https://doi.org/10.18593/r.v48.32611

A plenitude de capinar e tanger a boiada na roça: deixar-se ser-docente em escolas da roça

The fullness of weed and conduct the cattle in the countryside: letting yourself be a teacher in countryside schools

La plenitud de desbrozar y llevar el ganado en el campo: dejarse ser maestro en las escuelas del campo

Charles Maycon de Almeida Mota1

Universidade Estadual de Feira de Santana; Professor visitante.

https://orcid.org/0000-0001-5927-3466

Resumo: Com o presente estudo, buscou-se compreender como professores e professoras que atuam em escolas da roça constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência a partir da ruralidade da presença e produzem experiências de ser-docente numa perspectiva do ser-mais que habita espaços rurais. O método utilizado foi a Pesquisa Narrativa, com ênfase no movimento biográfico-narrativo, associada à abordagem qualitativa e ancorada nas bases da fenomenologia e da hermenêutica. Os dispositivos de pesquisa utilizados foram as entrevistas narrativas e das etnografias na roça, estes significaram possibilidade de recolha e de produção de dados. Conclui-se que deixar-se ser-docente aqui, está numa configuração daquilo que o ser-na-roça se revela num ente que é abertura constante e não se apega a um conjunto de normas e convenções sociais instituídas pelos parâmetros urbanocêntricos, mesmo tendo influência de uma formação pautada neste parâmetro.

Palavras-chave: Ruralidade da presença; Ser-na-roça; Pesquisa Narrativa; Docência na roça.

Abstract: With the present study, we sought to understand how teachers who work in schools in the countryside constitute the presentification of being-in-the-countryside to signify its existence from the rurality of presence and produce experiences of being-teacher in a perspective of being-in-the-countryside more than inhabit rural spaces. The method used was Narrative Research, with emphasis on the biographical-narrative movement, associated with a qualitative approach and anchored in the bases of phenomenology and hermeneutics. The research devices used were narrative interviews and ethnographies in the countryside, which meant the possibility of collecting and producing data. It is concluded that letting oneself be a teacher here is in a configuration of what being-in-the-countryside reveals itself in an entity that is constant openness and does not cling to a set of social norms and conventions instituted by urban-centric parameters, even having influence of training based on this parameter.

Keywords: Rurality of presence; Being-in-the-countryside; Narrative Research; Teaching in the countryside.

Resumen: Con el presente estudio, buscamos comprender cómo los docentes que actúan en las escuelas del campo constituyen la presentificación del ser-en-el-campo para significar su existencia desde la ruralidad de la presencia y producir experiencias de ser-docente en una perspectiva de ser-más que habitar espacios rurales. El método utilizado fue la Investigación Narrativa, con énfasis en el movimiento biográfico-narrativo, asociado a un abordaje cualitativo y anclado en las bases de la fenomenología y la hermenéutica. Los dispositivos de investigación utilizados fueron entrevistas narrativas y etnografías en el campo, lo que significó la posibilidad de recolectar y producir datos. Se concluye que dejarse ser maestro aquí está en una configuración de lo que ser-en-el-campo se revela en una entidad que es apertura constante y no se apega a un conjunto de normas y convenciones sociales instituidas por parámetros urbano-céntricos , incluso teniendo influencia del entrenamiento en base a este parámetro.

Palabras clave: Ruralidad de presencia; Ser-en-el-campo; Investigación narrativa; Enseñanza en el campo.

Recebido em 30 de março de 2023

Aceito em 05 de setembro de 2023

1 INTRODUÇÃO

Em meu percurso etnográfico na roça2, onde sou provocado a fazer um deslocamento de minhas formas de ver, sentir, ouvir e pensar sobre meu lugar de vida, onde constantemente estou buscando maneiras de afirmar quem sou e o que me motiva a viver este espaço da roça e, com isso, significar a docência que desenvolvo, estou sendo convocado por aquilo que me afeta, sejam coisas ou acontecimentos. Quando algo me afeta, passo a ver, sentir, ouvir, pensar e narrar a seu respeito de um modo diferente, sobrecarregado de espanto e, ao mesmo tempo, admiração. Sendo assim, passo a construir uma relação de intimidade com as coisas e os acontecimentos com os quais sofro a afecção. Essa afecção que me acomete traz em si uma carga intensa de sentidos outros para aquilo que sempre vi, ouvi, senti e pensei, mas não representava muita coisa em minha vida até que fosse acometido pela afecção.

O sentido que apresento com o modo de afecção pelas coisas ou acontecimentos na roça tem uma sobrecarga semântica relacionada com uma intensidade de adoecimento que carrega consigo formas de sentir e perceber a partir de uma sensibilidade que nos mobiliza a notar o que estava o tempo todo com a gente, mas não era visto, muito menos sentido. Nesse processo de etnografar a vida e a docência na roça, realizei o movimento de observação, escrita, reflexão e interpretação das formas como as pessoas desse espaço produzem sentidos para habitar a roça, compreendendo que minha implicação com esse lugar me oferece condições próprias para entender como somos convocados pelos elementos que compõem a existência na roça.

Isso significa que para pensar narrativamente sobre as experiências que professores/as que habitam a roça e desenvolvem a docência em escolas neste contexto, é necessário tomar a própria vida e a experiência na roça e na docência como lastro importante que propõe modos específicos de compreensão do ser-na-roça3, considerando o movimento hermenêutico-interpretativo para entendimento das formas como o ser-na-roça vai sendo desvelado através do que cada ente toma para significar sua existência no espaço habitado.

É importante mencionar que este texto representa um recorte de uma pesquisa desenvolvida no processo de doutoramento4, tendo como questões da pesquisa as seguintes: Como professores/as que atuam em escolas da roça constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência? Como professores/as de escolas da roça produzem experiências de ser-docente numa perspectiva do ser-mais que habita espaços rurais? 

Nesse sentido, apresento uma discussão sobre a docência na roça a partir da perspectiva da ruralidade da presença5 como mote para discutir como o movimento de habitar a roça na profissão docente se dá, visto que há uma especificidade em desenvolver a profissão docente quando consideramos o habitar a roça como forma própria que cada pessoa produz para significar seu ser-no-mundo.

Pensar a docência na roça, tomando a presentificação do ser-na-roça como possibilidade de valorização do lugar habitado, coloca a escola num patamar privilegiado nas comunidades rurais, assim como o ser-docente. Dessa maneira, é possível dar centralidade aos processos formativos na roça através do caminho da experiência que cada pessoa desse lugar se propõe a trilhar, considerando o demorar-se nas paradas desse caminho no qual nos lançamos e produzimos nossas trajetórias de vida-formação-profissão, compreendendo a docência como um movimento que vai sendo instituído pelos modos como o deixar-se ser-docente em escolas rurais tem imbricação com a plenitude de um fazer-se fazendo-se.

A expressão presentificação do ser-na-roça é o entendimento que apresento para compreender os movimentos realizados pelos entes das pessoas que habitam a roça pelas condições de fazer-se fazendo-se roça, numa provocação de abertura constante de um ser-sendo que se revela com acontecimentos6 do ser-na-roça. Com isso, entendo que é a partir da valorização dos sujeitos em suas multidimensionalidades que as instituições escolares poderão garantir um diálogo nas relações entre as diversas culturas e, consequentemente, gerar possibilidades de êxito no processo de desenvolvimento cognitivo, social e cultural dos indivíduos. Reitero que há uma grande relevância em concentrar esforços na pesquisa, que dá centralidade aos modos de existir como professor/a da roça que atua nas escolas rurais, como um movimento que propõe condições outras de entender a docência na Educação Básica numa perspectiva da ruralidade da presença.

Proponho com a ideia de ruralidade da presença pensar modos que venham congregar valor aos sentidos, significados e simbologias que a roça como lugar habitado tem para cada pessoa que está imersa nessa realidade, buscando superar estigmas e preconceitos através de mecanismos convergentes com a afirmação de ser quem somos, por morar onde moramos, assumindo uma identidade constituída pela diferença que nos constitui por habitar a roça como oportunidade de reconhecimento como ser político (FREIRE, 1996).

Essa ruralidade da presença é pensada como abertura para a manifestação do ser-na-roça numa presentificação que evidencia passado-presente para afirmar ou não uma vida autêntica a partir de um mostrar-se livre e aberto que na claridade se presenta e ausenta. Conforme os escritos de Heidegger (1991, p. 77), “[...] a clareira, no entanto, o aberto, não está apenas livre para a claridade e a sombra, mas também para a voz que reboa e para o eco que se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta”. O ente das coisas necessita da clareira para que o ser se manifeste. Essa manifestação intenta para um pensar original da tradição que se encontra no caminho da experiência, pois é no caminhar que produzimos experiências e ao produzi-las temos a possibilidade de claridade sob esses pensamentos que sendo desvelados podem aparecer e se ocultar.

