https://doi.org/10.18593/r.v48.32209

A pedagogia da alternância frente às teorias do currículo: tradicional, crítica ou pós-crítica?

The pedagogy of alternation against curriculum theories:

traditional, critical or post-critical?

La pedagogía de la alternancia frente a las teorías curriculares:

¿tradicional, crítica o proscritica?

Alberto Dias Valadão1

Universidade Federal de Rondônia; Professor Adjunto da Fundação Universidade Federal de Rondônia.

https://orcid.org/0000-0002-5969-935X

Resumo: Gestada na França em 1935, a Pedagogia da Alternância tem o tempo-espaço escolar e o tempo-espaço familiar como orgânicos, indissociáveis, objetivando promover a formação integral das pessoas do campo, valorizando as práticas sociais que as constituem. Este trabalho de cunho bibliográfico, tem como objetivo compreender como essa modalidade educativa do campo, conforme Gimonet (2007), García-Marirrodriga e Puig-Calvó (2010), Nosella (2014, 2020) e Granereau (2020), está posicionada em relação às teorias do currículo: tradicional, crítica e pós-crítica. Recorremos para a problematização a estudiosos do currículo como Silva (2003, 2010), Berticelli (2001), Paraíso (2010), Lopes e Macedo (2011) que pensam a cultura como um campo de luta em torno da significação social e o currículo como prática produtiva que produz identidades sociais. Para a análise dos contornos que assume a Pedagogia da Alternância em relação às teorias do currículo, o conceito de política de identidade como instrumento de reivindicação dos grupos culturais que têm ocupado espaços à margem da sociedade como os agricultores familiares, será importante, visto que, as proposições curriculares e o próprio conhecimento estão implicados em relações de poder.

Palavras-chave: Pedagogia da Alternância; Teorias do Currículo; Política de Identidade.

Abstract: Created in France in 1935, the Pedagogy of Alternation has the school space-time and the family space-time as organic, inseparable, aiming to promote the integral formation of rural people, valuing the social practices that constitute them. This bibliographic work aims to understand how this educational modality in the countryside, according to Gimonet (2007), García-Marirrodriga and Puig-Calvó (2010), Nosella (2014, 2020) and Granereau (2020), is positioned in relation to curriculum theories: traditional, critical and post-critical. We resort to the problematization of curriculum scholars such as Silva (2003, 2010), Berticelli (2001), Paraíso (2010), Lopes and Macedo (2011) who think of culture as a field of struggle around social significance and curriculum as productive practice that produces social identities. For the analysis of the contours that the Pedagogy of Alternation assumes in relation to the theories of the curriculum, the concept of identity politics as an instrument for claiming cultural groups that have occupied spaces on the margins of society such as family farmers, will be important, since, curricular propositions and knowledge itself are implicated in power relations.

Keywords: Pedagogy of Alternation; Curriculum Theories; Identity Policy.

Resumen: Creada en Francia en 1935, la Pedagogía de la Alternancia tiene el tiempo-espacio escolar y el espacio-tiempo familiar como orgánicos, inseparables, con el objetivo de promover la formación integral de la población rural, valorizando las prácticas sociales que la constituyen. Este trabajo bibliográfico pretende comprender cómo esta modalidad educativa en el campo, según Gimonet (2007), García-Marirrodriga y Puig-Calvó (2010), Nosella (2014, 2020) y Granereau (2020), se posiciona en relación a teorías curriculares: tradicional, crítica y poscrítica. Recurrimos a la problematización de estudiosos del currículo como Silva (2003, 2010), Berticelli (2001), Paraíso (2010), Lopes y Macedo (2011) quienes piensan la cultura como un campo de lucha en torno a la significación social y el currículo como práctica productiva que produce identidades sociales. Para el análisis de los contornos que asume la Pedagogía de la Alternancia en relación con las teorías del currículo, se utilizará el concepto de política identitaria como instrumento de reivindicación de grupos culturales que han ocupado espacios al margen de la sociedad como la agricultura familiar. ser importante, ya que, las proposiciones curriculares y el propio conocimiento están implicados en las relaciones de poder.

Palabras-clave: Pedagogía de la Alternancia; teorías curriculares; Política de identidad.

Recebido em 28 de outubro de 2022

Aceito em 22 de maio de 2023

1 INTRODUÇÃO

Historicamente, os agricultores não têm encontrado espaço no projeto pedagógico da educação rural, que, quando existe, tem as mesmas características didático-pedagógico da escola urbana. O modelo a que muitas crianças e jovens do campo tiveram e têm acesso, caracteriza-se por fundar-se numa organização do trabalho, marcado pelo cumprimento de atribuições e proposições governamentais, que reproduz no campo um modelo de educação que não respeita o agricultor e suas experiências sociais.

Mesmo, com a assunção da expressão Educação do Campo, que emergiu na I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo em 1998, em que se postula uma educação que reflita sobre o sentido do trabalho camponês e dê destaque às lutas sociais e culturais dos grupos que vivem fora do espaço urbano, os mesmos, em muitos lugares, continuam reféns de um currículo que naturaliza suas identidades, posicionando-os num processo de inferiorização, em relação aos significados produzidos pelos que ocupam posições privilegiadas nas relações de poder construídas de formas assimétricas.

Diferente da educação rural a Educação do Campo é construída com e para os diferentes sujeitos, suas práticas sociais e identidades culturais, forjando um processo de demarcação de identidades plurais, num processo de inversão da organização curricular, que até hoje tem considerado em suas proposições os sujeitos residentes no espaço urbano, detentores de bens materiais, com escolas, cujos currículos os constituem como parâmetros para o restante da sociedade.

Dessa forma, o que se tem observado é que na perspectiva curricular, construída para o campo e não com o campo, o agricultor é desqualificado socialmente, imperceptível, pois as experiências sociais que o constitui são estranhas à escola. Assim, crianças e jovens sofrem os efeitos da forma como são representados, entendendo representação “[...] como aquelas formas de inscrição através das quais o Outro é representado” (SILVA, 2003, p. 127). Por isso, trata-se de “[...] um tipo de educação domesticadora e atrelada a modelos econômicos perversos” (CALDART, 2004, p. 151).

O que se constata, é que o poder público tem ignorado em suas políticas públicas educacionais para o campo, os preceitos legais como as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, Resolução nº 1 (CNE/CEB, 2002), que prevê uma Educação do Campo com padrões mínimos de qualidade, cuja identidade é definida pela vinculação às questões inerentes à realidade dos sujeitos do campo; e, o previsto na Resolução 02 (CNE/CEB, 2008), que ratifica o mencionado nas Diretrizes Operacionais de que, a organização e o funcionamento das escolas do campo respeitarão as diferenças entre as populações atendidas quanto à sua atividade econômica, seu estilo de vida, sua cultura e suas tradições.

Contudo, esse processo de produção das identidades como naturalizadas, essencializadas, do campo, que é sistematicamente posto em xeque pela diferença, procurando manter o filho do agricultor no anonimato, silenciando-o, foi ressignificado, primeiramente na França, cuja situação vivida pelos agricultores não diferia muito dos problemas enfrentados pelos agricultores pobres brasileiros. A necessidade de uma nova escola para o campo na França era tão premente que em 1914 (21 anos antes de criação da primeira Maison Familiale Rurale), o Pe Granereau (2020) já afirmava: “Problema camponês; problema escolar para o qual é necessário, em primeiro lugar, uma solução escolar” (GRANEREAU, 2020, p. 47, grifos do autor).

Essa necessidade de uma escola adaptada ao meio de vida do campo, levou o Pe Abbé Granereau, com o apoio de um grupo de agricultores franceses, a criar em 1935 uma proposta educativa protagonizada pelos sujeitos do campo, a partir da ideia de uma escola que sintonizasse as experiências sociais constituintes das famílias com o processo educativo formal, articulando-os de forma orgânica. Era o nascimento da “Fórmula de Lauzun”, em que se estabelecia pela primeira vez em regime de alternância, a articulação de dois tempos distintos, mas indissociáveis: o tempo-escolar e o tempo familiar. “A fórmula básica da Pedagogia da Alternância é: um tempo na escola, um tempo na família ou em atividades didaticamente apropriadas, fora da escola e da família. Esses diferentes tempos formam um único e orgânico currículo” (NOSELLA, 2014, p. 101).

