https://doi.org/10.18593/r.v49.32596

Considerações sobre princípios educacionais e formativos em O espelho dos Reis de Álvaro Pais

Considerations on educational and formative principles in The Mirror of Kings by Álvaro Pais

Consideraciones sobre principios educativos y de formación en Espelho dos Reis de Álvaro Pais

Silvana Malavasi1

Universidade Estadual do Paraná; Produção vinculada ao PPE da Universidade Estadual de Maringá.

https://orcid.org/0000-0002-8497-2020

Viviane da Silva Batista2

Universidade Estadual do Paraná; Produção vinculada ao PPE da Universidade Estadual de Maringá

https://orcid.org/0000-0003-2126-7778

Terezinha de Oliveira3

Universidade Estadual de Maringá; Produção vinculada ao PPE da Universidade Estadual de Maringá

https://orcid.org/0000-0001-5349-1059

Resumo: As reflexões que compõem este artigo partiram da premissa de que a formação do governante reverbera sobre sua conduta e ações e, portanto, na organização social. Por isso, este estudo objetivou compreender os princípios educacionais e formativos defendidos por Álvaro Pais como necessários ao governante cristão em meados do XIV. A análise recaiu sobre a sua obra Espelho dos Reis (1341-1344), que nos permitiu caracterizar a monarquia como melhor método de governo para o seu tempo. Além de Pais, foram selecionados para fundamentar este estudo: Barbosa (1982), Costa (1994; 2004) Mattoso (1997), Souza (1999; 2008); Souza (2010), dentre outros. A natureza dessa pesquisa é bibliográfica, com base nos pressupostos da totalidade histórica e de longa duração, conforme Braudel (1992) e Bloch (2001). Ao buscar um entendimento acerca do pensamento teocrático de Álvaro Pais, observou-se sua preocupação com o embate entre os poderes espiritual e temporal, pois, para ele, o papa deveria ater-se às causas espirituais e ao rei recaia, por decisão divina, o direito de liderar as causas terrenas, bem como conduzir o povo à felicidade e à eterna salvação sob orientação do papa, constituído como um conselheiro. Preocupado com as questões do seu tempo, Pais pensou sobre a formação do governante e defendeu a monarquia como modelo ideal de governo. Espelho dos Reis configurou-se, então, como um manual da reta conduta aos príncipes, reis e àqueles que, desejosos da felicidade e da salvação da alma, quisessem trilhar o caminho do bem de acordo com os princípios cristãos da época.

Palavras-chave: Álvaro Pais; formação do governante; princípios educacionais e formativos; Espelho dos Reis.

Abstract: The considerations that make up this article are based on the premise that the formation of the ruler reverberates on his conduct and actions and, therefore, on the social organization. Therefore, this study aimed at understanding the educational and formative principles advocated by Álvaro Pais as necessary for the Christian ruler in the mid-14th century. The analysis fell on his work Mirror of Kings (1341-1344), which allowed us to characterize monarchy as the best method of government for his time. Besides Pais, the following were selected to support this study: Barbosa (1982), Costa (1994; 2004) Mattoso (1997), Souza (1999; 2008); Souza (2010), among others. The nature of this research is bibliographic, based on the assumptions of historical totality and long duration, according to Braudel (1992) and Bloch (2001). In seeking to understand the theocratic thought of Alvaro Pais, it was observed his concern about the clash between spiritual and temporal powers, because, for him, the pope should stick to spiritual causes and the king had, by divine decision, the right to lead the earthly causes, as well as lead the people to happiness and eternal salvation under the guidance of the pope, constituted as an advisor. Concerned with the issues of his time, Pais thought about the formation of the ruler and defended monarchy as the ideal model of government. Mirror of Kings was configured, then, as a manual of the right conduct to princes, kings and to those who, desirous of happiness and salvation of the soul, wanted to walk the path of good according to the Christian principles of the time.

Keywords: Álvaro Pais; formation of the governor; educational and formative principles; Espelho dos Reis.

Resumen: Las reflexiones que componen este artículo partieron de la premisa de que la formación del gobernante repercute en su conducta y acciones y, por tanto, en la organización social. Luego, este estudio tuvo como objetivo comprender los principios educativos y formativos preconizados por Álvaro Pais como necesarios para el gobernante cristiano de mediados del siglo XIV. El análisis recayó en su obra Espelho dos Reis (1341-1344), que nos permitió caracterizar a la monarquía como el mejor método de gobierno para su época. Además de Pais, fueron seleccionados para apoyar este estudio: Barbosa (1982), Costa (1994; 2004) Mattoso (1997), Souza (1999; 2008); Souza (2010), entre otros. La naturaleza de esta investigación es bibliográfica, basada en supuestos de totalidad histórica y de largo plazo, según Braudel (1992) y Bloch (2001). En la búsqueda de una comprensión del pensamiento teocrático de Álvaro País, se observó su preocupación por el choque entre los poderes espiritual y temporal, ya que, para él, el Papa debe ceñirse a las causas espirituales y el rey debe caer, por decisión divina, el derecho liderar las causas terrenales, así como conducir al pueblo a la felicidad y salvación eterna bajo el papa, constituido en consejero. Preocupado por los problemas de su época, País pensó en la formación del gobernante y defendió la monarquía como modelo ideal de gobierno. Espelho dos Reis se configuró, entonces, como un manual de conducta correcta para príncipes, reyes y aquellos que, deseosos de felicidad y salvación del alma, querían andar por el camino del bien según los principios cristianos de la época.

Palabras-clave: Álvaro Pais; formación del gobernante; principios educacionales y formativos; Espelho dos Reis.

Recebido em 16 de março de 2023

Aceito em 15 de janeiro de 2024

1 INTRODUÇÃO

Ao refletirmos acerca das relações entre a educação e a política entendemos que esses dois campos exercem forte influência na organização social. Cientes de que as condições históricas, as necessidades e demandas humanas variam ao longo do tempo, parece-nos legítimo afirmar que justamente por isso os mecanismos e instituições inerentes a cada sociedade estabeleçam modelos, princípios, hábitos e valores éticos e morais que possam sustentar seu desenvolvimento e dar às pessoas uma identidade, uma função social. Esses mecanismos e instituições relacionam-se com os princípios educacionais e formativos que, normalmente, são instituídos pelas bases e lideranças políticas que despontam na sociedade. São, portanto, resultado das ações humanas no tempo e no espaço e seus desdobramentos influenciam na coletividade a longo prazo, por isso é que, nesse estudo, optamos pelos princípios teóricos da História Social e da Longa Duração (Braudel, 1992; Bloch, 2001).

