https://doi.org/10.18593/r.v48.32608

Formação de professores: uma crítica pelo olhar das capacidades humanas1

Teacher education: a critique from the perspective of human capabilities

Formación del profesorado: una crítica desde la perspectiva de las

capacidades humanas

Catia Piccolo Viero Devechi2

Universidade de Brasília; Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Educação.

https://orcid.org/0000-0002-5147-1609

Cláudio Almir Dalbosco3

Universidade de Passo Fundo; Professor titular.

https://orcid.org/0000-0003-3408-2975

Resumo: Problematizamos, neste ensaio, a tendência nacional e internacional de esvaziamento do sentido humanizado da educação que tem se materializado na linguagem da aprendizagem, discutindo novas possiblidades para a formação docente a partir do enfoque das capacidades humanas proposto por Martha Nussbaum. Para tanto, realizamos um estudo hermenêutico das seguintes obras publicadas pela autora: Crear Capacidades: propuesta para el desarrollo humano, El cultivo de la humanidade: uma defensa clásica de la reforma em la educación liberal, Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. Tendo por base a sua concepção de formação liberal e democrática, apontamos algumas críticas ao modelo de educação como negócio, justificando alguns aspectos do enfoque das capacidades humana para a formação de professores.

Palavras-chave: Competências; Capacidades; Formação docente.

Abstract: In this essay, we problematize the national and international trend of emptying the humanized meaning of education, which has been materialized in discussions around learning, and discuss new possibilities for teacher training based on the approach of human capabilities proposed by Martha Nussbaum. To do so, we carried out a hermeneutic study of the following works published by the author: Creating Capabilities: The Human Development Approach, Cultivating Humanity: A Classical Defense of Reform in Liberal Education and Not for Profit: Why Democracy Needs the Humanities. Based on her conception of liberal and democratic training, we point out some criticisms of the model of education for profit, which informs some aspects of the focus on human capabilities for teacher training.

Keywords: Competences; Capabilities; Teacher education.

Resumen: En el presente ensayo problematizamos la tendencia nacional e internacional a vaciar el sentido humanizado de la educación que se ha materializado en el lenguaje de aprendizaje, discutiendo nuevas posibilidades para la formación docente desde el enfoque de las capacidades humanas propuesto por Martha Nussbaum. Por ello, realizamos un estudio hermenéutico de las siguientes obras publicadas por el autor: Creando Capacidades: una propuesta para el desarrollo humano, El cultivo de la humanidad: una defensa clásica de la reforma de la educación liberal, Sin fines lucrativos: por qué la democracia necesita de las humanidades. A partir de su concepción de la formación liberal y democrática, señalamos algunas críticas al modelo de la educación como negocio, justificando algunos aspectos del enfoque de las capacidades humanas para la formación del profesorado.

Palabras clave: Competencias; Capacidades; Formación docente.

Recebido em 28 de março de 2023

Aceito em 31 de outubro de 2023

1 INTRODUÇÃO

O discurso dominante que tem permeado a política internacional é de que com o desenvolvimento da economia e o aumento da riqueza tem-se a diminuição das desigualdades e, por consequência, a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Trata-se de um discurso, apoiado em perspectivas funcionalistas voltadas ao incremento da renda nacional e à conquista do mercado global, que tem promovido políticas públicas favoráveis à produtividade e à competividade, incentivando a implementação de propostas utilitaristas e imediatistas nos diferentes setores da vida da sociedade, da cultura e da ciência. (NUSSBAUM, 2015)

Diante desse discurso, a educação tem sido entendida como um potencial de geração de benefícios econômicos a curto prazo, o que subjuga sua perspectiva de formação crítica às demandas do aprender para a empregabilidade, para a excelência e o empreendedorismo. Destarte, conforme Nóvoa (2020), as propostas educacionais têm sido elaboradas com base na teoria do capital humano, apostando em políticas de hiper personalização da aprendizagem (NÓVOA, 2020) direcionada à profissionalização técnica.

Com foco no alcance de resultados determinados, a educação é reduzida à linguagem da aprendizagem (BIESTA, 2021), sendo organizada a partir de conceitos e evidências científicas de estudos sobre inteligência artificial, ciências do cognitivo, neurociências e estudos sobre o cérebro, só para citar alguns, que definem os caminhos de como aprender bem, descartando, desse modo, as capacidades indispensáveis à formação humana em uma perspectiva ético-afetivo-política mais ampla. Trata-se de uma linguagem que, focada no aprender a aprender proativo e autônomo, não é mais educacional, pois marginaliza o pensar por si próprio, a formação crítica, criativa, política, interativa e necessária à formação integral mais alargada. Biesta (2021, p. 32) diz que “o ensinar foi redefinido como apoiar ou facilitar a aprendizagem, assim como educação é agora frequentemente descrita como propiciadora de oportunidades ou experiências de aprendizagem”. O diagnóstico do autor aponta para a redução do ensino e da educação a questões de aprendizagem, o que entendemos ser o sintoma de um problema mais grave, que é o do esquecimento progressivo da formação (Bildung) em nome da crescente deformação (Unbildung). E isso põe a difícil tarefa de pensar a formação de professores no solo dominado pela deformação cultural e, sobretudo, educacional.

