https://doi.org/10.18593/r.v48.32891

Ensino superior privado brasileiro na pandemia: do ERE ao processo híbrido de ensino e aprendizagem1

Brazilian private higher education in the pandemic: from ERE to the hybrid teaching and learning process

La educación superior privada brasileña en la pandemia: de ERE al proceso híbrido de enseñanza y aprendizaje

Ruan Carlos Pereira Costa2

Universidade de Uberaba; Advogado.

https://orcid.org/0000-0002-6854-6056

Sálua Cecílio3

Universidade de Uberaba; Pesquisadora e Professora Universidade de Uberaba.

https://orcid.org/0000-0001-6035-1636

Resumo: Este artigo tem por objeto as implicações da promulgação da lei 14.040/2020 para o trabalho e a profissão docente nas Instituições de Ensino Superior (IES) privada com fins lucrativos, levando-se em conta o momento de excepcionalidade sanitária imposta pela pandemia da Covid-19. O objetivo geral é compreender os principais reflexos e alterações causadas no trabalho do profissional docente, a partir da promulgação da lei 14.040/2020, em cenário pandêmico e no contexto do capitalismo de vigilância, em que se encontra a sociedade do século XXI. A metodologia se baseou em uma pesquisa bibliográfica e documental, de legislações e artigos, tendo como fontes, especialmente, os bancos de dados, SciELO e LILACS. Como resultado obtido, tem-se que a pandemia intensificou a virtualização da profissão docente, fortalecendo a ideia de hibridização da educação, conforme documentos técnicos exarados pelo Conselho Nacional de Educação.

Palavras-chave: ensino remoto emergencial; covid-19; ensino superior privado; processo híbrido de ensino e aprendizagem.

Resumen: Este artículo se centra en las implicaciones de la promulgación de la ley 14.040/2020 para el trabajo y la profesión docente en las Instituciones de Educación Superior (IES) privadas, teniendo en cuenta el momento de excepcionalismo sanitario impuesto por la pandemia de Covid-19. El objetivo general es comprender las principales consecuencias y cambios provocados en el trabajo de los profesionales de la enseñanza, a partir de la promulgación de la ley 14.040/2020a, en un escenario de pandemia y en el contexto de capitalismo de vigilancia, en el que se encuentra la sociedad del siglo XXI. La metodología se basó en investigaciones bibliográficas y documentales, legislación y artículos, utilizando como fuentes, especialmente, las bases de datos SciELO y LILACS. Como resultado, la pandemia intensificó la virtualización de la profesión docente, fortaleciendo la idea de hibridación de la educación, según documentos técnicos emitidos por el Consejo Nacional de Educación.

Palabras clave: enseñanza remota de emergencia; COVID-19; educación superior privada; proceso híbrido de enseñanza y aprendizaje.

Abstract: This article focuses on the implications of the enactment of law 14,040/2020 for work and the teaching profession in private Higher Education Institutions (HEIs), taking into account the moment of health exceptionalism imposed by the Covid-19 pandemic. The general objective is to understand the main consequences and changes caused in the work of teaching professionals, following the enactment of law 14,040/2020, in a pandemic scenario and in the context of surveillance capitalism, in which 21st century society finds itself. The methodology was based on bibliographical and documentary research, legislation and articles, using as sources, especially, the SciELO and LILACS databases. As a result, the pandemic intensified the virtualization of the teaching profession, strengthening the idea of hybridization of education, according to technical documents issued by the National Education Council.

Keywords: emergency remote teaching; Covid-19; private higher education; hybrid process of teaching and learning.

Recebido em 03 de julho de 2023

Aceito em 26 de novembro de 2023

1 INTRODUÇÃO

Dia 31 de dezembro do ano de 2019. Data que ficará para sempre na história mundial e na memória de toda a sociedade do século XXI. Marco de um caos generalizado, de proporções nunca imaginadas, em tempos tão avançados cientificamente, mas que, diante o inesperado e avassalador fenômeno, nada se mostrava possível fazer. Tudo se iniciou com um simples alerta feito à Organização Mundial da Saúde (OMS) de constatação sobre a existência de alguns casos de pneumonia que se espalhavam pela cidade de Wuhan, localizada na China. Entretanto, o que parecia ser somente um surto de pneumonia, geograficamente delimitado e próximo a um mercado de frutos do mar em Wuhan, se revelaria como a pior crise sanitária mundial. Paulatinamente, se observava um aumento exponencial de notificações a OMS, deslocando-se do ponto originário observado para outros locais da China e, posteriormente, para outros países. O que se acreditava serem apenas casos de pneumonia, se desdobrava em um forte cenário pandêmico, com dezenas, centenas, milhares e milhões de internações e mortes.

Veio a público que o causador dessa pandemia é uma variante do vírus SARS-CoV-2, um vírus pertencente à família dos coronavírus e causa da doença, então denominada popularmente de Covid-19; nomenclatura, utilizada pela OMS, que nomeia a abreviação do vírus, pertencente à família dos coronavírus, alinhado com o numeral 19, representando o ano que se deu a sua descoberta, ou seja, em 2019. De fácil contaminação, através do contato entre os seres humanos, a Covid-19 rapidamente se espalhou pelo mundo inteiro, rompendo fronteiras e impondo uma triste e caótica realidade. Os casos aumentavam e não havia estudos médico-científicos suficientes que pudessem nortear um tratamento eficaz aos pacientes contaminados, levando a um acentuado quadro de internações e, consequentemente, mortes por falta de recursos básicos, como falta de oxigênio.

A principal e imediata medida adotada para conter a disseminação desse vírus foi a imposição de um rigoroso distanciamento social entre as pessoas. Estabelecimentos comerciais foram imediatamente fechados, bares, restaurantes, salões, shoppings, órgãos públicos, escolas, universidades e diversos outros locais foram obrigados a cerrarem suas portas, com o objetivo de diminuir a circulação e contato entre as pessoas. Apesar das medidas anunciadas, verificou-se que as pessoas não estavam preparadas para essa nova realidade, imposta pela Covid-19, de maneira sub-reptícia na vida de todos.

A partir deste contexto pandêmico, estabeleceu-se o objeto de pesquisa que deu origem a este artigo. Ou seja: Quais as implicações da promulgação da lei 14.040/2020a, para o trabalho e a profissão docente nas IES, publicamente conhecidas e identificadas como privadas, com fins lucrativos levando-se em conta o momento de excepcionalidade sanitária imposta pela pandemia? Nesse sentido, teve-se como objetivo geral compreender quais foram os principais reflexos e alterações no trabalho do profissional docente que atua nestas instituições com a promulgação da lei 14.040/2020, uma vez reconhecido o cenário de pandemia e do capitalismo de vigilância em que se encontra a sociedade no início do século XXI. Para o alcance do objetivo geral, elegeu-se os seguintes objetivos específicos: analisar o contexto de surgimento da pandemia e seus efeitos na educação brasileira, especialmente no nível de ensino superior privado; retratar e conceituar o Ensino Remoto Emergencial - ERE – principal formato utilizado na educação durante a pandemia –, suas principais características e correlação com as tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) e, por fim, investigar as principais consequências da pandemia para o ensino superior privado brasileiro, voltando-se o olhar para o profissional docente e a legislação que busca legitimar o processo híbrido de ensino e aprendizagem, durante e após a pandemia.

