Skliar, 2003b, 2019).

Este artigo está organizado em três partes. Na primeira, visitamos a proposta pedagógica de Paulo Freire, com foco no seu conceito de diálogo, que apresenta um enfoque estruturado em uma relação horizontalizada que perpassa a interação entre professores e alunos e a construção de conhecimentos. Em seguida, mostramos as reflexões de Carlos Skliar sobre a educação especial a partir do conceito de alteridade, discorrendo sobre concepções de normalidade e anormalidade. No terceiro tópico, refletimos sobre as implicações da inclusão escolar de pessoas com deficiência a partir do Diálogo de Paulo Freire e da Alteridade de Carlos Skliar.

2 PAULO FREIRE E A EDUCAÇÃO INCLUSIVA

O projeto educacional de Paulo Freire, com sua visão materialista histórico-dialética (opressor-oprimido) é o ponto central de sua obra, que objetiva promover uma compreensão do mundo de tal modo que a pessoa se reconheça como um ser histórico e, assim, reconheça sua possibilidade e seu compromisso de atuar nele. Em situações de opressão, esse reconhecimento implica em transcender as situações-limite impostas ao ser humano como barreiras à efetivação do seu “vir a ser mais”, à concretização de suas potencialidades, alterando, desse modo, a lógica opressora de uma classe hegemônica que impossibilita uma classe oprimida e majoritária de “ser mais”.

Com o surgimento da educação inclusiva, pautada inicialmente por um cunho paternalista que denomina os oprimidos como assistidos, percebe-se a correlação com os denominados “oprimidos” por Paulo Freire (2002) em Pedagogia do Oprimido. Os qualificativos “oprimidos” ou “marginalizados”, conforme pontua Freire, podem também designar os nomeados como pessoas com deficiência. Oprimidas, marginalizadas, pessoas com deficiências seriam a “patologia” da sociedade sadia, e devem adequar-se a ela para serem aceitas e oprimidas, porque com elas se estabelece uma relação de domínio, controle, ou seja, algo totalmente diferente da autonomia, da emancipação, que deveria ser a relação normal, ideal para quem se propõe a construir uma sociedade justa, igualitária.

Pensando sobre uma educação problematizadora, aquela que problematiza o mundo para possibilitar a ação humana em busca de sua transformação na direção de justiça social, Freire (1987) sugere aprofundar o significado do conceito de diálogo, um fenômeno humano que se utiliza da palavra para gerar comunicação entre as pessoas. E esse diálogo (palavra) tem elementos que o constituem em duas dimensões, a ação/reflexão, a qual é tida como a palavra verdadeira, que é a práxis e, como tal, seu objetivo é transformar o mundo.

Por esse motivo, o diálogo – esse pronunciar o mundo em comunhão com o outro para desvelar esse mundo, única forma de alcançar a consciência crítica, onde o sujeito se sabe histórico - não é possível entre aqueles que negam às pessoas o direito de dizer a palavra e os que se acham negados desse direito. É necessário, em primeiro lugar, que aqueles a quem é negado o direito essencial de dizer a palavra possam reconquistar esse direito e que essa ação desumanizante não se perpetue. Quando os seres humanos pronunciam o mundo, eles o transformam, e o diálogo se impõe como um caminho para que homens e mulheres tenham significado enquanto pessoas (Freire, 1987).

Ao nos apropriarmos dos conceitos de Freire, relacionando-os à educação inclusiva, percebemos que precisamos ser mais denunciadores e anunciadores. Denunciadores de uma condição injusta, a da exclusão. Anunciadores de uma proposta de educação voltada para a pessoa com deficiência inserida em uma sociedade em igualdade de condições, validada por uma reflexão sobre a visão de ser humano em seu contexto de vida concreto, e não como uma forma excludente de educar. Sem essa reflexão sobre o ser humano, corre-se o risco de se criar uma educação desumanizante e denunciante que reduziria a pessoa com deficiência à condição de objeto. Para uma educação eficiente e válida em um projeto libertador, Freire (2016, p. 67) sugere que “a educação precisa levar em conta, ao mesmo tempo, a vocação ontológica do homem – vocação a ser sujeito – e as condições em que ele vive: em determinado local, em determinado momento, em determinado contexto”.

Para que a educação libertadora proposta por Freire seja eficaz e inclusiva, é necessário que auxilie o ser humano a reconhecer-se como ser histórico e a tornar-se efetivamente sujeito de sua história, individual e coletiva. É apenas com a reflexão sobre sua situação, seu ambiente concreto, que o ser humano se torna sujeito. Quanto mais reflete sobre a realidade, mais ele surgirá, de todo consciente, engajado, pronto a interferir na sua própria realidade, com o objetivo de modificá-la. Essa é uma educação cujo objetivo é propiciar a tomada de consciência e a atitude crítica, para que o sujeito possa escolher e decidir, promovendo a emancipação do ser humano, ao invés de subjugá-lo, domesticá-lo e adequá-lo, como acontece com a educação bancária, que tem como propósito ajustar o indivíduo à sociedade, promovendo sua heteronomia (Freire, 1979, 1987, 1992, 1996, 2001, 2002, 2016).

