https://doi.org/10.18593/r.v48.32240

A Campanha de Educação Popular (Ceplar): espaço de formação no cenário educacional paraibano (1961-1964)

The Campanha de Educação Popular (Ceplar): training space in the educational scenario of Paraíba (1961-1964)

La Campanha de Educação Popular (Ceplar): espacio de formación en el escenario educativo de Paraíba (1961-1964)

Rosicleide Henrique da Silva1

Universidade Federal da Paraíba; Professora da Rede Pública de Ensino no Estado da Paraíba.

https://orcid.org/0000-0001-8481-6055

Charliton José dos Santos Machado2

Universidade Federal da Paraíba; Professor Titular e Professor Permanente dos seguintes Programas de Pós-Graduação. http://orcid.org/0000-0002-4768-8725

Lia Machado Fiuza Fialho3

Universidade Estadual do Ceará; Professora Adjunta do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará; Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Educação e do Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas. https://orcid.org/0000-0003-0393-9892

Resumo: Este artigo tem o objetivo de evidenciar o surgimento da Campanha de Educação Popular na cidade de Campina Grande, Paraíba, entre 1961 e 1964, destacando a sua contribuição no cenário educacional da época. A pesquisa foi realizada com base nos jornais Diário Oficial e Diário da Borborema, localizados no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba e em documentos como o Estatuto da Campanha de Educação Popular, os Inquéritos Policiais Militares e o Projeto Compartilhando Memórias. Após levantamento de fontes e análises, depreendeu-se que a referida Campanha utilizava o “Método Paulo Freire” e consistia na ideia de alfabetização de jovens e adultos em 40 horas, cujo objetivo era despertar nesses sujeitos o senso crítico acerca das desigualdades sociais existentes. Porém, com a instauração do golpe civil-militar em 1964, a Campanha foi extinta, tendo deixado um importante legado educacional na Paraíba.

Palavras-chave: História da Educação; Método Paulo Freire; Educação popular; Educação de Jovens e Adultos; Ditadura militar.

Abstract: This work highlights the emergence of the Campanha de Educação Popular in the city of Campina Grande, Paraíba, between 1961 and 1964, highlighting its contribution to the educational scenario of the time. The research was based on the Diário Oficial and Diário da Borborema, located in the Instituto Histórico e Geográfico of Paraíba and on documents such as the Statue of the Campanha de Educação Popular, the Military Police Inquiries and the Projeto Compartilhando Memórias. After surveying sources and analyses, it was inferred that aforementioned campaign used the “Paulo Freire Method” and consisted of the idea of teaching young people and adults to read and write in 40 hours, whose objective was to awaken a critical sense in these subjects about existing social inequalities. However, with the establishment of the civil-military coup in 1964, the campaign was extinguished, having left an important educational legacy in Paraíba.

Keywords: History of Education; Paulo Freire Method; Popular education; Education for youth and adults; Military dictatorship.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo resaltar el surgimiento de la Campanha de Educação Popular en la ciudad de Campina Grande, Paraíba, entre 1961 y 1964, destacando su aporte al escenario educativo de la época. La investigación se basó en el Diário Oficial y Diário da Borborema, ubicados en el Instituto Histórico e Geográfico de Paraíba y en documentos como el Estatuto de la Campanha de Educação Popular, las Investigaciones de la Policía Militar y el Projeto Compartilhando Memórias. Luego de relevar fuentes y análisis, se infirió que la referida campaña utilizó el “Método Paulo Freire” y consistió en la idea de enseñar a leer y escribir a jóvenes y adultos en 40 horas, cuyo objetivo era despertar un sentido crítico en estos temas sobre las desigualdades sociales existentes. Sin embargo, con el establecimiento del golpe cívico-militar en 1964, la campaña se extinguió, dejando un importante legado educativo en Paraíba.

Palabras clave: Historia de la Educación; Método Paulo Freire; Educación popular; Educación para jóvenes y adultos; Dictadura militar.

Recebido em 31 de outubro de 2022

Aceito em 24 de julho de 2023

1 INTRODUÇÃO

Este artigo4 se insere na área da Educação, no campo da História da Educação, e trata acerca da Campanha de Educação Popular (Ceplar), que se constituiu como importante iniciativa formativa no cenário educacional da cidade de Campina Grande, na Paraíba (PB), nos anos de 1961 a 1964. Essa delimitação temporal foi selecionada por corresponder ao início do planejamento da referida Campanha e, respectivamente, ao ano em que ela foi extinta. Sua curta durabilidade decorreu da interrupção repentina, motivada pelo autoritarismo e pela repressão instaurados aos movimentos populares no Brasil após o golpe militar de 1964.

Ainda que a cidade de Campina Grande-PB se destacasse na exploração do algodão, ocupando o segundo lugar mundial na década de 1940, e tenha galgado relativo crescimento industrial até a década de 1960, neste período, o contexto histórico da cidade era marcado por severa crise econômica, com grande concentração de renda e desigualdade social. No campo educacional, destacavam-se os altos índices de evasão e reprovação escolar e o baixo número de crianças e adolescentes matriculados, situação não destoante das demais cidades do Nordeste brasileiro (MENEZES; MACHADO; FIALHO, 2022).

A Ceplar emerge nesse contexto de educação precária, caracterizando-se pelo fomento à educação, mais especificamente, à alfabetização de jovens e adultos que estavam fora da idade escolar regular, tomando como base os pressupostos teóricos e metodológicos de Paulo Freire. Tais pressupostos consistiam em promover uma educação que partisse do contexto de vida dos educandos, a partir de basicamente três etapas: 1) investigação, na qual se buscavam palavras geradoras oriundas de temas marcantes na vida do aluno, considerando o seu universo vocabular; 2) tematização, que consistia em refletir criticamente sobre os significados sociais das palavras geradoras selecionadas; e 3) problematização, quando o professor inquietava o aluno a superar a percepção acrítica do mundo, para adotar uma postura consciente e atuante. Essas etapas permitiam a silabação das palavras, formando outras, sem se restringir aos processos mecânicos de codificação e decodificação.

