https://doi.org/10.18593/r.v48.32351

Radicalização e sectarização: retomando os pressupostos freirianos

Radicalization and sectarianization: returning to Freirean assumptions

Radicalización y sectarización: retomando los supuestos de Freire

André Luís Castro de Freitas1

Universidade Federal do Rio Grande; Professor.

http://orcid.org/0000-0002-4566-3655

Luciane Albernaz de Araújo Freitas2

Instituto Federal Sul-rio-grandense; Professora.

http://orcid.org/0000-0001-9014-0071

Resumo: A partir de um estudo descritivo crítico, fundamentado em uma pesquisa qualitativa, bibliográfica, adensada pelo pensamento educacional de Paulo Freire, tem-se como intenção refletir sobre os pressupostos radicalização e sectarização no que concerne ao embate entre as forças progressistas e as reacionárias. Na primeira parte do texto, resgatam-se nas obras freirianas, as quais abordam o assunto, a importância do papel da educação, considerando as sociedades abertas e fechadas, no que se relacione a participação dos seres humanos no momento histórico vivido. A partir dessa compreensão, destaca-se a ação da luta pela liberdade, rejeitando o assistencialismo e o fanatismo. Na sequência, aproxima-se a discussão os níveis de consciência e os processos de formação de uma consciência crítica. Por fim, elabora-se uma problematização sobre os desafios vividos pelos seres humanos na sociedade contemporânea atual, considerando os retrocessos e os avanços, em que as mazelas e o dinamismo impostos pelo modelo civilizatório capitalista fazem com que os seres humanos sejam colocados na condição de expectadores, ao contrário de se tornarem sujeitos históricos, transformadores de seu tempo.

Palavras-chave: pensamento progressista; criticidade; transformação social.

Abstract: From a critical descriptive study, based on a qualitative, bibliographic research, based on Paulo Freire’s educational thought, the intention is to reflect on the concepts of radicalization and sectarianization related to the struggle between progressive and reactionary forces. In the first part of the text, Freire’s works are looked for, which approach the subject, the importance of the role of education, considering open and closed societies, in what relates to the participation of human beings in the historical moment lived. From this understanding, the action of struggle for freedom stands out, rejecting welfare and fanaticism. In the sequence, the discussion approaches the levels of conscience and the processes of formation of a critical conscience. Finally, a problematization of the challenges faced by human beings in current contemporary society is elaborated, considering the setbacks and advances, in which the ills and dynamism imposed by the capitalist civilization model make human beings be placed in the condition of spectators, as opposed to becoming transforming historical subjects of their time.

Keywords: progressive thinking; criticality; social transformation.

Resumen: A partir de un estudio descriptivo crítico, basado en una investigación cualitativa, bibliográfica, basada en el pensamiento educativo de Paulo Freire, la intención es reflexionar sobre los conceptos de radicalización y sectarization relacionados con la lucha entre fuerzas progresistas y reaccionarias. En la primera parte del texto se buscan obras de Freire, que aborden el tema, la importancia del papel de la educación, considerando sociedades abiertas y cerradas, en lo que se refiere a la participación de los seres humanos en el momento histórico vivido. Desde este entendimiento se destaca la acción de lucha por la libertad, rechazando el asistencialismo y el fanatismo. En la secuencia, la discusión aborda los niveles de conciencia y los procesos de formación de una conciencia crítica. Finalmente, se elabora una problematización de los desafíos vividos por los seres humanos en la sociedad contemporánea actual, considerando los retrocesos y avances, en los que los males y el dinamismo que impone el modelo de civilización capitalista hacen que los seres humanos sean colocados en la condición de espectadores, en lugar de convertirse en sujetos históricos, transformadores de su tiempo.

Palabras clave: Pensamiento progresista; Criticidad; Transformación social.

Recebido em 24 de novembro de 2022

Aceito em 10 de dezembro de 2023

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Estabelecendo como foco o problema da educação e da alfabetização de adultos, Paulo Freire sustenta em sua obra a preocupação de superar as injustiças sociais, tendo como fim a transformação da sociedade. Com esse objetivo, Freire (2004), na obra Pedagogia do Oprimido, enfatiza a importância ao direito dos seres humanos de dizerem a sua palavra e o faz no sentido de que o ato de dizer a palavra verdadeira seja o de transformar o mundo, em favor da libertação. Esses pressupostos estão imbricados ao conceito de práxis, como ação e reflexão, situadas por argumentos de uma educação libertadora.

A práxis, categoria de base marxiana, estabelece uma ação transformadora consciente e crítica da realidade, superando a dicotomia teoria e prática. Para Marx e Engels (2010), essa ação desencadeia a construção de um novo modelo conceitual em que o sujeito passa a atuar e interferir sobre o contexto no qual está inserido.

Freire (2004) argumenta que o ser humano, pela sua própria existência, é aquele que deve pronunciar3 e modificar o mundo, pois é a partir disso que “[...] o mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (Freire, 2004, p. 78). O pronunciar e modificar o mundo constitui-se como direito de todos os seres humanos, não como privilégio de alguns, de tal maneira que ninguém deve dizer a palavra verdadeira sozinha ou dizer para os outros, mas pronunciá-la na relação de partilha com os outros.

Ao pronunciar o mundo, pela palavra verdadeira, os seres humanos transformam e humanizam esse mesmo mundo e o diálogo passa a constituir-se como caminho para que os sujeitos ganhem significação enquanto seres. Por outro lado, há aqueles que não querem o exercício da pronúncia da palavra verdadeira ou, ainda, “[...] que negam aos demais o direito de dizer a sua palavra” (Freire, 2004, p. 79).

Esse antagonismo entre aqueles que assumem o esforço para a superação do momento histórico vivido, em favor da humanização e da libertação, e aqueles que promovem as circunstâncias históricas sustentadas na injustiça, na opressão e na violência, constitui um conjunto de forças as quais por vezes tornam os seres humanos sujeitos históricos e por outras objetos desses processos.

Com o intuito de abordar a referida discussão, por meio de um estudo descritivo crítico, fundamentado em uma pesquisa qualitativa, de base bibliográfica, tem-se como objetivo refletir sobre os pressupostos radicalização e sectarização no que concerne a sua fundamentação, bem como, problematizar junto ao momento contemporâneo atual o impacto desses, nos processos de ação-reflexão.