Mas se o diálogo implica um “outro” que não sou eu, de que forma vejo esse outro? Vamos agora conhecer as reflexões sobre a educação das pessoas com deficiência vistas como “diferentes”, o outro da mesmice e mesmidade, a partir da noção de alteridade de Carlos Skliar.

3 CARLOS SKLIAR E O OLHAR DO OUTRO

Todo o olhar de normalidade está imbuído de poder, normalidade que é uma construção histórica e social. Skliar (2019, p. 68) observa que a história da educação é a história da normalidade/anormalidade, e a história moral do correto e do incorreto, valores estes construídos durante a história da humanidade, com seus termos e instituições. De um lado, o caminho do “tortuoso ao monstruoso, do monstruoso à deficiência, da deficiência à diversidade” e, de outro lado, o caminho do isolamento à equiparação desigual, da equiparação desigual à segregação, “da segregação à exclusão, da exclusão à integração, da integração à inclusão, etc.”. No geral, a história da educação mostra que existe um caminho entre a omissão infindável da luta em meio a duas estruturas incompatíveis: a detestável impunidade do admirável caminho da normalidade ou a desprezível conveniência da anormalidade. No encontro da anormalidade com a normalidade, o caminho está carregado de diagnósticos e teorias educacionais com o objetivo de redirecionar os indesejados e “diferentes” ao seu devido lugar.

Nossa sociedade moderna ainda traz concepções bem duvidosas sobre normalidade e anormalidade, e todas as pessoas que não se enquadram no perfil ideal de normalidade, automaticamente irão ser encaminhadas para a classificação do que é considerado fora dos padrões aceitáveis da sociedade. Isso vem ao encontro da visão de alteridade em Skliar, pois como seres humanos, nós estamos continuamente em um movimento de transformação, isto é, estamos sendo transformados o tempo todo pelos discursos ou conceitos dados pelos outros, e também estamos transformando o outro, sem contestar quem é esse “outro”. Os outros são sempre apontados por nomes como índios, pessoas com deficiência, negros etc., para serem expostos como diferentes e serem incluídos na classe da diversidade. Para Skliar (2006), a despeito de, teoricamente, aceitarmos o outro na nossa sociedade, bem como pleitearmos para que estes sejam cidadãos com deveres e direitos, eles se tornam uma invenção e uma produção da mesmice.

Mas o que Skliar quer dizer com a invenção e a produção da mesmice? Na contemporaneidade, as nomenclaturas construídas pela sociedade dominante têm o objetivo de efetuar a normalização e o controle do olhar e determinar quem são e como são “os outros”, distinguindo o território das diferenças (alteridade). Contudo, como afirma Skliar (2003a), o problema é que o outro recebeu várias denominações durante décadas desde a antiguidade, tendo novas imagens e contornos sem muitas indagações sobre sua fiel diferença. Nós inventamos os outros, pois precisamos deles como um cofre guardando todos os males da humanidade, como um lembrete dos “fracassos sociais”. Desse modo, podemos nos livrar de nossos fracassos, transferindo-os para “os outros”. Como exemplo, podemos dizer que o racismo é do negro, o fracasso escolar é do aluno, a diferença é do diferente, a deficiência é do deficiente.

Com as reformas educacionais na modernidade, percebe-se que estamos diante de um novo sujeito chamado “diversidade”. Contudo, Skliar (2003a) reconhece esse sujeito como um novo sujeito da mesmice. Ao explicar essa observação, o autor comenta que suas identidades se proliferam a partir de conexões já existentes, nas quais se ressaltam os velhos nomes para “denominar os diferentes” sobre “outros nomes” que já foram utilizados. Talvez seja possível dizer que “o outro” não é nem uma ingênua identidade, nem uma simples diferença. A pedagogia do outro tem o objetivo de “reconsertar” o outro, como uma mesmice que

[...] tenta alcançar o outro, capturar o outro, domesticar o outro, dar-lhe voz para que diga sempre o mesmo, exigir-lhe sua inclusão, negar a própria produção de sua exclusão, nomeá-lo, confeccioná-lo, dar-lhe um currículo colorido, oferecer-lhe um lugar vago, escolarizá-lo cada vez mais, para que, cada vez mais, possa parecer-se com o mesmo, ser o mesmo (Skliar, 2003a, p. 46).

Skliar critica essa atitude pedagógica que tem como objetivo divulgar sua generosidade e também dissimular sua violência de normalização, porque existem as imposições das leis de inclusão, o que a transforma numa pedagogia que reúne, simultaneamente, a aceitação e a hostilidade em relação ao outro. É uma pedagogia que não cuida da identidade do outro, embora demonstre que tem tolerância com relação à presença do “outro” no território da educação e da sociedade dominante. O outro nunca foi o outro, ele é somente uma invenção da mesmice do “outro”, há muito tempo excluído.

Para compreender como Skliar pensa a respeito da inclusão, precisamos entender que, para o autor, a alteridade é uma invenção que foi fabricada, produzida e legitimada ao ser representada institucionalmente através de diagnósticos e comportamentos já determinados como deficientes, anormais ou uma alteridade anormal.