A referida Campanha foi interrompida em decorrência do golpe militar, no qual foi constituída uma conspiração, realizada pelos militares brasileiros, com o apoio de grupos de civis conservadores da elite econômica do país, contra o então presidente, João Goulart, empossado no cargo em 1961, exatamente no ano em que se iniciam as discussões para criar a Ceplar. O golpe mobilizou tropas de militares que conseguiram tomar o controle de locais estratégicos do país de maneira autoritária, perseguindo e reprimindo quaisquer mobilizações populares contrárias, cerceando iniciativas de educação crítica e, inclusive, derrubando João Goulart de maneira inconstitucional.

Nesse cenário, a Ceplar foi reprimida e extinta, todavia, deixou um legado educacional que não pode ser silenciado ou relegado aos porões da memória. Questionou-se, dessa maneira, quais as contribuições da Ceplar para o contexto educacional do munício de Campina Grande-PB. Para responder a esse problema de pesquisa, elaborou-se uma pesquisa científica com o objetivo de evidenciar o surgimento da Ceplar na cidade de Campina Grande-PB entre os anos de 1961 e 1964, destacando a sua contribuição no cenário educacional da época.

Entende-se que escrever a História da Educação é também “[...] mediar temporalidades, exercer atividade de tradução entre naturezas, sociedades e culturas de tempos distintos, colocadas nesta terceira margem da temporalidade que é o presente” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 33). Seguindo essa linha de pensamento, o trabalho dos pesquisadores aqui desenvolvido torna-se relevante por considerar que não há uma verdade inquestionável, mas múltiplos discursos, necessários, para a elaboração de narrativas históricas mais críticas que preservam a memória e a História da Educação e facilitam a compreensão do contexto educacional atual. Afinal, dar a ver a história da Ceplar é desvelar uma poranduba constituída pela ação de “[...] sujeitos autônomos, que determinam as reações, consciente ou inconscientemente, mesmo ante as influências conjunturais” (FIALHO; SANTOS; SALES, 2019, p. 12), que vão constituir a História da Educação de um povo.

2 APRESENTANDO O CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO

A pesquisa em tela, por tratar da História da Educação das camadas populares, ampara-se teoricamente na História Cultural (BURKE, 2005), corrente historiográfica que ganha notoriedade a partir da Escola dos Annales, fundada no final da década de 1930, que permitiu investir em pesquisas que consideram os aspectos do cotidiano, desde a incorporação de novas fontes, abordagens, problemas e objetos de estudo (LE GOFF; NORA, 1988). Passa-se a considerar fonte histórica todo vestígio que possa contar a história dos homens no tempo e, consecutivamente, no âmbito educacional, permite-se suplantar os conteúdos e os programas curriculares formais, ao valorizar processos educacionais múltiplos evidenciados a partir de fontes diversas, tais como mobiliários, vestimentas, cadernos pessoais, diários, participações em atividades comunitárias, culturais, dentre outros (VASCONCELOS; FIALHO; MACHADO, 2018).

Dessa maneira, no século XX, o campo da História reconheceu a emergência de novos objetos de estudo ao alargar o conceito de fonte histórica, o que influenciou as produções historiográficas do século XXI, inclusive no campo da História da Educação. Isso possibilitou visibilidade às múltiplas pedagogias culturais e permitiu ampliar a compreensão de como as representações da educação dos pobres foi historicamente alienante, relegando os menos favorecidos economicamente ao analfabetismo ou à instrução mínima e ocuparem postos de trabalho inferiores, sem problematização das injustiças sociais e econômicas, como se houvesse uma realidade imutável. Inclusive, impulsionou análises micro-históricas acerca da educação popular, a exemplo da Cepal em Campina Grande-PB, como se propõe neste artigo.

Há razoável convergência entre os pesquisadores da HISTÓRIA da educação do século XXI em não conceber o fato histórico como um objeto estático ou o documento como material objetivo e bruto (CERTEAU, 1992), isso porque o primeiro é resultado da elaboração narrativa do historiador e o último é monumento, ou seja, abrange intencionalidade na perpetuação da memória. Consagra-se, assim, a História dinâmica e transformadora, na qual se imbricam relato e explicação (CHARTIER, 2010). Esse entendimento torna possível utilizar os diversos tipos de impressos como fonte histórica de relevo, a exemplo dos jornais, documentos legais, judiciais, dentre outros, pois “[...] a imprensa tem a capacidade de atingir uma grande parcela da população e influenciar a vida dos seus leitores, é ideológica e usa os critérios de avaliação para selecionar e editar suas matérias” (FIRMINO, 2003, p. 47).

A compilação das fontes deste estudo considerou os jornais Diário Oficial5 e Diário da Borborema6, localizados no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, e em documentos: o Estatuto da Ceplar7, os Inquéritos Policiais Militares (IPM)8 e o volume número oito do Projeto Compartilhando Memórias9. Os jornais foram incluídos por seus lugares de representação e produção sobre o mundo e as relações sociais e de poder. Os demais documentos por tratarem da Campanha e possibilitarem reconstituir os múltiplos discursos que foram representados acerca da Ceplar. Levou-se em consideração que as narrativas acerca da Ceplar não são uníssonas, mas compreendem “[...] hipóteses, dúvidas e incertezas que se tornam parte da narração” (GINZBURG, ٢٠٠٧, p. ٢٦٥).

O jornal foi utilizado como ponto de partida, haja vista que “[...] os documentos, as fontes e os vestígios do passado expressam pontos de vista daqueles que produziram e/ou preservaram” (VIEIRA, 2007, p. 16), ou seja, podem se constituir em fontes tendenciosas, que servem aos interesses de quem as produziu. Logo, foi função dos pesquisadores entender o jornal como espaço de veiculação e produção de discursos, não o associando às ideias de veracidade inquestionável. Seguindo essa linha de pensamento, Vieira (2007, p. 16) esclarece que:

As questões que se impõem não estão associadas às ideias do verdadeiro e do falso, da imprensa dizer ou não à verdade, mas sim no entendimento dos motivos que levaram a defender determinadas teses, bem como no desvelamento das estratégias discursivas mobilizadas para sustentá-las e, assim, persuadir o seu público leitor.