Apresenta-se o trabalho a partir das seguintes temáticas4: O papel da educação: sociedades abertas e sociedades fechadas – compreende-se a educação como a atividade cuja força está na capacidade dos seres humanos de incorporarem-se ao dinamismo do contexto vivido; Polos antagônicos: o progressista radical e o sectário – destaca-se a importância de que os sujeitos, vivendo o dinamismo de sua época, persistam na luta pela liberdade, rejeitando o assistencialismo e o fanatismo; A ampliação dos níveis de consciência: da ingenuidade a criticidade – reflete-se sobre a necessidade de percepção dos seres humanos para a formação de uma consciência crítica; e Os desafios para a contemporaneidade atual: retrocessos e avanços – problematiza-se sobre a época de contradições vividas atualmente, em que as mazelas e o dinamismo impostos pelo modelo civilizatório capitalista fazem com que, não raro, os seres humanos sejam colocados na condição de expectadores, ao contrário de se tornarem sujeitos históricos, transformadores de seu tempo. Após, seguem as considerações finais em que se apontam as contribuições do estudo, bem como, as referências.

2 O PAPEL DA EDUCAÇÃO: SOCIEDADES ABERTAS E SOCIEDADES FECHADAS

A educação, como Freire a via, era parte de um projeto de transformação radical da sociedade. Nas obras Educação e atualidade brasileira e Educação como prática da liberdade, Freire (1959, 1969) remete ao processo educativo como, por vezes, força estabilizadora ou, de outra maneira, como fator de mudança da realidade constituída, no processo histórico. Em ambos os casos, para que esse processo se constitua como autêntico, é necessário que se ponha em relação de organicidade5 com a realidade social.

A reflexão do autor está associada a uma crítica ao processo educativo brasileiro, no final dos anos 50, pois, para uma sociedade em vias de industrialização e democratização, o planejamento educacional estava associado a uma matriz verbal e falsamente humanista, desvinculada da vida, do próprio momento.

Para o mesmo autor, esse planejamento educacional, dissociado do contexto sociocultural e político, estava a serviço do reforço de atitudes autoritárias e acríticas. A partir de ideias como a verticalidade e o autoritarismo, enraizados na cultura centralizadora, mantinha-se uma política assistencialista, dificultando as experiências democráticas.

Freire (1959) problematiza que o planejamento educacional deveria estar associado às condições locais e regionais e que essa descentralização6 daria o sentido de organicidade necessário ao processo educativo. “A partir de nossa ´convivência´ com problemas educativos e sociais pernambucanos e não só urbanamente recifenses, fomos alongando as nossas preocupações, ligadas a esses problemas, ao nordeste e a outras áreas do país” (Freire, 1959, p. 12, grifo do autor).

É nesse sentido que Freire demonstra o seu convencimento quanto ao ser humano constituir a consciência de sua responsabilidade social e política, enfatizando a importância da inserção dos sujeitos em experiências democráticas7, nas quais o aprendizado da democracia aconteceria na prática pela vivência, o que introjetaria nesse o sentido do desenvolvimento econômico8, possibilitando, por fim, a constituição de um ser humano, não apenas espectador, mas participante do processo. É esse saber democrático, apoiado pelo autor, que se incorpora ao ser humano, de maneira experimental e existencial.

Em sentido oposto, há um saber transferido ao povo de maneira intelectualizada, saber esse constituído pela ação antidialógica, a qual impõe ao ser humano uma forma de assistencialismo, caracterizada pelo mutismo, pela passividade e, ainda, pela servidão. No assistencialismo, não há responsabilidade, tampouco decisão, mas gestos e atitudes que levam à domesticação.

A proposta freiriana remete a ajudar o ser humano para que aprenda a ajudar-se, no sentido de promovê-lo, ou “[...] fazê-lo agente de sua própria recuperação. E, repitamos, pô-lo numa postura conscientemente crítica diante de seus problemas e dos problemas da comunidade” (Freire, 1959, p. 14).

A partir dessas reflexões, Freire propõe para a Educação uma duplicidade de planos instrumentais, como o preparo técnico para a inserção do ser humano ao desenvolvimento da época, bem como, a formação de disposições mentais com que esse sujeito possa situar-se nesse processo de desenvolvimento, aceitando, conscientemente, os traumas e restrições decorrentes do momento da industrialização.

É por meio desse trabalho educativo com os seres humanos e não sobre esses, confrontando com as paredes das escolas, que se criará e ampliará uma consciência popular do desenvolvimento. “Não está, realmente, em que as classes dirigentes, superpostas ao povo, lhe apresentem e lhe imponham a solução de seus problemas. Solução pensada por elas, distanciadas do povo. É preciso que ela cresça na interferência dessa solução” (Freire, 1959, p. 21).

Na obra Educação como prática da liberdade, Freire (1969) reforça a importância atribuída à participação do povo para o momento histórico em questão, bem como reflete sobre a necessidade da procura de novos temas e soluções para a sociedade quando, o que denominou, em tempo de trânsito9.

Nesse momento, do trânsito da sociedade brasileira, com a iminente participação popular na tomada de decisões e ações, Freire problematiza a ideia de que as elites não seriam capazes de promover uma revolução contra si mesmo. Elites distanciadas do povo, promotoras de uma alienação cultural, fatores característicos de uma sociedade fechada. “Nenhuma vinculação dialogal entre estas elites e as massas, para quem ter tarefa corresponderia somente seguir e obedecer” (Freire, 1969, p. 47).

Em contrapartida, o mesmo autor reflete que a sociedade, ao rachar-se10, em seu tempo histórico, faz com que temas como democracia, participação popular, liberdade, educação, dentre muitos outros, passem a ser ressignificados e não mais satisfaçam a sociedade em trânsito, conforme eram utilizados ou manipulados pela sociedade fechada.

Essa ressignificação propicia um momento de captação de novos anseios e necessidades, com uma visão nova dos velhos temas, a qual permite caminhar rumo a uma sociedade aberta, mas de outra forma. Se criada uma visão distorcida, acarretaria uma sociedade das massas, na qual o ser humano, sem consciência crítica, tornar-se-ia acomodado e domesticado.

Inserido nessa discussão, Freire (1969) aponta a educação como atividade fundamental cuja força está na capacidade dos seres humanos de incorporarem-se ao dinamismo da época de trânsito. “Dependeria de distinguirmos lucidamente na época do trânsito o que estivesse nele, mas não fosse dele, do que estando nele, fosse realmente dele” (Freire, 1969, p. 48).

O momento do trânsito é o elo entre uma época que se esvazia e uma nova que passa a se consubstanciar, possibilitando à educação constituir-se como ferramenta em prol da compreensão das contradições do tempo histórico, bem como, tornar-se agente de superação e de criação de novas percepções temáticas.