Foi a partir dos pressupostos da totalidade histórica e de longa duração que nos voltamos à premissa de que a formação do governante reverbera sobre sua conduta e ações e, portanto, na organização do todo social. Assim, nos deparamos com o seguinte questionamento: Existe uma forma de governo ideal? O que determina um bom governante? Para responder a essas questões, recorremos à História e elegemos como nossa fonte a obra Espelhos dos Reis, autoria de Álvaro Pais (1955).

Assim, este estudo objetivou compreender os princípios educacionais e formativos defendidos por Álvaro Pais como necessários ao bom governante cristão no final do século XIII e meados do XIV. Para tanto, a análise recaiu sobre a sua obra Espelho dos Reis (1341-1344), considerada como um projeto pedagógico político e religioso que, ao tratar de questões políticas e da instrução real, nos permite apreender o legado histórico deixado pelo autor no que diz respeito à ética e às virtudes sobre a formação do ser humano e, especificamente, a de um governante.

Além de Pais, outros foram selecionados para fundamentar este estudo autores que analisam a temática como como Barbosa (1982), Costa (1994; 2004) Mattoso (1997), Souza (1999; 2008) e Souza (2010). Assim, cumpre observar que a pesquisa é bibliográfica.

A escolha de nossa fonte se deu porque Álvaro Pais ficou conhecido por ter desempenhado um papel polêmico entre os poderes papal e imperial durante seu tempo. Não existe uma data precisa de seu nascimento, pressupõe-se que seja entre os anos de 1270-1280. Imprecisão que reverbera também em sua descendência, que possivelmente seja espanhola ou portuguesa. Estudou direito Canônico e Civil em Bolonha e essa formação influenciou sua obra e o modo no qual ele descreveu a sociedade medieval em meados do século XIV e suas demandas. Por isso, seus escritos o consagraram dentro da historiografia um pensador religioso, mas sobretudo como alguém que externou em seus escritos sua preocupação com a ética na política.

A obra Espelho dos Reis pode ser compreendida como uma legítima expressão dessa preocupação, isso porque apresenta uma compilação de teses de natureza política que visam, dentre outras coisas, defender a monarquia como a melhor forma de governo e instruir o rei a respeito das ações e virtudes que ele deveria praticar com vistas à temperança de seu poder, isto é, com vistas ao domínio de si, à moderação das próprias vontades e à parcimônia de suas atitudes. Uma vez que a ele recaía a representação de unidade, deveria o seu legado ser exemplo de paz e equilíbrio, não de tirania. Temos, portanto, “[...] diante de nós um filósofo complexo que, numa tentativa de resposta ao problema do humano, abordou temas políticos, éticos, religiosos” (Barbosa, 1982, p. 180).

Dessa forma, em Espelho dos Reis é perceptível a preocupação de Pais dado que, ao caracterizar um governo eficiente, ele defendeu um projeto político-religioso de rei ideal e cristão. Para nós, essa obra trata-se de um manual de boa conduta política-religiosa que não se restringe ao rei ou ao príncipe, mas se aplica àqueles, que impelidos pela possibilidade de felicidade e salvação, desejassem seguir o caminho do bem de acordo com os princípios cristãos da época. O teor de Espelho dos Reis permite a compreensão dos motivos que levaram o franciscano Álvaro Pais a defender a monarquia como modelo ideal de governo em meados do século XIV.

2 O ENTENDIMENTO ALVARINO SOBRE A FORMA DE GOVERNO IDEAL

No final do século XIII e meados do XIV, o Ocidente medieval vivenciou uma disputa de poder, a coexistência entre os poderes espiritual e temporal gerou um debate em torno de quem deveria ficar à frente das questões divinas e das terrenas. A Igreja, uma instituição consolidada por sua importância religiosa, econômica, política e cultural, entendia que cabia aos seus representantes a função de liderança social enquanto a monarquia também manifestava o seu interesse em governar (Batista, 2022). Essa discussão sobre os aspectos políticos ocidentais repercutiu até mesmo nos escritos da época, de modo que as pessoas passaram a posicionar-se em defesa de um ou de outro. Pais (1955), por exemplo, identificou a importância do papa e do rei, mas defendeu que o governo temporal caberia à monarquia aconselhada pelo papa. Em Espelhos dos Reis ele sintetiza a história das monarquias:

[...] a primeira monarquia que floresceu no mundo foi a dos caldeus e assírios, começada por um filho de Belo, que inventou ídolos públicos com o nome do pai, conforme diz o Mestre nas Histórias. Este império ou reino dos assírios durou 1215 anos, segundo Agostinho no 4.º livro Da Cidade de Deus. A segunda monarquia foi transferida para os índios e para os persas, como a respeito de Dario, Ciro, e outros reis, se colhe das Histórias de Daniel. A terceira foi transferida para os gregos e para os egípcios, a qual alcançou o apogeu no tempo de Alexandre da Macedónia, como se lê no 1.º livro dos Macabeus, I. A quarta foi transladada para os romanos. Com ela terminará o mundo (Pais, 1955, v. 1, p. 89).

Pais (1955) menciona que essas monarquias são referidas nas Histórias e nas Escrituras, associando cada uma a um período específico. Ele também destaca a crença de que, após essas monarquias, Deus estabelecerá o reino eterno. Nesse contexto, a perspectiva histórico-teológica do autor oferece uma justificativa sólida para a valorização da monarquia como parte integrante do plano divino. Conhecer essa síntese alvarina nos permite compreender a defesa pelo regime monárquico por parte de Pais que, por sua vez, entendia que esses quatro reinos e impérios estavam denominados na estátua de ouro de Nabucodonosor, de modo que após eles, “Deus suscitará o reino do céu, que não terá fim, e o seu reino não será confiado a outro povo” (Pais, 1955, v.1, p. 89). Dessa forma, no raciocínio instituído por Pais, Deus Pai deu seu filho, Jesus Cristo, para salvar todas as monarquias e impérios. Defendia que o melhor sistema político para os reinos cristãos, deste período, era a monarquia. Mas esta monarquia, deveria estar submissa aos direcionamentos da Santa Igreja, na qual era representada na Terra pelo papa.