Frente ao entendimento do potencial econômico da educação, a formação de professores ganha uma atenção especial, sendo o professor colocado como a figura mais importante na produção de resultados. É assim que muitos países vêm realizando reformas nos currículos dos cursos de formação de professores, investindo esforços no desenvolvimento de competências docentes, entendendo que dependerá dos professores a formação de bons e competitivos empreendedores. Trata-se de um momento de forte valorização da formação docente, o qual chega acompanhado de uma racionalidade focada na abordagem do desempenho e da competição.

Sustentada numa concepção estreita e tecnicista de educação, a formação de professores assume a mesma lógica da concorrência e do controle do mercado, deixando para trás as suas conquistas históricas de formação educacional ampliada, teórica, crítica e argumentativa. As mesmas conquistas que foram admitidas no ensino superior em comparação aos antigos cursos normais, são agora negadas em nome da aprendizagem respaldada pelo enfoque das competências e habilidades, associadas às evidências científicas sobre como o sujeito aprende. O professor passa a ser preparado não mais para o exercício do educar, mas para a orientação, facilitação e encaminhamento dos sujeitos aprendentes autônomos.

Diante dessa atmosfera internacional, de crescente mercantilização da educação e sua consequente redução às questões de aprendizagem, erguem-se posicionamentos críticos tanto no cenário europeu como norte-americano. Na Europa, sobretudo no âmbito da tradição germânica, Reinhardt Brandt (2011), Dieter Lenzen (2014) e Konrad P. Liessmann (2014) têm mostrado criticamente os desdobramentos curriculares negativos do Acordo de Bolonha, costurado bem nos trilhos da tendência economicista acima indicada, e seu retrocesso em relação à formação cultural (Bildung) mais ampla. Lenzen, que estudou junto com Niklas Luhmann e que foi reitor de duas importantes universidades alemãs, a Universidade Livre de Berlim e a Universidade de Hamburgo, atribuiu o sugestivo título ao seu livro Formação em vez de Bolonha! (Bildung statt Bologna!). No cenário acadêmico norte-americano, a Filósofa e pensadora educacional Martha Nussbaum (2005; 2012 e 2015) tem se destacado por analisar criticamente, com amparo em sólida base empírica, o desaparecimento silencioso das humanidades dos currículos universitários e apontado, simultaneamente, o risco que isso significa para a democracia.

Neste ensaio, iremos considerar apenas intuitivamente os outros autores referidos, nos deixando orientar de perto pelo pensamento de Nussbaum. Mesmo que a autora não trate diretamente sobre a formação de professores, entendemos que a sua concepção de educação liberal articulada com o enfoque das capacidades humanas serve como inspiração para pensarmos em um projeto formativo mais inclusivo, crítico e humanizado para os professores.

Martha Nussbaum tem problematizado o modelo economicista nas diferentes áreas, apontando para insuficiência (2021/2002) a abordagem como insuficiente para a vida e dignidade humana, dessa abordagem quando a preocupação é a dignidade humana, a justiça social e a vivacidade da democracia. A autora argumenta dizendo que o foco político no desenvolvimento econômico não se traduz sempre na melhora da qualidade de vida das pessoas, alertando que a prosperidade de conjunto de um país não “servirá de consolo a aqueles e aquelas cuja existência está marcada por desigualdades e privações” (2012, p. 21). Nesse sentido, adverte sobre a necessidade de suscitar um debate público em favor de novos enfoques que possam garantir a dignidade e oportunidades para cada pessoa, defendendo uma educação liberal ligada às humanidades e às artes e, assim, a um tipo mais inclusivo de cidadania. (NUSSBAUM, 2015)

Neste ensaio, desdobramos nossa argumentação em dois passos, interligados entre si. No primeiro passo, detalhamos o diagnóstico atual da formação de professores, discorrendo sobre o enfoque da aprendizagem, evidenciando, com base nisso, algumas críticas ao modelo de educação como negócio. No segundo passo, tratamos de justificar alguns aspectos da perspectiva das capacidades humanas para a formação de professores.

2 DIAGNÓSTICO ATUAL DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UM PROJETO SISTÊMICO EM FAVOR DA PROFISSIONALIZAÇÃO TÉCNICA

Frente à demanda pela qualificação do professor para atender à agenda econômica e ao empreendedorismo, organismos internacionais têm orientado os países que realizem reformas curriculares nos cursos de formação de professores. A ideia é que os cursos profissionalizem os professores com habilidades técnicas necessárias ao atendimento das demandas educativas atuais alicerçadas na concepção de que a educação pode contribuir com a melhoria das condições econômicas e, assim, com a redução da desigualdade social. Desse modo, países de diferentes continentes vêm acompanhando as orientações, procurando adequar a formação de professores à lógica do empreendedor de si mesmo (DALBOSCO, 2021), que reduz o sentido amplo de educação como formação cultural à aprendizagem de competências lucrativas. Para tanto, os legisladores educacionais têm se utilizado de uma combinação de perspectivas teóricas que, embora não proponham a educação com interesses utilitários, trazem no seu bojo a tendência perigosa de reduzir a própria educação à profissionalização técnica dos professores. Ao assumir irrefletidamente essa direção profissionalizante técnica, a própria ideia de formação de professores perde paradoxalmente aquilo que a constitui em seu aspecto nuclear, a saber, sua dimensão crítico-formativa, sintetizada pela capacidade de pensar por si mesma. Isso porque, com base no uso de tal capacidade, desdobrada suas dimensões múltiplas, afetivas, cognitivas, éticas, estéticas e políticas, os professores e seus alunos podem descortinar outros mundos possíveis, que vão muito além daquele restrito imposto pela profissionalização mercadológica.