Essas novas percepções temáticas, com o foco em uma sociedade homogeneamente aberta, constituem-se no ir e vir do dinamismo do trânsito. Avanços e recuos que confundem os seres humanos, e a cada recuo não trabalhado apropriadamente, sem a percepção crítica do mistério do seu tempo, corresponderia a uma desesperança.

Esse fazer uma sociedade homogeneamente aberta, em nome de um processo de democratização, em face da crescente participação popular, pela superação da situação vivida, constitui-se como objetivo de forças que nascem pacificamente às soluções almejadas. Por outro lado, forças tentam, reacionariamente, entravar o processo, ao evitar o desafio da democratização, com o objetivo de manter o contexto.

Nesse momento, Freire (1969) aponta para a existência de duas categorias11: os progressistas e os reacionários. Para os progressistas, é no aprofundamento das contradições entre os velhos e os novos temas, provocadores de um clima emocional, que se constitui a superação do momento. Já, os reacionários formulam prescrições, gerando expectativas alheias ao povo.

3 POLOS ANTAGÔNICOS: O PROGRESSITA RADICAL E O SECTÁRIO

Retomando a elaboração inicial de que, para Freire, a educação era parte de um projeto de transformação radical da sociedade, compreende-se que a radicalização está vinculada à opção de que os seres humanos assumam-se como sujeitos progressistas, pois “[...] a radicalização, que implica no enraizamento que o homem faz na opção que fez, é positiva, porque preponderantemente crítica. Porque crítica e amorosa, humilde e comunicativa” (Freire, 1969, p. 50).

A partir desses pressupostos, é possível refletir que essa transformação radical se distancia da opção de ser visto como aquele que não aceita o direito de opção dos outros seres humanos, pois exige um diálogo amoroso sobre as temáticas e ações. O que se faz presente nesse diálogo são o convencimento e a conversão, nunca a destruição dos outros. “Tenta convencer e converter, e não esmagar o seu oponente” (Freire, 1969, p. 50).

Mesmo afirmando que esse diálogo deva ser amoroso, a proposta freiriana sinaliza para a necessidade de reação quanto à imposição violenta do silêncio. Na obra Ação cultural para a liberdade e outros escritos, Freire (2011) elabora uma discussão sobre a relação dialética da cultura do silêncio.

Para Loureiro e Pereira (2019), a cultura do silêncio representa para o ser humano a impossibilidade de ação na práxis de ser cidadão político, o que torna esse sujeito incapaz de prover interferências na realidade em que está inserido. Nessas condições, acaba por tornar-se um reflexo das ações de dominação do opressor e de seu saber, o que termina por constituir um sujeito silenciado de expressar as suas formas de percepção e ação, no e com o mundo.

Ainda para os autores, a cultura do silencio, inserida nas estruturas opressoras, retira dos seres humanos a capacidade de ser mais promovendo a objetificação do oprimido, como um processo no qual esse sujeito passa a ser menos. Nessas condições, a cultura do silêncio representa uma expressão própria da colonialidade, a qual agrega a opressão e a colonização dos sujeitos descaracterizados de sua humanidade, espaço que pela coerção silencia e impede a construção de saberes críticos, que poderiam promover a compreensão dessa realidade.

Retomando Freire (2011), o contexto apresentado pelo autor sobre a cultura do silêncio é o das relações estabelecidas entre os países do Primeiro e do Terceiro Mundo.

Enquanto o mundo que ´fala´, o Primeiro Mundo tem, no seu seio, o seu Terceiro Mundo – o mundo das classes e dos grupos sociais dominados, com sua cultura do silêncio também – e o Terceiro, como totalidade dependente, tem, em sua intimidade, o seu Primeiro Mundo, o mundo de suas classes dominantes, em relação de subordinação ao Primeiro Mundo do Primeiro, isto é, às classes dominantes das sociedades metropolitanas (Freire, 2011, p. 115, grifo do autor).

Para o autor, há diferença entre as classes dominantes do Primeiro mundo, as quais detêm um poder hegemônico que se exerce sobre suas classes dominadas e sociedades dependentes. As classes dominantes do Terceiro Mundo, subordinadas aos interesses das do Primeiro mundo, reproduzem e exercem o seu poder sobre as classes dominadas nacionais. “A estrutura dependente é demasiado débil para suportar a mais mínima presença das massas populares em atitude contestadora. Daí a frequente violência com que respondem aos primeiros sintomas da reivindicação popular” (Freire, 2011, p. 116).

A cultura do silêncio, não raro, implica o reconhecimento da cultura dominante como forma de opressão, mas isso não significa que tudo seja reprodução ideológica dessa, pois há algo próprio aos oprimidos os quais se utilizam desse mecanismo para sobreviver.

Toda relação de dominação e opressão, por si mesma, constitui uma forma de violência, de desamor, na qual o opressor se desumaniza pelo excesso de poder, bem como o oprimido, pela ausência desse mesmo poder. Ressalta-se que muito comumente, a atitude de violência é atribuída ao oprimido quando esse se levanta contra o opressor, ao identificar a opressão. “Entre os incontestáveis direitos que se admite a si a consciência dominadora tem mais estes: o de definir a violência. O de caracterizá-la. O de localizá-la. E se este direito lhe assiste, com exclusividade, não será nela que irá encontrar a violência” (Freire, 1969, p. 50).

A partir dessa discussão, é possível refletir que a radicalidade amorosa “[...] não pode ser autoflageladora” (Freire, 1969, p. 51) e, desse modo, não deve acomodar-se ao poder exacerbado, o qual provoca a desumanização de todos, até mesmo das elites opressoras.

Essa tentativa de atuar nas contradições, pelo diálogo amoroso, com radicalidade, é caminho possível ao ser humano despreparado para a captação crítica do desafio e atuando de maneira emocional, tornar-se sectário. O sectário, por sua vez, assume uma postura reacionária e antidialógica, tomando a história para si.

Por outro lado, o ser humano progressista radical é aquele que rejeita o ativismo e submete sua ação à reflexão e, como ser crítico, não detém, tampouco se antecipa à história, mas capta as suas contradições para, em coletividade, exercer as transformações sociais, na medida em que conhece e age.

O risco da democratização é discutido por Freire pela supremacia do poder detido pelos sectários, pois os fanatismos desses sujeitos acabam por separar os seres humanos de forma a ameaçar a esperança sobre o momento de trânsito vivido. “Incapazes de projetos autônomos de vida, buscam nos transplantes inadequados a solução para os problemas do seu contexto” (Freire, 1969, p. 53). Como afirma o mesmo autor, devido a essas soluções não nascerem da análise crítica da realidade, elas acabam por resultar inoperantes, ocasionando desânimo e desesperança.

