https://doi.org/10.18593/r.v48.32188

Análise dos pressupostos educacionais da homeschooling no Brasil a partir de Paulo Freire e Matthew Lipman

Analysis of the educational assumptions of homeschooling in Brazil based on Paulo Freire and Matthew Lipman

Analyse des hypothèses éducatives du homeschooling au Brésil sur la base de Paulo Freire et Matthew Lipman

Antonio Oliveira Dju1

Universidade Estadual de Londrina; Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação.

https://orcid.org/0000-0001-8954-2145

Patrícia Melo Magoga2

Colégio Chaminade de Bauru; Pesquisadora bolsista do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina a nível de mestrado. https://orcid.org/0000-0002-2509-1776

Darcísio Natal Muraro3

Universidade Estadual de Londrina; Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação no Mestrado e Doutorado. https://orcid.org/0000-0002-5413-8385

Resumo: Este artigo analisou os conceitos de integração de Freire e de pensar reflexivo de Lipman para embasar uma educação libertadora, contrapondo-se à fundamentação da educação domiciliar (homeschooling) no Brasil. Para isso, levantamos a seguinte questão: que educação pressupõe a homeschooling diante das contribuições de Freire e Lipman? Num primeiro momento, buscaremos compreender o conceito de integração em Freire para analisar os pressupostos da homeschooling. Em seguida, abordaremos a noção de pensamento reflexivo em comunidade de investigação de Lipman para analisar os referidos pressupostos, e refletiremos acerca das contradições presentes na homeschooling. É um estudo bibliográfico de caráter qualitativo, fundamentada nas obras dos dois referidos autores para compreender seus conceitos de integração e de pensar reflexivo. Este esboço conceitual crítico explora a fundamentação teórica do homeschooling no Brasil, sob a perspectiva do pensamento crítico e uma educação que fomenta democracia, igualdade e reconhecimento da diferença. As propostas de Lipman e Freire enfatizam uma educação centrada na experiência de pensamento, valorizando o contraditório em um contexto dialógico, problematizador, crítico e criativo. Essa abordagem busca integração sociocultural, dando voz aos oprimidos e promovendo uma prática democrática que compreende o contexto político-econômico da opressão. A educação proposta por esses pensadores é uma práxis que articula a construção do conhecimento e a transformação das desigualdades sociais e culturais. Essa perspectiva educacional se contrapõe aos modelos conservadores, autoritários e arbitrários, como a homeschooling, que prejudicam o ensino público, a justiça social, o desenvolvimento integral da pessoa e a democracia.

Palavras-chave: integração; pensar reflexivo; homeschooling; democracia; ensino público.

Abstract: This paper aimed at analyzing Freire’s concepts of integration and Lipman’s concepts of reflective thinking as a basis for liberating education, as opposed to the foundations of homeschooling in Brazil. For this, we raise the following question: what kind of education does homeschooling presuppose in the light of Freire’s and Lipman’s contributions? Firstly, we will try to understand Freire’s concept of integration to analyze the presuppositions of homeschooling. We will then look at Lipman’s notion of reflective thinking in a community of enquiry to analyze these assumptions and reflect on the contradictions present in homeschooling. This is a qualitative bibliographical study, based on the works of the two authors to understand their concepts of integration and reflective thinking. This conceptual outline makes it possible to critically reflect on the theoretical foundation of homeschooling in Brazil, under the scrutiny of critical thinking with others through an education that provides democracy, equality, and the legitimate recognition of difference. Lipman and Freire’s critical thinking proposals conceive of education centered on the experience of thinking that values the contradictory and differences in a dialogical, problematizing, critical and creative context. This approach seeks socio-cultural integration, giving a voice to the oppressed and promoting a democratic practice that understands the political-economic context of oppression. The education proposed by these thinkers is a praxis that articulates the construction of knowledge and the transformation of social and cultural inequalities. This educational perspective opposes conservative, authoritarian and arbitrary models, such as homeschooling, which jeopardize public education, social justice, the integral development of the person and democracy.

Keywords: integration; reflective thinking; homeschooling; democracy; public education.

Résumé : Cet article vise à analyser les concepts d’intégration de Freire et de réflexion de Lipman comme base d’une éducation libératrice, par opposition aux fondements de l’homeschooling au Brésil. Pour ce faire, nous posons la question suivante : quel type d’éducation l’homeschooling présuppose-t-il à la lumière des contributions de Freire et de Lipman ? Tout d’abord, nous essaierons de comprendre le concept d’intégration de Freire pour analyser les présupposés de l’homeschooling. Nous examinerons ensuite la notion de réflexion de Lipman dans une communauté d’enquête pour analyser ces présupposés et réfléchir aux contradictions présentes dans l’homeschooling. Il s’agit d’une étude bibliographique qualitative, basée sur les travaux des deux auteurs pour comprendre leurs concepts d’intégration et de réflexion. Ce schéma conceptuel permet de mener une réflexion critique sur les fondements théoriques de l’homeschooling au Brésil, sous l’angle de la pensée critique avec d’autres, par le biais d’une éducation qui assure la démocratie, l’égalité et la reconnaissance légitime de la différence. Les propositions de pensée critique de Lipman et Freire conçoivent une éducation centrée sur l’expérience de la pensée qui valorise le contradictoire et les différences dans un contexte dialogique, problématisant, critique et créatif. Cette approche vise l’intégration socioculturelle, en donnant une voix aux opprimés et en promouvant une pratique démocratique qui comprend le contexte politico-économique de l’oppression. L’éducation proposée par ces penseurs est une praxis qui articule la construction de la connaissance et la transformation des inégalités sociales et culturelles. Cette perspective éducative s’oppose aux modèles conservateurs, autoritaires et arbitraires, tels que le homeschooling, qui mettent en péril l’éducation publique, la justice sociale, le développement intégral de la personne et la démocratie.