E essa alteridade anormal, esse outro com um corpo, mobilidade, pensamentos e comportamentos diferentes, atenção, memória e percepção com um modo de aprender diferenciado é que representa nosso maior medo, que é o de não sermos completos, de sermos incoerentes, incompatíveis; é esse que nos faz não sabermos lidar com nossas imperfeições e desordens, tendo a possibilidade de sermos taxados de desqualificados e horríveis. Com isso, esse outro foi-se tornando alvo de uma sórdida e benevolente curiosidade, de uma doentia correção e normalização.

Parece que todos precisam ser iguais; esse movimento de tentar colocar o outro deficiente dentro de uma anormalidade inventada se tornou o paraíso da normalidade. Ser normal é ser alguém igual aos outros. E, quanto mais os “normais” olham os diferentes, mais isso se torna cruel, até deixá-los invisíveis, pois esse olhar traz consigo conceitos e pré-conceitos já estabelecidos para o que é normal ou anormal. No movimento da normalidade se acumulam prescrições médicas e anamneses, pois fazem parte de um manual de normalidade com classificações e avaliações que determinam quem é normal e quem não é. Existe um excesso de instituições, congressos e especialistas que dizem quem está dentro ou fora da norma.

Nas últimas décadas, as pessoas da Educação Especial foram vistas e produzidas pelos especialistas como objetos de estudo com o objetivo de poder controlá-las e torná-las “normais”. Essa práxis, constantemente medicalizada e dirigida para o cuidado e a terapêutica dos corpos e mentes ineficientes, teve como finalidade institucional demarcar quem é incluído ou excluído, educável ou não, quem é normal ou anormal (Skliar, 1997).

O outro deficiente foi literalmente inventado por uma alteridade nociva, da negação de seu corpo e condicionamento de sua mente: então inventou-se a nociva construção da normalidade. Mesmo vivendo em uma sociedade de normas, e pouco ou nada podemos fazer sobre isso, precisamos perceber que as normas são frutos de uma extensa história de invenções, produções e traduções do outro deficiente, do outro anormal. Uma extensa história que, na maioria das vezes, omitimos ou desconhecemos, como se fosse uma história fictícia do outro. Quando determinamos o que é um corpo normal, estamos excluindo tantos outros corpos que estão fora da norma. Isso nos leva à normalidade e ao corpo normal e este é o problema que alcança a alteridade. (Skliar, 1999, 2003a).

4 AS IMPLICAÇÕES DA INCLUSÃO ESCOLAR DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA A PARTIR DO DIÁLOGO E DA ALTERIDADE

A inclusão do aluno com deficiência criou uma nova realidade de formação pedagógica e subsequente prática. A discussão sobre a inclusão e suas implicações na prática pedagógica tornou-se fato corriqueiro no cotidiano da escola, visto que a inclusão modificou as interrelações dentro da escola e na sociedade como um todo, provocando inquietação diante dessa nova forma de interação social. Os educandos estão na sala de aula, mas sem participação e sem aprender, o que torna questionável a prática do processo de inclusão.

Segundo Mantoan (2003), a inclusão de todos no ensino regular implica em uma mudança de perspectiva educacional.

[...] é produto de uma educação plural, democrática e transgressora. Ela provoca uma crise escolar, ou melhor, uma crise de identidade institucional, que por sua vez, abala a identidade dos professores e faz com que seja ressignificada a identidade do aluno. O aluno da escola inclusiva é outro sujeito, que não tem uma identidade fixada em modelos ideais, permanentes, essenciais (Mantoan, 2003, p. 32).

Na mesma direção, Skliar nos apresenta uma visão socioantropológica e histórico-cultural da ação de educar na perspectiva da Educação Inclusiva. Ele se afasta do modelo clínico-terapêutico, se aproximando da perspectiva histórico-cultural no que se refere à sua insatisfação frente à falta de acesso das pessoas com deficiência, privadas culturalmente de uma sociedade verdadeiramente inclusiva. Para o autor, a verdadeira inclusão é alicerçada numa relação de escuta e de pequenos gestos com o “outro”.

E quem é esse outro, que tem como princípio se relacionar com seus outros? No entendimento de Skliar (2015, p. 27), reconhecer o outro implica:

Olhar sem julgamento, nem condenação prévia, a olhar para a possibilidade de outras existências diferentes da nossa, a fazer uma saudação disponível, a dar as boas-vindas, a perguntar, a dar vazão, a permitir, a possibilitar, a deixar fazer, a dar o eu fazer, a sugerir, a conversar etc.

Precisamos iniciar o “movimento de inclusão” com gestos mínimos e, como fala Skliar (2015), de “gestualidade mínima, sem estridências”, pois somente assim teremos a capacidade de enxergar o outro sem procurar fixá-lo em uma mesmidade4 que o valida para a alteridade (como significado de produção do outro como “diferente”), sem ansiar falar pelo outro, e sem ouvi-lo de verdade; sempre em busca do outro nos tomando como referência de normalidade. Para o autor, é possível encontrar professores e professoras preparados/as para acolher, ter uma escuta pedagógica, o que vem ao encontro do diálogo da teoria de Paulo Freire.

Paulo Freire esclareceu a importância da educação no processo de transformação da sociedade e dos indivíduos. Uma educação diferenciada, que liberta e não mais oprime, pois desenvolve a consciência crítica das pessoas, visando proporcionar autorreflexão e reflexão a respeito da sua real condição no meio em que vivem, e que é possível transformar essa realidade com base em uma educação que não aprisiona, mas liberta.