Alinhadas à linguagem da aprendizagem, as políticas educacionais têm sido elaboradas por meio de conceitos e compreensões que apontam para a necessidade de aperfeiçoamento da profissão docente pela lógica do saber fazer sustentada pela experiência prática. Embora com projetos pedagógicos e ideológicos contrários aos interesses do mercado, conceitos de autores como Shön (2000), Schulman (2014) e Tardif (2002) aparecem nas diretrizes reformistas do setor. Talvez pela responsabilidade que atribuem aos professores, noções como “aprender fazendo”, “aprender a aprender”, “professor reflexivo” têm sido difundidos nas diretrizes nacionais e internacionais do campo. Diante de vários outros exemplos possíveis da apropriação desses conceitos, destacamos o conceito de “professor reflexivo”, de Shön (2000) e também do canadense Tardif (2002), que sustenta a compreensão de que a formação de professores deve estar fundada nos propósitos da reflexão dos saberes da experiência; e a compreensão de conhecimento pedagógico do conteúdo de Shulman (2014) que traz a ideia de que não basta saber o conteúdo, mas é preciso ter habilidades para ensinar cada conteúdo específico. Em síntese, são compreensões sobre a formação docente alicerçadas no paradigma da prática que, ao buscarem superar o modelo de formação enciclopédica, acabam sendo colocadas nas políticas educacionais atuais como propostas de sustentação da formação de professores voltada à lógica do cliente e do mercado.

O modo como tais noções são facilmente apropriadas pela linguagem mercadológica pode ser um indicativo importante para entender os limites impressos nessas mesmas teorias e, simultaneamente, a necessidade, no âmbito da formação de professores, de ir além delas. Um dos limites principais da ampla epistemologia da prática consiste em ela pensar ter superado rapidamente o aspecto intelectualista inerente ao saber enciclopédico promovendo uma guinada irrefletida ou ao menos ingênua para a experiência prática. Este passo enfraqueceu, contudo, sua força epistemológica para manter o pensamento crítico e para poder inserir um “programa” de formação de professores em uma perspectiva que fosse capaz de considerar a trama social e os conflitos econômicos de uma determinada sociedade com influência importante, tanto no avanço da formação cultural dos professores como no travamento da mesma, por meio dos mais diferentes obstáculos, dentre os quais a precarização do trabalho docente e o enfraquecimento da própria profissão docente.

Do ponto de vista das teorias educacionais, cabe ressaltar, momentaneamente, que uma das fontes inspiradores desse amplo movimento pedagógico de retorno à prática é o pensamento de John Dewey (1979). Contudo, ele é interpretado, na maioria das vezes, descontextualizado de sua filosofia da educação, ignorando-se, com isso, a fecundidade de sua própria noção de experiência e o vínculo intrínseco pensado por ele entre democracia e educação. Como contínuo elaborado reflexivamente, a noção de experiência, além de não se deixar reduzir ao entendimento caricaturado de “aprender fazendo”, uma vez que o próprio Dewey distingue acertadamente, em Democracia e Educação, entre fazer e agir, atribuindo clara significação formativa e, portanto, não compatível com o enfoque didaticista, para categorias pedagógicas centrais, como disciplina e interesse. Ao ignorar o aspecto filosófico-educacional do pensamento de Dewey, deixa-se de considerar o peso que a tradição pedagógica clássica da instructio desempenhou na formulação do sentido moral tanto de disciplina como de interesse, concebidos por Dewey como preparação cultural (instructio) tanto do educador como do educando para o modo de vida democrático.

Aliadas ao movimento de profissionalização técnica, as reformas retomam também o conceito de competências que já vinha sendo apresentado por Perrenoud como exigência “da focalização sobre o aluno, da pedagogia diferenciada e dos métodos ativos” (1999, p. 53), estabelecendo o modelo de competências como referência dos saberes necessários à formação. Entretanto, a referência às competências tem sido feita por diferentes concepções e sem fundamentação teórica clara, nas políticas públicas da área, em diferentes lugares (PEREIRA, 2015). Na Europa, ganharam envergadura na educação a partir do momento em que o Conselho Europeu (2008) reconheceu a necessidade de integrar a educação com as políticas econômicas e sociais do continente. A ideia de competência passa, então, a ser vista como uma possibilidade de integração entre as habilidades individuais e os objetivos socioeconômicos mais amplos. Segundo a Recomendação do Parlamento Europeu e do Conselho (2008), “competência é a capacidade comprovada e demonstrada do aluno para selecionar, combinar e usar adequadamente conhecimentos, habilidades, valores e atitudes, em situações concretas, a fim de realizar uma tarefa de aprendizagem de forma eficiente”.