Este trabalho objetiva, através de um estudo bibliográfico compreender como a Pedagogia da Alternância, que tem como finalidades a formação integral das pessoas e o desenvolvimento local, tendo como meios para isso ocorra, a Alternância como um método pedagógico e a gestão através de uma associação dos envolvidos com o projeto (GIMONET, 2007), posiciona-se frente às teorias do currículo. Questiona-se: os tipos de alternância pedagógica, o Plano de Formação, as atividades e os instrumentos da alternância, o currículo, as atribuições dos monitores (professores), a formação em alternância e a gestão do movimento vinculam-se aos pressupostos teóricos das teorias tradicionais, críticas ou pós-críticas?

Entendemos que a Pedagogia da Alternância pode contribuir para colocar em xeque o modelo de organização curricular hegemônico, cuja referência é ver o outro, o sujeito do campo, como alguém a incluir, como identidades “incomuns” a serem sujeitadas. Todavia, não estaria sua proposta curricular vinculada à ideia de educação entendida como atividade exclusivamente técnica e organizacional (Teoria Tradicional)? Ou estaria, presa às ideias do currículo como uma construção social, em que há uma relação entre saber, poder e identidade (Teorias Críticas)? Ou estaria ainda, a Pedagogia da Alternância vinculada à ideia do currículo como prática cultural, prática de significação, prática produtiva (Teorias Pós-críticas) (SILVA, 2003), fomentando a partir dessa última, uma política de identidade?

A partir da ideia de que “As teorias do currículo estão ativamente envolvidas na atividade de garantir o consenso, de obter a hegemonia’ (SILVA, 2003, p. 16), recorrendo para isso a um tipo de conhecimento, um tipo de currículo, para compreendermos que teoria do currículo a proposta educativa da Pedagogia da Alternância tem adotado de forma mais acentuada, pontua-se num primeiro momento, a partir de autores como Gimonet (2007), García Marirrodriga e Puig-Calvó (2010), Nosella (2014) e Granereau (2020), as principais orientações teórica em que a mesma está fundada. Num segundo momento, pontua-se sobre que ideias e conceitos as teorias do currículo: tradicional, crítica e pós-crítica estão construídas. Por último, faz uma análise, de como a Pedagogia da Alternância através dos pressupostos que a orienta, se posiciona frente às teorias do currículo, partindo da premissa de que há premência na construção de uma política de identidade no campo.

1 PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA: UMA EDUCAÇÃO COM E PARA OS DIFERENTES SUJEITOS DO CAMPO?

Na Obra o Livro da Lauzun, onde começou a Pedagogia da Alternância, lançado em 1969 pela Editora Gerbert à Áurillac em Paris, e publicado no Brasil pela Editora UFC, Fortaleza, 2020, o fundador da Pedagogia da Alternância o Pe Abbé Granereau, afirma que escreveu a história da Pedagogia da Alternância depois de tê-la vivido. Para o movimento da Pedagogia da Alternância, este livro, é metaforicamente segundo Nosella (2020), ao apresentar a Obra ao leitor, o “Evangelho”, o documento testemunhal do espírito e dos acontecimentos dos primeiros anos desse novo sistema escolar.

Quando, na noite de 21 de novembro de 1935, após ter levado meus quatro primeiros alunos a observar tudo aquilo que estava faltando no mundo camponês, dizia-lhes: “Se vocês quiserem, começamos esta noite ‘alguma coisa’ que vai mudar tudo isto”, mas, não pensava, deveras, que iríamos tão depressa. (GRANEREAU, 2020, p. 249).

De que “fórmulas escolares existentes” partiu Granereau para criar uma escola que viesse ao encontro dos agricultores franceses? Em primeiro lugar, o pároco francês entendeu que o problema camponês era um problema escolar, para o qual era necessário, em primeiro lugar, uma solução escolar. Isso podia ser constatado no movimento sindical da região de Nérac, criado por agricultores, segundo Granereau (2020) melhores formados, mostrando a necessidade de uma escola realmente adaptada ao modo de vida do mundo rural.

A proposta pedagógica em que se estrutura essa nova ideia de educação camponesa não estava nas tendências pedagógicas até então conhecidas. Precisava ser escrita. Contudo, “Os fundadores das primeiras MFR não tinham nenhum passado institucional e pedagógico do tipo de escola que iam criar, já que este não existia” (GIMONET, 2007, p. 21). Por isso, mesmo preocupado em fugir das trilhas batidas das leis escolares, a fim de criar algo realmente novo, Granereau recorreu a algumas fórmulas para criação da Pedagogia da Alternância:

Das escolas primárias, peguei as bases do ensino geral, necessárias apesar do C.E.P.2

Dos colégios e do ensino médio, peguei o internato, muito útil para a formação integral dos alunos. Mas não queria um internato muito longo, para evitar inconvenientes para os adolescentes. Preferia-o períodos mais curtos, renovados.

Disso resultou o princípio da alternância, fundamento indispensável da escola do mundo camponês.

Das escolas de agricultura, peguei a alternância do trabalho intelectual com o trabalho manual, pois a instrução, mesmo que de ordem geral, não se faz, para os camponeses, somente nos livros, faz-se muito mais em contato direto com o grande livro da natureza. [...].

Dos cursos por correspondência, peguei os “estudos em casa”, para acostumar os jovens camponeses a trabalhar intelectualmente em casa.

Das escolas cristãs, peguei a formação religiosa que, para os católicos, não pode ser substituída por nada. Mas eu não quis que ficasse nas mãos dos professores que ensinam e que devem dedicar-se integralmente a seu ensino, nem nas mãos de um mero capelão que só precisa ocupar-se com questões puramente religiosas, pois os problemas da adolescência transbordam, em diversos pontos, e até amplamente, das questões puramente religiosas.

Eu quis essa formação nas mãos de um responsável novo que eu ia criar: o educador.

Na minha escola camponesa, haveria, portanto: os mestres ensinantes, para a instrução; os mestres educadores, para a educação.

Eles deviam, é claro, trabalhar em estreita colaboração, para chegar juntos no mesmo objetivo: a preparação de seus alunos para a vida. (GRANEREAU, 2020, p. 65-66, grifos do autor).

Essa pedagogia dada à sua aceitabilidade, tendo como finalidade escolarizar os filhos de agricultores sem desvinculá-los da propriedade familiar, estruturando-se pedagogicamente a partir da adoção de dois tempos formativos, o tempo-escola e o tempo familiar, expandiu-se rapidamente pelo mundo (Europa, África, América do Sul). “A situação atual, com mais de 1.300 CEFFA3, em mais de 40 países com contextos culturais socioeconômicos e geográficos completamente distintos [...]” (GARCÍA-MARIRRODRIGA; PUIG-CALVÓ, 2010, p. 54), mostra que a Formação em Alternância tem cumprido o propósito inicial de ser uma pedagogia que carrega o germe e a certeza de uma renovação no campo (GRANEREAU, 2020).

No Brasil, a Pedagogia da Alternância não tem uma história “oficial”, um consenso concebido como homogêneo, uma história realista. Há múltiplos pertencimentos, ordenamentos, portanto, formas plurais de participação e descrição de sujeitos nos momentos decisivos de implementação dessa proposta no país. Há, em vista disso, diferentes formas de historicizá-la. Mas, há alguns momentos que podem ser caracterizados como importantes e de conhecimento da grande maioria dos envolvidos, no entendimento de como esse movimento, nascido dos coletivos populares ligados à Igreja Católica, foi se estruturando como instituição de ensino reconhecido pela população, como uma prática pedagógica do campo em que os alunos, em regime de alternância, estudam e trabalham.

Chegando ao Brasil, no Espírito Santo no final dos anos 1960, com a denominação de Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), através do trabalho do Pe Humberto Pietro Grande, sacerdote italiano, caracterizou-se por ser uma “[...] pedagogia apropriada ao meio e uma formação integral capaz de contribuir ao desenvolvimento local e de possibilitar a participação ativa de todos ao seu redor” (GARCÍA-MARIRRODRIGA; PUIG-CALVÓ, 2010, p. 27). Nos anos seguintes a Pedagogia da Alternância espalhou-se para todas as regiões do Brasil. Dados do IX Congresso Mundial da Associação Internationale des Maisons Familiales Rurales (AIMFR) realizado em setembro de 2010 em Lima, Peru, sob o título Educação em Alternância para o Desenvolvimento Rural, mostrou que em 2010 havia no Brasil 263 CEFFAs, num total de 74.000 famílias envolvidas, 23.254 pessoas em formação e 51.550 egressos. Essa expansão do movimento requereu uma forma de defesa dos princípios da Pedagogia da Alternância, o que resultou na criação da União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil (UNEFAB), em 1982.