Sendo assim, quando a escola se torna um meio de cultivo de debates, discussões e diálogos, é possível conseguir o entendimento sobre a realidade e, portanto, promover transformações. A sociedade está continuamente em processo de transformação, e conforme as novas questões vão surgindo, afetam a sociedade como um todo, como exemplo tem-se a educação inclusiva. Freire (2016) assegura que o ser humano é social e somente através do diálogo ele pode perceber-se como elemento complementar do processo social, como uma pessoa integrante do mundo, cujas necessidades também precisam ser consideradas e respeitadas. A educação libertadora é possibilitadora desse situar-se no mundo com os outros, em um processo libertador a partir da dialogicidade.

Nesse sentido, o entendimento da educação não se atém ao contexto escolar, mas torna-se uma prática relevante em todo o contexto de constituição do sujeito, o qual não é somente formado, mas igualmente forma sua realidade. Na perspectiva de Freire, a educação comprometida com a construção de um mundo sem opressões precisa, a partir da problematização da realidade, engajar-se na luta contra as desigualdades sociais. Nesse sentido, incluir sugere acabar com as desigualdades e, numa sociedade ainda cultivada pela educação bancária – sem diálogo, opressora, autoritária, mantenedora do status quo -, a desigualdade só aumenta. Como a escola tende a ser o espelho da sociedade, é uma reformadora e formadora de novas desigualdades. Sendo assim, o entendimento de que a educação é um meio de transformação social implica que as pessoas não são somente depósitos a serem abarrotados por conteúdos, como o autor caracteriza a educação bancária, mas pessoas que constroem sua própria história e, como consequência, são capazes de discutir seu papel na sociedade, sendo críticas.

Por sua vez, Skliar critica a construção do “outro” baseado numa sociedade excludente e desigual, e reitera que a alteridade deficiente5 é esse “outro” que nos é exibido, escondido na deficiência que classifica, separa e o coloca em destaque diante dos outros (dos mesmos), como se fosse um padrão quase nocivo de fazê-lo encaixar-se com as outras pessoas vistas como “normais”. Skliar (2003b, p. 39) explicita que “não temos, nunca, compreendido o outro. O temos, sim, massacrado, assimilado, ignorado, excluído e incluído”. As pessoas com deficiência são vistas como um problema porque não as enxergamos, permanecemos obcecados em normalizar tudo e todos, e assim acabamos esquecendo de considerar a inteireza do outro, suas habilidades e suas individualidades.

Skliar (2006, p. 26) lembra que estamos a “construir uma metástase e não uma metamorfose educativa”. A inclusão, atualmente, é um expediente que dissimula as diferenças, pelo qual toleramos o outro, sem nem conhecermos quem é esse outro que está diariamente conosco, pois temos a impressão de que somente importa que ele estude e se comporte como os outros em sala de aula. Não conhecemos nada sobre esse “outro”, não o escutamos, não sabemos das suas vontades, aspirações, sonhos, simplesmente o colocamos em uma sala de aula e o observamos e quando achamos que o vemos, é para enquadrá-lo nas classificações normativas. Então “já sabemos tudo sobre ele”, o enquadramos, homogeneizamos e esperamos que aprenda, sem lhe dar chance de refletir e estabelecer uma conexão com sua aprendizagem.

Com base na construção da alteridade, nos espaços em que colocamos o outro, principalmente no escolar, sabemos que dividir experiências é decisivo no processo da aprendizagem, essas experiências em grupo colaboram para um aprendizado valioso e expressivo. Mas, se a pessoa não for notada como tal por seus colegas ou educadores, ela significará tão-somente um elemento na sala, uma coisa, alguma coisa inerte que não compartilha trocas, e deste modo, não acrescenta conhecimentos. E se ela não compartilha trocas, nós falamos por ela e não mudamos ou questionamos nosso conhecimento, forçamos para que ela se “inclua” no nosso “mundo perfeito e normal”.

Por esse motivo, é imprescindível ter possibilidades pedagógicas que possam perceber e acolher os educandos, compreendendo a particularidade de cada um, mudando esse olhar rotulador para esse outro ainda desconhecido e, assim, nos desvencilharmos da normalidade e da mesmice dos espaços escolares, para a construção da “verdadeira” educação inclusiva.

Algo curioso é o que se tem chamado de “politicamente correto”; no contexto da deficiência, esta noção cria mais exclusões quando você não pode chamar de “deficiente” esse outro porque parece que você o está diminuindo como pessoa e quisesse tirar o que ele tem de pior (a deficiência). Já utilizamos todos os tipos de palavras, como deficientes, portadores de necessidades educativas especiais, pessoas com necessidades especiais, diferentes, dentre outras. Com isso, reverberamos e tornamos mais bonitas e aceitáveis a palavra da moda para nomear as pessoas com deficiência, e assim “o outro fica sendo a imagem de um outro somente da manipulação numérica, um outro mensurável, um outro obscenamente quantificável, sem rosto, sem língua, sem corpo ou mesmo com um rosto, uma língua e um corpo devidamente medidos” (Skliar, 2003a, p. 75). Somente nos importa nominar o outro e classificá-lo, sem nos lembrar de olhá-lo profundamente, com suas limitações e como ser humano.