Em um dado tempo histórico, novas temáticas surgem, e um novo clima cultural passa a se formar, exigindo uma integração com esses sectários, representantes da elite dirigente. Essa elite passa a ganhar, pouco a pouco, consciência de suas possibilidades, pela captação das tarefas do seu tempo, constituindo-se como sujeitos críticos.

A desesperança cede lugar à esperança quando esses sujeitos percebem, por si mesmos, a realidade, desenvolvendo a capacidade de interpretar os anseios do povo. “Na medida em que vão se integrando com seu tempo e o seu espaço e em que, criticamente, se descobrem inacabados” (Freire, 1969, p. 54).

Nessa discussão, é possível compreender que Freire não nega a elite dirigente e, ainda, atribui a essa um senso de responsabilidade, o qual faz com que se identifique cada vez mais com o povo. Essa identificação pode se constituir pela comunicação, pelo testemunho, ou, ainda, pela ação educativa, no intuito de evitar distorções durante as reflexões e ações no momento de trânsito.

Como forma de sintetizar a discussão elaborada até aqui, retoma-se o conceito inicial de sociedade fechada, como aquela na qual o povo está imerso, e as reflexões e ações são prescritas pelas elites dominantes. Em um dado tempo histórico, rachaduras surgem e constitui-se a entrada da sociedade na época de trânsito, fazendo com que o povo passe a renunciar a sua posição de espectador, exigindo participação nas discussões e decisões. “A sua participação, que implica uma tomada de consciência apenas e não ainda numa conscientização – desenvolvimento de tomada de consciência – ameaça as elites detentoras de privilégios” (Freire, 1969, p. 55).

As elites agrupam-se e reagem, inicialmente, de forma espontânea, na defesa de seus direitos. Atraem para si os teóricos e especialistas detentores dos saberes sobre o momento de crise12. Em nome da liberdade ameaçada, passam a repelir o povo, criando uma forma de assistencialismo a esse, fortalecendo a ideia de que o povo deve manter-se no silêncio, imobilizado, pois os seres humanos são considerados como aqueles os quais não possuem condições de participação. Já, aqueles que escapam ao imobilismo e integram-se ao dinamismo da época de trânsito serão rotulados pelas elites como subversivos.

A questão do sujeito subversivo, não raro, é compreendida pela visão construída pela elite, ou seja, o subversivo é aquele que ameaça a ordem constituída pela própria elite. Como reflete Freire (1969), do ponto de vista ético, não há ordem na sociedade fechada, pois essa se caracteriza pela exploração de muitos por poucos. O que se constitui em uma dada fase da sociedade é uma ordem histórica em função do equilíbrio de forças.

Ainda para o autor, a subversão está, também, na própria elite em querer manter a sociedade fora do tempo. “Por isso mesmo, numa sociedade em transição como a nossa, subversivo tanto era o homem comum, ´emergente´, em posição ingênua no processo histórico, em busca de privilégios, como subversivo era e é aquele que pretendia e pretende manter uma ordem defasada” (Freire, 1969, p. 56, grifo do autor).

A partir dos embates das contradições vividas e pelo desencadeamento de forças emocionais, passam a surgir e crescer os posicionamentos sectários, que, de forma dicotômica, arregimentam-se, de uma maneira, como os representantes das elites com a sua pretensão de deter a história e manter os privilégios e, de outra, como aqueles que pretendem antecipar a história, acabando com os privilégios das elites.

Entre esses polos antagônicos, rejeitando o assistencialismo e o fanatismo, situam-se, como incompreendidos, os progressistas radicais e, como já refletido, são aqueles sujeitos em busca de “[...] soluções dadas sempre com o povo, nunca apenas para ele ou sobre ele” (Freire, 1969, p. 57).

O progressista radical é aquele sujeito que luta13 por restabelecer a responsabilidade ao povo, responsabilidade como dado existencial, incorporada aos seres humanos vivencialmente. Loureiro e Pereira (2019) compreendem que se na cultura do silêncio viver é apenas existir, sem a pronúncia da palavra, reproduzindo, ainda, a palavra do outro, na luta carregada de crítica decolonial viver é pensar e agir, por e sobre si, refletindo epistemologias divergentes do pensamento hegemônico, com ações de resistência e transgressão, as quais permitem expressar a palavra verdadeira, com a autoafirmação e a ruptura intelectual.

A partir disso, na proposta freiriana o restabelecimento da responsabilidade, como forma de humanização, será constituído por meio de uma educação que promova ao povo refletir sobre si mesmo. Educação que tenha na sua instrumentalidade a reflexão do ser humano sobre o poder de refletir sobre si próprio, avaliando suas potencialidades e, como fim, a promoção da capacidade de opção desse sujeito.

Na obra Educação e mudança, Freire (2001) faz referência à importância da reflexão sobre si e sobre o estar no mundo, quando associadas a essa reflexão estão às ações de transformação social. Esses pressupostos constituem-se como condições para que o sujeito possa exercitar sua natureza de comprometer-se.

É pela experiência nas relações entre os seres humanos e a realidade que se desenvolve a ação-reflexão. Inserido nesse contexto, compreende-se que a obra freiriana está para além da ingenuidade, quando adverte que, não raro, as condições objetivas dificultam o pleno exercício da maneira humana de viver. Para Freire (٢٠٠١), o comprometer-se, próprio da existência humana, se constituirá pelo engajamento com a realidade e, ao experienciá-lo, os seres humanos, decididos e conscientes, não serão neutros.

Essa mesma educação deverá levar em conta, nos seres humanos envolvidos, os graus de captação da realidade, os quais são passíveis de existência por diferentes modos de consciência, até que se forme a consciência crítica. Esse é o ponto, fundamental, de reflexão da proposta freiriana, a análise dos diferentes graus de compreensão da realidade e respectivo condicionamento histórico-cultural dos seres humanos.

4 A AMPLIAÇÃO DOS NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA: DA INGENUIDADE A CRITICIDADE

Retoma-se o caráter fundamental da educação no contexto freiriano, a qual deverá levar em conta, nos seres humanos, os graus de captação da realidade. Na obra Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire, o autor aponta para a conscientização como compromisso histórico no momento em que assume a reflexão crítica como compreensão de uma nova realidade.

Assim, considerar o novo como algo acabado e finito seria o mesmo que concordar com a ideia de que a realidade antiga fosse algo intocável. “O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da realidade, se não é auxiliado a tomar consciência da realidade e de sua própria capacidade de transformá-la” (Freire, 1980, p. 40).