Utiliza como método a Pesquisa Narrativa com ênfase no movimento biográfico-narrativo, associada à abordagem qualitativa, estando ancorado nas bases da fenomenologia e da hermenêutica, por buscar compreender o ser em seu contexto de vida e a partir dos sentidos que atribui à sua condição de existir em contextos rurais. Tomo como dispositivos de pesquisa as entrevistas narrativas e as etnografias na roça, instituindo como processo de análise das narrativas a proposta interpretativo-compreensiva pelas condições de compreender o que narram professores e professoras de escolas da roça, levando em conta seus contextos de vida.

2 ENVERADAMENTOS METODOLÓGICOS: DEMORAR-SE NAS PARADAS

Lancei-me na produção de uma experiência provocativa do ser-na-roça que ia sendo desvelado como o movimento de demorar junto com as coisas e os lugares dessas paradas, compreendendo como seria habitar poeticamente a roça, num fazer-se fazendo-se pesquisador/a, reunindo e (re)colhendo coisas (in)significantes que ia encontrando nesses percursos. Meu olhar de Fontana (BARROS, 2015) não era atraído para coisas muito valiosas, já que me contentava com restos e as coisas pequenas, que para mim eram os desperdícios do tempo e da natureza. Parece que era uma convocação de um desver7 a roça e as coisas nessas paradas pela condição de uma presencialidade que se fazia num jogo de mostrar-se e ocultar-se de um ser-sendo que era convocado e instituído constantemente pela ruralidade da presença.

Os restos e as coisas pequenas a que faço menção são penas de passarinhos, sementes de mucunãs8, búzios, pedrinhas exóticas, vargens de plantas nativas. Juntamente com essas coisas e restos, trago as narrativas (re)colhidas. Tudo isso ficou impregnado em minhas narrativas e numa capanga9 surrada do tempo que tenho aqui em casa. Disso se deu a produção dessa pesquisa narrativa. É justamente nas paradas que conseguimos nos deslocar e mudar nossas concepções de mundo, pois, conforme Clandinin e Connely (2015, p. 47) “[...] sabemos o que sabemos por causa do lugar no qual nos posicionamos na Parada. Se mudarmos de posição na Parada, nosso conhecimento muda”.

É importante para o/a pesquisador/a registrar e demarcar situações e paradas, revisando o conhecimento e as concepções a respeito do fenômeno pesquisado de modo a descrever a organização que faz ou pensa antes de ir a campo, considerando sua narrativa de vida e sua experiência com seu espaço de vida assim como onde pretende desenvolver sua pesquisa, evidenciando tal fenômeno de pesquisa, seus olhares iniciais, percepções, consciência ético-política, leituras a respeito de literatura e propostas de pesquisa narrativa já desenvolvidas. Em decorrência desse movimento da pesquisa pude organizar um planejamento que originou na proposta da Jornada investigativa na Pesquisa Narrativa, como proponho com a figura 1.

Figura 1 - Jornada investigativa na Pesquisa Narrativa

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Fonte: Diário do pesquisador, janeiro de 2019. Elaborado pelo pesquisador.

Os pontos elencados e demarcados com um verbo, inicialmente, apresentam-se como um roteiro com intenções de paradas que o/a pesquisador/a vai pensando no decorrer de seu aprofundamento nas produções que retratam percursos realizados que tomaram o enfoque biográfico-narrativo no âmbito da pesquisa narrativa. Esse movimento de definir pontos/paradas para o procedimento de pesquisa foi desenvolvido evidenciando o planejamento do/a pesquisador/a que surgiu no movimento formativo que este/a instituiu para si ao se envolver nesse processo da pesquisa narrativa.

Cabe aqui explicitar de maneira mais detalhada os motivos pelos quais foi instituído cada ponto/parada como proposta de roteiro de uma jornada investigativa na pesquisa narrativa como aspectos relevantes da composição de um conjunto com elementos considerados como basilares no processo formativo do/a pesquisador/a.

Aprofundar teoricamente acerca da Pesquisa Narrativa coloca-se como atividade primordial para o/a pesquisador/a que assume o enfoque biográfico-narrativo no âmbito da pesquisa narrativa como método no processo de investigação, pois é o divisor de águas na definição de conceitos e apropriação de especificação e termos que são empregados no decorrer das narrativas que cada pesquisador/a se propõe a construir.

Narrar a vida autobiograficamente é o movimento que possibilita ao/a pesquisador/a escrever o texto e inscrever-se nele de modo a narrar sua vida e sua experiência numa perspectiva de cruzamento com as histórias de vida dos/as envolvidos/as na pesquisa. A pesquisa narrativa se apresenta como um espaço em que o sujeito pesquisador busca compreender as narrativas dos outros ao intercruzá-las com suas próprias narrativas.

Evidenciar o fenômeno de pesquisa a priori para entrada no campo significa refletir a respeito das questões de pesquisa e se permitir fazer questionamentos, tais como: Como a pesquisa narrativa poderá contribuir para a investigação? Como o movimento de formação na pesquisa ao desenvolver a pesquisa narrativa com enfoque biográfico-narrativo se constitui como potência na área de educação? Isso contribui também para pensar como e quais serão os movimentos utilizados para que o/a pesquisador/a avance no desenvolvimento de posturas ético-políticas que o/a possibilitem desenvolver os processos de aproximação e distanciamento de sua realidade de vida para obter êxito na realização do estudo a que se propõe.

Pensar metodologicamente como fará a entrada no campo, instituindo princípios epistemo-político-sociais é um movimento a partir do qual o/a pesquisador/a apresenta os motivos de suas escolhas justificando epistemologicamente cada caminho e/ou posição que toma como mote para o aprofundamento teórico-metodológico que se associa à perspectiva de pesquisa que pretende realizar. Para isso, é relevante considerar princípios políticos e sociais do/a próprio/a pesquisador/a e também dos espaços que são lócus de pesquisa.

Definir dispositivos de pesquisa para a produção e (re)colhimento das narrativas é uma ação que toma como base para escolha e definição o lócus, colaboradores/as da pesquisa e o fenômeno, pois servirão para efetivação do estudo no que se refere ao (re)colhimento dos dados e à validação de pesquisa narrativa. Os dispositivos de pesquisa se transformarão nas etnografias na medida em que forem utilizados e possibilitam o registro das narrativas que surgem no campo.

Preparar entrada no campo é o momento em que o/a pesquisador/a se organiza para se envolver nos espaços nos quais será realizada a pesquisa narrativa. É construído a partir da ampliação de categorias teóricas que compõem a pesquisa e procedimentos metodológicos que agregarão valor ao desenvolvimento do estudo.

Produzir e (re)colher as narrativas com a experiência no campo é o movimento de produção que acontece quando o/a pesquisador/a se encontra em campo, quando tanto (re)colhe narrativas através de cada texto de campo definido como constrói suas narrativas a partir de comentários sobre as observações que faz. Cada detalhe percebido dá sentidos outros ao que está registrado com as narrativas dos/as colaboradores/as de pesquisa.

Articular narrativas do/a pesquisador/a e experiências do campo com as narrativas de colaboradores/as da pesquisa é resultado do intercruzamento das narrativas que surgem em três níveis: um refere-se a tudo que foi registrado e compõe narrativas na perspectiva dos/as colaboradores/as de pesquisa; o outro é a vida do/a pesquisador/a narrada autobiograficamente, que vai sendo (re)significada após cada experiência vivenciada, e no terceiro nível, por fim, entram em cena todas as narrativas que compõem a experiência do/a pesquisador/a no movimento de sua vivência em campo. Isso tudo é reorganizado, de modo a figurar uma narrativa com ênfase na proposta de tridimensionalidade que articula experiência e temporalidade.

Transformar textos de campo, relatos biográfico-narrativos e experiências de campo do/a pesquisador/a em relatório de pesquisa é o momento em que o/a pesquisador/a se utiliza da narrativa gerada pela articulação dos três elementos e é resultado do movimento que relaciona a experiência e a temporalidade para evidenciar o fenômeno de pesquisa e apresentar as possíveis considerações a respeito do que se propôs a investigar. Essa transformação resulta na tese, na dissertação ou no relatório de pesquisa com a reunião de todos os procedimentos que o/a pesquisador/a realizou no decorrer da jornada de investigação na pesquisa narrativa, sendo o encerramento de um ciclo que congrega aprendizagens experienciais com a produção científica que resulta na formação do/a pesquisador/a, que só se efetiva no fazer fazendo-se pesquisador/a ao vivenciar todo o processo que compõe a pesquisa narrativa.