Assim, Skliar (2003a) critica os ambientes acadêmicos, o que nos faz pensar que na formação do professor existe mais persuasão do que conversa. O autor incentiva os professores ao trabalho fundamentado na conversa/diálogo, pois incluir conecta-se às escutas e diálogos que realizamos, como diz nesta entrevista: “Pensar em uma formação de um professor que escute, um professor escutador... É uma ideia muito criticada, mas é escutar para conversar, não é escutar apenas passivamente. Não existe outra ação na educação senão escutar primeiro” (Sampaio; Esteban, 2012, p. 324).

Contudo, na formação dos educadores existiu e ainda existe habilitação para atuar e falar, não se promove a escuta para saber o que o educando traz e o que diz, portanto, não existe uma formação para a escuta. Skliar (2003a) explica que pequenos gestos são indispensáveis e inesquecíveis nos processos de ensino e de aprendizagem, mais do que grandes demonstrações. Sendo assim, o professor que ouve, que toca, que dá apoio tem muito mais comprometimento com o outro, podendo surgir efeitos maiores e mais fecundos, pois são esses professores que causam marcas expressivas na aprendizagem.

Freire (2016, p. 77) diz que não tem “como se pensar em dialogação com a estrutura do grande domínio, com o tipo de economia que o caracteriza, marcadamente autárquico”. Isto quer dizer que o diálogo não será a forma “natural” de uma estrutura opressiva, no entanto, será uma possibilidade mesmo nessa estrutura, significando uma contra hegemonia. O fator decisivo que causa a ineficácia do sistema educacional inclusivo está intimamente ligado a uma sociedade normalizadora opressora, o que também ocorre nas atitudes de professores e gestores em educação. O que implica em uma falta de “dialogação” entre as diferentes pessoas que estão fazendo parte do cotidiano escolar.

Escutamos, exaustivamente a fala de que é imprescindível aceitar o outro, incluir o outro diferente, contudo, de que maneira ofertamos possibilidades legítimas para a inclusão desse outro nos ambientes escolares? Para que ocorra, de fato, a autonomia, a identidade e a individualidade desse outro, na inclusão desse outro que frequenta a escola e não para a mesmidade e a normalidade?

O outro já foi suficientemente massacrado. Ignorado. Silenciado. Assimilado. Industrializado. Globalizado. Cibernetizado. Protegido. Envolto. Excluído. Expulso. Incluído. Integrado. E novamente assassinado. Violentado. Obscurecido. Branqueado. Anormalizado. Excessivamente normalizado. E voltou a estar fora e a estar dentro. A viver em uma porta giratória. O outro já foi observado e nomeado o bastante como para que possamos ser tão impunes ao mencioná-lo e observá-lo novamente. O outro já foi medido demais como para que tornemos a calibrá-lo em um laboratório desapaixonado e sepulcral (Skliar, 2003a, p. 29).

Na verdade, como assegura Skliar (2003a, p. 30), o egotismo das pessoas transformou todos iguais pela mesmidade e normalidade. É chegada a hora de buscarmos um novo conhecimento educativo superior às leis, decretos e terminologias (entendendo que as leis também se baseiam em certos conhecimentos reconhecidos, portanto, esses conhecimentos devem ser questionados). Já passou do tempo de olharmos o outro baseado no eu, centrado no eu e na hospitalidade da escola, visto que “a mesmidade da escola proíbe a diferença do outro”.

A visão que implica o ouvir e o dialogar aproxima Skliar do pensamento Freireano, pois a influência mútua com diferentes e/ou diversas maneiras de pensar e agir permite a reflexão, já que o ouvir nos possibilita compreender o lugar do outro, baseado em seu contexto e, com isso, dialogar com as diferentes experiências, portanto, construir de modo dialético um novo e rico conhecimento.

Skliar (2015) destaca três imagens de inclusão enquanto abertura/disposição política: a imagem da inclusão “de portas abertas”, “de portas giratórias” e a “de portas com detectores de metais”. Essas portas se destinam a três experiências distintas de inclusão. As “portas abertas” dizem respeito às instituições que prontamente abrem suas portas a todos, aquelas que deixam a pessoa entrar com facilidade, porém, ao mesmo tempo, também determinam sob que condições essa inclusão deve acontecer. As “portas giratórias” se referem a uma escola que aceita a entrada do aluno, porém não trabalha com esse aluno, pois dão a ilusão que incluem e acabam por excluí-lo do processo da aprendizagem. E as de “portas detectores de metais” são as escolas que, antes de admitirem a entrada do aluno, precisam de “diagnósticos”, isto é, requerem laudos para que esse aluno possa entrar na escola.

Assim como Skliar (2015, p. 26), podemos assegurar que a inclusão pode se tornar uma política baseada na estigmatização “dos diferentes”; e se, ao invés de boas-vindas, acolhimento, hospitalidade, disponibilidade e responsabilidade existisse um reposicionamento da norma escolar, como se ao falarmos das diferenças de corpo, todos os corpos formassem parte dela; ao falarmos das diferenças de aprendizagem, todos os modos de aprender coubessem nela?

A partir de Skliar e Freire, pensamos que o educador precisa desempenhar sua função de educar e que, ao ensinar, se mostre sem preconceitos e sem estabelecer um padrão para seus alunos, entendendo que cada um tem suas particularidades, já que os educandos são diferentes e serão sempre diferentes, assim como os educadores também o são.