A expansão rápida da Pedagogia da Alternância no país pode ser uma tentativa de romper com esse currículo, sob o qual até hoje os agricultores e seus filhos foram educados. Um currículo que os universaliza, negando suas diferenças, suas lutas por um espaço de vida e de trabalho, e que os constitui sob o prisma da mesmidade. Mas, o que diferencia a proposição curricular da Pedagogia da Alternância de outras experiências como a educação rural à qual os brasileiros em muitos lugares ainda acessam?

Para compreender a que teoria do currículo a Pedagogia da Alternância está vinculada, partindo da ideia de que, “Sem instrumentos apropriados permitindo sua implementação, a alternância permanece sendo uma bela ideia pedagógica, porém sem realidade efetiva” (GIMONET, 2007, p. 28), descreveremos alguns elementos didático-pedagógicos característicos dessa proposta educativa, que caracteriza-se por ser uma pedagogia da relação, do encontro, da formação em alternância em toda a sua complexidade, como afirma Gimonet (2007).

Organizada a partir dos tempos/espaços formativos que ocorrem na escola e no contexto de vida e de trabalho do aluno, a Pedagogia da Alternância expressa como diz Nosella (2014) um compromisso educativo político bem preciso: “[...] rejeitar a discriminação do homem e da cultura do campo e envolver no processo educativo os principais sujeitos educadores, isto é, a família, a escola e o território” (NOSELLA, 2014, p.101). Por isso, não pode ser qualquer alternância, ou seja, chamar de Formação em Alternância o fato de o aluno passar momentos na escola articulados com outros na família, mas sem dispositivos pedagógicos que dê conta da formação integral da pessoa e da inserção profissional (GIMONET, 2007).

Puig-Calvó e Gimonet (2013), a partir das pesquisas de Bourgeon (1979), afirmam que há no trabalho dos CEFFAs um itinerário progressivo e em evolução de uma aplicação simples até modelos cada vez mais complexos, evidenciando, assim, três tipos de Alternância: a primeira é a Alternância justapositiva, que consiste em intercalar períodos diferentes entre as atividades e os diferentes lugares, bem como entre o trabalho e o estudo, sem nenhuma relação aparente entre eles; a segunda, chamada de Alternância associativa, consiste num modelo em que se associa a formação profissional com a formação geral, numa tentativa de articular em uma única formação as atividades teóricas e práticas; a terceira, chamada de Alternância real, tida como a verdadeira alternância, trata-se de uma identificação efetiva entre os meios de vida socioprofissionais, sem uma sucessão de momentos teóricos e/ou práticos (PUIG-CALVÓ; GIMONET, 2013).

Essa alternância real, que a grande maioria dos CEFFAs tem buscado, recorrendo para isso a instrumentos didático-pedagógicos que permitam ao jovem do campo viver sucessivamente período no mundo dos adultos, do trabalho e períodos na escola (GÁRCIA-MARIRRODRIGA; PUIG-CALVÓ, 2010), requer a construção de um Plano de Formação, visto que o mesmo, representa a orquestração do conjunto dos componentes do dispositivo pedagógico, garantindo a implementação organizada da alternância, agenciando e estruturando o percurso formativo (GIMONET, 2007).

O Plano de Formação, ao integrar o currículo oficial com a complexa realidade do jovem em formação (GÁRCIA-MARIRRODRIGA; PUIG-CALVÓ, 2007) tem no Plano de Estudo a principal ferramenta da Pedagogia da Alternância, tendo em vista encadear de forma orgânica o tempo espaço-escolar e o tempo espaço-familiar.

O Plano de Estudo (PE) é o instrumento pedagógico fundamental da Escola-Família; é a pedagogicização da alternância; é a forma concreta de efetivar as potencialidades educativas da alternância; é o veículo que leva para a vida as reflexões, as questões, as conclusões [...]. O Plano de Estudo é um guia (questionário) elaborado pelos alunos juntamente com a equipe dos professores, ao findar uma semana de aula, a fim de investigar, com seus pais, um aspecto da realidade cotidiana da família, seu meio e suas vivências”. (NOSELLA, 2014, p. 86, citando o Documento do MEPES Bases Estruturais e Metodológicas das Escolas Famílias Agrícolas)

O Plano de Estudo, já era no momento da criação da Pedagogia da Alternância o instrumento escolhido por Granereau para fazer a articulação escola-família, como afirma Nosella (2020, p. 17): “[...] a alternância da escola de Lauzun, por meio do Plano de Estudo, interligava criticamente conteúdos estudados na escola à realidade e, inversamente, permitia analisar, à luz de leituras feitas nas aulas, as observações e atividades”.

A partir do Plano de Estudo, outros instrumentos aparecem como necessários para que venha a ocorrer a imanência entre o tempo espaço escolar e o tempo-espaço familiar, caracterizando-se assim a chamada Alternância Real. Autores como Gimonet (2007) e Nosella (2014) descrevem esses instrumentos como sendo: a Colocação em Comum é uma estratégia de socialização da pesquisa do Plano de Estudo; o Caderno da Realidade é tido como um “diário” da vida do aluno em seu processo educativo no CEFFA; as Visitas de Estudo consistem em atividades externas organizadas a partir de cada tema do Plano de Estudo; as Intervenções Externas são usadas para complementar o Plano de Estudo e são feitas por profissionais e entidades, em palestras, cursos e seminários; as Atividades de Retorno são práticas experimentais que o aluno desenvolve na Escola ou na família; as Visitas às Famílias, feitas pelos monitores, consistem em um instrumento usado para integrar os espaços e tempos diferentes na Escola e na família; o Caderno da Alternância, também chamado de Caderno de Acompanhamento, é um meio de manter a comunicação entre a Escola e a família; o Projeto Profissional do Jovem (PPJ), além de requisito curricular para a conclusão do curso, é um meio de inserção profissional e oportuniza que a família do aluno trabalhe com uma nova atividade agropecuária; a Avaliação Qualitativa é um processo contínuo que busca acompanhar como o aluno vai sendo formado pela Escola; o Serão consiste numa atividade noturna de encerramento do dia, com o propósito de intensificar a formação integral com momentos de palestras, dinâmicas de grupo, e atividades complementares das disciplinas do curso; e, o Serviço de Tutoria proporciona uma prática pedagógica a partir do papel do monitor tutor, interligando um trabalho conjunto e cooperativo dentro da instituição.

No próximo tópico, pontuaremos as principais características das teorias do Currículo: tradicional, crítica e pós-crítica, o que permitirá uma discussão da proposição curricular “defendida” pela Pedagogia da Alternância, a partir da ideia de que o currículo, tal como o conhecimento devem ser vistos hoje como campos culturais, sujeitos à disputa e interpretação, nos quais diferentes grupos sociais procuram estabelecer sua hegemonia (SILVA, 2010).

2 TEORIAS DO CURRÍCULO: TRADICIONAL, CRÍTICA E PÓS-CRÍTICA

Para educadores pouco atentos, pode parecer que há somente um tipo currículo no processo educativo. Se pensarmos com Silva (2003), que o currículo é sempre resultado de uma seleção de conhecimentos e saberes, a questão que serve de suporte para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. “De uma forma mais sintética a questão central é: o que?” (SILVA, 2003, p. 14). Para dar uma resposta a essa questão, segundo o autor, “[...] as diferentes teorias podem recorrer a discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem, ou sobre a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade” (SILVA, 2003, p. 14). Portanto, mesmo ignorando as vertentes teóricas do currículo, elas fazem parte do trabalho docente, pois estão envolvidas na produção de identidades sociais.

Mas, que diferentes teorias do currículo são essas, de que nos fala Tomaz Tadeu da Silva? A partir da ideia de que a diferença entre elas, se dá sobre o que o estudante deve saber, sobre qual conhecimento ou saber é considerado essencial para compor o currículo, e que uma teoria se define pelos conceitos que utiliza para conceber a “realidade”, torna-se pertinente fazer uma breve discussão das três principais teorias do currículo, que Silva (2003, 2010) tomou como objeto de estudo, e a quem recorremos para nossa exposição.

2.1 AS TEORIAS TRADICIONAIS

As Teorias Tradicionais do currículo, nascem, segundo Silva (2003) a partir dos “estudos sobre o currículo”. Como as teorias do currículo, estão segundo o autor, envolvidas na atividade de garantir o consenso, de obter a hegemonia, a proposta de Bobbitt, num livro escrito em 1918 nos Estados Unidos4, vem ao encontro dos interesses políticos, econômicos e culturais da classe que ocupa posição privilegiada nas relações de poder no início do século XX, visto que a proposta de Bobbitt está voltada para o desenvolvimento de habilidades para o trabalho, caracterizando-se o sistema educacional por ser tão eficiente, quanto outra empresa econômica. Nessa perspectiva, o currículo torna-se basicamente uma questão técnica, em que “O sistema educacional deveria por começar a estabelecer de forma precisa quais são seus objetivos. Esses objetivos, por sua vez, deveriam se basear num exame daquelas habilidades necessárias para exercer com eficiência as ocupações profissionais da vida adulta” (SILVA, 2003, p. 24).