Dessa forma, cuidou-se para entender como as fontes foram produzidas e, ao analisar os jornais, dispôs-se de ferramentas que problematizam a “[...] identificação imediata e linear entre a narração do acontecimento e o próprio acontecimento, questão, aliás, que está longe de ser exclusiva do texto da imprensa” (LUCA, 2010, p. 139). Para tanto, o entrecruzamento com os outros documentos – estatuto, inquéritos e projetos – foi importante para entender a imprensa como “[...] linguagem constitutiva do social que detém uma historicidade e peculiaridades próprias e compreendida como tal, desvendando, a cada momento, as relações imprensa/sociedade” (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 2). A propósito, os jornais representavam as concepções dos políticos locais sobre a Cepal; o estatuto expunha o ideário dos formuladores e educadores envolvidos com a Campanha; os IPMs expressavam os impasses e confrontos para repreender tais ideais; e o Projeto Compartilhando Memórias evidenciava as narrativas e percepções de uma profissional (Salete Van der Poel) que havia vivenciado na prática a experiência de educar adotando o método de Paulo Freire.

3 A EMERGÊNCIA DA CEPLAR EM CAMPINA GRANDE-PB

Iniciada oficialmente no final de 1961, na gestão do governador Pedro Gondim (1961-1965), a Ceplar tinha em seu plano de alfabetização importantes objetivos voltados à Educação na Paraíba, conforme se pode observar no texto do seu estatuto publicado em Diário Oficial:

CAPÍTULO I

‘Denominação, fins e Sede’

Art. 1º - Sob a denominação de Campanha de Educação Popular fica criada e constituída uma Associação Civil, brasileira, de finalidade educativa e cultura, com número ilimitado de sócios, duração indeterminada, cujos objetivos são os seguintes: 1- Promover e incentivar, com a ajuda de particulares e dos poderes públicos, a educação de crianças e adultos; 2 - Atender ao objetivo fundamental da educação, que é desenvolver plenamente todas as virtualidades do ser humano, através da educação integral de base comunitária, que assegure também, de acordo com a Constituição e as leis vigentes, o ensino religioso facultativo; 3 - Proporcionar a elevação do nível cultural do povo preparando-o para a vida e para o trabalho; 4 - Colaborar para a melhoria do nível cultural do povo através da educação especializada; 5 - Formar quadros destinados a interpretar, sistematizar e transmitir os múltiplos aspectos da cultura popular. Art. 2º - A Campanha de Educação Popular (Ceplar) tem sua Sede na cidade de João Pessoa, Estado da Paraíba. (PARAÍBA, 1962, p. 2).

Pedro Moreno Gondim tinha a educação popular como um de seus planos de governo, para promover a valorização e o desenvolvimento das áreas rurais e dos setores urbanos, especificamente a indústria na Paraíba. Gondim se mostrou, a princípio, aberto às negociações acerca da realidade social do Estado, tendo o intuito de desenvolvê-lo em seus aspectos educacionais. Foi nesse sentido que um grupo de estudantes buscou apoio do governador a fim de desenvolver uma Campanha que alfabetizasse jovens e adultos nos bairros periféricos da capital. De acordo com Scocuglia (2001, p. 60):

Estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFPB, dentre os quais alguns já professores da rede escolar estadual pública, militantes da Juventude Universitária Católica (JUC), buscou o apoio do governo estadual para realizar um trabalho social múltiplo, que incluía desde noções de higiene e sanitarismo até a alfabetização de crianças e adultos em bairros pobres de João Pessoa. Da soma da ação social/assistencial e política dos estudantes universitários e dos objetivos prioritários do governo estadual em relação à educação, nasceu a Ceplar, ao final de 1961.

No início da implantação da Ceplar na Paraíba, contava-se com a ajuda do governador Pedro Gondim, dos estudantes e professores, bem como de uma administração formada por “Conselho Deliberativo (CD), Diretoria (D), Serviço de Administração (SA), Departamento de Documentação e Informação (DDI), Departamento de Difusão da Cultura (DDC)” (PARAÍBA, 1962, p. 12). De acordo com Scocuglia (2001, p. 64), o “[...] governador Pedro Gondim, inicialmente, fez a sua parte com doação de verbas, nomeação de dez professoras formadas, disponibilização de veículos e motoristas, autorizando a concessão de créditos especiais de até dois milhões de cruzeiros no exercício de 1962”.

Havia uma divisão entre as funções desempenhadas por cada Órgão Deliberativo, contribuindo para o funcionamento administrativo da Campanha, que também passou a contar com “[...] sócios dirigentes efetivos, integrantes do quadro de cada Divisão, elegendo entre si os Diretores das Divisões do DFC [Demonstração do Fluxo de Caixa] e respectivos suplentes, com mandato de dois anos a contar da data da posse” (PARAÍBA, 1962, p. 12).

Uma característica peculiar da Ceplar era sua atuação junto às camadas mais carentes da sociedade. Bairros marcados pela pobreza, pelo analfabetismo, pelas péssimas condições de moradia e saúde foram os primeiros a serem escolhidos para o desenvolvimento da Campanha. Assim sendo, a Ceplar iniciou seu trabalho voltando-se para o âmbito social, cujo objetivo era, a partir do apoio das lideranças em bairros pobres da capital, colocar em prática ações que modificassem o cenário de miserabilidade existente, a partir educação contextualizada e crítica e da promoção de ações para a melhoria da qualidade de vida dos pobres.

De acordo com Porto e Laje (1995, p. 35), a primeira implantação da Campanha Educacional na Paraíba ocorreu:

Na Povoação Índio Piragibe, conhecida por Ilha do Bispo. O governo do Estado pôs à disposição da equipe que criou a entidade, o Grupo Escolar Raul Machado, existente naquele bairro e praticamente abandonado. Esse Grupo, com capacidade para 500 alunos, funcionava com apenas 70 matrículas e 41 presenças. Por outro lado, aquele era um dos bairros operários mais desfavorecidos da periferia de João Pessoa e uma área de tensão social.