Pondera-se que o sistema universitário brasileiro se classificava, tradicionalmente, em universidades públicas e universidades confessionais ou religiosas. Todavia, esta classificação foi sendo drasticamente alterada no Brasil, sobretudo, a partir da década de 90, com o surgimento das universidades particulares com fins lucrativos. Calderón (2000) denomina estas últimas como universidades mercantis ou empresas educacionais, ou seja, aquelas que operam sob as leis do mercado econômico, com vistas à obtenção de lucro e atendimento de uma demanda latente do mercado consumidor que emergia neste momento. Sampaio (2011) esclarece que um dos pontos fundamentais para o avanço da iniciativa privada de fins lucrativos no âmbito do ensino superior privado foi a promulgação do Decreto-Lei 2306 (Brasil, 1997). Referido decreto permitiu que as mantenedoras das IES pudessem se organizar, juridicamente, sob a natureza civil ou comercial. Dessa forma: “passaram a ser classificadas como: entidade mantenedora de instituição sem finalidade lucrativa e entidade mantenedora de instituição particular, em sentido estrito, com finalidade lucrativa” (Sampaio, 2011, p.31). Esta autorização normativa abriu espaço para que o fomento comercial da educação pudesse ser explorado sob o ponto de vista econômico, aplicando-se regras das leis de mercado.

Neste artigo, ancorados na delimitação conceitual e temática referida, cinge-se a análise às universidades particulares com fins lucrativos, doravante mencionadas neste artigo como instituições de ensino superior privado. Para tal, traçou-se um caminho metodológico que incluiu uma pesquisa documental e bibliográfica a respeito do tema em discussão. Após uma análise minuciosa, foram selecionadas as fontes para localizar o material de pesquisa, sendo escolhidas as bases SciELO e LILACS. A primeira se destacou pela multiplicidade de materiais reportados, a partir dos descritores elencados, além de ser uma das principais bases de dados de periódicos no Brasil colmatando eventuais lacunas de material de pesquisa; já a segunda base foi escolhida em função do volume de dados reportados ligados ao tema deste artigo, principalmente no que tange ao eixo temático da saúde na América Latina. Para a realização desta busca, foram selecionados como descritores: ensino remoto emergencial, ensino superior, covid-19, trabalho docente, e ensino superior privado (aplicando-se o filtro temporal: 2019-2022) e capitalismo de vigilância (com filtro: Brasil). Na SciELO, reportou-se 111 artigos. Efetuando-se a leitura dos resumos e textos e adotando-se como critério de inclusão o enfoque temático, datas de produção do texto e abrangência do período pandêmico; excluiu-se artigos repetidos, com temas incompatíveis, voltados para o estudo de Universidades públicas e que abordavam níveis de ensino que não o superior, chegou-se à seleção de 20 artigos para o desenvolvimento do que segue. Na base LILACS, foram reportados 142 artigos. Seguindo-se o mesmo procedimento metodológico de inclusão e exclusão, chegou-se à seleção de 23 artigos.

Para o desenvolvimento deste artigo foram selecionados 13 artigos das referidas bases de dados, por apresentarem recorte temático específico e afinidade com o objeto pesquisado, excluindo-se os demais, por não retratarem o tema, conforme a delimitação proposta. Ademais, foi realizado esse recorte temático para que fossem atendidos os critérios de pertinência de conteúdo e delimitação textual a serem consideradas na produção textual de um artigo científico. A pesquisa foi complementada por um levantamento documental sobre as legislações que regulamentaram a temática, e orientado por um estudo realizado no repositório de leis de domínio público no Brasil, hospedado no site do Planalto4, a partir do campo “Legislação – Covid-19”. Nesse sentido, visando responder ao problema da investigação e atingir os objetivos propostos, elaborou-se o artigo que segue estruturado em introdução, três subseções e, por fim, as considerações finais, acompanhadas pelas referências que fundamentaram o conteúdo apresentado.

2 A pandemia da Covid-19: reflexos e desafios para a educação brasileira

A Covid-19 abalou todas as estruturas da sociedade, nesse sentido, o setor educacional brasileiro se viu paralisado em decorrência da imposição do isolamento social, impossibilitando que os espaços educacionais físicos pudessem ser utilizados. Não houve tempo hábil para que o fechamento das escolas e universidades pudesse ser avaliado, dado que as mortes subiam em proporções alarmantes. O que se viu neste contexto, em cenário nacional, foi a decretação pelo Poder Executivo federal da Emergência em Saúde Pública Nacional (ESPIN), visando conter o avanço da doença, a partir de medidas emergenciais que poderiam ser tomadas neste sentido. Este foi apenas o primeiro ato normativo publicado neste sentido – através da portaria 188 de fevereiro de 2020b – abrindo espaço para inúmeros outros no mesmo caminho.

No campo da educação não foi diferente. Sucessivos atos normativos foram editados regulamentando como seria o funcionamento da educação neste cenário de pandemia. As regulamentações na seara educacional iniciaram-se a partir da edição da portaria 343, em 17 de março de 2020c, autorizando expressamente que as aulas presenciais pudessem ser substituídas por aulas realizadas em meios digitais, dada a epidemia em curso. Nestes termos, esta portaria veio para:

Art. 1º Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017 (Brasil, 2020, grifos nossos).

Apesar de prever uma autorização em caráter de excepcionalidade, a referida portaria causaria impactos significativos e provavelmente irreversíveis. Tal fato pode ser considerado um dos marcos iniciais, durante a pandemia, que favoreceu a intensificação do uso das TDIC no ambiente educacional. Ou seja, a portaria 343 contribuiu significativamente para acelerar o processo de migração de toda a área educacional para um ambiente integralmente virtual, trazendo significativas mudanças em todos os níveis de ensino. Mesmo com a publicação da portaria nº 343 – e de portarias complementares como a 345/2020d e 356/2020e, dentre outras –, a mudança de maior envergadura normativa estava por vir, com a edição da lei 14.040/2020a. Esta lei estabeleceu normas educacionais, de caráter excepcional, a serem adotadas durante o estado de calamidade pública, já reconhecido expressamente pelo Poder Executivo. Uma das principais modificações para a educação foi a dispensa do cumprimento do mínimo de dias letivos para a educação nos níveis: infantil, fundamental, médio e superior, nos termos do que segue.

Art. 3º As instituições de educação superior ficam dispensadas, em caráter excepcional, da obrigatoriedade de observância do mínimo de dias de efetivo trabalho acadêmico, nos termos do caput e do § 3º do art. 47 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para o ano letivo afetado pelo estado de calamidade pública referido no art. 1º desta Lei, observadas as diretrizes nacionais editadas pelo CNE e as normas a serem editadas pelos respectivos sistemas de ensino, desde que:

I – seja mantida a carga horária prevista na grade curricular para cada curso;

II – não haja prejuízo aos conteúdos essenciais para o exercício da profissão (Brasil, 2020, grifos nossos).

De maneira semelhante aos níveis infantil, fundamental e médio, as IES foram expressamente dispensadas do cumprimento mínimo de dias letivos, observadas algumas regras. Estas regras se subdividiam no cumprimento da carga horária mínima exigida na grade curricular para cada curso de nível superior, desde que não houvesse qualquer prejuízo aos conteúdos a serem ministrados, o que prejudicaria o futuro exercício das respectivas profissões. Apesar de ser uma mudança de significativa importância em relação ao tradicional modelo de educação presencial, outras preocupações foram levantadas pelos profissionais docentes, a exemplo de como dar vazão a estas atividades educacionais. Nesse sentido, o que mais chamou atenção não foi essa dispensa do cumprimento efetivo dos dias letivos, mas, sim, de que maneira poderia se dar o desenvolvimento das atividades educativas de cunho pedagógico, ou seja, como se daria a aplicação dessas “práticas pedagógicas não presenciais”.