Segundo Mattoso (1997), a monarquia pode ser definida como um sistema político que tem um monarca como líder do Estado, cuja descendência é hereditária, isto é, a sucessão ao trono é entendida como direito e dever do primogênito. No século XIII, em Portugal, existiu “[...] uma monarquia ‘feudal’, isto é, um poder régio que não distingue claramente público do privado, tal como acontecia nos restantes países europeus da mesma época” (Mattoso, 1997, p. 221). Assim, no território ibérico a monarquia hereditária predominou como sistema mais comum de escolha do monarca.

De acordo com Pereira (2020), a monarquia é a forma política em que o poder soberano do Estado corresponde às decisões de somente um governante, ou seja, de uma só cabeça. A legitimidade desse rei é entendida como um direito divino sobrenatural: acreditava-se que ele era escolhido por Deus para estar no poder. Essa crença “[...] demonstra a simbiose entre religião e política, teologia e governo, uma instância apoiando a outra de forma a possibilitar a manutenção de seus poderes” (Pereira, 2020, p. 109).

Álvaro Pais defendia a monarquia da perspectiva hierocrata, conforme aparece em várias partes de sua obra Espelho dos Reis. “O facto de os reis não serem ungidos na cabeça, como os pontífices, mas no braço, significa que seu poder não é predominamente espiritual, mas, por função e obediência, visto que é pelo braço que obramos [...]” (Pais, 1955, v.1, p. 109). Nas palavras do frade franciscano, o sumo pontífice é ungido na cabeça e nas mãos, porque nele deve existir a perfeição da vida beatificada e ativa, já que ele é o representante de Deus na Terra: não existe maior poder do que o dele. Já os reis são ungidos pelo braço, pois, da expectativa alvarina, o braço representa a força física para defender arduamente a Igreja. Compreendemos que a cabeça representa o pensar e o braço, o agir. Isso significa que, na perspectiva de Pais, para ter um bom governo, o rei deveria proteger a Igreja contra seus inimigos e seguir as orientações do papa. Por isso, aconselhamentos como o que se segue podem ser encontrados em Espelhos dos Reis:

[...] sirvais o Senhor de todas as coisas, isto é, Cristo. E, se a Cristo, por que não a seu vigário geral, no céu e na terra, que Ele pôs, em seu lugar, a frente da Igreja Universal? E se os reis lhe devem obedecer, por que não também todos aqueles que de qualquer modo estão dependentes dos reis? Pelo contrário, devem-lhe muito mais obediência do que aos reis, porque é superior em tudo[...] [...], pois que tem o ápice de todo o poder espiritual e temporal. Por isso, se o Sumo Pontífice mandar uma coisa, e qualquer príncipe temporal determinar o contrário, deve-se obedecer mais àquele do que este, conforme dizem os referidos capítulos Qui resistit e Quae contra (Pais, 1955, v.1, p. 105, grifo nosso).

Essa passagem reflete uma visão de hierarquia eclesiástica em que a autoridade do Papa é colocada acima das autoridades temporais, sustentando a ideia de que a obediência ao Papa é uma obrigação prioritária para aqueles que estão subordinados à Igreja. Assim, para Pais, todas as coisas existentes no céu e na Terra pertenciam a Deus e que seu emissário na Terra era o sumo pontífice, a quem recaía o poder supremo tanto nas decisões espirituais, quanto nas temporais. Logo, para conseguir um bom governo, o rei deveria ser cristão e erudito.

É possível notar que no pensamento alvarinho revela-se a defesa da teocracia, aqui entendida como um sistema de governo em que o poder político se fundamenta no religioso. Isso porque ao adotar essa teoria, o rei se submeteria às normas da cristandade que governavam as ações políticas e jurídicas, bem como ao comportamento moral e ético, tornando-se um exemplo de fidelidade e cristandade para os seus. Certamente, além de difundir a teocracia, esses elementos reforçavam também os laços políticos entre o homem e nação, posto que Pais determinava que “[...] não faça rei um homem de outra nação, pois que não deve ser elevado a rei quem não seja fiel e de povo cristão [...]” (Pais, ١٩٥٥, v.١, p. ١٢١). Em seu entendimento, resignar-se aos princípios cristãos era o modo de o rei conduzir seu povo à salvação. Por isso, o modelo de governo expresso em Espelho dos Reis é de natureza religiosa, posto que nas “[...] comunidades políticas dirigidas por um só, imperam a justiça e a paz entre os súditos e entre esses e o monarca, daí haver prosperidade e bem-estar para todos. É evidente, portanto, a preferência do Frade galego pela monarquia” (Souza, 2005, p. 21).

Assim, considerando que toda monarquia deveria garantir aos súditos a justiça e a paz, em Espelho dos Reis, o autor mencionou os vícios que induzem um rei à crueldade. De nosso ponto de vista, ao escrever sobre esses males, o frade franciscano ensinou como não se tornar um mal rei, pois a maldade causa a destruição de um reino. Para evitar a tirania, ele “[...] concebia a prática das virtudes cardeais como sustentáculo e remédio para as más atitudes do monarca, que, com elas, estaria protegido contra as tentações intrínsecas ao seu encargo e, em especial, contra a tirania” (Souza, 2008, p. 76). Desse modo, a reflexão contida em Espelho dos Reis não apenas adverte contra os males que podem assolar um reino, mas oferece uma orientação prática para a construção de uma governança justa e equilibrada, salvaguardando o reino contra os males associados à má governança.

À guisa da prática das virtudes, vislumbramos que o melhor governo não era apenas o que se sobrepunha às dificuldades externas ou as superava, mas também aquele que pensava em seu povo, atendia a suas demandas e o guiava para o bem. Para tal entendimento, consideramos também o que Aristóteles (١٩٩١, Cap. XI, p. ١٢٩) escreveu sobre a arte da política: “[...] deve-se considerar não apenas qual seja o melhor governo, aquele que se deve preferir quando nenhum obstáculo exterior se opõe, mas também aquele que convém a cada povo, pois nem todos são suscetíveis do melhor”. Essa afirmação destaca a necessidade de considerar não apenas qual forma de governo é considerada a melhor em termos absolutos, mas também qual se adequa melhor às circunstâncias e características específicas de cada povo. Aristóteles, portanto, reconhece que não existe uma única solução governamental universalmente ideal, uma vez que diferentes povos possuem distintas tradições, culturas, e realidades socioeconômicas. Portanto, a escolha do melhor governo não pode ser feita de maneira genérica, desconsiderando o contexto particular de cada sociedade, posto que a ideia central é que a eficácia de um sistema de governo deve ser avaliada levando em conta as peculiaridades e necessidades específicas de cada comunidade, reconhecendo que o que pode ser o melhor em uma situação pode não ser o mais adequado em outra.