Ainda que inicialmente com apenas 41 alunos participando da Campanha, esse número já era expressivo o suficiente para que ela se tornasse conhecida na comunidade de Ilha do Bispo, especialmente porque destacava-se em meio à ausência de outras iniciativas voltadas para a educação de jovens e adultos no local. Dentre as primeiras atividades definidas pela Cepal, estavam a “[...] construção de fossas sanitárias e entendimento com a Portland para a atenuação do processo contínuo de poluição, responsável direto pelos problemas respiratórios dos moradores da Ilha do Bispo10” (SCOCUGLIA, 2001, p. 63). Logo, a Campanha não se restringia à educação institucionalizada, mas visava promover melhores condições de vida às comunidades periféricas.

Com ideias de expansão acerca do projeto educacional na Paraíba, a Ceplar, em dezembro de 1962, realizou uma reunião, coordenada pela Secretaria de Educação da Paraíba, com a participação do governador, representantes do Centro de Educação a Distância e do Ministério da Educação, na qual foi destinado o encaminhamento de verbas do Plano de Emergência na Paraíba para o projeto Ceplar. No ano de 1963, a Ceplar multiplicou seus núcleos e, em julho desse mesmo ano, “[...] cerca de vinte núcleos já funcionavam em seis bairros da capital, além da Ilha do Bispo, Varadouro e Torrelândia, somavam-se Cruz das Armas, Roger e Santa Júlia” (SCOCUGLIA, 2001, p. 82).

Para Porto e Laje (1995, p. 71), a formação da Ceplar de Campina Grande-PB ocorreu em março de 1963, quando:

Foi procurada por uma equipe de Campina Grande e, no dia 19 do mesmo mês, assinou um convênio com o prefeito daquela cidade, Severino Cabral. Na segunda quinzena do mês de abril, realizou-se a preparação da equipe que assumiria a aplicação do Método Paulo Freire em Campina Grande, cujo programa inicial teve a duração de uma semana. Apesar dos encontros frequentes, a Ceplar de Campina Grande teve uma existência autônoma, sob a orientação da equipe local.

Em Campina Grande-PB houve a articulação entre entidades sindicais e associações religiosas, beneficentes e esportivas para localizar colaboradores locais que pudessem se interessar por organizar a Campanha – com a convocação, inscrição de alunos e administração de equipamentos, por exemplo – e ministrar aulas com a aplicação do método Paulo Freire (SCOCUGLIA, 2001). Nesse contexto de novas instalações de núcleos de alfabetização na Paraíba e de sua expansão em várias cidades próximas, a Ceplar chegou em Campina Grande-PB em 1963, na gestão do prefeito Newton Rique11, galgando rápida expressividade.

Vinculada à Prefeitura de Campina Grande-PB, a Ceplar:

[...] era mantida, em termos de infraestrutura, pela Prefeitura de Campina Grande e possuía um grupo dirigente próprio, não subordinado à capital. Os encontros entre os dirigentes das duas entidades foram raros. Suas programações eram totalmente independentes. Havia quase um clima de disputa – João Pessoa versus Campina Grande –, típico das querelas do provincianismo arraigado em ambas as cidades. (SCOCUGLIA, 2000, p. 104).

O sucesso da Ceplar de Campina Grande-PB, bem acolhida pela população do município, despertou o interesse de políticos locais, como o prefeito Severino Cabral12, que visava, por meio da Campanha, uma forma de angariar votos. Conforme Salete van der Poel13, “[...] seu Cabral ‘endoideceu’ e falou que, se fosse esse negócio para fazer voto, alfabetizar em quarenta horas, então vamos alfabetizar o pessoal de Campina Grande” (PROJETO COMPARTILHANDO MEMÓRIAS, v. 8). Com efeito, foi por questões políticas e ideológicas que, mais tarde, em tempos de ditadura, a Ceplar passou a ser considerada pela ala conservadora de direita um projeto subversivo, que atuava para além do processo de alfabetização de jovens e adultos, pois os estimulava a refletirem sobre a realidade e se inquietarem com os problemas sociais, políticos e econômicos.

No entanto, foi a contribuição dos professores, trabalhando uma educação contextualizada e problematizadora, que assegurou a adesão da população, a exemplo da já mencionada professora Salete van der Poel, que trabalhou na Campanha como coordenadora e, segundo ela, sua militância iniciou quando ainda “[...] era do Curso Ginasial no Colégio Alfredo Dantas, mais ou menos de janeiro para fevereiro de 1963, quando o assunto do Brasil era o chamado ‘milagre’ do Método de Paulo Freire” (PROJETO COMPARTILHANDO MEMÓRIAS, v. 8), num bairro simples conhecido por “Casa da Pedra”, atual bairro Centenário, ou seja, uma atuação educacional militante desde muito cedo, por acreditar que o Método Paulo Freire poderia transformar a vida das pessoas mais necessitadas.

Lustosa (2018, p. 120-121) explica como ocorreu à preparação da equipe de profissionais engajados na Cepal na cidade de Campina Grande-PB:

Na segunda quinzena do mês de abril, realizou-se a preparação da equipe que assumiria a aplicação do Método Paulo Freire em Campina Grande, organizada pela Ceplar de João Pessoa, cujo programa inicial teve a duração de uma semana. No roteiro do Curso de Preparação de Pessoal para Campina Grande, realizado entre os dias 24 a 28 de abril de 1963, figuram grupos de estudos sobre a realidade brasileira e seus problemas (fome, desemprego, analfabetismo, prostituição, mortalidade, alienação); exposições e debates sobre Cultura Popular, discussão acerca da Fundamentação teórica do Sistema Paulo Freire, com a participação de Jarbas Maciel; e grupos de estudo para aprofundamento do método, planejamento e preparação para a aplicação naquela cidade.