Obviamente, esse conceito de competência, empregado no sentido do empreendedorismo empresarial visando fazer o elo da educação com o desenvolvimento econômico na perspectiva da concorrência, eficiência e lucratividade, não tardou em atrair para si um conjunto de críticas, que procuram demonstrar seu déficit formativo e o reducionismo educacional que ele provoca. Cabe referir aqui, brevemente, no âmbito da filosofia da educação alemã, uma das críticas mais pontuais e acertadas feitas por Lothar Koch (2010, p. 320ss) à noção de competência, no ensaio intitulado “Competência: construto entre déficit e arrogância” (“Kompetenz: Konstrukt zwischen Defizit und Anmassung”). Para compreender o sucesso que a noção de competência adquire nas reformas universitárias atuais, Koch expõe o quadro mais amplo das transformações universitárias, evidenciando que a mercantilização do ensino e a consequente linguagem empresarial introduzida no ambiente acadêmico é tributária do processo mais amplo de economicização do social. Tal processo torna possível que o ensino seja pensado de acordo com o modelo do gerenciamento por qualidade (Qualitäsmanagement), o qual exige, especificamente no campo educacional, a associação estreita entre psicometria e didática, localizando-se aí uma das origens da “educação baseada em evidências”. Nesse contexto, a noção de competência assume quatro diferentes significados (papéis), que estão relacionados entre si:

a) constitui-se de normas (critérios) de controle do processo pedagógico;

b) coloca-se como fins particulares vantajosos em relação aos objetivos mais amplos da formação geral;

c) apresenta-se como forma de realização do conteúdo e dos diferentes níveis da formação geral;

d) serve como marcas de orientação ao ensino, principalmente aos professores, alunos e pais.

Nesse sentido, em comparação com o nível “ideal” e “abstrato” da formação geral (Bildung), as competências tornam-se muito mais atrativas, enquanto categorias e procedimentos pedagógicos operativos, funcionais e pragmáticos. Contudo, Koch (2010) não deixa de indicar algumas limitações inerentes a esses papéis assumidos pela noção de competências:

a) a transformação das instituições formais de ensino em empresas lucrativas tem seu desdobramento pedagógico correspondente: ênfase na sustentabilidade econômica e no cálculo do custo de cada professor e aluno e o marketing que as instituições de ensino precisam fazer de si mesmas para venderem seu “produto” no mercado educacional; ou seja, o campo educacional como um todo é transformado em mercadoria;

b) professores e alunos devem seguir rigorosamente as exigências postas pelo sistema externo de avaliação;

c) despotencialização da capacidade formativa do professor em nome da crescente administração burocrática do ensino: de sábio mediador para gerente diretor (impositor) e;

d) por fim, a simplificação extraordinária do ensino, que vem muito bem expressada no slogan teaching to the test (aprendizagem por teste).

Esse breve recurso à crítica de Koch nos dá uma ideia de como as coisas andam na Europa, especificamente na Alemanha. No caso do Brasil, sob influência das políticas europeias, o termo “competência” já aparece na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) em 1996 que estabelecia as competências para as diferentes etapas de ensino e também nos Parâmetros Curriculares Nacionais PCNs (1997). No que se refere a formação de professores, o termo aparece na Resolução CNE/CP 01/2002, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica. O documento aponta para a necessidade de “considerar o conjunto das competências necessárias à atuação profissional” (CNE, 2002, p. 2). Tal abordagem, juntamente com o paradigma da prática, vem sendo questionada há muito tempo pelas associações e entidades brasileiras de pesquisa as quais a consideram uma proposta conservadora, limitada ao treinamento de habilidades necessárias ao ensino. (DINIZ-PEREIRA, 2010)

Nas últimas diretrizes para a formação de professores no país (Resolução CNE/CP 2/2019), o enfoque nas competências profissionais toma envergadura, articulando-se com outro termo que ganha destaque - “evidência científica” que, no contexto das discussões do CNE, é uma perspectiva associada à abordagem já, mundialmente, conhecida, chamada de “educação baseada em evidências”. Tal concepção tem origem na “medicina baseada em evidências” e, no entanto, reconhece “como padrão ouro” os resultados das pesquisas baseadas em experiências empíricas, próximas aos testes randomizados. Nessa perspectiva, o professor deve ser preparado com base informativa de dados de pesquisas científicas, as quais seguem o padrão observacional controlado.

Trata-se de uma perspectiva já bastante combatida, nas discussões acadêmicas da área, que reintroduz, na formação de professores, a possibilidade de maior controle e avaliação do desempenho, além da simplificação, ainda maior, da profissionalização de professores. Para Hammersley (2007), a educação baseada em evidências traz promessas falsas e perigosas, pois a ideia de que a pesquisa daria uma contribuição importante para melhorar a prática, pressupõe ser ela sistemática, rigorosa e objetiva, e isso marginalizaria, portanto, a relevância das experiências profissionais. A questão problemática aqui não é a defesa da ciência, mas o seu enfoque sistêmico desacoplado do mundo da vida, como diria Habermas (2004). Trata-se, em primeiro lugar, da redução da noção de ciência à comprovação empírica, desconectada de sua dimensão cultural e histórica. Caracteriza o retorno, pela porta dos fundos, do positivismo crasso que fora jogado para fora, pela porta da frente, pela tradição crítico-hermenêutica, ao mostrar que não existe objetividade pura dos fatos (evidências científicas absolutas), uma vez que o próprio fato (dado) nada mais é do que uma construção histórica e cultural.