A nosso ver, de acordo com o modelo político pensado por Pais, o melhor governo para o povo cristão era a monarquia. Todas as circunstâncias de então levaram-no a defender esse sistema de governo, desde que, para combater a tirania e proteger o bem comum, o rei fosse orientado pelos princípios espirituais e se submetesse aos ideiais da cristandade, “[...] principalmente ao sumo sacerdote, chefe romano e sucessor de Cristo, a quem todos os reis do povo cristão devem submeter-se, como o próprio senhor Jesus Cristo” (Pais, 1955, v. 1, p. 213).

O pensamento teocrático fundamentou claramente a proposta do frade franciscano para o bom governante. Retomando o questionamento sobre a existência de uma forma de governo ideal, observamos que, de fato, na concepção alvarina a monarquia constituiu-se como tal para àquela sociedade. Em nossa análise, verificamos que, em Espelho dos Reis, para além de defender a “monarquia teocrática”, Pais descreveu um modelo de governante para o seu tempo, isto é, que, alinhado à tradição medieval, refletiria a consciência e as ações de seu povo com vistas a uma finalidade maior: conduzi-lo à felicidade, portanto, à salvação. Essa finalidade constituía-se como missão do governante, por isso Espelhos dos Reis tem um caráter educativo, visto que ao passo que o rei se educa também ensina pelo exemplo. Isto é, ensina os demais a amar a pátria e a sentir-se parte dela, consequentemente, institui neles o dever de também mantê-la e protegê-la.

3 O BOM GOVERNANTE NA PERSPECTIVA DE ÁLVARO PAIS

A preparação do líder competente e as virtudes destacadas por Pais em Espelho dos Reis como indispensáveis àqueles que assumem a liderança são de extrema importância. O governante carrega a responsabilidade sobre os demais. Tanto por meio de exemplaridade em conduta como por instruções diárias e correções constantes, os líderes desempenham um papel crucial na manutenção da integridade e retidão. Este princípio ressalta a relevância de líderes modelarem uma vida ética, proporcionarem orientações regulares e promoverem correções contínuas como pilares essenciais para o exercício eficaz da liderança, conforme delineado por Pais em sua obra.

Assim, a decência humana deveria ser mantida pelos governantes que, por sua vez, deveriam ter conduta exemplar e ser modelo de vida para todos em suas ações cotidianas. Dessa perspectiva, o bom governante deveria zelar por sua postura pessoal e política, visto que precisaria ser digno de governar, pois “De tamanha dignidade é, efetivamente, a condição humana, é, todavia, especialmente mantida pelos governadores do mundo, quer com exemplos de vida recta, quer com ensinamentos quotidianos, quer contínua correção” (Pais, 1955, v.1, p. 59).

O ser humano é provido de imperfeições e, de acordo com os escritos alvarinos, deve ser corrigido e orientado pelos homens que possuem a sabedoria. O governante, para o frade galego, deveria ser sábio e conhecedor dos princípios cristãos porque ele seria um exemplo a ser seguido pelos demais, uma “[...] figura de um Rei Ideal, modelo de vida cristã, para a qual possam olhar, como para um espelho de perfeição, todos os soberanos do mundo e todos os particulares que aspirem à santidade” (Barbosa, 1982, p. 106). Em outras palavras, o rei não só praticaria o bem, como o espelharia e, assim, inspiraria os demais a seguir seu reflexo, isto é, a se portar como ele. Ao se pôr como exemplo de conduta, o monarca conduziria seu reino à ordem, ao desenvolvimento, ao caminho para além das riquezas materiais, ou seja, para alcançar as virtudes e a felicidade eterna.

Souza (1999, p. 77) afirma que Pais “[...] construiu uma doutrina político-religiosa sobre um dos pontos fulcrais contidos no Espelho dos reis e no Estado e Pranto da Igreja: a sua concepção acerca da relação entre o poder régio espiritual e o poder régio temporal”. Essa abordagem sugere que, nas obras mencionadas, o autor desenvolve uma visão específica sobre como essas duas esferas de poder devem se relacionar. A importância dessa doutrina pode ser compreendida ao considerar o papel significativo que a relação entre autoridade espiritual e temporal desempenha na teoria política e religiosa de Pais. Essa perspectiva, conforme delineada por Souza, destaca a relevância do pensamento de Pais na formação de uma base teórica que aborda a complexa interação entre os poderes espiritual e temporal no contexto político e religioso.

Souza (1999, p. 77) explicita ainda que para compreendermos as ideias alvarinas é preciso aceitar que, para Pais, a política “[...] não representava uma instância autônoma de poder; para ele, o homem era um ser ontológico, essencialmente espiritual, ou seja, tudo o que dizia respeito à existência histórica do homem vinculava-se ao espírito” e que sua obra corroborou para com a compreensão de um “[...] projeto de cristianização efetivado pela Igreja para os fiéis, que deviam se pautar por uma mudança de comportamento de reis e altos dignitários seculares e eclesiásticos, com o fito de atingir os demais membros da cristandade”.

Dito isso, reiteramos que a concepção político-religiosa de Álvaro Pais fundou-se na soberania de Deus sobre o universo e sobre o homem. Isso implica que, de sua perspectiva, o papel político só se constituiria quando a preocupação do governante não fosse apenas com o bem-estar proporcionado pelas riquezas materiais, mas, sim, com o direcionamento de suas ações e seu reino para os valores inerentes à dignidade do ser humano e à preparação para a vida eterna. Isso porque, na visão alvarina, o espiritual era o mais importante, posto que um bom governo só seria possível se o governante prestasse culto a Deus, representado na Terra pelo papa. Em outras palavras, fazia-se imperativo que Deus estivesse no núcleo de qualquer ação, no caso específico, no das atividades políticas.

Por defender que o sagrado era imperativo nas ações humanas, sobretudo nas do governante, o frade galego tratou do bom principado dos romanos e de suas três virtudes, suscitando, com isso, uma reflexão acerca dos aspectos que deveriam ser politicamente priorizados pelo bom líder. Assim, o bom governante, na perspectiva de Álvaro Pais, deveria nutrir em si e ser exemplo dessas três virtudes: “A primeira virtude foi o sincero amor à pátria. A segunda, a sacratíssima tradição das leis. E a terceira, a brandura dos costumes” (Pais, 1955, v.1, p. 59).