Esse modelo curricular, em que a tarefa do especialista, como uma atividade meramente burocrática, consistia em levantar as habilidades que deveriam ser desenvolvidas por uma educação, nos mesmos moldes dos princípios da administração científica de Taylor, vai se consolidar de forma plena com Ralph Tyler, no livro Princípios básicos do currículo e do ensino, publicado em 1949, dominando o campo curricular por mais de 40 anos nos Estados Unidos e em diversos países, inclusive no Brasil.

Segundo Silva (2003), assim como na proposta de Bobbitt, em Tyler, o currículo é uma questão técnica, cujo foco, centra-se em questões de organização e desenvolvimento, em que o currículo deve procurar responder a quatro questões básicas:

1. que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir?; 2. que experiências educacionais podem ser oferecidas que tenham possibilidade de alcançar esses propósitos?; 3. como organizar eficientemente essas experiências educacionais?; 4. Como podemos ter certeza de que esses objetivos estão sendo alcançados? (SILVA, 2003, p. 25).

As teorias tradicionais do currículo ao pretenderem ser apenas “teorias” neutras, científicas, desinteressadas, que aceitam mais facilmente os conhecimentos e saberes dominantes, tidos como inquestionáveis, concentram-se em questões de organização para o ensino, recorrendo para isso a conceitos didáticos-pedagógico, pois a ênfase está em “como” ensinar, já que toma a questão “o que” como dada (SILVA, 2003). Os conceitos que as teorias tradicionais enfatizam, segundo Silva (2003) são: ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência, objetivos. Esses conceitos mostram que o currículo não passa de uma atividade burocrática, como já previra Bobbit e Tyler. “Na visão tradicional, o currículo é pensado como um conjunto de fatos, de conhecimentos e de informações, selecionados do estoque cultural mais amplo da sociedade, para serem transmitidos às crianças e aos jovens nas escolas” (SILVA, 2010, p. 13).

2.2 AS TEORIAS CRÍTICAS

A partir dos anos 1970 nos Estados Unidos, esse modelo tradicional que presumia haver uma neutralidade científica e guiava-se pelas asserções de racionalidade, produtividade, eficiência, com ênfase no estabelecimento de padrões (Bobbitt) ou na formulação de objetivos em termos de comportamentos explícitos (Tyler), passa a ser contestado pelas teorias críticas do currículo que efetuam uma completa inversão nos princípios das teorias tradicionais (SILVA, 2003).

Se os modelos tradicionais não estavam preocupados em fazer qualquer tipo de questionamento mais radical em relação aos arranjos curriculares existentes, às formas dominantes de conhecimento ou à forma social dominante (SILVA, 2003), pois concentravam-se nas formas de organização e elaboração do currículo, restringindo-se à atividade técnica de como fazer o currículo, as teorias críticas, segundo Silva (2003) começam por colocar os arranjos sociais e educacionais tradicionais em xeque.

As teorias críticas desconfiam do status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e injustiças sociais. As teorias tradicionais eram teorias de aceitação, ajuste, adaptação. As teorias críticas são teorias de desconfiança, questionamento e transformação radical. Para as teorias críticas o importante não é desenvolver técnicas de como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo faz. (SILVA, 2003, p. 30).

Apesar das teorias tradicionais do currículo, começarem a ser contestadas nos Estados Unidos a partir da década de 1970, com o movimento de reconceptualização liderado por Willian Pinar, foram teóricos europeus, principalmente franceses, como Pierre Bourdieu e Jean-Claude-Passeron com a Teoria do Sistema Ensino como Violência Simbólica; Louis Althusser com a Teoria da Escola como Aparelho Ideológico do Estado; Roger Establet e Christian Baudelot com a Teoria da Escola Dualista, que adotam em comum um questionamento radical dos arranjos educacionais prevalentes. Essas teorizações críticas veem o conhecimento como parte inerente do poder e pensam o currículo como uma construção social, que atua “[...] ideologicamente para manter a crença de que a forma capitalista de organização é boa e desejável” (SILVA, 2003, p. 148).

As teorias críticas do currículo, portanto, deslocam a ênfase dos conceitos simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem para os conceitos de ideologia e poder (SILVA, 2003). Nessa nova perspectiva de pensar a educação, cuja preocupação está na conexão entre saber, poder e identidade, conceitos como ideologia, reprodução cultural e social, classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto e resistência (SILVA, 2003), mostram que o conhecimento consubstanciado no currículo é construção, é invenção cultural e social (SILVA, 2010), implicado em relações de poder.

O conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações sociais de poder. O currículo é capitalista. O currículo reproduz – culturalmente – as estruturas sociais. O currículo tem um papel decisivo na reprodução da estrutura de classes da sociedade capitalista. O currículo é um aparelho ideológico do Estado capitalista. O currículo transmite a ideologia dominante. O currículo é, em suma, um território político. (SILVA, 2003, p. 147-148).

Ao problematizar a educação fundamentando-se numa análise materialista, baseando-se numa economia política do poder (SILVA, 2003), as teorias críticas recorrem às potentes ferramentas de análise da sociedade de classes, que como diz o autor, nos foram legadas pela economia política marxista, acentuando o caráter político das práticas curriculares. Entretanto, as teorias pós-críticas mesmo combinando com as teorias críticas para nos ajudar a compreender os processos pelos quais, através das relações de poder e controle, nos tornamos aquilo que somos (SILVA, 2003), rejeitam alguns pressupostos das teorias críticas, olhando “[...] com desconfiança para conceitos como alienação, emancipação, libertação, autonomia, que supõem, todos, uma essência subjetiva que foi alterada e precisa ser restaurada” (SILVA, 2003, p. 149).

2.3 AS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS

Ao olhar para a história das teorias do currículo evidencia-se, mesmo correndo o risco de reducionismo, que essa vertente teórica tem como fontes, movimentos teóricos que emergem nos anos 1970 e 1980, como: o Multiculturalismo; o Pós-modernismo; o Pós-estruturalismo; os Estudos Culturais; as Teorias Feministas, a Teoria Queer; os trabalhos de Michel Foucault e de Jacques Derrida. Diferente das teorias tradicionais que se preocupam com a questão da organização, concentrando em questões técnicas, e das teorias críticas, cuja ênfase está na discussão sobre ideologia e poder, as teorias pós-críticas ampliaram nossa compreensão sobre os processos de dominação, tornando problemáticas certas premissas e análises das teorias críticas que as precederam (SILVA, 2003).

Ao preocupar-se com a conexão entre cultura, significação, identidade, saber, poder, as teorias pós-críticas recorrem a conceitos como identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo (SILVA, 2003), em que ganha centralidade a cultura como processo ou prática de significação, como “[...] campo de luta em torno da construção e da imposição de significados sobre o mundo social” (SILVA, 2010, p. 14). Dessa forma, algumas análises da tradição crítica neomarxista são retomadas e reformuladas, enfatizando o currículo como prática cultural e como prática de significação (SILVA, 2010). Isso requereu também uma mudança no papel da linguagem, agora, como o início e o fim do processo de construção social, e do discurso como produtivo, constituído no contexto histórico e cultural (SILVA, 2010).

Segundo Silva (2003), as teorias pós-críticas, assim como as teorias críticas continuam enfatizando que o currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder nas quais ele está envolto. “Nas teorias pós-críticas, no entanto, o poder torna-se descentrado. O poder não tem mais um único centro, como o Estado, por exemplo. O poder está espalhado por toda a rede social (SILVA, 2003, p. 148). Por isso, a desconfiança de fundamentações teóricas que postulam uma situação livre de poder, visto que há uma relação amalgamada entre saber e poder.

Para as teorias pós-críticas, o conhecimento não é exterior ao poder, o conhecimento não se opõe ao poder. O conhecimento não é aquilo que põe em xeque o poder: o conhecimento é parte inerente do poder. Em contraste com as teorias críticas, as teorias pós-críticas não limitam a análise de poder ao campo das relações econômicas do capitalismo. Com as teorias pós-críticas, o mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade. (SILVA, 2003, p. 149).