A despeito de propósitos e projetos diferenciados, podemos dizer que tanto o enfoque prático de formação, como as abordagens das competências e das evidências científicas têm sido utilizadas como fundamentos para a implementação de um projeto sistêmico maior, o qual investe na profissionalização docente técnica como recurso potencial do mercado. Favorecendo-se de tais perspectivas, de forma distorcida, contraditória ou desadequada, as reformas têm centrado na preparação de um profissional docente com domínio técnico e especializado sobre diferentes formas de aprendizagem, em detrimento de uma formação cultural mais ampliada (Bildung).

Diante desse diagnóstico, a nossa proposta é convidar os envolvidos com a formação dos professores para um novo debate, tendo como perspectiva de reflexão o enfoque das capacidades humanas proposto por Martha Nussbaum (2012) e seu vínculo consistente com a tradição pedagógica clássica. A ideia é discutir não apenas novas estratégias pedagógicas práticas ou teóricas, mas a possibilidade de pensar uma concepção formativa para os professores que atenda às demandas da profissão, não a reduzindo à lógica da aprendizagem voltada ao mercado, da competição e do empreendedorismo, mas aberta às exigências da vida, do outro e da participação democrática.

3 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ENFOQUE DAS CAPACIDADES

Procuramos mostrar acima, brevemente, algumas razões da insuficiência do enfoque formativo prático, do paradigma das competências e da abordagem por evidências científicas na formação de professores. A guinada para a prática tornou-se incapaz, também por causa de seu imediatismo pragmático, de levar em consideração a riqueza filosófico-formativa da noção pragmatista de experiência, principalmente daquela que é oriunda do pensamento de John Dewey. O paradigma das competências já nasce limitado devido à sua dependência irrestrita à perspectiva educacional gerencialista que reduz a formação de professores exclusivamente aos interesses profissionalizantes do mercado. Ao procurar atender às demandas econômicas, o paradigma das competências ignora, como mostrou Dirk Stederoth (2019, p. 135), capacidades humanas estéticas, emocionais e sociais. O enfoque das evidências científicas acaba por desconsiderar as evidências da pesquisa educacional, já que são entendidas, no campo político, como não científicas. Como contraponto a essa tripla perspectiva, apresenta-se o enfoque das capacidades desenvolvido por Nussbaum.

O enfoque das capacidades é definido por Nussbaum como abordagem “para a avaliação da qualidade de vida e para teorizar sobre justiça social básica”. (2012, p. 38), colocando-se como alternativa ao enfoque economicista no que se refere ao desenvolvimento humano. Trata-se de capacidades no plural porque “os elementos mais importantes da qualidade de vida das pessoas são plurais e qualitativamente distintos: a saúde, a integridade física, a educação e outros aspectos das vidas individuais que não podem ser reduzidos a uma métrica única sem distorções” (NUSSBAUM, 2012, p. 38). Com foco na busca por garantias da dignidade e de oportunidades para a todas as pessoas, a autora propõe um olhar voltado para aquilo que é necessário para que todos desenvolvam plenamente suas capacidades individuais. Alerta que para vencer o estigma e a discriminação, ter liberdade religiosa, de expressão e associação é importante ultrapassar o foco exclusivo na renda e na riqueza (NUSSBAUM, 2012).

Isso quer dizer que a busca exclusiva por renda e riqueza distancia as relações humanas e sociais de valores éticos fundamentais, como respeito pelo outro e solidariedade social, que estão na base da forma democrática de vida. Ou seja, quem levar à sério o modo de vida ancorado na concorrência, na eficiência e na lucratividade encontra-se no grande dilema moral de como construir um modo cooperativo de vida, uma vez que o pressuposto individualista da economia neoliberal se torna incompatível com a liberdade social: para transformar-se em empreendedor de si mesmo, o sujeito deve renunciar não só ao outro, mas também a si mesmo.

Assim, contrastando com o enfoque economicista que avalia a qualidade de vida geral por meio do Produto Interno Bruto – PIB, o enfoque das capacidades propõe avaliar a qualidade de vida pelo olhar da dignidade humana individual, concebendo a pessoa como um fim em si mesma. No lugar da teoria do capital humano é colocada a teoria da justiça social, na qual o importante é promover um conjunto de oportunidades necessárias para que o indivíduo possa fazer suas próprias escolhas e exercer sua cidadania com liberdade. Assim, se o foco economicista está na aprendizagem individual adequada à produtividade e ao lucro, o enfoque das capacidades está no desenvolvimento daquilo que as pessoas são capazes de ser e de fazer quando as oportunidades lhes são oferecidas e, sobretudo, de fazer socialmente, de modo cooperativo. Isso porque, de maneira geral, as regras das competências globais são vantajosas apenas para os países ricos e normalmente favorecem aqueles indivíduos que já são favorecidos. (NUSSBAUM, 2005). Diz a autora:

na atualidade, a maioria das nações modernas, preocupadas em incrementar a renda nacional e conquistar ou conservar uma cota do mercado global, tem se concentrado cada vez mais em um conjunto restrito de habilidades comercializáveis no mercado de trabalho e vistas como potencialmente geradoras de ganhos financeiros de curto prazo. Mas existem outras habilidades, relacionadas às humanidades e às artes (como o pensamento crítico, a capacidade de imaginar e compreender a situação de outra pessoa colocando-se em seu lugar, ou a compreensão de noções elementares sobre a história e a atual situação econômica global), que são essenciais sem exceção para a promoção de uma cidadania democrática responsável e para uma ampla gama de outras capacidades que as pessoas possam estar interessadas em exercer em outros momentos de suas vidas. (NUSSBAUM, 2012, p. 184)