A primeira virtude refere-se aos cidadãos que, por viver em sociedade, inserindo-se em uma determinada ordenação sociocultural, constituem-se como corpo social, ou seja, refere-se aos civilizados. Esse deve ser o principal objetivo dos governantes: instituir um corpo social, uma noção de unidade e de laços com uma identidade pátria. Álvaro Pais entendeu que, para ensinar os homens, era preciso que eles amassem a pátria, se considerassem parte dela para poder conservá-la e mantê-la. Essa educação não era natural, precisava ser de fato ensinada e praticada, portanto, esses homens careciam de direcionamento, exemplo e prática, deveriam “[...] ser alimentados e exercitados nas virtudes, e, quando tiverem progredido de modo que manifestamente se prove excederem em virtudes àqueles que devem sobrepujar em honras, subirão vitoriosos [...]” (Pais, 1955, v.1, p. 65). Para Pais, a partir dessa ordenação social sustentada pelos princípios educacionais e formativos presentes em Espelhos dos Reis é que a rei conseguiria conduzir a sociedade para o caminho do bem, da justiça e da honra, tornando-a digna de subir aos céus, ou seja, da salvação da alma.

Esses princípios formativos sinalizam o amor à pátria como sinônimo de sabedoria e honradez, de modo que o frade galego exemplifica:

[...], tentando o pai trair a pátria, o filho deve ficar inactivo, ele mesmo respondeu que, em primeiro lugar, suplicará ao pai que não faça isso, e, depois, se nada adiantar, deve actuar até às últimas consequências: caso esteja em perigo o futuro da pátria, deve antepor a salvação dessa à salvação do pai. Não será para admirar, como diz no mesmo lugar, que, estando dois sábios no meio do mar sobre uma prancha que não aguenta com os dois ao mesmo tempo, o menos sábio deva ceder o seu lugar ao mais sábio, porque este será mais útil ao bem comum (Pais, 1955, v. 1, p. 73-75).

A passagem em tela nos remete à questão da lealdade familiar versus o compromisso com o bem comum e a pátria, destacando a posição de Pais sobre esse dilema ético. Em caso de o pai trair a pátria, a resposta do filho não deve ser a inatividade, mas sim a intervenção ativa. Pais argumenta que o filho deve primeiro implorar ao pai para não tomar tal atitude, mas se isso não for eficaz, o filho deve agir em prol do futuro da pátria, priorizando a salvação coletiva sobre a lealdade individual. A analogia com dois sábios em perigo no mar, onde o menos sábio cede seu lugar ao mais sábio em benefício do bem comum, reforça a ideia de que, em situações críticas, é imperativo colocar o interesse coletivo acima do individual.

A abordagem de Pais destaca a complexidade das lealdades e responsabilidades, sugerindo que em certas circunstâncias extremas, o compromisso com o bem maior deve prevalecer sobre as lealdades familiares. Essa perspectiva destaca a preocupação do autor com o equilíbrio entre o respeito pelas relações pessoais e o dever para com a comunidade e a pátria, promovendo uma ética que prioriza o bem coletivo. Sua concepção de amor pátrio confirma-se nos exemplos que expunha, segundo os quais, um homem que ama sua pátria renuncia a seus interesses particulares em prol dos interesses de toda a sociedade e em favor do bem comum.

A segunda virtude é a sacratíssima tradição das leis: “A segunda razão por que os romanos tiveram o domínio foi a tradição de leis santas divinamente promulgadas pela boca de seus governantes [...]” (Pais, 1955, v.1, p. 75). Entendemos que, nessas palavras, está contida a ideia de que toda a sociedade deve seguir as leis promulgadas e outorgadas pelo governante. Assim, ainda que resguardassem sua importância, as leis terrenas não poderiam se sobrepor às divinas: o respeito às leis divinas era necessário para aqueles que desejassem alcançar as honras, o reino celeste e a glória.

Por considerar que as leis e os sistemas de governo careciam de uma vida social digna, com qualidades que possibilitassem o crescimento humano e espiritual, levando ao desenvolvimento do bom cidadão, para Pais (1955), Deus deveria ser o centro de todas as dimensões, principalmente da política, cujos interesses deveriam convergir para o bem comum. De acordo com Souza (2010, p. 267), “É ainda competência ou dever do rei ensinar seus súditos a serem virtuosos, bons e cumpridores das leis [...]”, de modo que o “[...] resultado pedagógico sempre resulta mais eficaz, em geral, pelo bom exemplo de conduta, e especificamente, se ele próprio respeitar as leis vigentes”.

Analisamos que, para ser humano, o exemplo teórico e prático é mais efetivo do que o simples discurso, isto é, não basta falar o que é certo ou errado: são as ações praticadas pelos governantes que instruem os súditos e os inspiram a seguir seus ensinamentos. Segundo Álvaro Pais,

[...] apesar de ignorantes da lei divina, foram nas obras da justiça, amor a pátria e desejos de glória temporal, tais quais devem ser os reis iluminados pela fé e ordenados pela caridade, também [os reis cristãos] têm de ser firmes na esperança da glória [celeste], e nas obras de justiça divina em favor da república cristã (Pais, 1955, v.1, p. 81).

O frade franciscano reconheceu que o poder temporal poderia ser praticado por incapazes, mas somente seria corretamente realizado quando os governantes e os súditos se permitissem ser dirigidos pela bondade divina, pela fé e caridade. Para ele, esse era o caminho para a prática de ações que, gerando a bondade, não tinham como finalidade pensar em interesses pessoais e sim no bem comum. Somente vivendo em comunhão com Deus é que o rei poderia desenvolver um bom governo para todos os cristãos; em outras palavras, para desempenhar o bem comum, o governante deveria fundar seu reino sobre o alicerce da fé — o que exigiria do monarca zelo por seus hábitos e respeito pela tradição cristã.

A terceira virtude é a da brandura dos costumes:

Olhando a tamanho zelo nos costumes e nos espíritos, os judeus confederaram-se com os romanos (1.º liv. dos Macabeus, VIII). Neste mesmo capítulo descrevem-se muitos e belos gestos dos romanos, especialmente quanto ao modo como captavam a amizade das pessoas e dos povos, e quando ao costume de nenhum dos seus governantes trazer coroa ou diadema, nem se revestir de púrpura com que se enobrecesse. E que tinham estabelecido um senado, e que todos os dias 320 [senadores] reuniam para deliberar, tendo sempre conselho sobre os negócios da república, para fazerem o que fosse digno. Que confiavam, em cada ano, a suprema magistratura a um só homem, para este comandar em todas as suas províncias; que obedeciam a um só, sem haver entre eles inveja nem crime. (Pais, 1955, v.1, p. 85).