A partir disso, ainda, o autor assume que são passíveis de existência diferentes modos de consciência. Reflete que a consciência mágica, intransitiva14, típica das sociedades fechadas, é aquela que se caracteriza pela falta de compromisso entre o ser humano e a sua existência, o qual se restringe a um plano de vida vegetativo. À medida que esse ser humano amplia o seu poder de captação e de resposta aos questionamentos da realidade, suas relações dialógicas com o mundo e com os outros passam a se ressignificar, alongando-se para além da esfera biológica. “É essa dialogação do homem sobre o mundo e com o mundo mesmo, sobre os desafios e problemas, que o faz histórico” (Freire, 1969, p. 60). Ressalta-se que a consciência transitiva, em seu estado inicial, é ingênua, pois contempla explicações fabulosas, fragilidade na argumentação, bem como, a prática da polêmica em detrimento do diálogo.

É pela prática da polêmica que a consciência ingênua poderá levar à consciência fanatizada, quando o diálogo é assumido de forma deturpada e distorcida, remetendo a um sectarismo irracional.

Já, a partir da consciência ingênua, por meio de uma educação dialógica e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, dar-se-ia o primeiro passo para a transitividade crítica, implicando um retorno à matriz democrática. Faz-se importante compreender que, para o autor, essa não é uma passagem automática, mas efeito de um trabalho educativo crítico, no qual se adverte sobre os perigos da massificação, assim como se desvelam os imperativos existenciais do tempo histórico.

A partir dos pressupostos trabalhados, Paulo Freire remete a Álvaro Vieira Pinto, autor esse o qual reflete sobre uma educação como formadora de um pensar crítico. Na obra Consciência e realidade nacional: consciência crítica, Pinto (1960, v.2) compreende que o pensar crítico está associado às seguintes categorias: a) Objetividade – como o desejo de apreender a realidade na inteira objetividade das coisas e acontecimentos que a compõem. “O pensador crítico esforça-se por adquirir a significação exata do dado e mostrá-la aos outros, mais do que teoretizar abstratamente a experiência ou interpretá-la em conceitos éticos” (Pinto, 1960, v.2, p. 25); b) Historicidade – a compreensão do real só poderá ser obtida se esse real for tomado a partir de uma perspectiva histórica e, ainda que as leis da história sejam indutivas e de natureza empírica, o que propõe ao tempo presente acrescentar algo às leis conhecidas; c) Racionalidade – a racionalidade da consciência crítica exprime-se na compreensão dialética do processo da realidade, pois a “[...] contradição está no seio da realidade objetiva e, se depois é encontrada na ordem das representações, é porque estas são cópias fiéis da existência exterior” (Pinto, 1960, v.2, p. 65); d) Totalidade – o processo da realidade é de natureza uma totalidade, na qual estão incluídos os objetos e as transformações, cuja percepção momentânea é dada. O objeto ou a transformação reveste-se sempre da parcialidade, mas só é apreendido quando colocado na implicação recíproca parcialidade-totalidade; e) Atividade – só chegará a representar, com propriedade, o real e apreender a sua lógica aquele que opera sobre esse, ou seja, aquele que trabalha; f) Liberdade – a liberdade deverá ser pensada no concreto, o que significa compreendê-la a partir das condições de lugar e de tempo; e, ainda, g) Nacionalidade – faz menção a estar apreendendo os dados do mundo objetivo na condição de quem faz parte dessa realidade, ou seja, de quem a vê de um ponto de vista interior a ela.

É possível compreender que a consciência crítica, constituída a partir de um pensar crítico, nunca é absoluta, tampouco esgota o conteúdo de uma dada realidade. A consciência crítica é histórica e, dessa maneira, constitui-se relativa à etapa atual do processo objetivo, como a consciência máxima possível no momento em questão. A conscientização é a inserção crítica na história, “[...] implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo” (Freire, 1980, p. 26).

Apoiado nesses pressupostos, Freire assume uma educação comprometida com o pensar crítico, uma educação capaz de refletir e desafiar as diferentes formas de captar a realidade, da intransitividade à transitividade-crítica, assumindo como essência a formação de seres humanos envolvidos em seu tempo histórico e, ao mesmo tempo, possibilitando que esses sujeitos assumam a radicalidade em favor da transformação social.

Nessa problematização existe um caminho, mais próximo ao inédito viável freiriano, no qual o espaço-tempo da sala de aula e sua ontológica opção dialógica devem dar conta do acolhimento a todos e todas na condição de sujeitos do processo de aprendizagem e da história, bem como, da cultura desses seres humanos envolvidos.

Assim, situando a práxis educativa por argumentos freirianos, faz-se a opção por um outro agir na ação educativa. Distanciando-se das práticas bancárias, educador e educandos não se expressam por dicotomias instituídas na opressão de quem manda e na submissão de quem obedece.

Percebe-se o exercício do inacabamento freiriano, quando o autor propõe voz e vez aos sujeitos envolvidos. Acredita-se que, para o educador, esse seja um dos momentos mais ricos na relação educativa, quando é possível conhecer os educandos envolvidos e suas percepções de mundo. Sempre que os educandos se percebem ouvidos e, consequentemente, inseridos na relação dialógica, exercitam-se os primeiros passos, com experiências democráticas, em direção à tomada da consciência crítica.

Esses movimentos abrem as portas ao relato de diferentes visões de mundo, aportando à cultura de origem dos seres humanos envolvidos na relação educativa. Promove-se, nesse sentido, a integração a qual exercita a reflexão e a partilha.

5 OS DESAFIOS PARA A COTEMPORANEIDADE ATUAL: RETROCESSOS E AVANÇOS

O momento contemporâneo atual caracteriza-se como uma época de contradições, pois as mazelas e o dinamismo impostos pelo modelo civilizatório capitalista fazem com que, não raro, os seres humanos sejam colocados na condição de expectadores, ao contrário de se tornarem sujeitos históricos, transformadores do seu tempo. Remete a esses mesmos sujeitos, além de levarem a plenitude os anseios de sua época, proporem a superação dessas contradições vividas.

É perceptível no cotidiano, a desumanização como possibilidade histórica e essa ocorre em meio a tantos retrocessos os quais envolvem a opressão, a injustiça e a violência com aqueles que possuem menos condições financeiras, que são de etnias diferentes, que possuem outra opção de gênero e, ainda, com todos que possam ser diferentes daqueles que dominam, que retiram dos seres humanos oprimidos o direito de dialogar e decidir sobre as alternativas que se apresentam ao momento em questão. Leher (2019) corrobora com a assertiva, afirmando que os problemas brasileiros são de inédita complexidade, tal que desconcertantes acontecimentos não resultam de uma sequência linear, mas são produtos de descontinuidades, mudanças de escala e de intensidade que conformam correlações de forças.