Uma diferença que consideramos acentuada entre as teorias críticas e pós-críticas é a ideia do currículo como instrumento de libertação e emancipação, formando consciências críticas no sujeito sobre os problemas do contexto social em que está inserido. Esse pressuposto das teorias crítica, funda-se na ideia de que

[...] existe algo como um núcleo essencial de subjetividade que pode ser pedagogicamente manipulado para fazer surgir o seu avatar crítico na figura do sujeito que vê a si próprio e à sociedade de forma inquestionavelmente transparente, adquirindo, no processo, a capacidade de contribuir para transformá-la. (SILVA, 2000, p. 13).

As teorias pós-críticas segundo Silva (2003), rejeitam a própria noção de consciência, com suas conotações racionalistas e cartesianas. Por isso, não há sujeitos conscientes, sem consciência ou em processo de formação da consciência crítica, mas sujeitos cujas identidades vão sendo construídas em meio a relações de poder, que dirigem o processo de significação (SILVA, 2010). Conceber o sujeito como alguém que deve ser conscientizado, visto ser guiado apenas por sua racionalidade, é tratar a identidade como questão de essência, e não como questão de política. É não entender que cultura e currículo são relações sociais, relações de poder, zonas de produtividades (SILVA, 2010), que produz identidades individuais e sociais, por isso, inclusões e exclusões estão sempre presentes no currículo (BERTICELLI, 2001).

No próximo tópico, empreenderemos uma discussão a partir dos teóricos da Pedagogia da Alternância, sobre como essa modalidade educativa do campo posiciona-se em relação às teorias do currículo. Recorremos para isso, às ideias de autores, principalmente Silva (2003, 2010), que postulam haver ao longo da história da educação três posicionamentos que se aproximam e se afastam nas formas de conceber o conhecimento, a cultura e o currículo: as teorias do currículo tradicionais, críticas e pós-críticas.

3 A PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA EM RELAÇÃO ÀS TEORIAS DO CURRÍCULO: POR UMA POLÍTICA DE IDENTIDADE?

Fizemos no início deste trabalho um tópico já sinalizando que a proposta pedagógica em que se estrutura a Pedagogia da Alternância não estava nas tendências pedagógicas até então conhecidas, por isso foi construída, apropriando Granereau, de aspectos considerados promissores de outras experiências presentes na zona rural francesa. A grande diferença em relação às já existentes, é fundar o estudo dos filhos dos agricultores em dois tempos distintos, mas que se entretecem: o tempo-escola e o tempo comunidade. Essa “nova” proposta educativa, desde o início em 1935 na França defende, como já dissemos, que suas finalidades são a formação integral das pessoas e o desenvolvimento local e, como meios para que isso aconteça, o sistema pedagógico da formação em alternância e a associação local (GIMONET, 2007).

A partir dos pressupostos teóricos de Gimonet (2007), García-Marirrodriga e Puig-Calvó (2010), Nosella (2014) e Granereau (2020), expoentes da Pedagogia da Alternância pelo mundo, faremos apontamentos procurando guardar a sequência estabelecida no tópico anterior, iniciando pelas teorias tradicionais do currículo, depois as teorias críticas, e por fim, as teorias pós-críticas, buscando descrever alguns princípios teóricos constituintes dessa proposta pedagógica, intentando compreender os seus vínculos com as teorias curriculares, pois segundo Silva (2000), todo o currículo tem uma história, vinculada a formas contingentes de organização da sociedade e da educação. Por isso, segundo o autor o conhecimento corporificado no currículo não pode deixar de ser problematizado.

De imediato, o que se evidencia é que, se recorrermos aos conceitos das teorias do currículo - já mencionados acima -, que estruturam a forma de ver a “realidade” (SILVA, 2003), intentando encontrá-los na Obra de Granereu (2020), que pode ser apontada como a “Certidão de Nascimento” da Pedagogia da Alternância, sobressaem os conceitos vinculados às teorias tradicionais do currículo em todo o livro, reiteradamente, mais de 100 vezes. Já em relação aos conceitos das teorias críticas e das teorias pós-críticas do currículo, com exceção da palavra cultura – relevante para as teorias pós-criticas -, com o sentido de tradição, de pertencimento a determinados padrões, e cultura como plantio de frutíferas como ameixa e uva, não há alusão aos conceitos atinentes às mesmas.

Muitas são os momentos que sinalizam a vinculação da Pedagogia da Alternância às teorias tradicionais do currículo. Granereau (2020), ao descrever o processo criação da formação em Alternância, como uma escola adaptada ao meio de vida do campo, afirma que começou a trabalhar, tomando das fórmulas escolares existentes o que lhe parecia ser o melhor. “Das escolas primárias, peguei as bases do ensino geral [...]” (GRANEREAU, 2020, p. 65). García-Marirrodriga e Puig-Calvó (2010), expoentes da Pedagogia da Alternância na Espanha, pontuam que o sistema pedagógico dos CEFFA tem sido afogado por elementos típicos do ensino geral, como cargas horárias excessivas e inadequadas. Nosella (2014), ao falar das várias hipóteses que tentam explicar a perda da especificidade metodológica por parte da EFA, diz: “Muita preocupação com o currículo (oficial) e carga horária, não sabendo a que dar mais importância” (NOSELLA, 2014, p. 123).

Essa preocupação dos teóricos da Pedagogia da Alternância com os aspectos técnicos do ensino, vem ao encontro das ideias de Silva (2003), para quem os modelos tradicionais não se preocupam em fazer qualquer tipo de questionamento mais radical aos arranjos educacionais existentes, ou seja, adequam-se à forma social dominante, restringindo-se à atividade técnica de como fazer o currículo.

O que se observa é que a preocupação com o conteúdo, com os conhecimentos aos quais os jovens deveriam ter acesso, com o tempo escolar reservado aos estudos, vem desde a criação da Pedagogia da Alternância. Em suas aulas, Granereau (2020) indicava as lições a serem estudadas e os deveres a serem feitos, afirmando que a base do seu método era leitura comentada do manual. Ao falar sobre o papel do professor Laurent, contratado no início da formação em Alternância (1937), Granerau (2020), diz: “Tarefa pesada, às vezes, com jornadas de aulas das 8h30 da manhã até as 6 horas da tarde, prolongadas, às vezes, até 7 horas quando as múltiplas funções do diretor o obrigavam a se ausentar”.

Paraíso (2010), nos ajuda a pensar as ideias em torno da Pedagogia da Alternância descritas acima, quando afirma que o currículo, ao mesmo tempo que é um território de possibilidades, lugar de potências e campo de experiências, “[...] é também espaço de silêncios de determinadas culturas, de relações de poder de diferentes tipos, de diversas tentativas de capturas, de desigualdades, de aborrecimentos e de entristecimentos” (PARAÍSO, 2010, p. 12). Por isso, entendemos que a Pedagogia da Alternância foi sendo construída para o sujeito do campo, a partir das “fórmulas escolares existentes”, e não pensada desde a sua realidade, com a sua efetiva participação, fundada nas experiências sociais que o constitui. Ou seja, a Pedagogia da Alternância, assim como outras modalidades de educação para o campo não foi criada pelos agricultores, mas por alguém que os convence de que é possível uma nova escola, como ocorreu na França nos anos 1930, quando Granereau convence Jean Peyrat a confiar-lhe o filho para a primeira experiência de sua escola adaptada ao meio de vida do mundo camponês: “Foi nele que pensei ao tomar minha resolução. Há muito tempo, eu pensava: ‘se eu pudesse cuidar de sua educação, conseguiria talvez lhe dar um pouco de força de vontade?’” (GRANEREAU, 2020, p. 63).

Nessa perspectiva, questiona-se: se o currículo está intimamente ligado às questões culturais, desde o momento em que se faz a pergunta currículo para quem? (BERTICELLI, 2001), entende-se que a Pedagogia da Alternância em muitos aspectos, funda-se na ideia de que o papel da escola é transmitir às novas gerações do campo, como verdades indiscutíveis os conhecimentos e valores socioculturais acumulados ao longo da história, cumprindo assim, uma tarefa de homogeneização social e cultural (SILVA, 2000).

Outra questão que aproxima a formação em Alternância das teorias tradicionais, pode ser vista em Granereau (2020), quando afirma que Lauzun logo teve uma “semana de fortes” e uma “semana de fracos”, e que isso, se devia a falta de princípios elementares que não foram ensinados na escola primária. Essas ideias vêm ao encontro do discurso curricular de Bobbitt, teórico que está na origem das teorias tradicionais, de que “[...] o currículo é supostamente isso: a especificação precisa de objetivos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que possam ser precisamente mensurados” (SILVA, 2003, p. 12).