Dessas palavras, depreende-se o pensamento alvarinho sobre a importância de respeitar os costumes de um povo. Por meio dessa analogia com os romanos, o autor aborda a importância de se governar com respeito aos costumes do povo, aqui entendidos como os hábitos e as tradições. Ao conhecê-los, o governante conhece o próprio povo e, consequentemente, o reino.

Entendemos que está contido, no pensamento alvarinho, que a humildade do governante para se aconselhar com o papa antes de tomar suas decisões a respeito da vida social, cultural e política de seus súditos. Assim, o bom líder seria aquele com coragem e responsabilidade para fazer o que fosse digno aos olhos dos homens e aos olhos de Deus. Como as decisões desse líder poderiam não agradar a todas as esferas sociais, Pais aconselha que, “[...] a fim de governarem retamente os seus reinos, [...]” esses líderes precisariam pautar-se “[...] pela moderação nos costumes” (Souza, 2008, p. 161).

Sobre a formação dos reis, Pais discutiu também a finalidade e a necessidade de um dirigente:

[...] para que tu, ótimo rei, e todos os outros reis sejais plenamente informados do que vos cumpre fazer, deveis saber que, em tudo o que está ordenado para um fim, é necessário um dirigente, por meio do qual se chegue diretamente a esse fim. Um navio, para chegar ao porto, precisa de um timoneiro, e, se este não existir ou adormecer, o navio não arribará (Pais, 1955, v.1, p. 153).

De acordo com esta passagem, assim como um barco precisa de um timoneiro para chegar a seu destino, o governante, para prosperar e conservar o reino, deve ser prudente, justo, sereno e responsável; o contrário resultaria no perecimento social. Por meio dessa máxima (encontrada também nos escritos aristotélicos e tomasianos), o frade galego refere-se à seriedade e à responsabilidade como características essenciais a um bom governante.

Como a vida e a obra de Pais situam-se em um contexto religioso, consideramos necessário compreender a retidão de que ele fala, apoiando-nos na perspectiva bíblica. A raiz da palavra é reto, que significa agir de maneira correta em qualquer circunstância. Nesse sentido, na teoria alvarina, para ser bom, o governante deveria agir com retidão, que por sua vez, deveria guiar todas as ações da vida do governante, que, como cristão, deveria se conduzir pelos ensinamentos contidos na Sagrada Escritura.

Com base nessa consciência teocrática, isto é, uma consciência submetida às orientações do papa, o governante teria condições para comandar a conduta daqueles que se encontrassem sob sua tutela, em seu reino, sem se desviar dos princípios virtuosos que o levariam a se distanciar da corrupção e da tirania. Nesse ponto, a piedade, a misericórdia, a compaixão, a fé e a devoção são tidas como virtudes úteis para um governo comprometido com o bem de todos. Logo, os reis deveriam sempre praticar o bem e estar cientes de que estavam submetidos às leis divinas.

Em Espelho dos Reis, Álvaro Pais (1955) enfatizou as virtudes e todas as reponsabilidades de um governante na proteção de seu povo. De acordo com seus preceitos, para realizar um bom governo, o rei deveria ser defensor dos peregrinos, dos órfãos e das viúvas, defender as igrejas, colocar os justos à testa dos negócios do reino, ter conselheiros velhos sábios e sóbrios, dominar a ira, defender a pátria com fortaleza e justiça contra os adversários, confiar em Deus, não exaltar o espírito na prosperidade, sofrer com paciência todas as adversidades, ter fé católica em Deus, não consentir que seus filhos vivessem na impiedade, insistir na oração às horas certas, não provar alimento antes das horas convenientes. Sobre as responsabilidades dos que governam, acrescentou:

Estas coisas fazem a prosperidade do reino nesta vida, e levam o rei aos reinos celestes. Mas aqueles que não governam o reino de harmonia com esta lei, muitíssimas contrariedades sofrem no seu poder. Com efeito, rompe-se a paz entre os povos; muitas vezes mesmo os obstáculos surgem do próprio reino; [...] (Pais, 1955, v. 1, p. 131).

A citação destaca que a prosperidade de um reino nesta vida e a ascensão do rei aos reinos celestiais estão vinculadas à governança de acordo com uma certa lei. A falta de conformidade com essa lei resulta em contrariedades, incluindo a ruptura da paz entre os povos e a emergência de obstáculos internos no próprio reino. A ideia principal é que a adesão a princípios éticos e leis divinas na governança é essencial para o sucesso do reino, tanto no aspecto terreno quanto no celestial, enquanto a negligência desses princípios pode acarretar consequências adversas. Desse modo, Pais nos chama atenção sobre a vasta responsabilidade dos reis que seria cobrada à altura de seu cargo no juízo final, por Deus. Ademais, na passagem citada, ele aponta as consequências de um governo desviado do caminho honrado, o que evidencia o espírito conservador presente em sua ideia de instruir os passos do dirigente para torná-lo um bom governante.

A respeito da correta ordenação do amor, em Espelho dos Reis, Pais afirma que as coisas terrenas deveriam ser usadas somente para a sobrevivência dos homens: acima delas estariam os seres humanos e, acima deles e de tudo, estaria Deus, que deveria ser amado e respeitado pelos homens com todo o seu ser. Logo, o principado não deve prejudicar, mas ser útil aos povos “[...] assim como não os vexar com o senhorio, mas condescendendo providenciar para que o seu poder seja verdadeiramente útil, e dele usem como dom de Deus em defesa dos membros de Cristo” (Pais, 1955, v.1, p. 133).

Uma das questões que mais aparecem nos escritos do autor diz respeito à função dos governantes como protetores de seu povo: a obrigação dos monarcas em zelar por todos os membros de Cristo era entendida por Pais como uma função do dirigente para erradicar o mal. Com isso, sua intenção era mostrar o papel do rei no interior da sociedade cristã, o que justifica que suas considerações estivessem baseadas nos princípios da Igreja e da Monarquia.