No texto legislativo não ficou claro o que poderia se enquadrar como práticas pedagógicas não presenciais, sequer se elencaram exemplos ou se esclareceu como se dariam as referidas práticas. Apenas foi previsto que: “§1º Poderão ser desenvolvidas atividades pedagógicas não presenciais vinculadas aos conteúdos curriculares de cada curso, por meio do uso de tecnologias da informação e comunicação, para fins de integralização da respectiva carga horária exigida (Brasil, 2020, grifos nossos)”. Esse movimento de intensificação do uso das TDIC já era algo que se tornava evidente no mundo e, consequentemente, no Brasil. Todas as profissões já vinham sendo impactadas diretamente pelo influxo dessas tecnologias, à medida em que foram sendo gradativamente automatizadas. Ou seja, controladas e gerenciadas por poderosos sistemas computacionais. O principal efeito notado com essa expansão tecnológica foi a precarização dos trabalhadores e de suas respectivas atividades laborais, nesse período.

É, então, com a expansão das tecnologias de informação e comunicação que passamos a presenciar a ampliação da precarização, que atinge desde o (a)s trabalhador (a) s da indústria de software, passando pelo (a) s de call center, telemarketing – o que constituem o núcleo do infoproletariado ou cibertariado –, até chegar aos setores industriais, agronegócio, bancos, comércio, fast-foods, turismo e hotelaria etc. Tal tendência já vinha se acentuando com o desenvolvimento da chamada Indústria 4.0, proposta que foi originalmente desenhada para gerar um novo salto tecnológico e informacional no mundo da produção, tornando-o ainda mais automatizado e robotizado em praticamente todos os espaços das cadeias produtivas de valor. A tendencia, visível bem antes da explosão da pandemia, era clara: redução do trabalho vivo pela substituição das atividades tradicionais por ferramentas automatizadas e robotizadas, sob o comando informacional-digital (Antunes, 2022, p. 25, destaques do autor).

Conforme abordado por Antunes, há uma relação direta da expansão das TDIC com o fenômeno da precarização profissional dos trabalhadores. O autor (2022) adverte que a precarização tem atingido todos os setores das atividades econômicas, sejam eles de indústria, comércio, prestações de serviços e até mesmo do agronegócio. No mesmo sentido, pondera-se que a educação também estava passando pela mesma interferência das TDIC, o que acabou sendo reforçado pela promulgação da lei 14.040/2020a. No texto da lei 14.040/2020 fora mencionado apenas que o cumprimento das atividades pedagógicas não presenciais poderia ser realizado através da utilização de tecnologias da informação e comunicação. Não houve qualquer tipo de direcionamento ou auxílio no que tange à definição de como aplicar essas atividades, levando-se à triste constatação de que:

No âmbito educacional, desde o momento em que se confirmou a necessidade de quarentena e isolamento social, as instituições e, em especial, os professores tiveram que se recompor e reconstituir, como fênix emergentes da calamidade, visando à continuidade do trabalho e dos processos em desenvolvimento, procurando incluir a maior parte dos alunos em algum contexto digital remoto e superar, de alguma forma, a falta de acesso a dispositivos digitais por boa parte dos alunos. Preparados, ou não, professores, alunos, pais e gestores tiveram que migrar para uma ambientação que, embora não totalmente nova, passou a lhes exigir uma interação diferenciada, maior expertise instrumental e uma reflexão mais cuidadosa a respeito das práticas docentes até então adotadas. Desterritorializados e migrantes em um cenário relativamente inédito, professores e alunos se depararam com a necessidade urgente de algum tipo de letramento que os auxiliasse para além das questões instrumentais e que, considerando as especificidades espaciotemporais, fosse emergencial e imediata, similarmente às práticas que visavam à continuidade do ensino e aprendizagem (Freire, 2021, p. 5-6, grifos nossos).

A falta de regulamentação e direcionamento no âmbito educacional levou a uma situação de calamidade em que os professores tiveram que se reinventar. Freire (2021) compara os professores a verdadeiras “fênix”, tendo a necessidade de realmente se levantarem das cinzas e buscarem alternativas inéditas para que o ensino pudesse continuar a ser ofertado a todos os alunos e, se possível, que fosse retomado de modo mais breve, para tentar diminuir os prejuízos já em curso. Como a lei 14.040/2020a também foi silente nesse sentido, os professores tiveram que migrar para o ambiente virtual, sem que houvesse qualquer direcionamento ou formação para o desenvolvimento de suas atividades didático-pedagógicas. Essa realidade escancarou e/ou agudizou a então significativa debilidade no sistema educacional brasileiro em todos os aspectos. Falta de investimentos na carreira e na formação profissional docente, ausência de espaços físicos devidamente preparados para receber os alunos, em momentos, como este, de excepcionalidade sanitária, falta de recursos tecnológicos como computadores ou tablet, foram alguns entre diversos outros problemas que foram descortinados neste período. Dessa forma, não houve alternativas prontas e acabadas que pudessem direcionar o trabalho dos profissionais docentes no momento pandêmico, obrigando que fossem tomadas medidas emergenciais e improvisadas neste cenário.

O desenvolvimento de alternativas emergenciais de ensino é o reflexo direto da falta de planejamento e investimento no setor educacional brasileiro que se desenrola há anos. Gusso et al. (2020) corroboram este pensamento, advertindo que essa tentativa de implementar medidas emergenciais, a partir da utilização das TDIC, revela uma gama de problemas já existentes na educação brasileira e que se acentuam em um contexto de dificuldades como a pandemia, destacando que:

Essas tentativas, por sua vez, acabam por expor diversas (“novas”) problemáticas. Entre elas encontram-se: a) a falta de suporte psicológico a professores; b) a baixa qualidade no ensino (resultante da falta de planejamento de atividades em “meios digitais”); c) a sobrecarga de trabalho atribuído aos professores; d) o descontentamento dos estudantes; e e) o acesso limitado (ou inexistente) dos estudantes às tecnologias necessárias (Gusso et al, 2020, p. 4).

Os autores explicitam apenas algumas das dificuldades pelas quais a educação brasileira já passava, sendo superdimensionadas neste contexto de dificuldades impostas pelo distanciamento social na pandemia. O termo “novas” é colocado entre aspas exatamente para ressaltar que estas debilidades na educação não são tão novas quanto sugere este momento pandêmico, mas, sim, um resultado do que a educação já amargava há anos. Por óbvios que sejam os problemas apontados, dentre eles a falta de apoio psicológico aos docentes, a sobrecarga de trabalho e a limitação de recursos tecnológicos se tornam ainda mais evidentes em um momento em que se exige eficiência, profissionalidade, infraestrutura e inovações imediatas.

Por força da previsão legal na lei 14.040/2020 de que as atividades educacionais poderiam ser desenvolvidas através das TDIC, emergiu um novo cenário para a educação brasileira, levando à intensificação do trabalho mesclada à migração para o âmbito virtual. Não que fosse algo totalmente novo para o setor educacional, dado que tal movimento migratório já ocorria, embora de maneira um pouco mais lenta e gradual. Exemplo dessas mudanças que já estavam acontecendo, é o reflexo da promulgação da portaria 2.117/2019, pelo MEC, autorizando que a carga horária dos cursos de nível superior – na modalidade EaD – pudesse ser aumentada de 20% para 40%, conforme apontado em seu artigo. 2º, em que se estabelece: “As IES poderão introduzir a oferta de carga horária na modalidade de EaD na organização pedagógica e curricular de seus cursos de graduação presenciais, até o limite de 40% da carga horária total do curso” (Brasil, 2019). Esse permissivo legal causou o aumento da virtualização nas IES, levando a uma maior inserção das TDIC no âmbito educacional brasileiro, que restou mais atingido e afetado pelo novo cenário virtual.