Observa-se que a formação não era meramente tecnicista para a reprodução de um método de alfabetização, mas possibilitava mobilizar saberes e refletir sobre a diversidade cultural e os problemas sociais – fome, desemprego, analfabetismo, prostituição, mortalidade, alienação –, com o mote de possibilitar uma educação contextualizada e reflexiva.

A Ceplar em Campina Grande-PB tinha vinculação com a prefeitura da cidade e, segundo o jornal Diário da Borborema (1º mar. 1964, p. 2), “[...] para a cobertura financeira dos seus trabalhos, ela vinha contando com a ajuda do Governo Federal e do Prefeito do Município”. O referido jornal também relata que “A Campanha de Educação Popular contava com uma equipe de professores que vinha traçando novos rumos visando à alfabetização dos adultos” (DIÁRIO DA BORBOREMA, 1º mar. 1964, p. 2). Inclusive, foram convocados estudantes a participarem do curso de formação para se tornarem alfabetizadores, o que possibilitou, por exemplo, o envolvimento de Salete van der Poel ainda durante o curso do ensino ginasial.

A equipe profissional de Campina Grande-PB chegou a fazer curso em Recife para melhor se apropriar da fundamentação teórica em Paulo Freire (SCOCUGLIA, 2001), ultrapassando as fronteiras do estado da Paraíba. Salete van der Poel, integrante da Ação Popular (AP)14, participou desse curso de formação e explicou como foi essa experiência:

Eu fui para fazer um curso com Paulo Freire e da Equipe dele lá no SEC (Serviço de Extensão Cultural), que era ligada à Universidade de Pernambuco, sendo o SEC coordenado por Paulo Freire. Mas eu não fui na Equipe do Severino Cabral, eu já fui para esse Encontro como militante da AP (Ação Popular). Eu fui como uma tarefa da AP de assistir o Programa, me infiltrar e trazer o Projeto para Campina Grande para que o projeto não caísse somente nas mãos dos políticos. Lá foi um curso de uma semana e tinha universitários do Brasil todo. Foi um curso maravilhoso, uma parte dada pelo próprio Freire, outra parte encantadora dada por Jomar Muniz de Brito e a parte de Metodologia da Linguagem foi dada por Aurenice e por Adosina, que carinhosamente nós a chamávamos de Dosa, que faleceu ano passado. (PROJETO COMPARTILHANDO MEMÓRIAS, v. 8).

Salete van der Poel afirmou que, juntamente com outros professores, começou a se engajar na Cepal, mais precisamente a partir de março de 1963, por intermédio da AP, inclusive, para não deixar que o projeto de educação popular se tornasse instrumento político destituído da sua real finalidade. Dessa forma, com o engajamento da Campanha de Alfabetização nos meses posteriores, foi possível adentrar o ano de 1964 com cerca de 30 núcleos formados na cidade de Campina Grande-PB, conforme esclarece o Diário da Borborema (1º mar. 1964, p. 3):

A Ceplar continua desenvolvendo grande atividade no setor educacional. Há mais de um mês, vêm funcionando cerca de trinta núcleos na cidade, um em Genipapo e dois em Puxinanã. A frequência é das mais animadoras, reunindo os diversos núcleos um total de mil alunos. Novas salas de aula estão sendo instaladas: cinco núcleos na sede deste município, um em Galante e três na vizinha cidade de Queimadas [...].

A Ceplar ocorrida na Paraíba entre 1961 e 1964 utilizou do Método Paulo Freire e “[...] seu auge se deu nos meses finais de 1963 e início de 1964, quando coordenou 135 círculos de cultura e, aproximadamente, 4000 alfabetizandos” (SCOCUGLIA, 2006, p. 47). Isso porque a Campanha tinha apoio da população, de educadores e dos governantes; cada um com interesses distintos, no entanto, inter-relacionados: o povo queria melhoria de condições de vida e educação; os professores, um trabalho no projeto educacional inovador que ultrapassasse o método tradicional e mobilizasse os estudantes; e os governantes, uma oportunidade de se promoverem politicamente.

Na reportagem do Diário de Borborema (1º mar. 1964, p. 3), é possível perceber como o projeto ultrapassava a mera alfabetização e envolvia as comunidades e as autoridades locais:

Com a finalidade de mobilizar o povo para a reivindicação dos seus problemas, vêm sendo organizados núcleos nos bairros da cidade. As principais experiências estão sendo feitas em Monte Santo, Catolé e José Pinheiro. Há interesse por essas organizações de bairro. Brevemente o prefeito passará a receber abaixo-assinados, reivindicando melhorias para vários subúrbios campinenses.

Para além do processo de alfabetização, a aplicação do Método Paulo Freire na Ceplar “[...] favoreceu e intensificou os contatos da Campanha com outras entidades e organizações profissionais, permitindo o desenvolvimento de suas atividades em diversas áreas” (PORTO; LAJE, 1995, p. 60). Isso porque o objetivo do método ultrapassava a mera decodificação de letras e sílabas, já que se propunha a promover uma conscientização sobre os problemas cotidianos, a partir do conhecimento da realidade social e da compreensão da complexidade dos problemas do mundo.

4 A EXTINÇÃO DA CEPLAR EM CAMPINA GRANDE-PB

Em paralelo à ampliação da Campanha e ao número de alfabetizados, “[...] ampliou-se o debate político para o mundo sindical e operário através dos círculos de cultura e para setores mais amplos da sociedade de João Pessoa através dos cursos sobre Realidade e Cultura Brasileiras” (PORTO; LAJE, 1995, p. 60), ponto nodal que fez com que os opositores políticos acreditassem que estavam se propagando ideias socialistas e comunistas radicais nas lições de conscientização e nas fichas-roteiro (SCOCUGLIA, 2001).