Contata-se que na Pedagogia da Alternância, há uma tendência em valorizar o conhecimento organizado sob o olhar dos que “entendem” das políticas curriculares, capazes de definir os papeis de professores, de alunos e das famílias, num processo de inclusão de certos saberes e sujeitos, excluindo outros. Isso pode ser constatado, quando em 10 de maio de 1936, os primeiros alunos de Granereau submeteram-se a um exame público. Para assistir as provas que os alunos fariam, Uns trinta chefes de famílias camponesas, uns vinte jovens, mães, crianças, responderam ao chamado” (GRANEREAU, 2020, p. 91). Como uma típica avaliação de cunho tradicional, classificatória, seletiva, excludente, o cenário foi armado, conforme descreve Granereau (2020, p. 91): “Um estrado havia sido montado no pátio da casa paroquial. Na hora marcada, examinador e examinados instalaram-se nele”. Infere-se que esse processo da forma que está organizado, promove uma relação passiva entre quem “conhece” e aquilo que é conhecido, (SILVA, 2010), visto que, assim como em muitas experiências educativas, na formação em Alternância parece haver um consenso em torno do conhecimento que deve ser selecionado, fazendo parte do acervo a ser adquirido pelos jovens camponeses. É como se a prática humana de significação ficasse reduzida ao registro e a transmissão de significados fixos, imóveis (SILVA, 2010), em que o processo de criação tivesse sido obnubilado.

Outra questão que evidencia a proximidade da formação em Alternância com as teorias tradicionais do currículo, como teorias de ajuste e adaptação (SILVA, 2003), é em relação ao trabalho do professor, chamado na Pedagogia da Alternância de monitor, por monitorar todas as ações administrativas e didático-pedagógicas no tempo-escola e organizar e participar do tempo-comunidade. Nosella (2014), ao anexar na sua obra Origens da Pedagogia da Alternância no Brasil, o Regimento Escolar das EFAs do Espírito Santo, na Secção VI, Artigo 26, que trata dos monitores e suas competências, mostra que:

A atividades do monitor é feita de acordo com a escolha levada e feita dentro da equipe, sendo responsável pelas incumbências determinadas em equipe. Parágrafo 1º - O monitor deve obedecer a um programa escolar já estabelecido para as escolas. Parágrafo 2º - O monitor terá a seu cuidado as matérias que lhe forem atribuídos pela equipe. (NOSELLA, 2014, p. 189).

Observa-se, que a necessidade de subordinação pelos monitores a um programa prefixado para as escolas é fruto de um currículo que prima pela questão da organização, pelo estabelecimento de padrões, em que “O currículo é simplesmente uma mecânica” (SILVA, 2003, p. 24). Isso pode ser constatado ainda, quando Gimonet (2007) fala das questões didático-pedagógicas na formação em alternância, objetivando que o aluno assimile e construa saberes. Gimonet (2007) sugere que o monitor recorra aos exercícios, que segundo o memo representa necessariamente, uma fase de aprendizagem, um tempo de trabalho formativo. Afirma que “Os exercícios são as sequências normais e impostas de qualquer aula para permitir a aprendizagem das noções abordadas” (GIMONET, 2007, p. 54). Defende que dentre os exercícios a serem usados, existem os exercícios de memória, com interesse limitado, a não ser para os monitores que podem controlar se o seu ensino tem alguma eficiência (GIMONET, 2007).

Conclui-se que, o forte vínculo da Pedagogia da Alternância às teorias tradicionais do currículo tem permeado sua história num processo que intenta a homogeneização como diz Granereau (2020), garantindo que todos alcancem a qualificação para o mercado de trabalho (GIMONET, 2007). Nosella (2014), ajuda a explicar a tendência de cunho tradicional ao afirmar que o movimento da Pedagogia da Alternância está num dilema, a partir de uma divergência entre os objetivos reais do processo de escolarização oficial e os objetivos reais do marco teórico das Escolas. Segundo o autor, se a formação em Alternância tomar o caminho de uma análise social, bem ligada à realidade, tecnicamente possível, enfrentará a repressão por parte da sociedade capitalista com consequente corte de verbas5. Em contrapartida, se a formação em Alternância “[...] enveredar pelo caminho técnico-agrícola, não encontrará repressão, porém, encontrará desinteresse por parte dos jovens que consideram o meio rural marginalizado no contexto econômico global de produção, sobretudo, em se tratando de pequenos agricultores, meeiros e assalariados” (NOSELLA, 2014, p. 125). E conclui: apesar de ser mais alienada, a metodologia tradicional é meio de ascensão social e de êxodo rural.

Em relação às teorias críticas do currículo, a Pedagogia da Alternância tem um vínculo que se destaca, principalmente quando propõe a formação integral dos sujeitos que dela participam e o desenvolvimento do meio onde vivem, a partir de uma consciência crítica desenvolvida no CEFFA pelos alunos, sobre os problemas vividos pelas famílias camponesas. Isso pode ser constatado em Nosella (2014), ao descrever o plano pedagógico do Centro de Formação de Monitores, em que aponta como um dos objetivos gerais do curso, “Desenvolver nos alunos uma aguda consciência da realidade em que vão atuar [...]. Viver e refletir juntos para a constituição de uma consciência grupal crítica e criativa” (NOSELLA, 2014, p. 229).

Nessa perspectiva, constata-se a forte presença dos princípios teóricos das
chamadas “pedagogia crítica”, cuja consigna, como diz Silva (2000), que tem estado no centro de todas as verdades dessa pedagogia, pode ser sintetizada na fórmula “formar a consciência crítica”. Esses impulsos emancipatórios das teorias críticas estão fundamentados, segundo Silva (2003), no pressuposto do retorno a algum núcleo subjetivo essencial e autêntico.

Através das relações sociais do currículo, as diferentes classes sociais aprendem quais são seus respectivos papéis nas relações sociais mais amplas. Há uma conexão estreita entre o código dominante do currículo e a reprodução de formação de consciência de acordo com a classe social. A formação da consciência – dominante ou dominada – é determinada pela gramática social do currículo. (SILVA, 2003, p. 148)

Criada dessa forma, como uma educação onde monitores e alunos mediatizados pela realidade vivida pelos agricultores, extraem os conteúdos para uma aprendizagem que permite a conscientização sobre essa realidade, a Pedagogia da Alternância intenta produzir um sujeito que está na Escola para desenvolver sua consciência crítica como cidadão autônomo, ativo, democrático. “Transformar-se numa pessoa exige um processo dialético de personalização e socialização (si próprio e os outros). A alternância contribui nisto” (GIMONET, 2007, p. 95).

Isso pode ser constatado ainda em Nosella (2014, p. 102).

Para que o homem do campo alcance a liberdade, é preciso libertá-lo do atraso, da ignorância, do isolamento, do medo, da fadiga desnecessária e da ideia de destino como uma condenação fatal. Libertá-lo, enfim, dos preconceitos contra seu mundo. Didaticamente, a Alternância não é uma pedagogia de mera justaposição de espaços e de tempos. O currículo integra esses polos ao despertar nas consciências dos alunos, das famílias, das instâncias políticas e técnicas um ousado e complexo projeto de desenvolvimento territorial, integrador dos valores locais, nacionais e internacionais.

Esse vínculo da Pedagogia da Alternância às teorias críticas do currículo evidencia-se ainda, quando a mesma propõe como perfil de saída do jovem que passa pelo CEFFA, o de tornar-se líder na comunidade capaz de viver “[...] dignamente do seu trabalho e em seu território; um jovem capaz de empreender projetos que contribuam para seu desenvolvimento pessoal e familiar, para conseguir assim, o progresso de toda a comunidade” (GARCÍA-MARIRRODRIGA; PUIG-CALVÓ, 2010, p. 172). A partir de Lopes e Macedo (2011), pode-se inferir que a Pedagogia da Alternância pensa o homem como “[...] um indivíduo uno e centrado, um ser racional e consciente que possui um núcleo interior essencial com o qual nasce e que desenvolve ao longo de sua vida (LOPES; MACEDO, 2011, p.218), nesse caso, a partir da ação do CEFFA.

Como se vê, a Pedagogia da Alternância, intenta uma formação integral dos jovens, atuando no despertar de sua consciência crítica. Nosella (2014), reforça essa premissa, afirmando que o enfoque do Plano de Estudo é a conscientização. Todavia, Granereau (2020), pontua que é imprescindível não se contentar somente com uma possante formação geral, mas, a partir dela “[...] é preciso construir individualidades fortes. Levar cada personalidade a tomar consciência de si e se desenvolver com plena liberdade” (GRANEREAU, 2020, p. 155). Isso nos leva a afirmar, que a formação em alternância surgiu para ser um instrumento de libertação, emancipação, autonomia, formando consciências críticas sobre as demandas postas aos agricultores. Caracteriza-se dessa forma, por ser uma pedagogia “[...] integralmente vinculada à suposição da existência e uma consciência unitária e autocentrada, embora momentaneamente alienada e mistificada, apenas à espera de ser despertada, desreprimida, desalienada, liberada, desmistificada (SILVA, 2000, p. 239).