Apesar de todas as dificuldades e mudanças que as TDIC causaram no âmbito educacional, elas também representaram uma alternativa para manter o funcionamento das instituições em cenário pandêmico, verificou-se que aspectos mais importantes deixaram de ser abordados, como o próprio aspecto didático-pedagógico do ensino a ser desenvolvido neste momento. A intensidade das mudanças concentrou os debates a respeito das questões materiais das tecnologias, relegando a um segundo plano o trato das relações interpessoais e os modos de se efetivar a interação aluno-professor nessas condições. Ou seja:

Com um debate concentrado nos aspectos materiais, isto é, ter mais ou nenhuma acessibilidade à internet; dispor ou não de equipamentos (computadores, tablets, webcams, celulares); ter ambientes adequados de estudos etc., pouco se falou sobre os aspectos pedagógicos do ensino, que envolvem uma interação subjetiva ao menos entre professores/as e estudantes. O que se viu foi uma corrida sem igual para a tentativa de adaptação ao trabalho remoto e às novas formas de construir conhecimento. A procura por ferramentas informacionais (da internet de banda larga ao computador com mais capacidade de armazenamento) veio acompanhada da busca por cursos para os manuseios das plataformas (Zoom, Meet, Teams etc.), fazendo das aulas ministradas verdadeiros espetáculos com conteúdos apropriados às plataformas abertas. Essa nova modalidade de ensino vem transformando os/as próprios/as docentes em youtubers, as novas celebridades da vida remota, em que uma boa aula é mensurada pela quantidade de likes (Gonçalves; Souza, 2022, p. 43-44, grifos nossos).

Que este cenário de pandemia trouxe inúmeros desafios para a educação brasileira, não restam dúvidas. Todavia, há que se ressaltar o fato de que as discussões ficaram centradas somente em aspectos materiais no referente à utilização das TDIC. Um ponto que não pode ser minorado é a importância de se enxergar além do aspecto prático e instrumental relativo à utilização dessas tecnologias e lançar um olhar crítico sobre as finalidades desses recursos tecnológicos e seus efeitos no campo didático-pedagógico e interpessoal. As tecnologias não funcionam por si só, operam através de uma lógica pautada em algoritmos preestabelecidos. Por isso e para tanto, é de vital importância analisar a utilização do ERE no Brasil e neste contexto pandêmico.

3 Ensino remoto emergencial no Brasil: o uso das tecnologias digitais de informação e comunicação em cenário de pandemia

A pandemia transformou radicalmente a educação brasileira – acelerando um processo de migração do ensino presencial para o ambiente virtual – ao impedir que as aulas na modalidade presencial fossem ministradas normalmente por força do distanciamento social impositivo. A partir dessa dificuldade imposta pelo distanciamento social e a promulgação da lei 14.040/2020a, ganha relevo um outro formato que viera em caráter emergencial, com o objetivo de dar vazão ao ensino no formato remota, qual seja, o ERE. Ele nasce dentro de um contexto mais amplo de debates e controvérsias geradas pelo uso intensivo dos recursos tecnológicos de informação e comunicação, verificando-se que:

Com o advento da pandemia da Sars-Cov-2, uma das estratégias utilizadas por países na contenção do vírus foi o desenvolvimento de algoritmos e indicadores a partir dos dados digitais produzidos por aparelhos celulares ou aplicativos de redes sociais. Como aponta as recomendações da OMS, o tipo de resposta produzida em contexto de pandemia, em seu caráter excepcional, pode trazer prejuízos às liberdades individuais e infrações aos direitos humanos, caso não sejam implementados com segurança legal. Apesar da possibilidade da coleta de dados ser feita com protocolos de criptografia, o caráter inovador e dinâmico da ciência da informação muitas das vezes colocam à disposição do governo e da população, de forma gratuita, aplicativos de empresas privadas ou startups de tecnologia. Essas empresas podem disponibilizar aplicativos gratuitos em troca do uso comercial dos dados coletados para outros fins que os definidos no momento da contratação dos serviços. Tal prática coloca em discussão a real segurança dos dados e, sobretudo, o limite da autonomia dos indivíduos nessas situações em que governos cedem a prerrogativa do uso de dados pessoais a empresas particulares (Harayama, 2020, p. 159, grifos nossos).

Com a eclosão da pandemia e consequente migração das atividades de trabalho e tarefas cotidianas para o mundo digital, as pessoas tornaram-se reféns desses recursos digitais. O autor esclarece que as plataformas digitais utilizadas para o exercício dessas atividades são pautadas em algoritmos que monitoram e captam todos os dados produzidos pelos usuários. Portanto, verifica-se que a acessibilidade dessas plataformas digitais – em tese gratuitamente – possui, como finalidade, a coleta de dados, o que tem lançado dúvidas sobre o respeito aos direitos fundamentais de liberdade dos cidadãos e ao sigilo e privacidade de dados.

Neste ínterim, surge o ERE para ser utilizado através das plataformas digitais em todos os níveis da educação brasileira. Cabe ponderar que o ERE somente ganhou notoriedade no Brasil com a eclosão da pandemia. Antes desse período de exceção sanitária, não havia discussões a respeito de como se dava o funcionamento desse formato de ensino ou/e mesmo as suas peculiaridades no contexto brasileiro. Tal fato acabou gerando uma confusão sobre os verdadeiros objetivos a serem alcançados com a utilização do ERE, bem como de que forma se daria a sua utilização e, principalmente, como se diferenciava de uma modalidade de ensino já existente no Brasil, a EaD. Diferentemente da EaD, o ERE emerge para uso em uma situação de excepcionalidade educacional, em que as práticas educacionais tradicionalmente empregadas não são suficientes para cumprirem com as próprias finalidades didático-pedagógicas impostas por uma situação emergencial de distanciamento impositivo. Nesse sentido, constata-se que o ERE tem seu surgimento:

Em uma situação emergencial, como a advinda pela pandemia do coronavírus, na qual as recomendações de isolamento social são impostas, surgem desafios a ser enfrentados pelas instituições educacionais. Nesse contexto, o ensino remoto surge como uma alternativa que visa atender com rapidez e efetividade as demandas de escolarização e formação acadêmica (Morais et al., 2020, p. 4).

O ERE está ligado à condição de emergência e possível atendimento das necessidades imediatas de níveis escolares e acadêmicos, em um momento de excepcionalidade. Morais et al. (2020) esclarecem que a necessidade do isolamento social, imposto pela pandemia, fez com que surgissem vários desafios para as instituições educacionais, sendo a continuidade do ensino um dos principais deles. Nesse sentido, as práticas de ensino presencial não poderiam continuar sendo prestadas em uma realidade em que nunca havia sido cogitada uma situação tão extrema que pudesse impor uma transformação tão drástica em um curto espaço de tempo como a que ocorreu. Apesar de ligado a um cenário de excepcionalidade ou emergência no Brasil para que pudesse ter sido adotado na educação, o ERE já existia e era utilizado em outros países do mundo. Hodges et al. (2020) esclarecem que o termo ERE já foi idealizado para se diferenciar da modalidade de ensino presencial, a qual é empregada em situações de normalidade em um país, em contraposição a situações de crises enfrentadas com o uso do ERE. Destacam alguns exemplos de países que se valem deste formato, devido ao fato de viverem mergulhados em guerras e conflitos, como o Afeganistão, Camboja, Libéria, além de Bósnia e Herzegovina.

Uma vez retratada a conjuntura em que se dá o surgimento desse formato de ensino, cabe elucidar que o seu conceito revela que:

Em contraste com as experiências planejadas desde o início e projetadas para serem on-line, o ensino remoto de emergência (ERT) é uma mudança temporária da entrega instrucional para um modo de entrega alternativo devido a circunstâncias de crise. Envolve o uso de soluções de ensino totalmente remotas para instrução ou educação que, de outra forma, seriam ministradas pessoalmente ou como cursos mistos ou híbridos e que retornarão a esse formato assim que a crise ou emergência diminuir (Hodges et al., 2020, tradução5 nossa, grifos nossos).