Podemos dizer que, embora não fale abertamente da educação inclusiva, a teoria de Paulo Freire aborda com profundo conhecimento os aspectos pertinentes à inclusão escolar ao conceituar o direito a uma educação onde a conscientização, a autonomia, a liberdade, o diálogo e a igualdade de direitos permaneçam presentes em todos os pontos da instituição educacional, porque compõem-se como direitos de todos. Para que isso se torne realidade, é indispensável acabar com os liames da exclusão, apesar de ela ser ainda muito frequente no contexto escolar, justamente porque vivemos em uma sociedade excludente. É necessário romper com a previsibilidade do completo e acabado na educação, para que seja possível construir uma nova visão de mundo perante as necessidades que surgem no contexto social.

A obra Pedagogia do Oprimido possibilita um diálogo direto com os alunos da educação inclusiva já que, em sala de aula, se acham excluídos. A escola pode proporcionar uma educação libertadora ou opressora. Ela será libertadora quando possibilitar a todos as possibilidades de “ser mais”, o que implica o trabalho de conscientização (a passagem da consciência ingênua para a consciência crítica), que implica no desenvolvimento da ação de pensar, de refletir o seu lugar no mundo e com o mundo como seres históricos. O autor não fala de inclusão de corpos deficientes, mas certamente fala de inclusão de corpos excluídos econômica e socialmente. Isto implica em responsabilidades múltiplas: de políticas públicas que moldam a estrutura social, de valores, de ações, tanto na escola, como na sociedade em geral. É nesta complexidade que se situa a responsabilidade de professores e gestores educacionais.

Para Skliar, não existe a inclusão escolar quando se mantém a atual estrutura da educação, visto que não se trata de incluir um indivíduo nessa estrutura, mas de mudar a estrutura – o que também é a perspectiva de Freire -, que não é inclusiva porque continua vendo o deficiente como faltando algo em relação ao normal. Não é na escola que se percebe a singularidade, a alteridade, a diferença, a diversidade e a variedade das aprendizagens, a necessidade de uma relação cuidada pelo “entre nós”, a hospitalidade e a hostilidade, o próprio lugar onde acontece isso que nomeamos de “saber” e de “experiência educativa”?

Nesse sentido, quando se pensa em educação inclusiva, o diálogo se impõe como caminho pelo qual homens e mulheres ganham significação como seres humanos. E aqui Freire e Skliar se aproximam mais uma vez, por entenderem que o homem é um ser de relação, e refletir sobre si mesmo só é possível na reflexão sobre o mundo junto aos outros.

Skliar salienta que é necessário que se mude a visão sobre a alteridade deficiente, que foi construída social e culturalmente durante décadas de descaso com as pessoas com deficiência. Essa nova visão precisa anular este círculo vicioso de pensar e sentir o outro sob a forma de um outro tão-somente perpetuado a uma debilidade distintiva e uma inferioridade natural, e para que se torne possível eliminar, principalmente, a nossa arrogância em pensar e sentir que somos os libertadores, os salvadores, os incluídos, os bons e os normais ao usarmos o outro como um reflexo negativo de nós mesmos, dos nossos fracassos e da nossa incapacidade de lidar com as diferenças, como se fôssemos seres perfeitos. Sobre a arrogância de “libertar o outro”, em uma ação messiânica, Freire lembra que, como sujeitos históricos no mundo com outros, ninguém liberta ninguém, mas também ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam na coletividade, mediatizadas pelo mundo. As pessoas se libertam no diálogo (pronunciando o mundo com outros). E, para isto ser possível, elas precisam legitimar esses outros, o outro com quem se dialoga.

Na “verdadeira” inclusão, precisamos desconstruir a ideia pré-determinada e precipitada sobre o outro, essa ideia absurda de que sabemos tudo sobre ele, esses dispositivos lógicos e técnicos que descrevem e rotulam o outro como anormal, para Skliar. Precisamos, para Freire, verdadeiramente ouvir o outro com quem eu divido o mundo, e nunca posso dizer a palavra do outro, preciso sempre ouvir dele a sua palavra.

Pode-se pensar a contribuição de Paulo Freire para a educação inclusiva ao destacar que a construção do conhecimento não acontece através de uma relação autoritária e verticalizada. Quando eu penso numa real inclusão escolar das pessoas com deficiência, essa é baseada na autonomia dos educandos e na valorização dos saberes adquiridos por ele na realidade social em que vivem. Dessa maneira, a escola promoverá a real inclusão de todos por meio de um processo de humanização dos alunos e do mundo, criando as condições necessárias para que os educandos, com ou sem deficiência, conquistem a posição de sujeitos frente ao conhecimento e à mudança social.

Qual a consequência de uma educação a partir do diálogo e da alteridade? Como consequência de uma educação a partir do diálogo, precisamos ter em mente que todos estão sempre em processo de aprendizagem, e isso legitima uma situação de convivência igualitária e amorosa – amorosidade como reconhecimento de que todos podem dizer a sua palavra -, numa construção conjunta do conhecimento, o que contraria completamente a lógica excludente de qualquer relação opressor-oprimido. É no diálogo que o conhecimento se constrói.