Esse longo trecho citado contém dois aspectos nucleares do enfoque das capacidades que precisam ser retidos e comentados. O primeiro aspecto oferece um breve diagnóstico de época centrado na busca desenfreada pela renda nacional e pela conquista do mercado global que caracteriza a maioria das nações modernas. Trata-se, portanto, do mercado globalizado, regido pela lógica econômica concorrencial que não consegue respeitar as regras que ele mesmo constrói para regular as relações comerciais e políticas entre as nações e a convivência social entre os seres humanos. Tal lógica invade a própria produção do conhecimento, gerando o predomínio da sociedade do saber (LIESSMANN, 2011). O aspecto preocupante disso tudo é, segundo a crítica de Koch exposta acima, que o nexo entre a lógica do mercado e as exigências de tipo de saber que ela põe encurta de tal forma a concepção de condição humana que a reduz autoritariamente a um número restrito de competências e habilidades, tornando o sujeito ajustado ao modelo do gerenciamento empresarial. O segundo aspecto repousa na problematização mais ampla feita por Nussbaum sobre a condição humana, concebendo-a pela ótica das capacidades, incluindo entre elas outras dimensões humanas que vão além da linguagem economicista que sustenta a busca ambiciosa por renda e riqueza das nações modernas e que termina por se afunilar somente em algumas competências. Ou seja, quando é vista pela perspectiva ética que caracteriza o enfoque das capacidades, a condição humana ganha contornos mais amplos, destacando-se nela as capacidades crítica e imaginativa, indispensáveis à formação da cidadania democrática.

O enfoque das capacidades ocupa-se, portanto, prioritariamente, com o respeito à autodefinição das pessoas, da injustiça social e das desigualdades sociais, em especial aquelas que omitem as capacidades por discriminação ou marginalização (NUSSBAUM, 2012). Sendo uma teoria voltada aos direitos políticos fundamentais, Nussbaum apresenta uma lista com dez capacidades centrais que todas as pessoas deveriam ter condições de desenvolver, para que se coloquem na situação de dignidade humana. São elas:

1. Poder viver até o término de uma vida normal, ou seja, não morrer de forma prematura.

2. Poder ter boa saúde, inclusive reprodutiva, ter uma alimentação adequada e um lugar apropriado para viver.

3. Poder circular livremente de um lugar para o outro, estando protegido de qualquer tipo de violência.

4. Poder utilizar os sentidos, a imaginação, o pensamento e a razão, cultivados por uma educação verdadeiramente humana.

5. Poder sentir apego por coisas ou pessoas e ter emoções sem medo ou ansiedade.

6. Poder se formar numa concepção de bem e refletir criticamente sobre o planejamento da própria vida.

7. Poder viver com os outros, reconhece e mostrar interesse pelos seres humanos, participar de interações sociais e ser capaz de imaginar a situação do outro.

8. Poder viver uma relação respeitosa com os animais, plantas e o mundo natural.

9. Poder desfrutar der atividades recreativas.

10. Poder participar das decisões políticas, ter direito à propriedade em iguais condições de outras pessoas. (NUSSBAUM, 2012).

Essas dez capacidades nos dão em seu conjunto uma ideia ampla de condição humana, focando, sobretudo as capacidades 4, 6, 7 e 10, na sua dimensão ético-estético- político. Sugerem-nos, muito além do que a linguagem da aprendizagem consegue fazer, a importância da reflexão crítica sobre o projeto pessoal de vida. Chamam-nos a atenção para tomar tal projeto não no sentido concorrencial, voltado tão somente para a busca da lucratividade e da realização individualista, mas no sentido ético de cooperação social e realização coletiva.

Nesse contexto, para a autora, promover tais capacidades significa permitir áreas de liberdade (2012, p. 45), ou seja, criar o espaço para práticas de liberdade que formam o sujeito na perspectiva da cidadania democrática. Como já dissemos, não se trata de capacidades isoladas, mas de um conjunto de oportunidades que interagem e se influenciam mutuamente, podendo se expressar como um todo complexo (NUSSBAUM, 2012). Tal lista, entretanto, não pode ser entendida como a imposição de uma normativa geral para ser aplicada nos diferentes contextos, mas como um limiar para que as pessoas de todos os contextos tenham condições de alcançar uma situação mínima de dignidade. Conforme a autora, todas as pessoas deveriam ter oportunidade de exceder um nível mínimo de capacidades, entendendo-as não como uma obrigação, mas como liberdade de escolha e atuação, o que significaria tratar todas as pessoas com igual respeito. Só assim, seria possível caminhar rumo à justiça social, na qual “o respeito à dignidade humana obriga que os cidadãos e cidadãs estejam situados acima de um limiar mínimo amplo (e específico) de capacidade em todos e a cada uma das 10 áreas”. (NUSSBAUM, 2005, p. 56)