Caso o monarca não estivesse totalmente submetido à Igreja, diante da incapacidade das autoridades eclesiásticas para manter a ordem, ele deveria seguir suas orientações para agir. Lembremo-nos de que, nesse período, tanto o poder secular como o poder eclesiástico estavam enfraquecidos e precisavam firmar alianças para tentar manter a ordem social. Ambos os poderes precisavam agir com os princípios e as funções que lhes determinava o plano divino: resguardar a Igreja e seu reino, pois “[...] a sociedade e a comunidade não se conservam, mas dispersam-se, se não houver alguém que tenha o cuidado do bem comum da multidão e da sociedade, [...]” (Pais, 1955, v.1, p. 147, tradução nossa). Isso significa que aos poderes temporal e espiritual havia recaído a tarefa de ordenar a sociedade e infundir, no pensamento da época, uma finalidade para a vida:

É próprio do homem um fim para o qual toda a sua vida e acção são ordenadas, visto que ele age por inteligência, à qual manifestamente cumpre obrar, segundo o Filósofo, para aquele fim que Paulo, regedor da Igreja, lhe indica (Ep. Aos Rom., VI, fim): << tendo por fruto a santificação, e por fim a vida eterna>>, [...] que os homens de diversas maneiras dirigem o seu intento, como se vê da diversidade dos actos e desejos humanos. Carece, portanto, o homem de um dirigente para um fim recto. Por natureza, ele é um animal social e político, vivendo mais que todos os outros animais em sociedade e em multidão. Um só homem, porém, não pode viver suficientemente, de per si, sem uma grande graça especial de Deus como os santos anacoretas. É necessário, por isso, que viva em multidão [...] (Pais, 1955, v.1, p. 153).

Podemos depreender que as ideias de Álvaro Pais sobre a obediência e a organização das ações de um bom governante convergem para o entendimento de que “Cada um se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus” (Bíblia, Rm 13, 1-6). Esse pensamento relaciona-se com premissa de que Deus concedeu autoridade aos reis diante da humanidade, de modo que, dada sua origem sagrada, essa autoridade deveria ser respeitada.

Ainda que o monarca não estivesse totalmente submetido ao poder espiritual, em Espelho dos Reis, Pais defendeu a correlação entre esses poderes. Para ele essa seria, se não a única, a melhor forma de liderar a sociedade na época. Esse pensamento, de natureza teocrática, é constante em Pais, levando-nos a analisar seu entendimento do conceito officium, especialmente porque eram evidentes as intenções da Igreja de interferir no poder monárquico, cujo governante deveria estar a serviço dos princípios da Igreja.

As relações entre as duas instituições poderiam promover a paz na sociedade e tanto o frade galego quanto o bispo acreditavam que a cooperação poderia ser útil em questões que pudessem colocá-los em risco. A diplomacia entre as instâncias temporal e espiritual, segundo Pais, ancoraria as relações sociais, configurando o dirigente como “[...] o rei que busca o bem comum, ama e é amado de todos os súditos, ressaltando daqui a estabilidade de ser reino” (Pais, 1955, v.1, p. 205).

A ideia de amar e ser amado é importante porque se vincula aos aspectos educacionais, dado que quem ama tem o dever de educar: “Educar o cristão representava, neste sentido, liderar um projeto político no sentido mais original da acepção da polis” (Magalhães, 2019, p. 6).

Como mostramos, as virtudes são fundamentais na proposta de Álvaro Pais para a formação do governante. Seu modelo de governante faz parte das concepções pensadas para resolver as questões do seu tempo. Como homem da Igreja, ele procurou soluções para manter e preservar a sociedade cristã e, dentre elas, procurou convencer o governante a ser espelho para seus súditos.

De acordo com Pais (1955), a conduta exemplar deveria se caracterizar pela sabedoria, pelo amor sincero à pátria, pelo respeito à tradição das leis e aos costumes, pela seriedade e responsabilidade nas ações (que deveriam primar pelo bem comum), pela justiça, piedade, misericórdia e compaixão, pela retidão, pela fé, pela devoção e, sobretudo, pela obediência a Deus. Com tal conduta, digna, o governante poderia governar com utilidade, cuidar do bem comum, em outras palavras, seria um homem virtuoso e cristão.

Assim, fica exposto o pensamento político sobre o dever do rei virtuoso, o responsável por manter a organização, a unidade política no reino e a felicidade de seus súditos. Para alcançar esse fim, o monarca deveria seguir as instruções contidas nas palavras da Sagrada Escritura e praticar as virtudes. Portanto, conforme Barbosa (1982), em Espelho dos Reis, Pais defende a espiritualização do poder real. Para Costa (2004), o rei alvarinho simbolizava o modelo ideal da conduta cristã e, por isso, ao ser contemplado conduziria à salvação:

O Espelho alvarino é instrumento contemplativo. Exalta a figura do sábio e oferece ao governante o que de melhor existe no mundo terreno: a possibilidade de contemplação. O rei alvarino deveria ser um Espelho de virtudes cristãs. Somente através deste exercício de consciência o monarca poderia conduzir seus súditos à salvação, ao reino celeste — finalidade última de sua função régia. Para isso, os súditos deveriam contemplar aquele modelo real perfeito de virtudes. A partir de seu corpo, o rei propagava a boa nova: de sua corte irradiaria-se a salvação para todo o restante do corpo social. Portanto, objetivo pedagógico é o rei, a alma régia, a perfeita monarquia (Costa, 2004, p. 188, grifo nosso).

Costa (2004) destaca a natureza contemplativa do “Espelho Alvarino” e seu papel na exaltação da figura do sábio, oferecendo ao governante a possibilidade de contemplação como o melhor presente do mundo terreno. O ideal é que o rei alvarino seja um reflexo das virtudes cristãs, atuando como um modelo perfeito para seus súditos. A contemplação desse governante exemplar é vista como essencial para conduzir os súditos à salvação e ao reino celeste, representando o propósito supremo de sua função régia. A passagem também destaca o papel pedagógico do rei, considerado a alma régia e a personificação da perfeita monarquia, transmitindo a boa nova e irradiando a salvação para todo o corpo social a partir de sua corte. A ênfase na contemplação e na emulação das virtudes reais ressalta a importância do exemplo do governante na formação moral e espiritual da sociedade.