Cada movimento realizado, seja para pensar pontos/paradas, seja para passar por esses pontos e fazer as paradas, se coloca na pesquisa narrativa como espaços potentes de formação para o/a pesquisador/a e também para os/as colaboradores/as de pesquisa, trazendo diversas contribuições para a área educacional, visto que esse é um momento no qual os sujeitos, mais do que nunca, necessitam repensar suas condições de ser-na-roça e tomar seus modos de ser-viver-na-roça para (re)significar a vida e conseguir sentidos outros para (re)existir em contextos rurais.

Essas e muitas outras premissas permeiam a compreensão do/a pesquisador/a que se encontra em formação e pretende desenvolver uma pesquisa narrativa. Ao pensar a pesquisa narrativa e construir um plano ou um roteiro de pesquisa tive a possibilidade de elencar questionamentos que versam sobre como essa vertente pode se tornar um espaço fecundo e potente de minha formação como pesquisador com possibilidades para pensar processos educacionais nas escolas da roça. Logo, outras motivações surgem, alinhavando-se aos questionamentos anteriores a respeito do enfoque biográfico-narrativo no âmbito da pesquisa narrativa como possibilidades outras de repensar nossa condição como moradores/as da roça, fazendo com que o movimento de reflexividade formativa se inicie no bojo desses questionamentos e gere pensamentos acerca de como desenvolver tal investigação. Assim, me dispus a buscar entender o que está no entremeio de nossas histórias e as histórias dos/as colaboradores/as da pesquisa, assim como o que pode preencher esse entremeio na pesquisa narrativa.

Tal entremeio (CLANDININ; CONNELY, 2015) surge para fazer uma referência a tudo que vivemos em dimensões do tempo e do espaço, do pessoal e do social entre a nossa história de vida e as histórias de vida dos outros. Na verdade, vamos nos percebendo como sujeitos narrativos que vivem suas próprias histórias e as histórias dos outros, pois têm muito em comum, como o espaço de vida, e estão envolvidos em processos que possibilitam a produção de sentidos intersubjetivos a partir de momentos vivenciados nos mesmos espaços, porém, com experiências diferentes. Isso muitas vezes pode ser o entremeio que se apresenta nesses questionamentos e nos coloca no movimento de reflexão.

Neste caso, considero a pesquisa narrativa um espaço epistemológico de indagação, reflexão e descoberta. Além disso, conforme Hernández (2017, p. 59) a narrativa pode ser tomada como espaço de investigação, pois “[...] narrar não é apenas realizar a descrição de um acúmulo de experiências (...). O que pressupõe que o indivíduo se abra ao convite de descrever como os sentimentos, (...) a memória de nossa trajetória... influenciaram o autor do relato”.

É com esse fazer pesquisa e tornar-se pesquisador/a, tomando a narrativa como espaço de investigação e indagação, que vamos constituindo os modos de ser, fazer e formar-se pesquisador/a na roça, que nos percebemos entre dilemas e situações delicadas de uma fragilidade como pesquisador/a, pois ao longo do tempo fomos acreditando que fazer pesquisa e produzir ciência seria uma condição que separava o pessoal do profissional, já que a nossa vida não era relevante para a ciência, conforme uma concepção positivista. Com a entrada das propostas de uma ciência construída por pessoas e para as pessoas, essas concepções vão sofrendo modificações, possibilitando que os/as pesquisadores/as pudessem validar seus modos de ser e fazer pesquisa, apresentando seus contextos de vida e justificando suas implicações a partir de lugares de fala.

Nessa proposição das paradas o estudo foi planejado, inicialmente, em dois momentos ao considerar o objeto de estudo e a problemática da presente pesquisa. Estes dois momentos foram configurados do seguinte modo: 1) mapeamento das pesquisas nos bancos de Teses e Dissertações IBCIT e CAPES intentando para o movimento de etnografar ruralidades através das concepções apresentadas em cada estudo que compôs o Estado da arte (MOTA; SILVA; RIOS, 2021) e; 2) realização de entrevistas narrativas e etnografias da roça para compreender quais as experiências professores/as de escolas rurais produzem na relação de ser-docente com suas formas de habitar a roça.

Cabe ressaltar que as etnografias da roça foram produzidas como forma de narrar minhas compreensões a respeito do movimento de pesquisa que realizei e, se apresentam como dispositivo, tendo o propósito potencializar discussões e reflexão a respeito de núcleos de sentidos que emergiram das narrativas. Nesse caso, a utilização das entrevistas narrativas se configurou como dispositivo de pesquisa que complementou o movimento das etnografias da roça, possibilitando pensar as experiências como oportunidade para outras maneiras de narrar a vida e considerar as realidades dessa vida.

Apresento a seguir os/as docentes narradores/as10 através de excertos das narrativas de si que são reveladas nos percursos das entrevistas narrativas.

Geni-Acauã11:

Sou morador daqui de Nova Esperança desde quando nasci, me criei aqui e estou até hoje com 53 anos junto com minha família. [...] Quando comecei essa trajetória na Educação, [...] em 1982, mas comecei a trabalhar mesmo em 1984. [...] Fiz a faculdade de Geografia e a pós-graduação em Geografia Física e das Populações e continuo na luta. Em setembro dia 15 mais ou menos, é final de inverno início de primavera, estou chegando aos 36 anos nessa trajetória da Educação [...]. Quando entrei para trabalhar na Educação eu tinha uma certa habilidade com cortes de cabelo, [...] quando entrei na Educação não parei com esta atividade, [...] durante a semana, [...] a Educação é prioridade, no final de semana, [...] ou feriado [...] atuo aqui num pontinho, faço bico. (Entrevista narrativa, 2020)

Di-Acauã:

Morar na roça para mim é um privilégio porque eu sempre morei na roça, nasci na roça. [...] Meu primeiro trabalho também foi escola da roça. Eu tinha alunos na época [...] que eram quase da minha idade [...]. Sou professora de ciências do 6º Ano até o 9º Ano [...]. Estou fazendo a especialização do ciências 10 pelo IFBA. [...] Fiz esse concurso público mesmo antes de terminar o Ensino Médio, o concurso foi em abril e eu iria terminar o Ensino Médio em dezembro, então eu não tinha o diploma de Ensino Médio, portanto eu não podia fazer o concurso para professor nível 1, tive que fazer o concurso para Regente auxiliar que me garantia direito a ensinar de primeira a quarta série. (Entrevista narrativa, 2020)

Sebastião-Acauã:

Moro em uma comunidade muito pequena, nosso município também é um dos menores da Bahia. Eu comecei essa luta como professor, [...] era menor de idade ainda, eu tinha 17 anos. Foi desde 1991 que eu comecei a dar aulas como professor leigo, pois eu não tinha o magistério até então, e, depois, continuei estudando e consegui o magistério. Aqui na comunidade nós só temos até o nono ano. Para cursar o Ensino Médio, temos que nos deslocar para a cidade [...]. Comecei [...] como professor de Alfabetização, [...] após o concurso eu fui trabalhar no Fundamental II como professor de Matemática, mas não tinha formação de Matemática não, só depois que fizemos a faculdade.

Damiana-Acauã:

Tenho 55 anos de idade e sempre morei na zona rural, estudei em escola do campo. Até hoje ainda estou trabalhando na história na escola do campo. Trabalhei 20 anos como professora leiga que era chamado aqueles tempos atrás. Depois de 20 anos que eu trabalhava como professora leiga, fiz uma faculdade. Então, me tornei pedagoga, estou trabalhando ainda na sala de aula. Já fiz dois cursos de Pós-graduação. (Entrevista narrativa, 2019)

3 A PLENITUDE DO SER-DOCENTE EM ESCOLAS RURAIS

Percebo que narrar sobre capinar e tanger boiadas na roça e a plenitude que esses afazeres da lida na roça representam se colocam aqui como atividades feitas de cor-ação12, portanto, feitas com sangue (FOGEL, 2015). Esses afazeres são realizados com envolvimento e vontade, uma ação de todos os dias, faça sol ou faça chuva. Capinar e tocar ou tanger boiadas na roça são ações que desencadeiam acontecimentos do ser-na-roça que é presentificado na e com a intensidade como se envolve e é afetado pelo seu fazer.

No movimento da escrita que realizo sobre a tese-vida que me proponho a desenvolver, faço com coração, pois mobilizo intensamente todos os meus esforços de força e pensamento para compreender o ser-na-roça a partir do movimento hermenêutico-interpretativo. Enquanto isso, meu pai e mais quatro vizinhos realizam a tarefa de capinar alguma área de terra. Um fazer diário e incessante, já que, quando acabam o eito13, tomam outro; quando terminam essa área de terra já precisam iniciar em outra parte, pois o mato cresce com força.