Essa interpretação política acerca da Campanha, majoritariamente adotada pelos mais conservadores da direita, fez com que a percepção sobre o investimento na Educação Popular passasse a ser concebida de maneira negativa, tendo em vista que o Método Paulo Freire tensionava questões sociais e econômicas que reverberavam diretamente em posicionamentos políticos. Emergia o temor da inquietação das massas e de sua mobilização para interferir politicamente em prol dos menos favorecidos. Lustosa (2018, p. 108) retrata essa perspectiva da seguinte maneira:

Alfabetizar em poucas horas em uma sociedade na qual ser alfabetizado era requisito para exercer o direito de voto trouxe à tona a ideia de revolução pelo voto, justamente num momento em que a sociedade brasileira passava por mudanças na correlação de forças políticas e a experiência democrática favorecia o avanço das forças populares e a organização dos movimentos de massa. Acreditava-se que incorporar um grande número de recém-alfabetizados no sistema político, como eleitores, poderia mudar o quadro de representatividade político-partidária.

A Ceplar foi caracterizada pelas classes conservadoras como um perigo iminente, pois aumentar o número de eleitores “conscientizados” poderia provocar uma mudança política em âmbito nacional. Afinal, havia a perspectiva de a Ceplar, em âmbito nacional, “[...] conscientizar seis milhões de novos eleitores até as eleições presidenciais de 1965, aumentando em quase 50% o número de eleitorado” (SCOCUGLIA, 2006, p. 56).

Na Paraíba, o plano de expansão da Ceplar causou preocupações por parte das oligarquias rurais, o que contribuiu com a oposição à Campanha, gerando acusações de que ela seria de natureza subversiva, por se apropriar de ideais comunistas, de modo que deputados de direita começaram a se mobilizar para impedir que verbas fossem destinadas para a Ceplar.

Seguindo essa linha de pensamento, a Ceplar se tornava um foco de subversão quando buscava em sua expansão o apoio dos estudantes, trabalhadores urbanos e camponeses, para gerar conflitos com os interesses dos setores da sociedade que não almejavam alterar o status quo social. Desse modo, se no início de seu desenvolvimento contava com o apoio do governador Pedro Gondim para o fornecimento de verbas e de professores para o seu funcionamento, aos poucos, cedendo às pressões, iniciaram-se os cortes que impossibilitaram a sua expansão. Lustosa (2018, p. 138) traz à baila essa ideia, ao inferir que:

Ao mesmo tempo em que a Ceplar vai crescendo e se modificando, ela vai suscitando a oposição. Com o seu crescimento e sua ligação com os movimentos sociais, a Ceplar foi ocupando um lugar de destaque no cenário paraibano dentre as entidades e organizações que atuaram na defesa de transformações sociais, mas essa ligação não foi bem-vista por muitos. O governo estadual, que foi uma das forças responsáveis pelo surgimento da Ceplar, tendo percebido que a Ceplar havia elegido como seus aliados grupos ‘perigosos’, como as Ligas Camponesas e o PCB [Partido Comunista Brasileiro], já não prestava o apoio de antes.

A repressão à Campanha Educacional na Paraíba começava a se intensificar, repercutindo, a princípio, na suspensão das verbas que contribuíam com o funcionamento da Campanha e, em seguida, nas ameaças aos camponeses que frequentavam as aulas de alfabetização, por parte dos latifundiários.

Com a emergência do golpe militar em 1964, os líderes do governo – municipal e estadual – adotaram uma posição de apoio aos militares, passando a compartilhar da experiência de uma nova Campanha, que ficou conhecida por Cruzada ABC15. Tendo o apoio dos militares, a Cruzada ABC pretendia “[...] contestar política e pedagogicamente os programas anteriores de alfabetização de adultos, particularmente, o Método Paulo Freire, adotado oficialmente pelo governo deposto” (SCOCUGLIA, 2000, p. 153).

Com a instauração da ditadura militar no Brasil, a acusação de ser uma Campanha comunista e não mais tendo o apoio do Governo do Estado, a Ceplar teve sua sede invadida e seus documentos apreendidos, conforme esclarece um dos IPMs, pois nele consta que a sede da Ceplar foi invadida e seus alfabetizadores foram acusados de subversão pela elaboração de fichas-roteiros baseadas no Método Paulo Freire. De acordo com o IPM 1426, foi encontrado que:

Aos três dias do mês de abril de mil novecentos e sessenta e quatro, nesta cidade de João Pessoa, em cumprimento de ordem expressa ao Senhor Coronel Comandante da Guarnição de apreender todo e qualquer documento ou publicação de caráter subversivo ou propaganda do regime comunista, nos dirigimos à Praça D. Adauto, onde está sediada a Campanha de Educação Popular (Ceplar), segundo fomos informados, e aí, depois de ter sido verificado que não havia ninguém no recinto, presente as testemunhas 2º Sargento JOSÉ VASCONCELOS NETO e 3º Sargento ROMILDO DOMINGUES DE MELO, abaixo assinadas, e, entrando na casa supra declarada, procedemos a mais minuciosa busca, examinando todas as salas, quartos e lugares, fazendo abrir portas, gavetas, armários, etc., encontrando o seguinte material: 1 (um) cartaz utilizado para solução do teste; 11 (onze) provas de inscrição de professores para as Escolas Ceplar, contendo também uma entrevista [...]. (1º IPM 1426, 1964, v. 1.118, p. 28).

No dia 31 de março foram suspensas as aulas pela direção da Ceplar, pois quatro dirigentes haviam sido detidas por um comando do Exército e a sede da Campanha havia sido invadida no dia seguinte, tendo todo o material confiscado para servir como prova da suposta subversão praticada. Além da invasão à sede, na zona rural, houve pavilhões da Ceplar que foram incendiados, a exemplo da localizada em Miriri-PB (SCOCUGLIA, 2006). Essas ações fizeram com que a Ceplar fosse completamente desarticulada, encerrando suas atividades.