Trata-se de capacidades entendidas pela combinação entre disposições pessoais e o entorno político, social e econômico que podem ou não permitir o seu desenvolvimento. Entretanto, não é tarefa desse enfoque pressionar as pessoas a utilizarem cada uma das capacidades elencadas, mas sim permitir que todos possam exercer sua liberdade a partir do limite mínimo de oportunidades. (NUSSBAUM, 2012). O importante nisso tudo é que as pessoas tenham oportunidades iguais que assegurem a elas a possibilidade de desenvolver com liberdade de escolha as capacidades que lhe comprazem e que estejam em comum acordo com os interesses da comunidade. Nesse contexto, seria papel da formação para a cidadania democrática pôr em questão o que significa oportunidades iguais e como alcançá-las, o que significa liberdade de escolha e, principalmente, o que significa interesses comuns.

Nussbaum (2012) coloca a educação como um dos grandes potenciais para o desenvolvimento dessas capacidades, entendendo-a como forma propulsora de oportunidades para o desenvolvimento humano. Mas, de educação se trata? Sem ignorar o papel das ciências e da tecnologia, ela foca no papel das artes e das humanidades, pois acredita que esse núcleo do saber humano possui condições e responsabilidade direta com a formação do pensamento crítico, da cidadania universal e da imaginação criativa, que são os três grandes esteios de sustentação da cidadania democrática. O singular nessa sua proposta é que o pensamento crítico conduz à autocrítica, à cidadania universal, ao romper com o provincialismo corporativista, abre espaço para a defesa da universalidade dos direitos humanos e, por fim, a imaginação narrativa forma a capacidade ética indispensável de colocar-se no lugar do outro, sentindo-se solidário com seu sofrimento.4 Esses três esteios contribuem para formação de estudantes éticos e engajados politicamente. Como exemplifica a autora, um estudante de universidade ou de um curso superior pode ser (precisa ser) o tipo de cidadão capaz de atuar como participante inteligente nos debates que envolvem as diversidades humanas, seja como profissional ou simplesmente como eleitor, júri ou amigo. (NUSSSBAUM, 2005)

Em síntese, esses três esteios resumem o núcleo das capacidades humanas fundamentais que precisam estar na base do projeto educacional voltado para o cultivo da cidadania democrática. A autora deixa claro, por um lado, que não há como alcançar a cidadania democrática sem que as pessoas tenham conhecimento em matemática e língua materna, por exemplo, pois sem esses saberes, as oportunidades estariam todas fechadas. Entretanto, alerta, por outro lado, que não é possível reduzir a análise da educação e das capacidades gerais a tais habilidades, pois o desenvolvimento humano requer muito mais. Conforme suas palavras,

aqueles que usam a abordagem das capacidades precisam prestar muita atenção às questões tanto de pedagogia como de conteúdo, perguntando se (e como) a substância dos estudos e a natureza das interações na sala de aula (por exemplo, o papel atribuído ao pensamento crítico e à imaginação no estudo diário de múltiplos tipos de materiais) atendem aos objetivos inerentes à abordagem, principalmente em relação à cidadania. (NUSSBAUM, 2012, p. 184)

O que está em jogo, aqui, no enfoque das capacidades, é a exigência de uma teoria educacional ampla, que seja capaz de provocar a formação do pensamento crítico, da cidadania universal e da imaginação narrativa, que exige a presença de um grupo de capacidades que vai além da aprendizagem por competências e habilidades específicas, orientadas por evidências científicas de como o indivíduo aprende. Isso porque, nesse contexto, tornar-se um cidadão educado significa aprender não só uma série de fatos e a manejar técnicas de raciocínio, mas principalmente aprender a ser um humano capaz de amar e imaginar (NUSSBAUM, 2005). Assim, a autora propõe o uso das ideias e as compreensões proporcionadas pelas disciplinas de humanidades e das artes, como múltiplas possibilidades de entrada na teoria. Não se trata, portanto, de uma educação moralizadora, mas de uma educação no estilo socrático, aberta a questionamentos, argumentações, justificativas e reflexões (NUSSBAUM, 2012). Isso porque, segundo ela “seria catastrófico se tornar uma nação de pessoas tecnicamente competentes que perderam a capacidade de pensar criticamente, de se examinar e de respeitar a humanidade e a diversidade dos outros”. (NUSSBAUM, 2005, p. 327)

Por isso, no que se refere especificamente à formação de professores, o enfoque das capacidades traz o desafio de pensar uma nova concepção formativa voltado ao cultivo da humanidade e à cidadania democrática, o que não significa marginalizar a preparação técnica necessária ao ensino, mas colocar as capacidades humanas e não as competências lucrativas como finalidade e alicerce da profissão. Embora Nussbaum não trate especificamente da formação de professores, entendemos, por meio da sua teoria das capacidades, ser possível resgatar o cerne da formação do educador, que não se reduz à aprendizagem de competências específicas, pois endossa o compromisso com formação cultural ampliada necessária ao pensar por si próprio, ao exercício de liberdade e à ação política. A seguir, apresentamos dez ensaios de teses que, embora já veiculados por meio de outras perspectivas críticas no campo, podem ser renovadas e sintetizadas a partir do enfoque das capacidades.