Ainda para o autor, faz-se urgente recuperar o sentido de protagonismo social, mais do que em qualquer outro período desde o final da ditadura, para manter a existência das bases democráticas no Brasil.

Retomando, o contexto freiriano reitera-se que os seres humanos são chamados a fazer história e, com a capacidade de criar e decidir, intervir no mundo. Dessa maneira, esses sujeitos poderão intervir no mundo para humanizá-lo, mas não é possível deixar de observar no momento contemporâneo atual o fenômeno da massificação, em que o ser humano deixa de viver para si e com os outros, para viver para os outros.

A partir dessas considerações, faz-se importante notar a necessidade de que esses sujeitos constituam um posicionamento crítico diante do dinamismo da sua época. Assume-se, como hipótese, as diferentes formas de dominação que se impõem e que permitem a classe dominante, na contemporaneidade atual, inserir seus ideários no seio das classes oprimidas.

Ao assumir essa hipótese, a reflexão será construída a partir da premissa referente à inserção dessa ideologia dominante nacional, quando essa mesma ideologia fortalece os processos opressivos, desumanizando ainda mais as classes oprimidas. Nessa esteira, assume-se que ao utilizar o termo ideologia dominante nacional remete-se as aspirações das elites, constituídas por uma hegemonia burguesa mantida pelo modelo civilizatório capitalista, em sua vertente neoliberal, materializada por meio de um comportamento truculento.

Acredita-se oportuno antes de prosseguir a argumentação, fazer uma ressalva considerando os movimentos gerados pelos possíveis governos de centro-esquerda, no tempo histórico próximo passado, pois se acredita que aconteceram, em alguma medida, mudanças no interior da hegemonia burguesa constituída, mas, ao mesmo tempo, essas transformações não foram suficientes para mitigar ou romper com os processos de opressão e marginalização, abordados anteriormente. Nesse tempo histórico, reflete-se que foi possível notar a assunção da classe oprimida, principalmente a classe que vive do trabalho, no que se relacione aos diferentes tipos de participação e lideranças no cenário nacional.

Por outro lado, não é possível analisar com ingenuidade o cenário atual, pois como afirma Safatle (2022) é necessário apresentar uma crítica ao cenário político, de modo que as experiências dos governos de esquerda constituíram espaços formais de gestão, deixando a política em um segundo plano, o que veio a provocar uma série de conflitos, produzindo, por fim, um comprometimento da própria esquerda no governo.

Ainda para o autor, o tempo demonstrou a profundidade do esgotamento dessa esquerda brasileira e sua necessidade de reinvenção, pois a instalação da ordem econômica neoliberal, por parte da extrema direita no poder, propiciou articulações entre a recusa radical da ordem econômica vigente e a dificuldade do país em manter uma democracia minimamente efetiva, pois foi continuamente atacada. Assim, foram retomados os pactos e alianças para as mudanças vindouras o que, para Safatle (2022) limitou a capacidade de transformação estrutural exigida.

Fernandes (2019), de mesma forma, reconhece que partes dessas responsabilidades estão na própria esquerda, o que denota o indicativo de sua crise, pois para a autora o fracasso da esquerda reside na incapacidade de “[...] unificar a consciência teórica e prática não só da classe trabalhadora em si, mas também dos militantes e líderes cujas funções organizadoras consistem em construir consciência política” (Fernandes, 2019, p. 99). Com isso, a autora, reflete que as razões disso estão na crise de representação – como sintoma de um problema maior e na crise de práxis – com a organização do todo, acarretando a fragmentação no nível da consciência política e, finalmente, na despolitização.

A partir disso, retomando a hipótese, percebe-se, ainda, que a ideologia burguesa, conservadora, nesse momento de trânsito, associada à ordem econômica neoliberal e a despolitização, passaram a encontrar amparo no meio da classe oprimida, fazendo com que, principalmente, o trabalhador contextualizasse o mundo pela lógica formada pelo capital.

Algumas ideias que corroboram com a afirmativa anterior são, por exemplo: I) A política gentil de cuidar da natureza a qual a própria estrutura de produção capitalista se encarrega de destruir; II) A formação de trabalhadores empreendedores e colaboradores no intuito de lhes atribuir responsabilidades como prestadores de serviços, colaboradores ou sócios das diferentes empresas e instituições; III) Os ideários do capital na escola pública os quais tem o intuito de formar sujeitos para trabalharem como mão de obra para as grandes corporações; IV) O trabalho das fundações com os ideários de equidade e transformação, com suas propostas de trabalho voluntário, ocasionando a minimização das funções do estado, dentre outros elementos que aqui poderiam ser apresentados.

Essas ideias da hegemonia burguesa fizeram com que a classe oprimida, também, olhasse para o contexto de uma maneira diferenciada, diminuindo, consequentemente, a criticidade e o espírito de enfrentamento, subsumindo com os processos de luta. Assim, o oprimido que deveria se assumir como um sujeito radical e crítico acabou por seguir e comprometer-se com a lógica burguesa conservadora do status quo capitalista. Cabe acentuar, ainda, que o atual momento instalou um pensamento em vias de retrocesso, contrário, também, ao conservador, quando para além de instituir a lógica conservadora, rompeu com os direitos daqueles oprimidos e marginalizados, destituindo esses sujeitos de garantias mínimas de suas condições de subsistência. Para reforçar, ainda, essa afirmativa é possível verificar o uso da truculência no enfrentamento a classe oprimida, enfrentamento esse com estratégias de ridicularização e violência.

Retomando Safatle (2022), é possível observar que no Brasil as forças de reação, contra a esquerda, organizaram-se e, dessa forma, os setores expressivos da população que foram às ruas e, posteriormente, clamaram por golpes militares acabaram por mobilizar dinâmicas de um fascismo popular. Ab’Sáber (2020) corrobora com a afirmativa, refletindo, ainda, que esse grupo expressivo da população se viu frustrado em seu desejo e fracassou em sua proposta de que os militares da ativa rompessem com o pacto democrático, mas ecoa, ao longo do tempo, o viés militar e elitista que foi reiterado por esse grupo, ou seja, de que a democracia não funciona em um país como o Brasil.

Siger (2021) acrescenta outro dado no momento em que afirma que o mecanismo de desativação e reativação das predisposições à direita nos últimos anos recaiu fortemente sobre os de menor escolaridade. Para o autor, poder-se-ia refletir que a explicação para a relativa estabilidade dos anos de esquerda, seguida da avalanche conservadora, se encontraria justamente na parcela inferior da pirâmide social.