Os autores foram pioneiros no estudo e delimitação do que seria o ERE. Esclarecem de antemão que ele se opõe ao ensino on-line, totalmente criadas e planejadas para tanto. O ERE não possui esse planejamento didático-pedagógico em detrimento das demais práticas de ensino online como a EaD. Seu surgimento é concomitante a uma situação de crise que envolve o uso de TDIC, mas que, em uma situação de normalidade, não seria utilizado. Trazendo a análise para a realidade brasileira, em cenário de pandemia, constata-se que não houve uma regulamentação específica que pudesse esclarecer como se daria o formato de ensino através do ERE, ou mesmo como seria possível aplicá-lo de maneira didático-pedagógica aos alunos. Essa lacuna, observada com a promulgação da lei 14.040/2020, fez com que muitas pessoas, e até mesmo autores, se equivocassem quanto às terminologias, fazendo-se necessário diferenciar o ERE em relação a uma modalidade já criada e amplamente utilizada no Brasil, como é o EaD. Verifica-se, então, que:

O ensino remoto é um formato de escolarização mediado por tecnologia, mantidas as condições de distanciamento professor e aluno. Esse formato de ensino se viabiliza pelo uso de plataformas educacionais ou destinadas para outros fins, abertas para o compartilhamento de conteúdos escolares. Embora esteja diretamente relacionado ao uso de tecnologia digital, ensinar remotamente não é sinônimo de ensinar a distância, considerando esta última uma modalidade que tem uma concepção teórico-metodológica própria e é desenvolvida em um ambiente virtual de aprendizagem, com material didático-pedagógico específico e apoio de tutores (Morais et al., 2020, p. 4, grifos nossos).

Morais et al. (2020), adverte que o ERE pode ser conceituado como um formato que visa à escolarização do aluno, através da utilização de recursos tecnológicos, ou seja, quando não há o contato físico entre professor e aluno. O ERE possui uma intrínseca relação com as plataformas digitais, pois é por meio delas que as aulas e atividades interligam os docentes aos discentes. Todavia, um ponto que chama atenção no conceito do autor é que o ERE acaba se utilizando de plataformas de educação e afins que não eram, originariamente, destinadas à promoção do ensino e da educação. As plataformas foram criadas com o objetivo de interligar, de um lado, os vendedores ou fornecedores e, de outro lado, os consumidores finais ou usuários, tudo administrado por um terceiro que seria o operador (Poell; Nieborg; Dijck, 2020). Os autores destacam que a utilização do termo “plataformas” foi criada com o objetivo estratégico de simbolizar uma suposta mudança paradigmática no mercado de consumo, agora, mediado pela internet. Todavia, verifica-se que o conceito de plataformas pode sofrer variações, se analisado sob o ponto de vista do mercado econômico e de negócios ou do ponto de vista técnico científico. “Assim, definimos plataformas como infraestruturas digitais (re)programáveis que facilitam e moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados” (Poell; Nieborg; Dijck, 2020, p.4).

Com base no conceito acima, verifica-se que as plataformas, utilizadas para darem vazão ao ERE, são monitoradas e programadas por empresas detentoras destes recursos tecnológicos. Todo o processo de desenvolvimento, criação, monitoramento e controle de dados e conteúdo passa, necessariamente, pelas mãos de uma empresa que direciona tudo o que pode ou não ser feito dentro daquela plataforma. Outra agravante é de que, normalmente, o ERE se utiliza de outras plataformas já existentes para que possa desenvolver suas atividades educacionais, diferenciando-se substancialmente da EaD que já é desenvolvida e se vale de plataformas próprias de ensino e educação. Ademais, a EaD possui uma configuração diferente, apresentando, inclusive, regulamentação específica no Brasil, enquadrando-se como uma modalidade de ensino, conforme se observa no art.1º do Decreto 9.057/2017:

Art. 1º Para os fins deste Decreto, considera-se educação a distância a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos (Brasil, 2017).

Conforme retratado, a EaD possui reconhecimento expresso pela legislação brasileira, classificado como modalidade educacional, o que lhe permitiu o desenvolvimento de práticas didático-pedagógicas planejadas. Apesar do uso das TDIC, a EaD possui um planejamento prévio para o desenvolvimento das práticas educativas e se desenvolve em plataformas digitais próprias. Portanto, tem um diferencial substancial do ERE, na medida em que, no Brasil, este formato não veio acompanhado por uma regulamentação e planejamento didático prévios. A falta de regulamentação e planejamento prévios associados à migração dos profissionais docentes para o ambiente virtual causou, e tem causado, diversos efeitos negativos para a educação, de forma geral. O primeiro aspecto que importa pontuar são as grandes exclusões, dado que o: “ensino remoto instituído em caráter emergencial e temporário está gerando exclusões com a prerrogativa de assegurar a educação de qualidade e equidade para todos, mas que apenas disfarça e perpetua as desigualdades educacionais” (Lima; Ramos; Oliveira, 2022, p.17). Nesse sentido, o ERE acentuou desigualdades já existentes no ambiente educacional, a exemplo da falta de acesso às TDIC, tido como o principal elemento segregador neste contexto. A exclusão educacional é o primeiro de vários fatores observados com a utilização do ERE na pandemia.

Embora ainda não se possa evidenciar os efeitos do Ensino Emergencial Remoto, é possível que consequências sejam percebidas nas instituições que o adotaram já com o fim do primeiro semestre acadêmico afetado pela pandemia. Como exemplos de possíveis consequências estão: a) baixo desempenho acadêmico dos estudantes; b) aumento do fracasso escolar; c) aumento da probabilidade de evasão do Ensino Superior; e, d) desgaste dos professores, que estiveram sobrecarregados pelas múltiplas atividades e pelos desafios de lidar com a tecnologia a fim de promover o ensino. Se as IES tivessem planejado adaptar a oferta das atividades presenciais para algo mais próximo do que é realizado na modalidade EaD, ainda com todas as possíveis limitações que isso implicaria, seria possível sustentar a ideia de manutenção, em algum grau, da qualidade do ensino (Gusso et al., 2020, p. 5).

De acordo com os autores, o ERE não foi capaz de suprir a modalidade de ensino presencial, na medida em que causou uma perda do desempenho acadêmico e escolar e uma significativa evasão no nível superior. Ademais, um dos efeitos mais nocivos que se tem observado com a utilização do ERE é a precarização profissional docente, causada pela sobrecarga de trabalho e os desafios de conviver com esse novo formato educacional mediado por tecnologias. O profissional docente das IES tem sido substituído gradativamente por este formato e visto a sua participação ser diminuída nos ambientes acadêmicos e escolares.

Nas IES de fins lucrativos, os reflexos causados pela utilização do ERE, durante a pandemia, são mais perceptíveis, além de mais nocivos. Tal constatação se deveu ao fato destas instituições terem aderido amplamente à utilização do ERE, além de serem diretamente impactadas pelas leis que regem a lei da oferta e demanda do mercado econômico. Segundo Gemelli, Closs e Fraga (2020, p. 413-414, grifos nossos), os profissionais docentes das IES têm sido os mais afetados na contemporaneidade, a partir de uma dupla complexidade.

Considera-se que na contemporaneidade o trabalho docente de ensino superior em instituições privadas é afetado por uma dupla complexidade: a primeira, refere-se ao alastramento da racionalidade neoliberal, que altera o sentido social da educação e aproxima a docência da noção de prestação de serviços; a segunda, à precarização das relações trabalhistas provocada pela atual crise do capitalismo e por reformas político-econômicas.