Se não capinar, esse mato toma toda a plantação, sufocando-a e se sobrepondo ao que fora plantado e dessa maneira nada vinga. Capinar a terra em cada plantação envolve cuidado nos mais variados sentidos. Arrancar o mato pela raiz. Dependendo do que está sendo cultivado é preciso dar terra à planta14 ou até mesmo juntar o mato em pequenas coivaras15 para não atrapalhar o crescimento da plantação. Essa é uma atividade que exige preparo físico para a roça, mãos fortes e grossas para o manuseio da enxada, tudo isso é feito de coração, envolve vontade, delicadeza e cuidado.

Ao mesmo tempo em que estou a escrever e produzir textos sobre as (in)significâncias que se encontram em meu habitar poeticamente a roça e acompanhar as pessoas capinando suas roças, ouço gritos e aboios16 de pessoas tangendo boiadas na estrada aqui em frente de casa. O gado vai sendo tocado por homens montados a cavalo. Ora seguem tranquilos, em outros momentos seguem mais apressados e quando o gado que está no meio da boiada avista ou sente cheiro de outro gado que se encontra nas roças ao lado das estradas e corredores, começa a berrar, às vezes se agita, às vezes só berra anunciando sua passagem por aquele lugar, outras vezes parecem iniciar um entoar berradeiro que movimenta os olhares de todo ser vivente que se encontra ali por perto.

Tanger boiada requer cuidado, atenção e firmeza. Precisa saber o momento de relaxar sem se descuidar, decorando rapidamente o que torna cada boi único naquela boiada, observando como cada um deles reage à condução que o vaqueiro e os cachorros vão realizando. Tudo precisa ser feito de coração, com sangue, envolvimento, seguindo o tempo dos bichos, estando preparado para as eventualidades da estrada. Os cavalos, os cachorros de gado17 e os vaqueiros vão seguindo o ritmo da boiada. Seus aboios se realizam conforme o caminhar do gado e chega um momento em que tudo toma rumo, então, o gado, o cavalo e o vaqueiro seguem um só ritmo, caminhando conforme suas vontades. Para tanger boiada na roça é necessário entender de manha de gado e arte de tangedura, assim como contar com cachorros e cavalos que disso entendem também, pois os comandos são precisos e necessários para tocar boiada palas estradas afora.

Cada afazer que nos propomos realizar na roça exige plenitude, seja capinar, tanger boiada na roça, escrever ou desenvolver a docência. Cada atividade exige nossa atenção, nossa dedicação, nosso envolvimento e nossa força. São atividades feitas com sangue, de coração. Afazeres que nos oferecem condições de aprender constantemente com as observações, o modo e a intensidade com que somos convocados e provocados a desenvolver.

A plenitude se faz pela forma como cada pessoa que se propõe a fazer se entrega e se afeta com o que está fazendo. Isso revela o ser dos entes e institui para as pessoas da roça sua condição de ser-mais evocada a partir de sua existência na roça. A plenitude está compreendida aqui pelas formas de envolvimento e doação que cada pessoa da roça depreende para realizar as atividades e afazeres que são convocadas a fazer em seus lugares habitados. Não é diferente com a docência em escolas da roça. São inúmeros os sentidos que as coisas e o tempo na roça me provocam para pensar narrativamente a docência e o ser-docente, considerando os modos de afecção pelas coisas e acontecimentos do ser-na-roça, considerando formas de ver, sentir, ouvir e pensar próprios de minha circunvisão neste lugar.

A professora iniciou sua narrativa apresentando como era sua lida na roça juntamente com seu esposo, relatando que a primeira coisa que os dois fazem ao levantar bem cedinho é a realização da ordenha com algumas vacas que tem em sua propriedade. Em seguida, organiza a alimentação dos animais de pequeno porte como galinhas, perus, saques18 e pintos e somente após ter cuidado e organizado a alimentação desses animais é que vai preparar o café da manhã.

Depois de realizar todo esse movimento dos afazeres matinais da roça, a professora Di-Acauã segue para a escola da rua, em que leciona a disciplina de Ciências em apenas três turmas de Séries Finais do Ensino Fundamental do Instituto Educacional São Francisco de Assis – IESFA. Essa é uma carga horária extra, pois é lotada com as 20 horas de sua carga horária efetiva através de concurso público no CECALF, onde também ensina a disciplina de Ciências nas Séries Finais do Ensino Fundamental.

A professora mencionou que sua chegada na escola da roça é bem diferente da escola na rua, pois na escola da roça ela vivencia um momento de partilha, pois, como precisa chegar mais cedo, antes do início das aulas no período da tarde, acaba se encontrando com colegas professores/as que vêm de lugares mais distantes e almoçam juntos/as. Isso traz à tona condições de uma relação que se efetiva a partir de momentos de envolvimento e prazer por estar com quem compartilha as histórias e fazeres na escola da comunidade.

As narrativas da professora Di-Acauã vão evidenciando as práticas que esta desenvolve com estudantes e que se potencializam fora da escola, quando os/as estudantes são desafiados/as a produzirem ações da agricultura familiar nos quintais de suas casas ou em outros espaços da propriedade rural que vivem. Ao mencionar esse trabalho, a professora ressalta o envolvimento das famílias nas atividades solicitadas e orientadas pela escola. Isso tem dado condições de uma melhor interação desses familiares com a escola, pois são atividades que estão relacionadas com suas experiências de vida e afazeres do cotidiano na roça.

A partir disso, a professora indicou que ser da roça possibilita entender quem estuda em escolas rurais, pois sabe das dificuldades que as pessoas enfrentam para chegar na escola, seja professor/a ou estudante. Para algumas pessoas, os percursos entre suas casas e a escola são longos, ficando difícil para acessar a escola em tempo de chuva, pois, muitas vezes não têm como se deslocar. Então, se manter estudando ou exercendo a docência em escolas da roça requer muito esforço, estímulo e entusiasmo:

Estamos sempre perto do aluno e sabemos entender o aluno porque eu também sou da roça. Sei quais são as dificuldades para chegar na escola, principalmente quando chove. Teve um dia de uma festa do São João que fiquei responsável para levar as cocadas, comprei as cocadas e quando eu fui no horário da festa tinha chovido, caí de moto na Ladeira indo para escola, fiquei sem saber o que fazer, pois não aguentava levantar a moto de cima de mim no meio da ladeira e, era só pedindo a Deus que não viesse carro nem outra moto, porque se viesse não tinha como frear, iria me matar ali. Mas graças a Deus consegui sair, empurrando a moto mesmo deitada no chão, eu ia empurrando a moto porque quando eu levantava meus pés na lama não ficava, não se fixavam, escorregavam, eu escorregava e a moto escorregava, então fui deitada empurrando a moto até o final da Ladeira. Depois fui até a casa da minha tia, ela curou minhas feridas, não tive como chegar até na escola, mas passou por ali alguém que ia até o povoado e enviei aquelas cocadas. A festa não aconteceu com a minha presença, mas o que eu tinha que levar, chegou a tempo, aconteceu tudo. Voltei machucada para casa, fui curar os ferimentos, mas graças a Deus não desisti também porque para ir de minha casa para a escola não tem como ir a pé, é muito longe, mesmo às vezes com medo, vou para a escola, meu transporte é a moto que eu uso. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)

Estar perto e saber entender o/a aluno/a de escolas da roça considerando toda condição de ser e viver na roça tem outra perspectiva quando o/a professor/a também mora e desenvolve suas atividades docentes na escola da roça, uma vez que tanto o/a professor/a como o/a estudante deparam-se com dificuldades de acesso, dilemas para continuar estudando, dificuldade para conciliar os afazeres na roça e o compromisso com o estudo, ausência de apoio e incentivo de políticas públicas e ainda outras implicações específicas que se apresentam com as temporalidades da roça.

Todas estas questões com as quais professores/as e estudantes de escolas da roça lidam ao longo de suas histórias de vida-escolarização congregam para a produção de experiências que se colocarão como pilar para suas formas de significar a vida na roça pelo fato de serem provocativas para afirmar uma vida autêntica que cada ente vivente na roça deixa-se ser a partir de como fez-se abertura neste movimento de produzir experiências. Ao narrar acontecimentos na roça que provocam formas diversas de lidar com o inesperado, a professora Di-Acauã apresenta uma situação específica que impediu sua chegada à escola, mas não comprometeu o andamento da comemoração com a qual havia se comprometido.