Mesmo considerando, que o fenômeno direitista tenha atingido a classe média tradicional, a explicação para o sucesso eleitoral da reativação da direita, reside nos eleitores de escolaridade fundamental. Dessa forma, é compreensível que aqueles cujo posicionamento depende de uma ativação maior, pois estão mais distantes do debate ideológico, sejam os mais afetados quando categorias como esquerda e direita desaparecem e reaparecem nas campanhas.

Compreende-se, dessa maneira, que associado a isso existe um conjunto de argumentos que advêm de um povo cuja formação é escravocrata, desigual e injusta, e que mantém uma elite que despreza o próprio povo. Nessa direção, estão os reacionários como aqueles que negam os direitos mínimos já conquistados pelos oprimidos e, ainda, em relação à classe trabalhadora promovem o desmonte das garantias trabalhistas instituindo a precarização do trabalho em seus diferentes segmentos. Para o reacionário, a inserção do conservadorismo burguês no seio dos oprimidos associado aos retrocessos, principalmente, aqueles relacionados ao cerceamento da liberdade, acabam por minimizar, em certa medida, o espírito de enfrentamento das classes espoliadas, sofridas e marginalizadas.

A partir disso, é emergente que o sujeito progressista radical deva mover-se em direção oposta, ao contrário de seguir o reacionário, o sectário. Nessa esteira, o progressista radical não deve comprometer-se com os ideários promovidos pelo modelo civilizatório capitalista, os quais favorecem a dominação pela elite burguesa, mas desenvolver o espírito de cisão, colocando como meta a luta contra a opressão e a desumanização.

Freire (2014), na obra Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos afirma que os progressistas não devem se acomodar diante da malvadeza intrínseca a qualquer forma de colonialismo, espoliação e invasão cultural, tampouco encontrar algo positivo nesses processos, afirmados pelo autor como perversos. Freire deixa o anúncio de que “[...] os poderosos não podem tudo; de que os frágeis podem fazer, na luta por sua libertação, de sua fraqueza a força com a qual vencem as forças dos fortes (Freire, 2014, p. 85).

O autor reafirma, ainda, que a conquista atual, acontece, justamente, pela dominação econômica, pela invasão cultural e pela dominação de classe e dentre alguns instrumentos de que os poderosos se utilizam está o assistencialismo, bem como, o empréstimo o qual gera o endividamento da população.

Admite-se, ainda, que não é ação simples manter-se na luta, pois a criminalização das lutas e ações dos movimentos é reprimida pelo aparelho de estado quando dominado pelo sectário, tal que essa fascistização do aparelho de estado não provoca uma anomalia, mas, pelo contrário, um resultado que é a eliminação dos direitos humanos. Esse resultado, por fim, alinha-se com a ideia de manter a ideologia dominante, destituindo a força que é necessária para colocar em andamento a transformação. Freire corrobora com a ideia de que a luta e a mudança são difíceis, porém “[...] mesmo difícil, mudar é possível é algo superior ao imobilismo fatalista em que mudar é impensável ou em que mudar é pecado contra Deus. É sabendo que mesmo difícil, mudar é possível, que o oprimido nutre sua esperança” (Freire, 2014, p. 113).

Partindo dessa premissa, com uma burguesia posta por entre conservadores e reacionários, questiona-se como seria possível prover um conjunto de mudanças no contexto vivido? Assinala-se aqui a existência de duas frentes: 1) O entendimento de lidar com essa percepção na escola e que essa escola seja um espaço em que é possível fomentar a contradição em vias de buscar a superação; e 2) O entendimento de lidar com essa percepção para que o progressista radical e o conservador possam, em certa medida, alinharem-se para combater o ideário reacionário, o sectário.

Faz-se importante notar que ao remeter ao conceito de escola constitui-se um alinhamento aos diferentes níveis de ensino, mesmo porque a ideologia burguesa está presente em todos os momentos vividos pelos seres humanos no atual modelo civilizatório. É reconhecido que a escola ao mesmo tempo em que está a serviço da ideologia dominante se constitui, também, como espaço de resistência no intuito de fomentar a crítica a essa mesma ideologia.

É necessário acrescentar que o corte dos gastos, com uma previsão de orçamento cada vez mais reduzido para a área da educação, bem como os movimentos de privatização dos diferentes níveis de ensino, remetem a uma precarização da escola pública, tal que esses elementos associados à ideologia burguesa acabam por aderir as aspirações e intencionalidades das classes oprimidas, diminuindo as chances de luta pela transformação social.

A partir disso, é importante que não só o mundo político, mas a escola, a comunidade, a sociedade em geral, possam proporcionar ações de diálogo entre progressistas críticos e conservadores no intuito de trabalharem em prol de uma democracia representativa, ao contrário de se acomodarem a uma autocracia apregoada e reforçada pelos sectários. Nessas condições, progressistas e conservadores devem se perceber como sujeitos políticos no intuito de proporem ações que visem a recuperar e assegurar os direitos humanos, empreendendo diferentes esforços, no intuito de mitigar a desumanização criada pelos sectários.

Evidencia-se que a escola possui um papel preponderante nesse viés, como instituição a qual deveria permitir acolher e ouvir as diferentes vozes oprimidas, propondo situar os seres humanos tendo as suas diferentes realidades como elementos de análise de um pensar e fazer críticos. Por outro lado, seria uma ingenuidade acreditar que nesses espaços não esteja presente a lógica do sectário, pois além de estar presente com o objetivo de minimizar os processos de luta pela liberdade, está apoiada na desqualificação do oprimido, bem como, na truculência, conforme, anteriormente, abordado.

Nesse caminho, progressistas críticos e conservadores devem trabalhar no sentido de favorecerem a construção de um processo coletivo que permita aos seres humanos refletirem sobre as suas possibilidades e potencialidades, diante de um aprender melhor o que já sabem sobre seu mundo, aprendendo a criar o conhecimento e que esse venha a ser o promotor das ações almejadas para as transformações sociais.

Com o foco voltado ao campo da educação social, histórica e crítica enfatiza-se a necessidade de respeito e entendimento diante dos saberes dos sujeitos, tal que as ações provenientes dessa educação crítica fortaleçam o seu papel no momento em que denunciam as estruturas desumanizantes e ajudam aos seres humanos a marcharem na direção da constituição de uma nova realidade.

Assim, a radicalidade a partir dos pressupostos freirianos está em favor de uma formação em que os seres humanos estejam em permanente comunicação com a realidade, pelo aprofundamento e tomada de consciência sobre essa e como sujeitos pela práxis sobre a realidade construírem ações de transformação no contexto vivido.