Para as autoras, o trabalho docente nas IES privada tem sido afetado diretamente pelas políticas econômicas neoliberais implantadas no âmbito educacional. Medidas de cunho neoliberal têm atingido diretamente os rumos deste profissional, causando a proletarização de sua carreira e, consequentemente, a precarização de seu trabalho. Dessa forma, ancorados em um discurso de uma necessária flexibilização profissional da carreira, os docentes são levados para um cenário de informalidade, vendo seus direitos serem minorados ou corroídos pelas forças que regem esse mercado econômico. As consequências vivenciadas pelo profissional docente das IES privadas, em cenário de pandemia, inserem-se em um contexto mais amplo denominado por Zuboff (2020) como a terceira modernidade, contexto marcado pelo capitalismo de vigilância e pelo surgimento de grandes empresas da tecnologia (Big techs) que prometiam fornecer experiências na internet a seus usuários de maneira gratuita, valendo-se, todavia, da expropriação dos dados de navegação e privacidades destas pessoas com fins econômicos. Tendo em vista que a empresa Google se tornou o principal expoente da terceira modernidade, a autora Zuboff (2020, p.88) adverte que: “As pessoas eram tratadas como fins em si, os sujeitos de um não mercado, um ciclo contido em si próprio que se alinhava à perfeição com a missão do Google de organizar informação do mundo, tornando-se universalmente acessível e útil”.

Os docentes das IES privada no Brasil se inserem neste contexto de capitalismo de vigilância, drasticamente acentuado pela promulgação da lei 14.040/2020a, em cenário de pandemia. Palavras como flexibilização, terceirização, pejotização, dentre outras, povoam o cotidiano destes profissionais, levando à triste constatação de que: “[...]O novo modelo escolar e educacional que tende a se impor se baseia, em primeiro lugar, em uma sujeição mais direta da escola à razão econômica. [...] O “homem flexível” e o “trabalhador autônomo” são as referências do novo ideal pedagógico (Laval, 2019, p. 29). Portanto, são nítidas as interferências do ERE e das TDIC na profissão docente nas IES privada, constatando-se que todos saem perdendo neste cenário: a educação, os alunos e, principalmente, os docentes.

4 PANDEMIA E IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO – SISTEMATIZAÇÃO E AVANÇO DO ENSINO HÍBRIDO

Para a educação, não houve alternativas prontas e acabadas para superar o ensino que sempre fora desenvolvido no formato presencial. As IES privadas rapidamente tentaram se adequar a este novo cenário pandêmico, valendo-se da implantação imediata do ERE. Todavia, constatou-se que esse novo formato causou e tem causado fortes impactos negativos para o profissional docente, considerando-se que:

Sob esse modelo educacional, o trabalho docente no ensino superior é diretamente afetado. As novas exigências educacionais alinhadas ao mercado se introjetam nos discursos sobre a função do trabalho docente. Outrossim, as mudanças nas relações de trabalho também são percebidas nas IEs privadas, e a carreira docente modifica-se perante os paradigmas da flexibilidade (Gemelli; Closs; Fraga, 2020, p. 416, grifos nossos).

Para as autoras, não só o ambiente educacional foi diretamente afetado com o fechamento das universidades, mas, principalmente, os profissionais que ali trabalhavam diuturnamente tiveram suas rotinas bastante alteradas. O trabalho docente nas IES privadas foi diretamente impactado pelas medidas de contenção de gastos, enxugamento dos quadros de funcionários, acumulação de tarefas e atividades, além da impositiva migração para o mundo virtual. Conclui-se, do exposto, que, sob o manto da flexibilização das relações de trabalho, as instituições diminuíram a importância do profissional docente ao se alinharem, gradativamente, às regras ditadas pelo modelo econômico de produção capitalista.

Acentuadamente favorecidas pela eclosão da pandemia e legitimadas pela promulgação da lei 14.040/2020, as TDIC invadem por completo o ambiente universitário e sua utilização passa a ser a regra do sistema educacional privado. Controladas e mediadas por grandes empresas da tecnologia – em sua maioria protagonistas do capitalismo de vigilância, a exemplo do Google – as plataformas digitais são desenvolvidas e pautadas pelas leis que regem o mercado econômico capitalista e atingem fortemente a educação, que passa a ser cooptada por interesses capitalistas na medida em que: “as múltiplas formas dessa incorporação da educação ao capitalismo global fazem esse espaço e dessa atividade uma esfera de grandes esperanças para as empresas” (Laval, 2019, p.131). Essa nova realidade tem levado os profissionais docentes para um caminho de mercantilização profissional, na medida em que sua carreira passou a ser objeto de negociação econômica. Já se verifica que: “a fragilização das relações de trabalho docente no ensino superior privado é evidenciada no trabalho como horista ou como pessoa jurídica, e tais vínculos tendem a se tornar mais frequentes diante do trabalho remoto emergencial” (Gemelli; Closs; Fraga, 2020, p. 432). Com o ERE, os professores estão presenciando a diminuição da importância de seu trabalho, não que tal fenômeno já não estivesse em curso, todavia: “no contexto da COVID-19, essas formas de trabalho se dissipam e se tornam mais frequentes de modo veloz, ancorando confusos e incertos vínculos trabalhistas (Gemelli; Closs; Fraga, 2020, p. 432).

A corrosão das relações trabalhistas e, consequentemente, dos direitos fundamentais básicos do profissional docente das IES privadas são preocupações que se tornaram elemento integrante de sua rotina profissional. Questiona-se neste momento se esta nova realidade imposta pelo contexto pandêmico, com a utilização do ERE, irá se perpetuar de alguma maneira ou se estas mudanças se cingem apenas à esta situação de excepcionalidade sanitária. Esta é a grande preocupação da maior parte dos atores sociais que integram o ambiente acadêmico universitário, principalmente, os professores destas instituições. Fato é que novos e complexos desdobramentos para o âmbito educacional poderiam se originar desta crise de emergência sanitária mundial. Medidas transitórias como o ERE poderiam tornar-se definitivas ou mesmo acarretar novas opções de ensino oriundas desse formato emergencial empregado na pandemia. Observando-se todas as regulamentações editadas neste período pelo Ministério da Educação, verifica-se que há uma forte mobilização – sobretudo, apoiada pelas IES privadas – para a criação e aprovação de uma nova modalidade educacional, capitaneada pelo ensino híbrido.

Consoante Parecer nº 14/2022 exarado pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação, foi abordado o seguinte assunto: “Diretrizes Nacionais Gerais para o desenvolvimento do processo híbrido de ensino e aprendizagem na Educação Superior”. Esse parecer traz em seu bojo um relatório – constando a introdução e análise de mérito –, voto da comissão e a decisão do Conselho Pleno deliberando a respeito das mudanças causadas pela pandemia na educação e suas consequências. O principal fator levantado pelo Conselho que fundamenta as discussões a respeito de uma nova modalidade de ensino é baseado nesta nova realidade imposta pela pandemia, verificando-se que:

Problemas históricos na qualidade da educação, que já demandaram soluções inéditas e inovadoras, agora se agravam, e seu enfrentamento se torna mais urgente diante da crise educacional gerada pela pandemia da Covid-19. Tudo indica que a pandemia vai ser atenuada, mas as abordagens híbridas, objetivando garantir maior participação dos estudantes em seus processos de ensino e aprendizagem, vão permanecer. Essa realidade se apresenta no cenário nacional da educação como resultado direto da referida pandemia e de pesquisas inovadoras no campo educacional desde 2015 (Brasil apud Bacich; Tanzi Neto; Trevisani, 2015). O período da pandemia exigiu uma paralisação imediata das aulas presenciais, obrigando professores e estudantes a uma rápida adaptação à essa nova realidade. Hoje, vive-se um momento de convivência necessária com um ensino flexível, alternando tempos e espaços presenciais e não presenciais (Brasil, 2022, p. 2, grifos nossos).