Essa narrativa que Di-Acauã realiza evidencia um fato que coloca sua vida em risco e como lida com o inesperado e a circunstancialidade do momento vivido. Tal acontecimento não significa para a professora motivo de desistência, pois, pelo contrário, provoca-a a encontrar maneiras de chegar à escola todos os dias, utilizando sua motocicleta como principal transporte para acessar seu espaço de trabalho. Habitar a profissão docente na roça tem forte relação com as temporalidades que demarcam momentos e condições próprias de acesso à escola em espaços rurais. Essas temporalidades da roça propõem condições próprias de (re)existir e persistir como professor/a de escolas da roça por trazer consigo possibilidades de abertura para o ser-na-roça.

Neste sentido, entendo que habitar a roça na profissão docente vai sendo uma produção desencadeada a partir da reunião entre as condições que as temporalidades da roça acontecem e como construímos modos de significar a vida na roça em meio a essas temporalidades. Essa reunião traz em si uma maneira específica de pensar e desenvolver a docência. É neste movimento de habitar a roça na profissão e construir um habitar a profissão docente na roça que compreendo o deixar-se ser-docente, considerando que para construir habitações é necessário que sejamos abertura para o ser.

Reafirmar a identidade como professora da roça é uma situação que desencadeia compreensões sobre a vida e a docência neste espaço, de modo a valorizar formas próprias das pessoas que moram na roça e acessam a escola. É também possibilidade de ampliar horizontes e reconfigurar formas de ver, ouvir, sentir e pensar, considerando como cada morador/a da roça se relaciona com o lugar e a partir disso produz suas formas de habitar a roça. A Professora Di-Acauã traz em suas narrativas a relação que existe entre elementos de urbanidade e ruralidades em seu contexto de vida, ressaltando como isso tem sido necessário para o desenvolvimento dos espaços rurais como manutenção de melhores condições de fazer e viver em contextos rurais. Ela destaca que a roça é lugar de constituição das relações, deixando em evidência que sua família tem fortalecido os vínculos em torno da roça.

Além disso, discorreu sobre o respeito que as pessoas da roça nutrem pela figura do professor/a, fazendo com que tanto a escola como a família signifiquem espaços de formação que proporcionam uma relação colaborativa entre as famílias e a escola da roça. Tudo isso gera possibilidades de um fazer docente que leve em conta os afazeres da roça com a docência, dando centralidade à vida neste contexto como uma proposta coerente e de respeito aos processos vivenciados na roça. A professora Di-Acauã narra como tem percebido o desenvolvimento de um fazer docente num contexto em que a ausência de incentivos e proposta de políticas públicas se fazem escassas e como a comunidade se organiza diante dessa situação, criando possibilidades de um fazer que se produz na contramão das intencionalidades de lógicas hegemônicas que tentam privar as pessoas da roça daquilo que é direito de qualquer grupo ou comunidade:

Acho que as políticas públicas acontecem um pouco, tinha que acontecer bem mais no investimento na escola da roça porque ainda é pouco. A escola na zona rural precisa, tem que se investir, procurar políticas públicas para que aquela escola permaneça, porque aquela escola quando é retirada daquele lugar, retira-se também a festa, o almoço em comunidade, no tempo de São João a quadrilha, que às vezes, a comunidade está ali para participar. Acho que a escola na zona rural quando é fechada, o impacto é visível, tanto para os alunos quanto para a comunidade do entorno dessa escola. Acredito que não é a melhor forma fechar a escola, mas que a escola promova e faça algo para trazer esses alunos do entorno e seja uma escola prazerosa para que eles possam estudar ali, porque às vezes eles têm essa noção de que ir para cidade é melhor, que estar dentro do ônibus é melhor, sem saber que está arriscando a sua vida, sendo que ali na escola no entorno, perto da sua casa é de grande valia para os alunos e, também, para toda a comunidade local. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)

As narrativas dessa professora trouxeram à tona situações recorrentes que as escolas da roça enfrentam, pois sempre estão em segundo plano, quando são consideradas pelas políticas públicas. Ela destaca que isso já melhorou em nosso município, mas essa visão ainda persiste, pois o movimento de fechamento de escolas de comunidades rurais vem sendo, ao longo dessas duas últimas décadas, intensificado, atendendo a concepções dos grupos hegemônicos.

Com isso, as escolas que ainda permanecem sofrem ataques e é alvo de desmonte de uma proposta que mantém a comunidade com um vínculo mínimo, ou nenhum, de representação do poder público em espaços rurais. Esta questão reforça todos os estigmas e estereótipos pejorativos que foram e, ainda, são atribuídos às pessoas da roça e seus espaços de vida, impondo para estas pessoas a condição de não-gente (MOTA, 2019) que vai se mantendo pelas ausências daquilo que é direito de meninos/as, homens, mulheres e idosos/as diante da constituição federal e da declaração universal dos direitos humanos.

Mesmo com todas as dificuldades que as escolas da roça enfrentam em seu processo de existência, se apresenta como um espaço potente para a comunidade, uma vez que esta representa o lugar de celebração e encontro na roça, sendo considerada como espaço de partilha e festejos que não está restrito a estudantes e professores/as, mas sempre se coloca aberto para a comunidade. Com isso, há uma participação efetiva de moradores/as da roça neste espaço. Este é um movimento de insurgência que as pessoas da roça realizam, como forma de resistência a lógicas hegemônicas que tentam eliminar a roça e suas tradições, de maneira intencionalmente organizada para manter o trabalho escravo e uma condição de subalternidade.

Conforme as narrativas de Di-Acauã, a escola representa muito mais que um espaço de execução de propostas pedagógicas e curriculares centradas apenas no conhecimento científico e técnico. Ela se coloca nas comunidades rurais como espaços potentes de formação de toda a comunidade, fazendo-se condição provocativa de um deixar-se ser-na-roça por ser instituída pela ruralidade da presença que se revela no ser-docente de professores/as que habitam a roça.

A gente tenta tornar a escola um lugar prazeroso, não só para os alunos, mas também para a comunidade, para os pais. A gente sabe que na roça não tem tantos atrativos como na cidade, então tudo que a gente tenta fazer na escola da roça não é só para os alunos, a gente tenta fazer para toda a comunidade local. Se a gente faz uma festa do São João, a gente não faz apenas para os alunos, a gente convida a comunidade, já que a escola da roça não tem tanto atrativo, a roça não tem tanto atrativo. Na escola a gente proporciona este envolvimento da comunidade, faz café da manhã todo mundo junto e em todas as comemorações da escola a gente tenta trazer a família e a comunidade, já que é um lugar que não tem tanto atrativo. Na comunidade e na roça a gente tenta promover este envolvimento e a família está ali com toda dedicação, com toda vontade de participar dos festejos. Acho que um ponto significativo é que a gente faz na escola da roça é comemorar junto com a comunidade, dá essa oportunidade para eles estarem na escola desfrutando também daqueles momentos de diversão. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)

O significado e importância que a escola e a docência têm na comunidade rural representam a compreensão de modos de existencialidade na roça pelo lugar da potencialização das relações entre as pessoas do lugar, considerando o movimento formativo que se dá com o outro e com o lugar de vida. Quando a professora Di-Acauã menciona em sua narrativa que a escola da roça e este espaço de vida não têm muitos atrativos, fica evidente que há uma comparação com espaços de escolas urbanas e locais de lazer que existem na cidade. Isso não coloca a escola rural e nem a roça numa condição de inferiorização, ao contrário, pois a atratividade nestes espaços se configura pelo envolvimento entre as pessoas da comunidade no espaço da escola.

A potência disso tudo está no modo como o ser-docente é revelado, provocando professores/as como Di-Acauã pensar e compreender que a escola da roça e o próprio fazer docente podem propor outras formas de atratividade que levem em conta as subjetividades das pessoas que habitam a roça e se colocam como parte dessa escola e da formação pela e na intersubjetividade demandada do envolvimento coletivo. Sebastião-Acauã menciona em sua narrativa o quanto a escola se coloca como espaço de acolhimento e proposição de envolvimento das pessoas da comunidade a partir das comemorações que são desenvolvidas neste espaço, mobilizando toda comunidade como movimento de lazer, co-formação e fortalecimento de vínculos entre esta comunidade e o espaço escolar na roça:

A escola eu posso te dizer, sou até suspeito de estar falando isso, nossa escola é referência na comunidade. Vou citar aqui vários exemplos de festa na qual a gente faz e vê as pessoas aderirem, seja festa folclórica ou não. Se você faz uma apresentação do samba de roda que mais eles gostam aqui, a escola enche de um jeito. Nossa escola tem um pátio pequeno e nós não temos na escola um ambiente no qual a gente possa fazer uma apresentação boa, então a gente apresenta mais na rua, em um lugar público como a quadra, em outro momento na praça.