Ao recorrer a Silva (2010), por suas incursões pelo campo teórico dos Estudos Culturais, visando problematizar esse tipo de formação pretendida no CEFFA, o autor chama a atenção para o fato, como já dissemos, de não se conceber que haja sujeitos conscientes, sem consciência ou em processo de formação da consciência crítica, mas sujeitos produzidos pela arena cultural em que estão inseridos, em meio a relações de poder (SILVA, 2010). Nessa perspectiva, pensar o sujeito como alguém que a escola deve conscientizar, operando através de sua ação pedagógica no desenvolvimento de sua racionalidade, é tratar a identidade do sujeito do CEFFA como questão de essência, e não como questão de política. É não perceber que mesmo na formação em Alternância, sendo construído culturalmente, o currículo reflete o resultado de uma queda de braços, em que os saberes e práticas aos quais se recorre, produzem tipos particulares de sujeitos e identidades do campo, marcadas pela diferença.

Trata-se, portanto, de pensar o CEFFA sem a pretensão de emancipação, libertação, autonomia e preparação para o exercício pleno da cidadania, mas de produção de identidades e diferenças como criações sociais e culturais. Não queremos dizer com isso, que não existem cidadãos ou que não seja importante o sujeito constituir-se como alguém capaz do exercício da cidadania. Segundo Escosteguy (2010, p. 4), “[...] a concepção de cidadania é fundamental, pois esta articula o terreno da micropolítica referente ao sujeito e suas interações sociais com o da macropolítica visto como o espaço oficial onde os direitos são ou não são reconhecidos”.

Um último aspecto a ser considerado neste vínculo da Pedagogia da Alternância com as teorias críticas, refere-se ao papel da avaliação no CEFFA. Nosella (2014), diz que avaliação é identificada como tomada de consciência, com reflexão ou retorno para dentro de si. “Avaliação é tudo aquilo que se faz para conscientizar: avaliar e conscientizar torna-se, de certa forma, sinônimos” (NOSELLA, 2014, p. 90). Essa e outras ideias descritas, que objetivam levar o homem do campo a assumir conscientemente a vida, a escola, caracteriza o CEFFA como um projeto “progressista”, que se quer emancipador, formador de sujeitos conscientes dos problemas que a realidade sociocultural apresenta. Sua preocupação desde a França em 1935, está em formar um sujeito consciente, soberano, capaz de ter controle absoluto sobre suas próprias ações. Mas, “As teorias pós-críticas ampliam e, ao mesmo tempo, modificam aquilo que as teorias críticas nos ensinaram” (SILVA, 2003, p. 148).

Nas teorias pós-críticas do currículo, se recorrermos a conceitos como identidade, diferença, significação, discurso, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, dentre outros (SILVA, 2003), não os encontraremos nas discussões dos teóricos da Pedagogia da Alternância. Isso poderia nos levar a afirmar, que essa proposta educativa não adere às políticas das identidades, escudadas pelas teorias pós-críticas, que são políticas que denunciam a monoculturalidade dos currículos baseados numa cultura geral, oferecendo alternativas baseadas no pertencimento dos sujeitos a um determinado grupo cultural (LOPES; MACEDO, 2011).

Mas, como “A vida não cabe em fórmulas. Para cada fato novo que se apresenta, é preciso necessariamente desenvolver bastante a narrativa para dar-lhe um sentido”, como diz Granereau (2020, p. 189), ao relatar sobre a irradiação da Casa Familiar Rural no segundo ano de Lauzun, as decisões a serem tomadas em torno da proposição curricular que estava sendo construído para os agricultores, além da preocupação para uma formação cidadã, contribuiu para dar visibilidade às múltiplas formas, através das quais os agricultores foram sendo forjados, contribuindo para transformar as relações de poder até então vividas. Isso vem ao encontro das ideias de Berticelli (2001), para quem as decisões tomadas a respeito do currículo (micro ou macro) afetam a vida das pessoas. Daí sua importância, pois “O currículo é um dos ‘lugares’ em que se ‘concede a palavra’ ou se ‘toma a palavra’, no jogo das forças políticas, sociais e econômicas” (BERTICELLI, 2001, p. 168). Por isso, ao propor um currículo diferente para o campo fundado no tempo-escola e no tempo-comunidade, cuja gestão estaria gradativamente a cargo das famílias agricultoras, a Pedagogia da Alternância, nesse terreno contestado que é a educação, cria condições para que as identidades “reprimidas” reivindiquem não apenas o direito à representação, mas sobretudo o direito de controlar o processo de sua representação, entendida aqui como inscrição, marca, traço, significante e não como descrição (SILVA, 2010).

Outro aspecto que sinaliza a proximidade da Pedagogia da Alternância com as teorias pós-críticas é que, com a implantação dessa modalidade educativa no campo, novas identidades sociais emergem e se afirmam, deslocando a ideia de que somente no espaço urbano poderia ser construída uma educação para os agricultores. Depreende-se a partir de Silva (2020), que o “novo” currículo, como um espaço de significação está estreitamente vinculado ao processo de formação de novas identidades sociais, uma vez que “O currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz” (SILVA, 2010, p. 27). Por isso, mesmo as comunidades rurais estando muito distantes dos centros de decisões políticas, e muitos camponeses pobres pertencerem a grupos étnicos minoritários ou marginalizados socialmente (GARCÍA-MARIRRODRIGA; PUIG-CALVÓ, 2010), através do currículo, como um texto cultural que produz sentidos e significados sobre o mundo (PARAÍSO, 2010), cria-se um projeto capaz de garantir a produção de identidades camponesas plurais, contingentes.

A história da Pedagogia da Alternância contada por Granereau (2020), mostra que essa é uma perspectiva que os agricultores não tinham até meados do século XX. García-Marirrodriga e Puig-Calvó (2010, p. 165), a partir de Kliksberg (2004) afirmam que a Pedagogia da Alternância torna-se lugar de participação que “[...] potencializa os grupos desfavorecidos, faz crescer a confiança em suas próprias capacidades e contribui em sua articulação”. Isso permite reivindicações políticas a partir da capacidade deste novo sistema de ensino, de ensinar o conhecimento que socialmente se espera ser ensinado (LOPES; MACEDO, 2011), pois “Hoje, as questões curriculares estão intimamente conectadas aos problemas sociais e, em dias mais recentes aos aspectos culturais.” (BERTICELLI, 2001, p. 168).

Os aspectos culturais a partir dos quais os agricultores se constituem, se dá segundo García-Marirrodriga e Puig-Calvó (2010) sob um denominador comum na Pedagogia da Alternância, que são os chamados “Quatro pilares” em constante interação: a Formação Integral das pessoas, o Desenvolvimento Local, a Alternância e a Associação Local. Mas, que essa homogeneidade não é uma dificuldade, mas ao contrário, pois as riquezas que aportam ao movimento são enormes, podendo

[...] falar da promoção da mulher, ao direito das famílias à educação de seus filhos da maneira que lhes pareça mais conveniente, passando pela formação para a cidadania, a promoção e o desenvolvimento local, o fomento da democracia, os valores da convivência e da paz, a liberdade de sistemas educativos (GARCÍA-MARIRRODRIGA; PUIG-CALVÓ, 2020, p. 109).

Como se vê, com a Pedagogia da Alternância foram criadas novas perspectivas identitárias. O projeto hegemônico sob o qual os agricultores ficaram reféns por muito tempo, foi colocado sob suspeita. Isso mostra que mesmo as relações de poder dirigindo o processo de significação, elas não o esgotam, não o realizam plenamente (SILVA, 2010), mas sendo a cultura uma zona de produtividade, assim como o currículo (SILVA, 2010) foram criadas possibilidades a partir de “Uma escola que seja a sua e da qual assumem a gestão e todas as responsabilidades, agrupando-se em associação, uma forma jurídica que confere uma força e um poder” (GIMONET, 2007, p.25).