Por fim, assumir nas relações entre os seres humanos as situações existenciais e vivenciais da cotidianidade, as quais permitam a esses sujeitos o debate de temas desafiadores que envolvam e sejam envolvidos pelas situações-limites, recuperando a vocação ontológica do ser mais, é condição fundamental para o respeito e a partilha entre todos, os quais se tornam ferramentas necessárias à dignificação dos sujeitos envolvidos nas relações educativas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta freiriana parte do mundo da vida e pela relação dialógica os seres humanos são desafiados a uma compreensão da realidade constituída, na qual o aprendizado, pela construção do conhecimento, ganha centralidade. A compreensão da realidade exige do sujeito o exercício de tomar distância do objeto para que, contraditoriamente, aproxime-se dele para conhecê-lo criticamente.

Por outro lado, admite-se que essa compreensão da realidade, no momento contemporâneo atual, apresenta dificuldades de atingir um nível de criticidade capaz de romper com as mazelas impostas pelo modelo em curso, o modelo civilizatório capitalista em sua vertente neoliberal. Nessas condições, reafirma-se que os seres humanos são colocados na condição de expectadores, ao contrário de se tornarem sujeitos históricos, transformadores do seu tempo.

Ao mesmo tempo, é reconhecido que cabe a esses mesmos sujeitos, além de levarem a plenitude os anseios de sua época, proporem a superação das contradições vividas. Com esse entendimento, percebe-se o antagonismo entre aqueles que assumem o esforço para a superação do momento histórico vivido, em favor da humanização e da libertação, e aqueles que promovem as circunstâncias históricas sustentadas na injustiça, na opressão e na violência. Daí que se constitui um conjunto de forças as quais por vezes tornam os seres humanos sujeitos históricos e por outras os tornam objetos desses processos.

A proposta de discussão até aqui foi construir uma reflexão teórica sobre a atuação dos seres humanos como aqueles que submetem as ações à reflexão e, como seres críticos, não detém, tampouco se antecipam à história, mas captam as suas contradições para, em coletividade, exercerem as transformações sociais, na medida em que conhecem e agem, ou, por outro lado, como aqueles que assumem uma postura reacionária e antidialógica, tomando a história para si. Ainda com essa intencionalidade, entende-se que para lidar com essa percepção, os sujeitos progressistas críticos, radicais, aliados aos conservadores possam, em certa medida, convergir para a luta contra os retrocessos propostos pelos reacionários, pelos sectários. Nesse sentido, Freire (2014) reflete sobre a consciência do outro e de si, como ser no e com o mundo, como ser humano que se tornou presença e no ato de reconhecer o outro, como o não eu, reconhecer a si como aquele que sonha, “[...] que constata, que compara, que avalia, valora, que decide, que rompe” (Freire, 2014, p. 130), movendo-se no mundo, reconhecendo que a história será sempre tempo de possibilidade.

Por fim, no que remete a escola, admite-se que essa convergência entre progressistas críticos e conservadores permita favorecer a construção de um processo coletivo em que os seres humanos reflitam sobre os anseios de sua época, sobre as possibilidades e as potencialidades, para um aprender melhor o que já sabem sobre o mundo, aprendendo a criar o conhecimento e que esse conhecimento esteja alinhado as ações almejadas para as transformações sociais necessárias.

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência:

André Luís Castro de Freitas - Universidade Federal do Rio Grande, Centro de Ciências Computacionais, Av. Itália, km 8, Campus Carreiros, Vila Maria, 96021900 - Rio Grande, RS.  dmtalcf@furg.br.

Luciane Albernaz de Araújo Freitas - Praça Vinte de Setembro n. 455, Pelotas, RS. lucianel1968@gmail.com.


1 Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pelotas; Doutor e Mestre em Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

2 Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande; Mestra em Desenvolvimento Social pela Universidade Católica de Pelotas.

3 Paulo Freire elabora a diferença entre o ato de dizer e o exercício de pronunciar a palavra, tal que, no caso, o dizer a palavra sozinho ou aos outros é como roubar a palavra dos demais, por outro lado no diálogo há o encontro dos seres humanos mediatizados pelo mundo no intuito de pronunciá-lo.

4 Parte do marco teórico desenvolvido nesse artigo é uma versão resumida da tese de doutorado.

5 A organicidade implica a posição cada vez mais consciente e crítica do ser humano diante do contexto que nele possa interferir. Assim, a organicidade do processo educativo implica na sua integração com as condições do tempo e do espaço que se aplica no intuito de permitir mudar essas condições.

6 A reforma na educação deveria ser uma reforma política, permanentemente descentralizante, na qual os municípios poderiam gerir os fundos municipais de educação, no intuito de implantar sistemas educacionais locais.

7 As experiências democráticas são aquelas ligadas ao mundo da vida, ao contexto histórico no qual os seres humanos estão inseridos. Como exemplo, a participação em agremiações e sindicatos, a ingerência na vida do bairro, na vida da comunidade rural, bem como, a participação em associações e sociedades beneficentes.

8 Trata-se do desenvolvimento econômico em um contexto de industrialização e democratização ocorrido no final dos anos 50, com a preocupação da inserção do sujeito nesse contexto.

9 O momento de trânsito apresenta contradições cada vez mais fortes entre as formas de ser, valorar e comportar-se histórico e culturalmente do ontem em relação às formas diferenciadas do futuro. O contexto brasileiro assumia, ao final dos anos 50 e anos 60, uma transformação sociocultural de país subdesenvolvido para um contexto de país em vias de industrialização, com o enfrentamento do momento de trânsito durante o golpe militar de 1964.

10 Como rachadura entende-se a ruptura nas forças que mantinham a sociedade fechada em equilíbrio, ao contexto da época. Assume-se que as alterações econômicas representaram os primeiros passos da industrialização e foram os principais fatores da rachadura da sociedade brasileira.

11 No momento de trânsito os seres humanos e as instituições dividem-se em categorias: os progressistas, aqueles que são do trânsito, e os reacionários, aqueles que apenas estão no trânsito.

12 O novo clima cultural, surgido na época de trânsito, é denominado pelas elites, a partir de seus teóricos e especialistas como crise.

13 O termo luta remete à luta dos oprimidos, como o movimento de humanização, inserido em um contexto histórico, no qual esses seres humanos buscam resgatar a sua humanidade roubada.

14 A consciência intransitiva não corresponde a um fechamento do ser humano dentro dele mesmo, pois o ser humano, qualquer que seja o seu estado, é um ser aberto. A consciência intransitiva é a limitação de sua esfera de apreensão.