É necessário que aqueles a quem é negado o direito essencial de dizer a palavra possam reconquistar esse direito e que essa ação desumanizante não se perpetue. Se não existe diálogo na educação, precisamos refletir sobre a escuta das diferenças. Skliar nos convida a descentralizar nossas experiências do ouvido, investir no olhar, no estar presente e aberto. Sugere que abandonemos nossos diagramas cognitivos e explicativos sobre os outros considerados diferentes, assim o ato de educar seria uma forma muito especial de diálogo: a conversação, pela qual fazemos e pensamos coisas juntos, nos tornamos outros de nós mesmos, nos inventamos e nos reinventamos em uma relação de conhecimento, de afeto, de saber e de amizade.

Mas, se o diálogo implica um “outro” que não sou eu, de que forma vejo esse outro (alteridade)? Skliar pontua que não existe algo que possa deixar de ser diferença, algo que possa ser o oposto das diferenças, visto que as diferenças podem ser melhor entendidas como experiências de alteridade. Assim, a questão é entender como as diferenças nos formam como seres humanos, como somos feitos de diferenças. Com essa compreensão já é possível entender que a forma como lidamos com as diferenças se constrói nas interações sociais vivenciadas por nós, as quais podem ser conservadas ou alteradas durante a vida, mas continuamente implicadas pelas relações sociais que temos. Freire defende que o diálogo implica na “fé nos homens”, na certeza que tenho que todas as pessoas têm algo a dizer desde o lugar em que se situam no mundo, e que todas são imbuídas de transcendência, de “ser mais”, sua vocação ontológica, impedida – mas nunca anulada – pela sociedade opressora, desigual, que situa categorias de pessoas em lugares sociais diferentes.

Nesse sentido, a partir de Freire e Skliar podemos pensar que a alteridade é mais do que o entendimento unilateral do outro, de suas iniciativas e vontades. A alteridade deriva da relação de reciprocidade entre as pessoas, uma relação em que um e outro experimentam os desafios comuns do mesmo contexto em que vivem. E, por meio do diálogo, que é sempre colaborativo, as pessoas vão se formando nas suas particularidades pessoais e suas identidades coletivas.

Para Skliar, a despeito de, teoricamente, aceitarmos o outro na nossa sociedade, determinamos quem são e como são “os outros”, distinguindo o território das diferenças. Então, unindo os dois autores, podemos nos perguntar: se você se distancia desse outro deficiente, como vai dialogar com ele e conhecê-lo? Se você o coloca no patamar das pessoas inferiores e que não têm fala no mundo normalizado e sem diferenças, como pode ter uma educação libertadora, se você o aprisiona em um rótulo ou olhar normalizador e o mantém aprisionado nesse papel?

Poderíamos fazer um exercício reflexivo: o que é ser deficiente se todos formos deficientes? No entanto, por que pensar que somos todos deficientes? Podemos mudar a perspectiva desse entendimento ao pensar que somos todos capazes e eficientes? Se pensarmos o eu, o outro, a diferença, a alteridade, o diálogo, as pessoas fora do modelo de corpo ou mente normais, fora da noção de falta, fora das compulsões de julgar, se estivermos abertos a encontros incondicionais com o outro, podemos reverter a perspectiva da condição humana de deficiente para eficiente/suficiente.

A educação inclusiva é baseada no princípio da valorização da diferença, fundamentada em um processo de ensino e de aprendizagem na igualdade de oportunidades, procurando promover o desenvolvimento cognitivo, segundo um processo educativo caracterizado pela interação social e cultural entre todos os alunos. Todavia, o que acontece no cotidiano escolar é a desvalia do educando com deficiência, que dá a entender que aceita “seu lugar” de inferioridade ou de diferente, que concorda com a segregação nas escolas de educação especial e ou a nova exclusão na escola regular, hoje nomeada como inclusiva.

Como é possível uma educação ser inclusiva se eu aponto uma pessoa superficialmente como uma figura nebulosa ou quando afirmo que a incluo, não como pessoa, não dentro de uma conversa, não em uma ação educativa, como uma pessoa inerte, acompanhada de um direito jurídico mal formulado e com uma distância discrepante entre a realidade e um discurso forjado de educação inclusiva? Assim, a diferença tem a tendência de ser olhada como negativa, visto que assinala para o intolerável ou para fora da normalidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação tem uma importante função que é o de participar na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. E isto pode ser realizado ao possibilitar meios para desenvolver nos educandos a característica de ser crítico, adquirida por um trabalho de conscientização de seu papel ativo na história. Uma educação que implique na libertação dos diversos modos de opressão e baseada em princípios essenciais como a dialogicidade, que implica em amor (amor de reconhecer em todo ser humano o direito de transcender-se e de dizer a sua palavra), respeito (respeito de reconhecer que todos têm algo a dizer), solidariedade (só diálogo com o outro). Para, deste modo, fazer renascer a esperança de um mundo melhor e mais humano para todos, seja qual for sua raça, classe social, gênero ou deficiência.