Ao sustentar-se pelas virtudes, o rei serviria de modelo não apenas para o seu sucessor, mas também às demais pessoas do reino, que poderiam contemplar o seu exemplo e inspira-se nele. Desse modo, a sabedoria emanada pela Sagrada Escritura serviria de espelho ao rei, que por ocupar um lugar social de liderança e ser um representante do divino no mundo terreno, como um espelho aos seus. Contudo, esse ciclo de contemplação não deveria restringir-se às aparências, mas tratar-se de uma contemplação interna, pois para Pais, enxergar-se, contemplar-se relaciona-se com a contemplação da própria alma, da própria essência. Logo, educar-se para contemplar e servir de modelo de contemplação exigia dos reis e príncipes comprometimento com a fé cristã, bem como retidão para não sucumbir às paixões e romper com o senso de justiça e temperança, pois:

Consciente de que as paixões rompem com o equilíbrio natural, o rei deve usar a prudência, que concede a sabedoria prática para agir de forma correta, e a temperança, que afasta o homem dos extremos e a justiça, que disciplina a ação e em sua forma moral, que ensina a dar a cada um proporcionalmente, aquilho que lhe é devido. As virtudes proporcionam a harmonia do ser humano com Deus (Pereira, 2020, p. 109, grifo nosso).

Pereira (2020) destaca a importância das virtudes no governo, sugerindo que o rei, ciente de que as paixões podem desequilibrar a ordem natural, deve cultivar qualidades específicas para orientar suas ações. Com isso, é possível notar que a prudência é destacada como a capacidade de agir de maneira correta e sábia, enquanto a temperança é mencionada como uma qualidade que afasta o indivíduo dos extremos. Além disso, a justiça é apontada como essencial para disciplinar a ação e, moralmente, para assegurar que cada um receba sua devida proporção. O grifo, destacado na passagem, ressalta a ideia de que essas virtudes proporcionam harmonia ao ser humano com Deus, sugerindo uma conexão intrínseca entre a prática dessas virtudes e uma relação equilibrada com o divino. Portanto, a mensagem geral é que a adoção dessas virtudes pelo rei é fundamental para a estabilidade, justiça e harmonia no exercício de seu governo.

Por fim, o bom governante, na perspectiva de Álvaro Pais, deve ser caracterizado por sua disciplina nas virtudes. Além disso, ele deve assumir a responsabilidade de proteger tanto a Igreja quanto o reino. A orientação desse governante envolve liderar os súditos no caminho do bem, servindo como um exemplo de obediência a Deus e de aplicação da justiça. Em suma, a visão alvarina preconiza que a disciplina moral, a proteção da Igreja e do reino, a liderança ética e a submissão às diretrizes papais são elementos essenciais para definir um governante ideal.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa contribuiu para (re)pesar a educação com criticidade ao explorar as ideias educacionais de Álvaro Pais e sua relação com a formação dos governantes, destacando a importância da educação para o exercício eficaz do poder e para a construção de uma sociedade baseada em princípios éticos e cristãos.

Ao compreendermos Álvaro Pais como um defensor da teocracia, compreendemos também que para ele as virtudes simbolizavam o vínculo entre o humano e o divino, assim a obra Espelho dos Reis pode ser definida então como um manual com pretensões pedagógicas de educar o governante para a vida política e religiosa e, a partir dele, formar também as outras pessoas com vistas ao bem comum, à felicidade e à salvação eterna. Portanto, do ponto de vista alvarinho caberia à monarquia o direito de governar a sociedade de sua época.

Espelhos dos Reis configura-se então como um projeto medieval elaborado por Pais que, por meio de seu pensamento político e religioso, estabeleceu nessa obra os princípios para a formação e para a instrução do bom governante, de modo que não bastaria ser bom, mas perfeito, ou em outras palavras, ideal. Logo, os princípios formativos e as intenções políticas contidas na obra são ideias porque foram pensadas em um plano ideal, incompatível com a realidade, mas dado o contexto histórico e cultural, intrinsecamente pertinente ao seu tempo, sobretudo por estabelecer parâmetros para que os medievais pudessem discernir entre o bom e o mau líder e mesmo para difundir princípios éticos, morais e religiosos que colaboraram para a manutenção da ordem social daquele período de acordo com as perspectivas das instituições que lá existiam, como a própria monarquia e a Igreja.

Este estudo suscitou-nos a reflexão acerca da importância daquele que ensina na relação educativa dos homens, bem como da formação humana que se efetiva por meio dessa relação. Consideramos que estudar pensadores antigos e medievais ajuda-nos a entender como os homens pensaram a educação nos seus respectivos tempos. Desse modo, embora autor e obra sejam datados em meados do século XIV, as reflexões que suscitam são de natureza humana e, por isso, ainda concernente ao hoje.

Não defendemos aqui a monarquia ou a teocracia como ideais ao nosso tempo, mas sim a pertinência das ideias de Pais sobre a importância da retidão, dos princípios éticos e morais comporem a formação e a natureza daquele que governa para que seus interesses privados não impeçam seu comprometimento com o bem comum. Por isso, entendemos que a formação defendida por Pais dirigiu-se ao monarca, por sua vez, constituído na obra analisada como elemento/espelho educativo/pedagógico aos demais, ou seja, a formação humana conecta-se à educação e é a partir dela que os aspectos sociais são preservados ou transformados. Portanto, ao retomarmos as questões “Existe uma forma de governo ideal? O que determina um bom governante?” somos levados a pensar que, de acordo com a lógica alvarina, o governo ideal seria aquele desempenhado por um governante ciente de suas atribuições e prioridades, que devem relacionar-se com o bem comum, sabedoria, justiça, ética e honradez e, ao mesmo tempo, afastar-se dos vícios como a ambição desregrada, a corrupção, o egoísmo e o autoritarismo. O que só seria possível por meio de uma formação que, de fato, tivesse um direcionamento para tal fim.

Por fim, o estudo de Espelho dos Reis de Álvaro Pais nos remete à importância da formação ética e moral daquele que lidera ou governa e aqui não nos referimos apenas àqueles que ocupam oficialmente um posto político, mas que desempenham uma função de liderança e representatividade, seja dentro da família, frente às escolas ou em quaisquer outras instâncias e ambientes que pressuponham o fazer político.

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência:

Silvana Malavasi - Rua Galdino Gluck Junior, 268, Centro, Apucarana, PR, 86.800-670. silvana.malavasi@unespar.edu.br.

Viviane da Silva Batista - Rua Pioneiro Sérgio Rodrigues de Carvalho, 465, Jardim Palmeiras, Paranavaí, 87706-432. Viviane.batista@unespar.edu.br.


  1. 1 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá; Professora efetiva (Adjunto A) do Colegiado de Letras Espanhol, UNESPAR – Campus Apucarana.

  2. 2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá; Professora efetiva (Adjunto A) do Colegiado de Pedagogia, UNESPAR – Campus Paranavaí.

  3. 3 Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; Professora titular da Universidade Estadual de Maringá junto ao Departamento de Fundamentos da Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação. Professora orientadora.