Aconteceu aqui um envolvimento muito grande numa festa do licuri que a escola estava envolvida. Foi uma coisa fora do comum. A gente vê as pessoas se envolvendo. As pessoas gostam porque está falando uma linguagem delas. A mãe e o pai veem seus filhos envolvidos, botando a mão na massa. Por isso, que eles se envolvem, as pessoas se engajam porque quando você vê as pessoas fazendo um trabalho e está envolvido naquele trabalho é muito diferente. (Sebastião-Acauã, entrevista narrativa, 2020)

A escola passa a ser o espaço que mantém a tradição viva na comunidade, isso é motivo de envolvimento de homens, mulheres, meninos/as e idosos/as que habitam a roça, pois é com esse movimento de manutenção cultural das coisas que a comunidade valoriza que essas pessoas produzem significações do existir na roça. A escola na roça passa a representar a condição do encontro e, consequentemente, a construção de sentimento de coletividade que possibilita e garante a produção intersubjetiva para que estas pessoas valorizem a escola e constituam uma relação referencial com este espaço na roça.

As comemorações que as escolas da roça promovem, em sua maioria, tem relação com a vivência da comunidade, sua cultura, atividades que as pessoas do lugar valorizam, por isso Sebastião-Acauã evidencia que por estas comemorações terem uma linguagem própria do lugar convocam as pessoas da comunidade a terem maior interesse. Esse falar a mesma linguagem é uma maneira de fazer menção a um modo específico de contextualização dos fazeres da docência em contextos rurais, trazendo à baila uma ênfase para as atividades que estudantes poderão apresentar para familiares. Isso é agradável e muito satisfatório para professores/as da roça pelo fato de perceber aí, uma valorização de seu trabalho como possibilidade de ressignificação das condições de ser professor/a em escolas rurais.

Pensar a escola da roça pelo lugar do envolvimento e valorização de quem vive na roça, se coloca como possibilidade para habitar a profissão docente neste espaço e lutar para que as coisas na roça sejam valorizadas, afirmando aquilo que promove condições de existir em contextos rurais e representam as formas de habitar a roça. Com esse movimento de narrar sobre a docência e vida na roça, a professora Di-Acauã passou a relatar sobre sua experiência na docência, trazendo à tona como se deu sua entrada na profissão, evidenciando momentos que são uma referência para que compreenda o que é ser professora de escolas rurais e como isso implica no desenvolvimento de seu fazer docente.

Sendo assim, relatou que aos 18 anos realizou o primeiro concurso público municipal em 1996, concorrendo a uma vaga para regente auxiliar, pois naquele momento ainda não tinha concluído o curso de Magistério. Por seu pai e o restante de sua família terem sido oposição política naquela época, só foi chamada pelo fato de ter um nome desconhecido, sendo conhecida somente por seu apelido. Por perseguição política teve que ir trabalhar numa escola distante de sua casa e não tinha transporte para o lugar, então com seu primeiro salário comprou uma bicicleta. Na ocasião, ela tinha uma parceria de grande cooperação com a servente da escola onde trabalhava, então, as duas precisavam se deslocar para a escola pela manhã, organizar o espaço e a merenda, abastecer a escola com água, que precisava ser apanhada num tanque da propriedade onde a escola fora construída. Todas as atividades elas desenvolviam em parceria.

No decorrer da tarde as crianças chegavam, era uma classe multisseriada com crianças de 3 a 10 anos, sendo divididas em grupo e orientadas pela professora e pela merendeira que se comprometia a ajudar nesse processo. O espaço físico da escola era bastante precário, de modo que uma parte das crianças tinha que passar a tarde sentada em esteiras, pois não tinha cadeiras suficientes para todas:

Depois descobriram que era Di-Acauã filha de Carlito e a gente votava em outro partido, então quando descobriram que essa Di-Acauã era filha de Carlito, como perseguição, me jogaram para a escola da roça, a escola de difícil acesso, a escola lá do Pé do Morro, não estou lembrando agora o nome da escola, mas fui trabalhar lá. Como trabalhar nessa escola? Não tinha transporte, não tinha carro para levar, com o primeiro salário eu comprei uma bicicleta. A servente também ia da sede para essa escola, não lembro quantos quilômetros, acho que eram mais ou menos uns 6 a 7 km se não me falha a memória. A gente saía cedo, era uma escola multisseriada, a gente levava nosso almoço e nossa roupa porque eu e a servente íamos juntas, chegando lá eu ajudava ela na limpeza da escola para que ela me ajudasse na hora que as crianças chegassem, então era assim, mas com muito amor e com muita união entre eu e ela.

Quero mencionar Fia, porque ela foi uma pessoa de guerra, aquela pessoa que, graças a Deus, no tempo que trabalhamos juntas sempre fomos unidas. Outro ponto, não tinha cisterna e não tinha água na escola, a água a gente pegava num tanque da fazenda do vizinho, era uma ladeira bem alta e a gente descia para pegar os baldes de água para fazer a limpeza e depois de fazer a limpeza ia pegar água para tomar banho, trocar de roupa, almoçar e esperar os alunos.

Não tinham carteiras suficientes para todo mundo, os pequenos da Educação Infantil ficavam sentados na esteira. Fia pegava essas crianças, eu passava atividade orientava Fia para que ela orientasse as crianças, era uma troca, eu ajudava ela e ela me ajudava com aquele tanto de criança. Era muito prazerosa aquela escola, foi a minha primeira escola, mesmo eles achando que era uma perseguição, mas para mim foi um prazer, me senti ali uma pessoa, uma profissional porque foi meu primeiro emprego. Então me senti muito feliz, uma pessoa de responsabilidade.

Sempre procurei trazer a família para escola, quando a gente sente que alguém estava necessitado de alimento ou de roupa, por serem mesmo bem carentes as pessoas que moravam no entorno da escola, inclusive nós tínhamos alunos lá que seis deles que eram filhos de uma mãe só, então a gente ajudava esses alunos, às vezes a gente fazia cesta básica para eles porque eles eram bem carentes, a gente levava a roupa quando a gente tinha roupa, pedia roupa para aquelas crianças, a gente sempre fez esse trabalho além de se preocupar com o aprendizado, a gente também tentava sanar as dificuldades. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)

Diante disso tudo, a professora ressalta que considerou esse momento inicial de sua carreira como muito importante para ser a profissional que é hoje, pois buscou formação e se esforçava para desenvolver uma prática efetiva que pudesse colaborar com a formação daquelas crianças, sendo destaque na área de alfabetização pelas metodologias que desenvolvia. Para ela, a escola da roça, para além da proposta de formação acadêmica das pessoas que a frequentam, desempenha uma função social muito grande na vida de crianças, jovens, adultos e idosos que habitam os espaços rurais, pois a escola pública em comunidades rurais tem sido um dos únicos lugares em que as políticas de estado se fazem presentes.

Muitos/as gestores/as municipais, ainda, consideram a escola da roça como lugar de retrocesso, espaço que era ocupado por professores/as da sede que votaram contra o gestor que assume o mandato. No geral mesmo, a escola da roça é tomada como inferior em relação às escolas da cidade. Este entendimento é fundamentado numa lógica hegemônica e, principalmente reforçada pelo lugar de quem não entende o que significa ser e viver na roça, levando adiante um ideário que se construiu em torno de uma visão do atraso, fragilizando as identidades rurais que nossos municípios carregam.

As histórias de vida-escolarização-profissão de professores/as da roça são permeadas pelas condições de precariedade em todos os sentidos, sendo que uma das únicas coisas que os motivam a persistirem e criarem outras condições para suas vidas é lutar na contramão das lógicas hegemônicas que impõem para o outro uma perspectiva da subalternidade. Neste sentido, cada professor/a da roça se vale do deixar-se ser-docente numa condição reforçada pelas possibilidades que seu campo de circunvisão lhe oferece, mobilizando-se com o outro para construção de outros modos do fazer que superem e coloque em xeque aquilo que estruturas hegemônicas instituíram para as pessoas da roça.

Ser professor/a de escola rural é dedicar-se de maneira integral, mesmo sendo lotado/a oficialmente com 20h. É ter um estatuto da profissão e desempenhar outras funções que destoam do que existe neste estatuto para insurgir em seus espaços de vida e criar condições dessas insurgências em suas comunidades, vivenciando condições indignas de uma profissão que se encontra fragilizada socialmente falando. Quando professores/as da roça narram sobre a experiência que constituíram ao longo de seus percursos no início da docência, mostrando como conseguiu lidar com as situações de dificuldades na entrada da profissão docente na roça, evidenciando seu ser-docente numa presentificação de seu ser-na-roça, possibilita uma compreensão de como produzir formas de habitar a profissão docente na roça nesta configuração contemporânea.