De acordo com o que fora abordado no relatório do Parecer nº 14/2022, em sua introdução, a pandemia fez com que o sistema educacional brasileiro mergulhasse em uma crise, exigindo-se soluções inovadoras para a continuidade do ensino. Ademais, o relatório apresenta a pandemia como elemento direto causador da situação vivenciada pela educação brasileira, exigindo-se que abordagens híbridas fossem necessárias para dar vazão ao ensino. Portanto, considerando-se a situação emergencial instalada por essa crise sanitária de proporções mundiais, defende-se a necessidade de que todos convivam com um ensino flexível, ou seja, uma modalidade que passe pela alternância ou/e hibridação entre o presencial e o não presencial.

Nos termos retratados acima, verifica-se que a pandemia tem sido invocada como um dos principais fatores que fundamentariam a criação da educação híbrida. Ou seja, verifica-se que essa crise sanitária já tem sido capaz de movimentar todo um setor da sociedade – o campo educacional – em busca de alternativas frente aos modelos tradicionalmente utilizados. Ganha notoriedade um discurso pautado em mudanças rápidas e significativas, na medida em que se constatou uma fragilidade nas práticas educativas desenvolvidas, através do ERE, em contexto de pandemia. Todavia, constata-se que essas propostas de mudanças são apresentadas dentro de um cenário de total excepcionalidade e sem que discussões ampliadas e democráticas possam ser promovidas junto a todos os atores envolvidos neste contexto, sobretudo, os profissionais docentes. O foco inicial da medida é voltado somente para o ensino superior, tendo em vista a sua maior adaptabilidade neste cenário de pandemia, bem como as experiências por ele já disponibilizadas e aplicadas há anos, a exemplo da Educação à Distância (EaD). O que não se sabe, ainda, é se o conjunto de recursos de ensino e aprendizagem já empregados no ensino superior via EaD, e que agora fora mesclado com o ERE, será o suficiente e ideal – sob o ponto de vista didático-pedagógico – para dar origem a uma nova modalidade educacional que seja eficiente. Buscando arrimo no referido Parecer nº 14/2022 do CNE, o qual traz em seu bojo um Projeto de Resolução do que seriam os dispositivos legais responsáveis por regulamentar o processo híbrido de ensino e aprendizagem na Educação Superior e traçando o conceito do que seria essa modalidade de educação, tem-se que:

Art. 2º O processo híbrido de ensino e aprendizagem caracteriza-se como abordagem metodológica flexível, organizado a partir de TICs, ativo e inovador que oriente a atividade docente e formas diversas de ensino e aprendizado, destinado à formação por competências estimulando a autonomia e o protagonismo dos estudantes e o aprendizado colaborativo, permitindo integrar às atividades presenciais a interação virtual de espaços de aprendizagem (Brasil, 2022, p. 12, grifos nossos).

Conforme a caracterização acima apresentada, verifica-se o processo híbrido de ensino e aprendizagem se ancora em uma metodologia dita “flexível”, valendo-se da utilização intensiva das TDIC. Ou seja, a flexibilidade é invocada como um elemento caracterizador da mudança e evolução no ambiente educacional, não aclarando de que forma tal medida poderá afetar os profissionais docentes neste sentido. Ademais, o conceito deixa claro que essa modalidade educacional será organizada a partir das TDIC, estimulando o protagonismo e a autonomia no processo formativo dos alunos. Contudo, levando-se em consideração todas as análises aqui feitas, restou claro que as TDIC não possuem uma neutralidade em sua criação, dado serem idealizadas especificamente para atingirem determinados objetivos, incluindo-se os de ordem econômica. Portanto, é possível reiterar que: “[...] não são neutras, são instrumentos que operam de acordo com finalidades predeterminadas. Justamente por isso suas decisões não são tomadas com base em análises isentas, ou critérios de justiça, mas operadas de acordo com interesses, em sua maioria comerciais” (Meireles, 2021, p.30). A partir dos algoritmos é que esses comandos são repassados e as tarefas são cumpridas de maneira clara e objetiva. Ou seja, não há como conceber a defesa do processo híbrido de ensino e aprendizagem – organizado a partir das TDIC – para o alcance de um verdadeiro aliado na busca por autonomia do conhecimento em qualquer campo, seja ele educacional ou mesmo profissional. Não é este cenário ilusório de prosperidade e avanço tecnológico – defendido no texto do Projeto de Resolução – que tem sido observado durante a pandemia com a utilização intensiva das TDIC. Pelo contrário, o quadro é de preocupação, levando-se em conta que:

O atual contexto demonstra que os docentes universitários estão inseridos em um ambiente favorável ao adoecimento mental pelos impactos da COVID-19. Esse adoecimento se relaciona às notícias jornalísticas de morbimortalidade, concomitantes à pressão proveniente das Instituições de Ensino Superior relativa ao uso das tecnologias digitais, atreladas à vida pessoal e à carga de estresse da própria pandemia que repercute no medo da morte (Santos; Silva; Belmonte, 2021, p. 249, grifos nossos).

Restou claro que essa migração para o ambiente virtual, mediada pelas TDIC, causou um quadro de adoecimento mental nos profissionais docentes das IES. Não há como fechar os olhos para a realidade e os impactos que o uso intensivo das tecnologias digitais está causando nas IES privada, a exemplo da precarização profissional, a terceirização, a pejotização e a perda de direitos trabalhistas. Todos estes fatores, somados a diversos outros, podem levar ou já têm levado ao adoecimento dos profissionais docentes e à precarização de sua carreira profissional. Diferentemente do que resta demonstrado na realidade vivenciada neste contexto pandêmico com a imersão no ERE e utilização das TDIC, o Parecer e o Projeto de Resolução não são sensíveis a tais fatos. Neles, defende-se a imediata migração para a modalidade híbrida sem se ater aos dados e fatos corroborados no período pandêmico com a implementação do ERE. De maneira semelhante ao que ocorreu neste contexto emergencial, tem-se uma apologia da mudança rápida e imediata para este novo modelo híbrido, tecendo duras críticas aos modelos utilizados anteriormente:

As mudanças rápidas exigem reposicionamento da Educação Superior, ao lidar com novos perfis de relações ampliadas, formas de uso flexível de gestão de tempos e espaços presenciais e remotos, articulados, de aprendizagem, com a utilização de tecnologias de informação e comunicação, planejamentos e formas de ensino e aprendizado. É preciso integrar conhecimentos de todas as áreas, combinando metodologias, atividades, projetos e outras estratégias, para compreender os movimentos ou acontecimentos do mundo atual, em franco contraste com a lentidão de modelos tradicionais (Brasil, 2022, p. 2, grifos nossos).

De acordo com o texto legal, elementos como a flexibilidade, gestão de tempo e de espaços presenciais e remotos são invocados como fundamento para a criação da modalidade híbrida. Além disso, tecem-se duras críticas aos modelos atuais – no caso, o ensino presencial – retratando que são modelos tradicionais marcados pela lentidão. Dessa forma, verifica-se que todas as mudanças defendidas por meio destes documentos legais, em análise, se baseiam em uma necessidade de atender às demandas impostas por este novo mercado econômico mundial, em que o produtivismo acadêmico estimulado pelo modelo vigente de avaliação de cursos tem funcionado como uma métrica de desempenho docente. Os riscos para a sobrevivência profissional podem ser fatores de reavaliação da carreira ou até mesmo de permanência nela. Ou seja: “[...]se o docente universitário não responde imediatamente a um convite para publicar um artigo num dossiê̂ de um periódico científico, ou então para proferir uma palestra, ele ou ela correrá o sério risco de ser substituído(a) imediatamente por outros docentes [...]” (Zuin, 2021, p.12). Este é um reflexo direto de um mercado pautado apenas na flexibilidade e alinhado somente aos anseios capitalistas de um mercado educacional em expansão que passa ao largo dos fundamentais objetivos de uma educação voltada ao desenvolvimento da autonomia e da formação dos cidadãos. Corrobora-se que não há uma dimensão de análise voltada para o presente e o futuro do profissional docente das IES privada. Os efeitos que a pandemia e, consequentemente, a promulgação da lei 14.040/2020a já estão causando na vida destes profissionais são extremamente negativos. Perderam-se o contato físico e a interação entre aluno-professor, levando-se à conclusão de que:

O distanciamento social, sobretudo entre docentes e estudantes, abriu uma fissura no que tange a toques, olhares e acolhimentos, não apenas para a exposição de conteúdos, mas, sobretudo, para a apreensão de situações concretas que simplesmente escapam pelos fios invisíveis das salas de aulas virtuais (Gonçalves; Souza, 2022, p. 46, grifos nossos).