A legítima inclusão dos alunos com deficiência só pode ser edificada com base em uma pedagogia da inclusão, como é a educação dialógica e libertadora de Paulo Freire que, ao se opor ao servilismo da escola aos ideais neoliberais como a individualidade, a competitividade, a produtividade, supera de modo determinante a prática de preconceitos e descriminações vigentes no dia-a-dia escolar que causam o processo de diferenciação entre os alunos, que acarreta a invenção de categorias, rotulação do aluno com os estigmas da anormalidade, da deficiência e da incapacidade.

Em suas reflexões sobre o “outro”, Carlos Skiar alerta sobre a armadilha de nos sentirmos forçados a incluí-lo, recebendo o outro apenas por pena, a partir da superioridade da mesmidade normativa. E nos lembra de que somos outros também quando os outros nos olham. E, ao mudarmos nossa atitude perante o outro, teremos consciência de que o outro já foi diversas vezes silenciado, massacrado, globalizado, excluído ou até demasiadamente normalizado. E nos alerta com a pergunta que, no fundo, talvez seja portadora dos nossos desejos: “E se o outro não estivesse aí?”

A inclusão é um termo que ainda hoje revela um desejo não realizado, uma falta, um vazio. Ao se falar tanto em educação inclusiva, indica-se tão somente sua carência de força, sua inexistência, mesmo a partir do ato desesperado de estar presente nas escolas; ou seja, a inclusão está presente ou não está, existe ou não existe.

À despeito do grande empenho para aumentar a quantidade da população incluída no sistema educativo, é preciso saber o que faremos juntos e, especialmente, como o faremos sob condições de igualdade, pois a igualdade é prioridade, não pode ser somente um compromisso que se pretere em tempo indeterminado.

Skliar apresenta a importância de se pensar uma educação para inclusão que não trabalhe com a mesmidade das escolas, mas entender o outro como uma pessoa que pensa, que percebe o mundo ao seu redor, que não precisa que falem por ele, para que esse outro não seja somente a imagem de outro alguém, do mesmo. É possível aproximar esta perspectiva com Freire, precisamente por se reconhecer a alteridade, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho e nem por ninguém, ou dizê-la para os outros, numa ação de prescrição. O diálogo é o encontro dos homens, onde necessariamente necessita-se da alteridade.

Tendo como base o diálogo e a escuta do outro, podemos pensar tanto na dimensão individual quanto coletiva, a respeito de como o educar encaminha-se para libertar, para transformar, possibilitando às nossas crianças, jovens, adultos e idosos, com e sem deficiência, que estão em processo de educação contínuo, o acesso a todo e qualquer conhecimento para que, de modo crítico e criativo, possam, eles próprios, colaborar com a possibilidade de uma sociedade mais justa, pacífica, democrática, inclusiva e ética. Educar para mudar e transformar o mundo.

Skliar propõe uma “pedagogia do acontecimento” que acolha o estranho, o diferente e o imprevisto, sem temê-lo ou silenciá-lo em razão de ser considerado como atributo fecundo dentro dos processos de ensino e de aprendizagem. A pedagogia do acontecimento que se irmana com a pedagogia do oprimido de Freire, na construção de um mundo “em que seja menos difícil amar”.

REFERÊNCIAS

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FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

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MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer? São Paulo: Moderna, 2003.

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SKLIAR, C. B. Incluir as diferenças? Sobre um problema mal formulado e uma realidade insuportável. Revista Internacional Artes de Educar, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 13-28, fev./maio, 2015.

SKLIAR, C. B. A escuta das diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2019.

Endereços para correspondência:

Sandra Aparecida de Bem Stefanes - Rua Nossa Senhora de Guadalupe, 692, bairro Serraria, São José, SC, 88.113-130. sandra.stefanes@gmail.com.

Janine Moreira - Rua Sérgio Behenck Evaldt, 270, bairro Milaneze, Criciúma, SC, 88.804-520. jmo@unesc.net.


  1. 1 Este texto é fruto de dissertação de mestrado da autora, a partir da orientação da coautora.

  2. 2 Mestra em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense; Especialista em Educação Especial pela Universidade Católica Dom Bosco; Graduada em Psicologia pela Universidade do Extremo Sul Catarinense; Analista Comportamental DISC Profiler certificada pela Solides LCC, Solides AS; Psicóloga na Fundação Catarinense de Educação Especial; Conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina e membro da Comissão Psicologia e Pessoas com Deficiência.

  3. 3 Doutora em Educação pela Universidade de Córdoba; Mestra em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina; Psicóloga pela Universidade Federal de Santa Catarina; Líder do Grupo de Pesquisa Descolonização, Educação e Processos Subjetivos; Desenvolve projetos na área de educação em saúde, educação permanente em saúde, patologização e processos de subjetivação; Teoricamente, trabalha com o existencialismo, com a educação popular e com os estudos decoloniais.

  4. 4 Em Skliar, podemos entender Mesmidade: cópia do mesmo, a cópia daquilo que sempre volta ao mesmo; Mesmice: ausência de variedade, mais do mesmo. No contexto deste texto, estes termos são usados como sinônimos, pois apresentam significados semelhantes e o autor não os conceitua, apenas os utiliza no contexto de seus argumentos.

  5. 5 A alteridade deficiente é uma invenção que foi fabricada, produzida e legitimada, ao ser representada institucionalmente através de diagnósticos e comportamentos já determinados como deficientes, anormais ou uma alteridade anormal.