Preparar o espaço, abastecê-lo de água, cuidar de si para esperar as crianças num turno oposto ao de sua lotação oficial, significava para a professora e merendeira um processo ritualístico fincado no cuidado com as pessoas da comunidade e, também representava como as duas profissionais compreendiam a docência na roça. Isso vem à tona na narrativa que Di-Acauã apresenta, como maneiras de superação e enfrentamento de dificuldades ao desenvolver a docência em escolas da roça, motivada pelas questões do encontro com o outro e busca de como poderia fazer, naquele momento para pensar condições de formar e formar-se em contextos rurais, em meio a tantas adversidades que existiam para a profissão docente na roça.

A professora Di-Acauã destaca que, atualmente, a escola da roça necessita ser fomentada através de políticas públicas que considerem os contextos locais e levem em conta a necessidade do lugar, promovendo proposta para a valorização de uma educação pública de qualidade, versando sobre permanência da escola na roça, reestruturação dos espaços físicos dos prédios escolares e formação docente que seja condizente com esta realidade. A professora se mostra bastante motivada com as mudanças nos modos de viver a roça, pois ressalta que as pessoas estão valorizando mais o espaço rural e que, com isso, possa acontecer o inverso do que vem acontecendo com o fechamento das escolas em comunidades rurais, pois com o movimento das pessoas voltarem para espaços rurais em sua comunidade vai demandar a reativação de escolas neste lugar:

Posso citar um exemplo dessa primeira escola que trabalhei, quando passo hoje não tem nada, não tem mais nem o prédio, estrutura nenhuma, só tem o terreno e, ali eu vejo que tem muitos alunos, mas esses alunos vão ser todos trazidos para a sede enquanto aquela escola poderia estar ali. Ah! Porque são poucos alunos ali, alguns dois, três, quatro. Ah! Não compensa! Mas, dois, três, quatro, possa ser que um tempo depois venham mais, depois vão chegando mais. Então acho que não é viável porque tem poucos alunos fechar a escola. Tem que dar um tempo para ver se vai chegando e, hoje eu acho que as escolas que foram fechadas vão ser construídas ou reconstruídas porque as pessoas hoje estão optando a irem morar na roça. Vejo como exemplo lá perto da minha casa, não tinha quase ninguém, quase nenhum vizinho, hoje a gente já vê o pessoal loteando duas tarefas, três tarefas, então já tem muita gente morando ali naquela região, creio que logo mais vai ter que se construir escolas na roça e não demolir escolas da roça. (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020)

Tomar a reflexão que Di-Acauã faz ao narrar sua compreensão a respeito do fechamento das escolas em áreas rurais possibilita pensar que esse é um fenômeno impulsionado pelas proposições dos grupos que têm pensamento calcado em bases hegemônicas e intentam para um projeto de sociedade que reforça uma suposta subalternidade das pessoas da roça, podendo significar a manutenção do poder de grupos elitistas.

Mesmo percebendo que a professora Di-Acauã apresenta grande esperança de uma mudança no cenário de sucateamento e fechamento das escolas da roça, por saber da potência que este espaço tem e significa para as pessoas do lugar, posso notar que os movimentos feitos pelas Secretarias Municipais e Estaduais de Educação se mostram numa contramão disso, pois o grande argumento é a redução de gastos e a falta de condições de manterem ativas escolas com poucos/as alunos/as.

A experiência do ser-docente de professores/as da roça se institui em meio a lutas e labutas para defenderem a permanência das escolas de suas comunidades por compreenderem que, além da potência que este espaço tem, é a manifestação de respeito aos direitos dos povos do campo. Isso é decência, é legal e, acima de tudo, possibilidade para afirmar uma vida autêntica numa condição da ruralidade da presença. Então, para que a narrativa da professora ecoe com força é importante nos aliar a quem tem os mesmos propósitos, buscando fazer valer que “construir escolas na roça e não demolir escolas da roça” se torne realidade. Nesta direção podemos tomar como mote o projeto Ruralidades diversas e diversas ruralidades, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Grafho/UNEB, que nos propõe pensar sobre os novos rumos para as escolas rurais. O Grapho propõe com tal projeto realizar uma investigação sobre processos e ações educativas em variados espaços rurais no Brasil e na França.

Deixar-se ser-docente em escolas da roça é um modo de afecção que nos toma e nos condiciona a pensar a docência na roça a partir do que se encontra disposto no lugar de vida, fazendo com que signifiquemos nossas formas de ver, sentir, ouvir e narrar como possibilidade da constituição de variadas formas de produzir nossas existências na roça, de modo que possamos desenvolver com plenitude nossos fazeres e afazeres na roça. É pelo lugar da afecção que a docência na roça provoca que professores/as sentem grande indignação quando acontece o fechamento dessas escolas de suas comunidades. Isto fica bem evidente nas narrativas do professor Geni-Acauã quando apresenta seu entendimento a respeito dessa possibilidade:

Não quero nem pensar, vou ser sincero, se o gestor público municipal de Várzea do Poço pensa em fechar essa escola que tem uma história de mais de 30 anos, ele vai dar um tiro muito grande no pé que ele não vai voltar a caminhar nunca mais, pois manter a escola é uma questão de moral e ética porque todas características boas que ele pode colocar aqui a gente encontra dentro daquela escola. Se tirar a escola daqui eu acho que a comunidade vai ser totalmente menosprezada, depreciada e desvalorizada. Essa valorização que temos aqui parte daquela escola que tem uma história muito grande, me emociona muito quando chego a falar do CECALF, porque foi dali que todo o desenvolvimento dessa comunidade principalmente do ano 2000 pra cá, mudanças, espaço físico bem-organizado. Jamais deve se pensar em fechar aquela escola, vou falar o quê para meus alunos. (Geni-Acauã, entrevista narrativa, 2020)

Fazer menção ao um dito popular para se referir a uma atitude precipitada de um/a gestor/a ao cogitar o fechamento de uma escola rural representa de maneira enfática o repúdio de Geni-Acauã, bem como de muitas pessoas da comunidade, uma vez que a instituição tem uma história e atende à comunidade há mais de três décadas. A manutenção de uma escola como o CECALF na comunidade é a oportunidade de acesso a um bem público que para as pessoas da roça equivale ao esperançar por dias melhores, sendo o espaço de encontro. Além disso, esta escola significa condição de existencialidade da própria comunidade em si.

Quando o professor evidencia que manter a escola em sua comunidade é uma questão ética e moral, significa que é direito das pessoas contar com serviços públicos básicos em seus espaços de vida. Isso tem sido muito negligenciado ao longo da história do país, pois são ínfimas as propostas de políticas públicas que incluem as pessoas que vivem em espaços rurais. Para Damiana-Acauã, a escola da roça oferece comodidade, facilitando o acesso a um bem público, por isso, a comunidade precisa rever seu entendimento a respeito de ter a escola de sua região em pleno funcionamento, buscando por uma educação de qualidade. Para isso, faz-se necessário tomar a escola da roça como esse lugar de potência que tem seus sentidos e significados, evitando comparações esdrúxulas com as escolas da rua.

Entendo que cada escola tem suas especificidades conforme seu público e o lugar onde se encontra inserida e isso não inviabiliza que a docência seja desenvolvida de uma forma efetiva e os serviços educacionais sejam condizentes com uma proposta educacional emancipadora. Ao contrário, pois quando reconhecemos nossas condições de existir e resistir em espaços rurais temos melhores condições de lutar pelo direito a serviços públicos de qualidade e de acesso para todos/as:

A escola é importante na comunidade porque quem mora lá sai de uma distância dessa, dentro de um transporte no tempo de um calor, chega na rua suado, passando mal. Eu já vi criança que quando desceu do transporte, já foi vomitando, passava mal, às vezes porque nem deu tempo almoçar direito. Na comunidade ali pertinho da escola, saiu da sua casa já está na escola, todo mundo se conhece, é uma proteção. É uma vida que vai se acabar, é uma comunidade que se acaba quando fecha uma escola. (Damiana-Acauã, entrevista narrativa, 2019)

A compreensão que a professora Damiana-Acauã tem sobre a manutenção da escola da roça em funcionamento está associada aos movimentos que precisou realizar para acessar os estudos e desenvolver sua formação ao longo de seu percurso na docência. Pensando a partir deste lugar, posso entender que é justamente em função da ausência dessa comodidade por ter uma escola mais próxima de suas casas que muita gente abandona os estudos, pois não tem outra pessoa que possa acompanhar até as escolas da rua e não podem deixar que as crianças sigam longos percursos sozinhas.