Do exposto, constata-se que este cenário já trouxe significativas perdas para os profissionais docentes das IES privadas e, principalmente, para aqueles alunos que necessitavam da educação como um dos elementos integrantes de seu processo de emancipação pessoal e intelectual. Uma fissura de grandes proporções foi aberta e mais do que estes efeitos deletérios já observados no momento presente, este cenário tem sido o nascedouro de uma mudança que poderá impactar definitivamente o futuro destes profissionais e os rumos da educação. A aprovação precipitada e não discutida ampla e democraticamente pode relegar o papel dos profissionais docentes das IES privada a meros tutores ou operadores de plataformas virtuais administradas pelos conglomerados financeiros a serviço do capitalismo de vigilância.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo geral do presente artigo era o de buscar compreender quais foram os principais reflexos e alterações causadas no trabalho do profissional docente das IES privada de fins lucrativos com a promulgação da lei 14.040/2020 em cenário da pandemia e capitalismo de vigilância, na qual se encontra a sociedade do século XXI, analisando-se as mudanças vivenciadas neste contexto. Realizada esta incursão, constatou-se ter ocorrido um intenso processo de precarização deste profissional, marcada pela migração impositiva para o mundo virtual e a intensificação de suas atividades laborais que apresentam um caráter polifuncional. Estes profissionais foram diretamente impactados pela promulgação da lei 14.040/2020a, que instituiu o ERE, mudando drasticamente suas rotinas de trabalho e de vida.

Como a promulgação da referida legislação não regulamentou de maneira clara e objetiva – constatando-se uma lacuna normativa – de que forma seria implantado o ERE, criou-se uma situação de caos e dificuldades para a manutenção do ensino a todos. A legislação apenas mencionou que referido formato educacional poderia ser prestado por meio das TDIC, sem que houvesse um direcionamento claro nesse sentido. Dessa maneira, acabou impondo uma migração sub-reptícia e forçada dos profissionais docentes e de seus alunos para as plataformas digitais administradas, em regra, pelas grandes empresas mundiais de tecnologia, a exemplo do Google.

Devido à celeridade que se impôs a tais mudanças, houve uma grande confusão do ERE em relação às formas de ensino já existentes no Brasil, como a EaD e a presencial. Sobre os principais aspectos que as diferenciam, resta claro que a EaD é uma modalidade regulamentada e possui um planejamento didático-pedagógico, além de contar com recursos de plataformas e tecnologias especificas para o desenvolvimento de suas atividades. De modo contrário, o ERE nasce ligado a uma situação de crise ou emergência, sem que ferramentas ou planejamento didático possa nortear as suas atividades educacionais.

Além dessa mudança imediata para o ambiente virtual, constatou-se que os recursos utilizados para promoverem às aulas nas plataformas virtuais vieram através das TDIC. O principal questionamento diz respeito à não neutralidade dessas tecnologias, tendo em vista que elas se inserem em um contexto mais amplo de capitalismo de vigilância que, por sua vez, expressa e fortalece interesses econômicos de empresas que, entre tantos outros objetivos, tratam de viabilizar a expansão do ensino de oferta no lugar do ensino de demanda. Ou seja, verificou-se que as TDIC são criadas a partir de um ponto de vista estratégico econômico de suas empresas, visando a obtenção de lucros por meio da captação de dados de navegação e utilização dos próprios dados gerados pelos usuários destas plataformas. Desta feita, não há como conceber uma total neutralidade educacional destas plataformas ou recursos tecnológicos, sem se descurar que elas foram desenvolvidas para a partir de uma lógica econômica neoliberal.

Como resultado imediato, já verificado neste cenário de pandemia, com a promulgação da lei ١٤.٠٤٠/٢٠٢٠, constatou-se que há o adoecimento mental dos profissionais docentes das IES privada. Este resultado se dá por uma série de fatores que foram gerados com a implantação do ERE, a exemplo do enxugamento do quadro de profissionais, a terceirização de seu trabalho, a flexibilização de suas rotinas profissionais, a pejotização da carreira, além do acúmulo de trabalho causado pela intensificação e /ou extensificação de sua jornada de trabalho que passou a ser integral e sem limites. Portanto, não poderia ser outro o resultado que não este de desgaste, adoecimento, proletarização e precarização docente. Além de todos os reflexos negativos já experienciados neste contexto, surge uma nova preocupação de significativa envergadura, a consolidação do que foi trazido através da implantação do ERE. Nos termos de pesquisa realizada no Conselho Nacional da Educação, há um Parecer exarado pelo conselho deste órgão e um Projeto de Resolução em que se busca a consolidação de uma nova metodologia de ensino para as IES, o processo híbrido de ensino e aprendizagem na Educação Superior. Foi descortinado que estas medidas são uma decorrência direta dos efeitos gerados pela situação pandêmica, visando legitimar o que se viu durante a aplicabilidade do ERE.

Conforme retratado neste artigo e com base nos documentos emitidos a partir do Parecer nº 14/2022 do CNE e seu Projeto de Resolução, verifica-se que a nova modalidade de ensino - representada pela educação híbrida – em discussão, pode então ser considerada como um fruto direto da pandemia da covid-19. Além de fundamentar a sua proposição no momento pandêmico, ela vem trazendo elementos diretamente ligados a essa situação de excepcionalidade sanitária, a exemplo da menção ao alinhamento com a flexibilidade e com a crítica contundente aos modelos tradicionais de ensino. Entretanto, o que não se observou nestas discussões exaradas pelo Conselho Nacional de Educação foi a sensibilidade à situação de aumento da precarização dos profissionais docentes neste contexto, em que se exaltam as TDIC, as plataformas e a flexibilidade mundial em detrimento dessa erosão da carreira docente.

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência:

Ruan Carlos Pereira Costa - Rua Augusto Gomes Branquinho, 114, Bairro Jardim Centro, 38703-004, Patos de Minas, MG. ruancarlos6@yahoo.com.br

Sálua Cecílio - Av. Nenê Sabino, 1801, Bairro Universitário, 38.055-500, Uberaba, MG.

salua.cecilio@uniube.br


1 Artigo vinculado ao Projeto Temático “Trabalho docente na cultura virtual: tendências, conteúdos e implicações para a subjetividade e a saúde de professores”, financiado pela FAPEMIG, a quem agradecemos o apoio recebido, conforme Processo APQ-01067-2018, Edital Demanda Universal.

2 Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia; Mestre em Educação pela Universidade de Uberaba; Graduação em Direito pelo Centro Universitário de Patos de Minas.

3 Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo; mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Integra o Comitê de Ética em Pesquisa e o Comitê do Banco de Avaliadores Ad Hoc do PIBIC-UNIUBE da referida instituição; Pesquisadora da Rede Latino-americana de Estudos sobre Trabalho Docente; Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas Trabalho docente, tecnologias e subjetividade.

4 Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/. Acesso em: 07 maio 2023.

5 In contrast to experiences that are planned from the beginning and designed to be online, emergency remote teaching (ERT) is a temporary shift of instructional delivery to an alternate delivery mode due to crisis circumstances. It involves the use of fully remote teaching solutions for instruction or education that would otherwise be delivered face-to-face or as blended or hybrid courses and that will return to that format once the crisis or emergency has abated.