1) Entender que a luta pela distribuição de renda e garantia do emprego, embora fundamentais, são insuficientes para uma educação não discriminatória ou estigmatizada, sendo necessário, portanto, ultrapassar os limites da aprendizagem por competências e habilidades, assentadas em evidências científicas de como o sujeito aprende;

2) Elaborar uma concepção formativa sustentada na oferta de oportunidades e incentivo ao desenvolvimento das capacidades individuais;

3) Para além da preparação técnica, organizar a formação de professores no estilo socrático, com incentivo ao autoexame, à crítica, ao questionamento, à reflexão e à argumentação. Um educador precisa saber ensinar a tradição, mas também questioná-la e reconstruí-la quando necessário;

4) Garantir o espaço para o estudo de humanidades, recuperando teorias pedagógicas clássicas que possam contribuir para um projeto de educação que promova os interesses voltados à formação integral e humana, alargando o repertório de olhares na construção de sentidos formativos atentos à dignidade humana e à justiça social;

5) Ter clareza do não determinismo econômico da educação e, assim, da necessidade de o professor ter uma formação ampliada alicerçada na ética, na estética e na política;

6) Pensar a formação de professores não apenas como espaço de saber e de fazer conforme orientações já estabelecidas, mas também como oportunidade de fazer e ser de forma livre, compreendendo a inclusão democrática como princípio formativo;

7) Incentivar a formação de mentes independentes, de profissionais sensíveis à universalidade dos direitos humanos, críticos e autocríticos, capazes de se colocar no lugar do outro, em condições de educar a nova geração no mesmo sentido;

8) Fomentar a ideia de que as pessoas devem ter suas vidas plenamente desenvolvidas, independente de classe, raça, religião, gênero ou sexualidade, sendo compromisso dos cursos de formação de professores a incorporação de tais discussões, problematizando, por exemplo, o que significam oportunidades iguais, liberdade de escolha e interesses comuns;

9) Entender a tarefa da educação como formação de pessoas livres e comprometidas com a humanidade, voltada à participação democrática e à justiça social;

10) Ter a dignidade humana como telos da formação, entendendo a profissão docente como um espaço propulsor para o cultivo da humanidade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo como foco a crítica ao modelo de educação para o negócio, discutimos a possibilidade de uma nova concepção formativa para os professores baseando-se no enfoque das capacidades proposto por Nussbaum. Ancorado nos princípios do cultivo da humanidade e assim, na responsabilidade com a formação do pensamento crítico, da cidadania universal e da imaginação narrativa, tal enfoque se coloca na contracorrente das políticas educacionais voltadas para o mero treinamento profissional técnico, seja com base no praticismo sem reflexão, no paradigma das competências ou na abordagem de educação por evidências. Trata-se de uma perspectiva na qual o professor não ficaria restrito à produção de resultados, pois estaria atento às demandas da vida, do pensar por si próprio, da crítica e da autocrítica, do cuidado de si e do outro. Ou seja, a formação docente não seria constituída apenas pela preparação do saber fazer, mas também pelo exercício do diálogo e da argumentação, pela experiência da escuta e da pergunta, pelo compromisso com a liberdade, com os valores do pluralismo, com a superação das injustiças e das desigualdades sociais.

Enfim, procuramos defender a hipótese que a noção de formação de capacidades humanas é mais apropriada para dar conta das especificidades da práxis educacional e, portanto, mais adequada para pensar a formação do professor compromissada com a formação humana. Concordamos com Nussbaum (2015) quando diz que um bom sistema educacional é aquele que prepara os jovens para viver numa organização social e política, numa sociedade democrática em que as pessoas fazem escolhas com impacto significativo na vida das que discordam, seja por motivos de religião, etnia, riqueza, classe, gênero ou sexualidade. Ao evidenciar a autoridade da ética, da estética e da política, o enfoque das capacidades insere o campo de formação docente em um horizonte mais amplo de compreensão, oportunizando um projeto pedagógico em que o educador tenha condições não apenas de atender ao que é previsto para o ensino, mas de enfrentar os imprevistos e indeterminações da tarefa de educar para o tempo não produtivo, para a sobrevivência da pluralidade e da diferença, para a participação democrática e o cuidado com a vida humana.

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Endereços para correspondência:

Catia Piccolo Viero Devechi: Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Campus Darcy Ribeiro. Email: catiaviero@gmail.com

Claudio A. Dalbosco: PPGEDU, Universidade de Passo Fundo. Email: cadalbosco@upf.br


1 O artigo é fruto da pesquisa que está sendo realizada junto ao CNPq com auxílio aprovado na Chamada MCTIC/CNPq N. 28/2018 - Universal e a FAPDF com auxílio aprovado pelo Edital 03/2018 - Demanda Espontânea.

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina; Mestra em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria; Coordenadora do GEFFOP - Grupo de estudos sobre filosofia da educação e formação de professores, cadastrados no diretório de grupos do CNPq. 

3 Doutor em Filosofia pela Universität Kassel; Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Atua no curso de Filosofia e no PPG em Educação; Pesquisador do CNPq; Orienta em mestrado e doutorado.

4 Para um desenvolvimento mais detalhado desses três esteios da cidadania democrática, ver Dalbosco (2021, p. 163ss).