Como os/as outros/as professores/as da roça, Damiana-Acauã também enfatiza que a escola é para a comunidade um lugar representativo de sua existência e possibilidade de crescimento e evolução de comunidades rurais. Com isso, percebo que o ser-na-roça de professores/as da roça vão sendo presentificados a partir das formas como veem, ouvem, sentem e pensam, considerando os modos de significar a vida e o habitar a roça. Neste sentido, esses modos relacionados ao campo de circunvisão desencadeia o ser-docente desvelado com movimentos de co-fazer-se e deixar-se ser naquilo que já é.

4 ENVEREDAMENTOS FINAIS

O espaço da escola representa para a comunidade o lugar do encontro e da manutenção das tradições de um povo que luta incansavelmente para existir em seus espaços de vida, seja pela ordem da subsistência ou pela produção de sentidos e significados que simbolizam sua condição de habitação do lugar. Habitar a profissão docente na roça permeia condições de incertezas e instabilidades em relação à existência ou não da escola na comunidade, provocando professores/as da roça a lidarem com inúmeras questões que afetam seus modos de existir como professores/as. É por considerar essa realidade de ameaça ao funcionamento de escolas da roça que esses/as professores/as sinalizam a necessidade de maiores investimentos para estes espaços, disponibilização de políticas públicas que proponham qualidade da educação em espaços rurais, possibilitando que as pessoas da roça tenham boas perspectivas para uma formação decente e condizente com as formas de existencialidades que produzem.

Lidar com a precarização da profissão e das escolas rurais mobiliza professores/as da roça a circunstâncias diversas que provocam a uma reinvenção de si, considerando o que tem à sua disposição, trazendo à tona suas compreensões como parte de um coletivo que vive em comunidades alijadas de seus direitos e, que historicamente em nosso país e em países latino-americanos, sentem na pele os resquícios da colonização e da carga que tudo isso deixou para nós. Deixar-se ser-docente aqui, está numa configuração daquilo que o ser-na-roça se revela num ente que é abertura constante e não se apega a um conjunto de normas e convenções sociais instituídas pelos parâmetros urbanocêntricos19, mesmo tendo influência de uma formação pautada neste parâmetro.

Posso compreender que o movimento de narrar sobre processos de vida-formação-profissão na roça, representa aqui, possibilidade de rever trajetórias vividas, selecionando aquilo que constituiu experiência para trans-ver a roça e a profissão docente neste contexto, de modo a buscar produzir modos de habitar a roça e a profissão para criação de pedagogias que considerem processos históricos de (re)existência da comunidade e da escola da roça. Habitar a profissão docente na roça convoca-nos a pensar sobre as questões da própria comunidade para além do âmbito estritamente pedagógico, existe aí uma construção de entendimentos que perpassam pelo nosso posicionamento político e compreensão social dos contextos em que estamos inseridos.

Percebi que a relação com a docência na roça toma dimensões que acolhem o ser-docente na roça que vai sendo revelado com o envolvimento que professores/as da roça constroem com o lugar e com sua comunidade, conforme seus modos de compreensão do espaço habitado e sentidos que mobilizam para produzir suas existencialidades na roça. A experiência do ser-docente de professores/as da roça vai sendo constituída em paralelo aos movimentos de luta e labuta que desenvolvem como forma de defender a permanência da escola nas comunidades rurais por entenderem a potência que este espaço representa para essas comunidades, sendo que sua existência é a legitimação de respeito aos direitos dos povos do campo e representa possibilidade de ser-mais numa condição fundada pela ruralidade da presença.

Essas experiências do ser-docente também vão sendo produzidas conforme os modos que cada professor/a mobiliza e traduz os sentidos dos acontecimentos que os/as envolvem nesse processo de habitar a roça. Isso possibilita condições para trans-ver o rural habitado e a profissão docente na roça, revelando o ser-na-roça a partir do ser-aí constitutivo dos entes desses/as professores/as. É desse movimento que a presentificação do ser-na-roça vai se fazendo numa constância dos acontecimentos em espaços rurais e propõe-se atravessamento da docência nas escolas da roça, instituindo pedagogias insurgentes produzidas no envolvimento com o outro a partir de compreensões que cada professor/a constrói com a experiência de habitar a roça e a docência na roça.

REFERÊNCIAS

BARROS, M. de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

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CLANDININ, D. J. ; CONNELLY, F. M. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Tradução Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de Professores ILEEL/EFU. 2. ed. Uberlândia: EDUFU, 2015.

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MOTA, Charles Maycon de Almeida. Docência em classes multisseriadas: conhecimento de si, práticas pedagógicas e diferenças nas escolas da roça. Curitiba: CRV, 2019.

Endereço para correspondência:

Sítio Mata da Lua, Rod. BA 417 Serrolândia-Várzea do Poço, S/N, Zona Rural, CEP 44715-000, Várzea do Poço-BA. charlesmaycon22@hotmail.com


1 Doutor em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia; Mestre em Educação e Diversidade pela Universidade do Estado da Bahia; Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Extensão; Graduado em Pedagogia pelo Instituto Superior de Ensino Capimgrossense; Graduado em Matemática pela Universidade do Estado da Bahia; Professor da Educação Básica e Psicopedagogo no Centro de Referência ao Apoio Pedagógico no município de Várzea do Poço - BA.

2 O vocábulo “roça” é tomado ao longo deste texto como uma ruralidade específica no âmbito das ruralidades contemporâneas, por ser defendida como termo ainda presente nos contextos linguísticos das pessoas de algumas regiões do Nordeste, principalmente das localidades rurais situadas no interior dos estados, com sentidos e significados produzidos pelos povos que habitam os espaços rurais em que a pesquisa foi desenvolvida.

3 Este termo é apresentado a partir dos modos de ser-viver-na-roça, se colocando aqui como um constructo que tem inspiração na proposta de ser-sendo (HEIDEGGER, 2015).

4 Pesquisa intitulada Ser-na-roça: ruralidade da presença e experiências do ser-docente (MOTA, 2022).

5 Esse termo está construído com base nas discussões que realizamos sobre os escritos de Heidegger a partir da primeira tradução para o português feita por Marcia Sá Cavalcante (HEIDEGGER, 2015), para pensar como as existencialidades do ente constitui o ser-na-roça, conforme o que vai se dando na vida dos sujeitos que habitam os territórios rurais instituídos nos modos de ser-viver-na-roça.

6 Tomo o termo acontecimento ao longo do texto com sentido de uma significação do fazer que se perfaz-se naquilo com que o ente se afeta (o que lhe acontece).

7 Utilizo o termo desver a partir da poesia de Menoel de Barros (2015) com o sentido de evidenciar modos próprios de distanciamentos e aproximações das coisas e dos lugares na roça.

8 Mucunã é uma espécie de planta trepadeira como cipó, conhecida em outras regiões como feijão-da-flórida, suas vargens têm várias sementes arredondadas com tons avermelhados e marrons.

9 Bolsa feita de forma artesanal com couro, sisal e/ou tecido de calças jeans usadas.

10 Os nomes dos/as docentes narradores/as na pesquisa são fictícios, atendendo às orientações do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) com Parecer Consubstanciado do CEP de nº 3.520.118.

11 Os codinomes surgem a partir da inspiração na poesia de Manoel de Barros (2009) e faz referência a um pássaro de tamanho médio, sendo do grupo dos falcões. Seu canto é tomado como inspiração para muitas lendas folclóricas de nossa região e de outros lugares do país.

12 O termo cor-ação está sendo empregado com uma hifenização conforme a escrita de Fogel (2015), trazendo o sentido de ação realizada com doação, comprometimento e corresponsabilização.

13 Divisão que as pessoas fazem numa área de terra a ser capinada ou roçada como forma de organizar o trabalho a ser realizado.

14 Ação de juntar um pouco de terra no pé da planta para que se fortaleça e possa dar bons frutos.

15 Vários garranchos secos que são juntados em meio ao roçado para serem queimados ou se desfazerem no tempo.

16 Cantiga entonada por vaqueiros para tocarem os rebanhos de bois e vacas.

17 Cachorros adestrados pelos próprios vaqueiros para encontrarem os animais e ajudar a tocar quando estes dão trabalho para seguir.

18 Ave conhecida conforme cada região do país. É uma ave de porte médio e convive bem com galinhas e perus. Tem uma plumagem acinzentada com várias pintas brancas pelo corpo inteiro.

19 O termo urbanocêntrico é utilizado aqui para fazer referência às práticas hegemônicas que tomam os espaços urbanos como elemento de melhor importância, sobretudo a escola, instituindo um entendimento de que as melhores condições de vida e existência se encontram nas cidades, atribuindo ao campo um lugar de atraso e de subserviência.