As professoras sofreram com perseguições e punições pela elaboração das fichas-roteiros que esquematizavam previamente o trabalho dos professores e guiavam o diálogo dirigido, inclusive sendo acusadas de comunismo e alvo de instauração de inquéritos acerca de suas atuações junto à Ceplar, a exemplo de Salete Agra Ramos (van der Poel), que estava entre as denunciadas por ter “[...] participado da Campanha de Educação Popular (Ceplar) de Campina Grande como responsável pelas fichas-roteiros de politização. Era comunista atuante” (IPM 1426, 1964, v. 1, p. 30). A ideia de que o pensamento crítico poderia causar transformações na estrutura política da sociedade era uma preocupação dos militares e, nesse sentido, qualquer conteúdo que levasse às discussões sobre a realidade social brasileira deveria ser proibido de circular (SOUSA; ASTIGARRAGA; FRISON, 2019).

A busca pela extinção, de maneira repressiva e autoritária, de todos os focos considerados comunistas era recorrente na cidade de Campina Grande-PB, e os jornais da época noticiavam como as patrulhas da Polícia Militar do estado, sob o comando do tenente-coronel Antônio Soares de Farias, confiscavam o material didático, únicos recursos encontrados nos centros da Campanha:

Dentre os livros apreendidos, sabe-se que se encontrava um manual russo de teatro, com páginas sublinhadas, para ‘ensinamento’ dos educandos. O coronel Farias, procurado pela reportagem, nada deixou transparecer a respeito do vasculhamento efetuado na sede da Ceplar, limitando-se a continuar sua ida ao Centro. (DIÁRIO DA BORBOREMA, 8 abr. 1964, p. 3).

Em pesquisas realizadas nos IPMs, é possível encontrar diversos modelos de lições que versavam desde a relação do homem com a natureza até seu despertar para as questões políticas na sociedade. No entanto, um desses materiais apreendidos ganhou destaque por constar o seguinte:

[...] Lição 4- Quais são as principais necessidades dos homens? (Habitação, saúde, alimentação, educação, trabalho etc.). 5- Como o seu trabalho de operário ele consegue satisfazer suas necessidades? 6- Quantos homens veem nessa ficha? 7- Se houvesse mais homens, a construção iria mais rápida, por quê? 8- Será que se pode dizer o mesmo em relação à vida? (Se todos os homens se unissem e trabalhassem de comum acordo, conseguiriam fazer muito mais coisa em menos tempo - A união faz a força. Por exemplo, lembremo-nos da formiga, tão pequena, mas, unida em grande número, consegue remover pesos maiores do que ela [...]. (1º IPM 1426, 1964, v. 1, p. 52).

A mensagem presente nas lições chama a atenção dos trabalhadores para as necessidades básicas – como habitação, saúde, moradia, educação – e a precariedade do salário do operário, que não conseguia suprir tais parcimônias. Também convida o alfabetizando a refletir sobre as condições de trabalho, se era de fato coletivo, colaborativo e justo, ressaltando a força da união dos operários como algo essencial na transformação de vidas. Ademais, ao fazer uma analogia do operário com as formigas, sugeria que o poder do operário poderia ser otimizado desde uma boa articulação.

Ora, essas ideias que levavam os alfabetizandos a refletirem sobre sua realidade, questionarem o lugar social destinado a eles e unirem-se articuladamente em busca de melhores condições de vida eram malvistas pelo governo arbitrário, que não aceitava contestação às suas determinações, tampouco qualquer natureza de manifestação popular que pudesse questionar o status quo estabelecido, caracterizado pela desigualdade de classes, injustiças sociais e exploração da força de trabalho do operário, que não possuía um rol mínimo de direitos assegurados em lei para garantir dignidade laboral (só conquistados a partir da Constituição de 1988).

Dentre os documentos apreendidos no arquivo da Ceplar, havia lições com abordagens nitidamente voltadas para problematizar as ações dos governantes, o que possibilitava a reflexão e a conscientização do trabalhador na importância da escolha dos dirigentes do país. Tal assertiva é possível de ser visualizada nas lições que seguem:

[...] 10- Como reagem os dirigentes do país? Por quê? - Associam-se aos estrangeiros porque esse domínio vai prejudicar somente o povo. Os governos recebem dinheiro, vivem bem, possuem tudo: terra, fábrica e usam a política de domínio do povo, enganando-o. 11- Que devemos fazer para que isso não aconteça? Conscientização do povo, divulgação dessas ideias na família, no trabalho. Vê como não se deve confiar nos governos - eles não saíram do povo, mas da classe dominante, não entendem os problemas do povo, são contra eles [...]. (IPM 1426, 1964, v. 1, p. 53).

Os temas dessas lições questionavam a quem os dirigentes do país realmente servem, o motivo pelo qual eles vivem em condições mais favoráveis do que o povo, quem se beneficia com as articulações internacionais, dentre outros. Alertavam o trabalhador para que ele não fosse ludibriado e chamavam a atenção para o cuidado em confiar em governantes que, uma vez provenientes da classe dominante, não entendiam ou não levavam a cabo com seriedade o compromisso de solucionar as mazelas que assolavam a classe trabalhadora. Nesse sentido, conscientizar a população acerca da conduta de seus dirigentes, expondo-os como classe privilegiada, sem dúvidas, era considerado um ato subversivo na óptica dos militares.

Assim sendo, a Ceplar, preocupada com a situação educacional brasileira, especificamente paraibana, e relacionada aos movimentos populares, tornou-se alvo de perseguição com a instauração da ditadura militar no Brasil e seu método de alfabetização considerado subversivo e comunista. Apesar de ter sido extinta, a Ceplar deixou importante contribuição, como forma de resistência, para se pensar o lugar do sujeito na sociedade, bem como a ideia da “[...] mobilização e participação política baseadas no método da alfabetização, enquanto instrumento de conscientização e formação de cidadãos conhecedores de seus direitos” (SCOCUGLIA, 2000, p. 181).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Questionaram-se quais as contribuições da Ceplar para o contexto educacional do município de Campina Grande-PB? Para responder a esse problema de pesquisa, elaborou-se um estudo científico com o objetivo de evidenciar o surgimento da Ceplar na cidade de Campina Grande-PB, entre 1961 e 1964, destacando a sua contribuição no cenário educacional da época.