Como para as teorias pós-críticas, o conhecimento é parte inerente do poder (SILVA, 2003), com a Pedagogia da Alternância pode se afirmar que o mapa do poder é ampliado para incluir todos àqueles sujeitos do campo até então reféns dos processos de dominação. As mais de 1.300 escolas no mundo que recorrem à formação em Alternância (GARCÍA-MARIRRODRIGA; PUIG-CALVÓ, 2010), criaram possibilidades dos agricultores produzirem significados e sentidos como “outros”. Podem agora, ao combater as concepções realistas do conhecimento, contar outras histórias, incorporar outros saberes, outras narrativas, enfim, produzir outras identidades múltiplas, plurais, marcadas pela diferença.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao problematizar a Pedagogia da Alternância sob as lentes das teorias do currículo é por entender que as diferentes teorias (tradicional, crítica e pós-crítica) têm como questão central, que lhes servem de base, a de saber qual conhecimento deve ser ensinado, ou seja, qual conhecimento ou saber é considerado importante ou essencial para merecer ser considerado parte do currículo (SILVA, 2003). Dessa forma, ao decidir sobre o tipo de sujeito a ser formado, deve-se decidir quais conhecimentos devem ser selecionados no processo de produção das identidades sociais. Por isso, neste trabalho não se teve a pretensão de julgar ou obter um consenso sobre a que teoria do currículo a Formação em Alternância se vincula, mas salientar que o currículo ao ter significados que vão muito além dos que ao longo da história, nos foram legados pelas teorias tradicionais, exige desta proposta educativa uma escolha teórica e prática à qual os alunos do campo terão acesso.

A ênfase dada neste trabalho, aos conceitos, que cada teoria do currículo utiliza para engendrar as realidades plurais com as quais irá lidar, foi no sentido de provocar os envolvidos com a Pedagogia da Alternância no Brasil para algumas questões que não têm sido objetos de questionamentos, podendo dessa forma estar sendo dadas mais destaques a algumas demandas do que outras, como: a) questões pedagógicas voltadas para a organização didático-pedagógico, cuja ênfase gira em torno de ensino e aprendizagem (teorias tradicionais); preocupação quanto ao papel ideológico da Formação em Alternância, com relevo para ideologia e poder (teorias críticas); conceber o currículo como campo de luta em torno da significação e da identidade, dando destaque à ideia do currículo como produção (teorias pós-críticas) (SILVA, 2003).

Importante mencionar, que não estamos falando de uma Pedagogia da Alternância com os mesmos contornos em todos os lugares. Dependendo do contexto cultural em que se encontra pode ser vista de diferentes formas. Para compreender os efeitos produzidos quando vista de uma determinada maneira, faz-se mister, pensar como a mesma organiza o seu currículo. O estudo mostra uma proposta educativa eclética, multifacetada dependendo de como organiza o regime de alternância, procurando interligar orgânica e pedagogicamente o espaço escolar com o extraescolar (NOSELLA, 2020). Por isso, a encontramos vinculada à teoria tradicional, baseando-se muito de seus pressupostos numa concepção conservadora da função social e cultural da escola e da educação; vincula-se de forma acentuada à teoria crítica de orientação neomarxista, cuja preocupação é possibilitar aos alunos o desenvolvimento de uma consciência crítica para os problemas do campo; e por último, de forma menos ostensiva, vincula-se às teorias pós-críticas dando ênfase ao currículo como prática cultural, forjando novas identidades sociais, diferentes das até então produzidas pelas escolas rurais.

Destaca-se, portanto, que mesmo os agricultores vivendo em situações políticas e sociais bem heterogêneas, encontram na Pedagogia da Alternância, mecanismos sociais discursivos que os permitem fugir do controle, das hierarquizações a que historicamente estiveram aprisionados. Isso mostra que o homem do campo, não é refém de uma identidade cultural, como uma entidade absoluta, uma essência, uma coisa da natureza, que faça sentido em si mesma, isoladamente (SILVA, 2010). Assim sendo, o estudo mostra que mesmo na escola da família agrícola deve-se ter cuidado com o que a sua educação irá produzir, ou o que ela quer produzir, pois no currículo não há neutralidade, visto ser um território político, produtor de identidades dentro e fora da escola.

É importante pontuar que independente da teoria a que esteja vinculada, a Pedagogia da Alternância criou possibilidades dos agricultores constituírem-se através de novas práticas de significação, rompendo com a ideia de uma escola que os deixavam à margem da participação econômica, política e de forma expressa à margem da própria escola, cujas propostas historicamente contribuíram para dizer quem são e o que farão de suas vidas. Essa nova proposta educativa, na qual os agricultores investem, tem a pretensão de romper com a transgressão entre momentos de estudo e momentos de trabalho, promovendo-os em congruência. Contudo, como é por intermédio do processo de ensino em que o currículo se torna ação, que se definem e se constroem as identidades (SILVA, 2010), sendo as teorias tradicionais teorias de ajuste, adaptação, em que a organização curricular é construída de forma linear, sequencial, disciplinar, evidencia-se, que há ainda uma afluência muito grande dessas teorias na Pedagogia da Alternância, caracterizando-a, em grande parte de sua ação como um espaço de produção/transmissão de conhecimento.

Desse modo, ao transitar pelas teorias do currículo na busca do entendimento de como a Pedagogia da Alternância com elas se relacionam, vê-se a necessidade de colocar em xeque ideias ou explicações que postulam que a apropriação do conhecimento, principalmente no tempo-escola, se dá a partir de um sujeito guiado somente pela sua racionalidade (teorias tradicionais) ou como centro de suas ações na formação de sua consciência (teorias críticas). Como as políticas de identidades, são pensadas como movimentos de resistências e de produção de novos sentidos, contribuindo para eclodir novas práticas discursivas, que produzem novas identidades, e como, pelo que se observa, a Pedagogia da Alternância produz nos diferentes sujeitos, diferentes modos de pensar e agir no mundo em que vivem, poderíamos sugerir que haja um investimento dos que trabalham e pesquisam essa proposta educativa na superação da ideia de identidade dos sujeitos do campo como algo que está posto, imutável, fixo, apostando na ideia de que as identidades se processam através de diferentes atravessamentos, vistas serem históricas, fluidas, contingentes. Assim, a Pedagogia da Alternância provocaria diferentes sentidos, concebidos como formas de resistência, contribuindo para transformação de práticas hegemônicas fundadas em concepções realistas de conhecimento. Essa nova perspectiva, significaria assumir como referência a cultura, que, como prática de significação, é constitutiva das identidades e diferenças dos sujeitos a partir de seus diferentes significados e práticas sociais.

Contudo, reconhecemos a importância da Pedagogia da Alternância como um projeto que efetivamente traz alternativas para os sujeitos do campo, pois consegue romper, pelo menos em parte, com o modelo, com o currículo sob o qual até hoje os agricultores e seus filhos foram educados. Se partirmos do pressuposto de que a Pedagogia da Alternância surge na França, num período em que “[...] só a cidade representava o desenvolvimento, a modernidade, o progresso, a ciência, a tecnologia e a boa escola” (NOSELLA, 2020, p. 112), e que, era premente romper com esse modelo de educação para o campo, que não reconhece o povo do campo, o agricultor, como sujeito de sua própria educação, de sua própria pedagogia. Se pensarmos ainda, que a Pedagogia da Alternância foi uma resposta para os agricultores como grupo subordinado, historicamente refém das ideias urbanas representadas no currículo, reivindicando o direito a uma identidade camponesa, podemos afirmar que através da formação em Alternância construíram-se posições de sujeitos, produziram-se identidades culturais e sociais emergentes, colocaram sob suspeita o currículo hegemônico, erigindo uma proposição curricular que não condena suas vivências, mas os ajuda a compreender o modo como vão sendo produzidos como outros, como aqueles que as políticas públicas segregam, controlam, marginalizam.

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência: Av. Pres. Dutra, 2965 - Olaria, Porto Velho - RO, 76801-058; albertoelaine10@gmail.com


1 Doutor em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco; Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Diferenças Culturais e do Grupo de Pesquisa em Etnoconhecimento e Pesquisa em Educação. Coordena a Linha de Pesquisa: Educação, Cultura e Movimentos Sociais. Rua das Flores, nº 143 - Bairro Dois de Abril - Ji-Paraná/RO, 76900-814; albertoelaine10@gmail.com.

2 C.E.P. – Certificado de Estudos Primários (Certificat d’Études Primaires). (GRANEREAU, 2020).

3 Centros Familiares de Formação por Alternância. No Brasil, os CEFFAs congregam as Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), as Casas Familiares Rurais (CFRs) e as Escolas Comunitárias Rurais (ECRs).

4 BOBBITT, John Franklin. The Curriculum. Boston: Houghton Mifflin, 1918.

5 Os CEFFAs no Brasil, em sua grande maioria não são autossustentáveis. Para continuarem oferecendo educação aos filhos dos agricultores, buscam cedência de monitores (professores) e recursos financeiros, principalmente, junto às secretarias estaduais e municipais de educação.