A Ceplar foi um movimento social que surgiu no período pré-1964, ganhando destaque no cenário paraibano pelo não apoio à instauração do governo militar. Sendo alvo da repressão, foi considerado pela ala conservadora de partidos políticos de direita como um movimento subversivo, que não se centrava apenas no processo de alfabetização de jovens e adultos, como deveria ser, mas que incentivava os trabalhadores a questionarem o modelo político e econômico vigente.

Ao longo do nosso texto, evidenciamos que a Ceplar teve sua expansão interrompida quando da instauração do golpe civil de 1964, por ser considerado um programa comunista, o que prejudicou o processo de alfabetização contextualizada de jovens e adultos. Atuando em bairros marcados pela pobreza e pelo analfabetismo, a Campanha educacional rapidamente havia ganhado visibilidade, no entanto, de importante para a aquisição de base eleitoral passou a ser vista como uma ameaça, pois sua atuação questionava a política local e o combate à miséria e ao analfabetismo era permeado pela formação política em bairros pobres da capital paraibana.

Mesmo com o surgimento de novos núcleos nos anos posteriores e com as ideias de expansão do projeto educacional apoiadas pela Secretaria de Educação da Paraíba, houve preocupação por parte das oligarquias rurais com a expansão da Ceplar, o que certamente contribuiu com o seu declínio, sob a acusação de que era um projeto de atuação subversiva e comunista, dado o envolvimento de estudantes, trabalhadores urbanos e camponeses caracterizados como organização de esquerda na Paraíba.

Sendo assim, a sede da Ceplar foi invadida em Campina Grande-PB e os documentos queimados. Quando da instauração do golpe civil-militar, esta foi uma das preocupações, desmontar a Campanha de Alfabetização identificada com as classes mais pobres da sociedade e que punha no processo alfabetizador as discussões sobre a realidade social brasileira numa perspectiva histórico-política.

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência: Rua Aluísyo Soriano Aderaldo, 50, ap. 1402, Bairro Cocó, Fortaleza-CE, 60192-330; lia_fialho@yahoo.com.br


1 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Paraíba; Mestra em História pela Universidade Federal de Campina Grande; rose_netsr@hotmail.com

2 Pós-Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Membro da Sociedade Brasileira de História da Educação; Docente Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas “História da Educação da Paraíba”; charlitonlara@yahoo.com.br

3 Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba; Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará; Editora chefa da coleção Práticas Educativas (EdUECE); Líder do Grupo de Pesquisa Práticas Educativas Memórias e Oralidades – PEMO; Editora chefa da revista Educação & Formação do PPGE/UECE; Tutora do Programa de Educação Tutorial (PET/Pedagogia/UECE); lia_fialho@yahoo.com.br

4 Artigo originário da pesquisa de tese denominada “A atuação dos estudantes do espectro “direita” na Paraíba (1964-1968)”, defendida em 2019, na Universidade Federal Campina Grande.

5 Importante órgão da Imprensa Oficial da Parahyba do Norte e o mais longevo impresso ainda em circulação no estado, fundado em 2 de fevereiro de 1893, no limiar da República, que registrou debates sobre o sufrágio universal e o feminismo.

6 Fundado em 2 de outubro de 1957, nasceu pertencendo à cadeia de Diários Associados por inspiração do próprio Assis Chateaubriand, tendo como primeiro diretor João Gusmão Bastos. Publicava assuntos variados, com escritas precisas, diretas.

7 O Estatuto da Ceplar foi encontrado através de pesquisas realizadas, em 2012, no Arquivo Geral da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), onde se encontra disponível para consulta pública.

8 Adquiridos em cópia, em CD, disponibilizados no arquivo geral do UFCG, digitalizados pelo professor doutor Luciano Mendonça de Lima.

9 O Projeto Compartilhando Memórias - Repressão e Resistência na Paraíba preserva gravações em vídeo de sessões de depoimentos de perseguidos pela Ditadura Militar na Paraíba. É um trabalho de memória baseado em depoimentos de entrevistados que versam sobre suas experiências de perseguição e torturas durante o período ditatorial na Paraíba. O projeto possui 12 volumes, no entanto, o único considerado foi o de número 8, porque contemplava uma narrativa sobre a Ceplar.

10 “O bairro da Ilha do Bispo, com uma população de 7.000 habitantes em 1961, é situado às margens do rio Sanhauá e ligado à Capital por uma ladeira íngreme. Ali estava instalada uma fábrica de cimento, a Cia Paraibana de Cimento Portland que, ao mesmo tempo, era fonte de trabalho para a população e causa da debilitação de sua saúde devido à poeira do cimento que envolvia toda a área habitacional” (PORTO; LAJE, 1995, p. 35).

11 Considerado um governo populista, governou Campina Grande-PB entre novembro de 1963 e junho de 1964, quando buscou institucionalizar a Campanha na cidade. Foi deposto pelas forças militares quando do golpe e instalação da ditadura militar.

12 Foi prefeito de Campina Grande-PB de novembro de 1959 a novembro de 1963.

13 Lutou como militante antes do Golpe de 1964. Tem formação na área de Educação e se tornou mestre em Educação de Jovens e Adultos pela UFPB. Com a instauração do golpe militar na Paraíba, trabalhava como professora e era engajada em Projetos de Alfabetização de Jovens e Adultos. Ver mais em: Ferreira, L. e Ferreira, C. (2012).

14 Era um “Movimento político independente que surgiu no interior da juventude Universitária Católica (JUC), ligada à Igreja nos anos 1950-1960” (RIDENTI, 2010, p. 28).

15 “Surgiu, a princípio, em Recife, Pernambuco, como um programa experimental que visava, logo no início de 1962, a alfabetização de jovens a partir da distribuição de cartilhas Ler, Saber e da Cartilha ABC. Durou cinco meses e foi mantido por intermédio de verbas do convênio Sudene Usaid/estados nordestinos” (SCOCUGLIA, 2000, p. 152).