Mots clés : intégration; pensée réflexive; homeschooling; démocratie; éducation publique.

Recebido em 26 de outubro de 2022

Aceito em 23 de novembro de 2023

1 INTRODUÇÃO

O avanço do autoritarismo conservador com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, interferiu profundamente no campo da educação, e tomou corpo na oficialização de práticas que visam minar o espaço público e democrático. Neste quadro, a regulamentação da modalidade de ensino denominado homeschooling4, vem cumprir não só uma promessa de campanha eleitoral, mas à instauração de uma concepção de educação que atende a interesses também políticos afinados ao opressor. Esta tendência ganhou forças com o agravamento das condições de oferta da educação devido à pandemia da Covid-19.

A educação domiciliar é uma modalidade de educação, surgida nos Estados Unidos da América (EUA) na década de 60 e 70, sustentada por algumas famílias, que defendem a liberdade de educar seus filhos em casa e não no espaço público escolar. Na visão de Alavina (2022), no Brasil, não se deve olhar a atual discussão sobre o homeschooling, em nível nacional, de forma simplória, apenas como uma consequência global da proposta de desescolarização que surgiu nos EUA, sintetizada na obra A Sociedade sem Escolas de Ivan Illich. Mas, ela deve ser olhada a partir da perspectiva política: a defesa da primazia da liberdade individual, vista como direito natural, sob a social. É isso que essas famílias, defensoras dessa modalidade de ensino, exaltam quando afirmam que elas têm o direito e a liberdade de escolher a modalidade de educação para seus filhos.

A análise que propomos busca entender o pressuposto teórico da defesa do homeschooling (educação domiciliar), desvelar os interesses, expor as contradições. E com isso, em contrapartida, averiguar a concepção de integração em Paulo Freire e a concepção de pensar reflexivo de Matthew Lipman que nos parecem apontar para uma prática educacional de liberdade como um agir comunitário e voltado para a cooperação que permite um crescimento conjunto tanto pessoal quanto social, baseado na experiência e nos valores democráticos. Assim, como objetivo, num primeiro momento, buscaremos compreender o conceito de integração em Freire para analisar os pressupostos da homeschooling. Em seguida, abordaremos a noção de pensamento reflexivo em comunidade de investigação de Lipman para analisar os referidos pressupostos, e refletiremos acerca das contradições presentes na homeschooling.

A metodologia adotada é de caráter bibliográfica, apoiada na análise filosófica, que visa compreender o conceito de integração e de pensar reflexivo em comunidade de investigação, tendo como referências as seguintes obras Educação como Prática da Liberdade (2006) de Paulo Freire; O pensar na educação (2001) de Matthew Lipman, com o intuito de analisar a fundamentação teórica de homeschooling. E com esse objetivo, o texto busca responder as três principais perguntas: o que é a integração? O que é o pensar reflexivo? Que educação pressupõe a homeschooling diante das contribuições de Freire e Lipman? Os dois autores defendem uma educação integrada, voltada para o pensar crítico, dialógico e, consequentemente, libertador, a partir de teorias educacionais alternativas que têm o pensar e a experiência dos educandos como premissas.

A experiência é um conceito basilar para as filosofias de educação de Freire e de Lipman. Suas concepções filosófico-educacionais se contrapõem àquelas compreensões e práticas educacionais e escolares centradas na rotina de dominação e transmissão de saber de forma autoritária para adaptar as novas gerações ao mundo dos adultos, o mundo do fundamentalismo religioso, da intolerância, de submissão ao princípio de valores judaico-cristãos, de produtividade e de lucro. A crítica a este modelo educacional se deve a sua consequência perniciosa para a vida pessoal e social e, neste sentido, para a democracia, pois oblitera a capacidade de lidar com a complexidade da experiência comunitária reforçando um comportamento conformista e passivo diante da realidade social, histórica e democrática. Educação e formação humana ficam dependentes do aprendizado dos conhecimentos, relativamente estáveis principalmente no que se refere aos valores, que prometem um ajustamento ao meio social e ao mercado de trabalho.

Inspirados na filosofia da educação desses autores que elegemos para iluminar a análise da fundamentação teoria da homeschooling, não podemos nos cegar diante do problema educacional de fundo que é a interferência dos governos que amparam a crença do modelo de ensino domiciliar (homeschooling) e da propagação de valores religiosos conservadores como alternativa para melhorar a qualidade da educação e atender à demanda dos opressores. Isso nos leva a pensar sobre o papel da experiência comunitária na prática educativa tendo em vista a formação do sujeito ativo e participante em uma sociedade voltada para os valores democráticos. Entendemos que o caminho para uma sociedade democrática é a educação integrada e libertadora a partir da práxis dialógica, pois é nela que encontramos a oportunidade de formar cidadãos reflexivos, conscientes, críticos, dialógicos e democráticos.

2 A CONCEPÇÃO DE INTEGRAÇÃO E EDUCAÇÃO LIBERTADORA EM PAULO FREIRE

A concepção de integração em Freire é fundamental para compreender a prática educacional libertadora, humanizadora e democrática, uma vez que o autor a relaciona à possibilidade de o educando emergir de uma situação opressora para inserir-se num processo de libertação por meio da ação dialógica com o seu mundo e com os outros. O conceito de integração está ligado à experiência existencial do ser humano, que envolve a sua relação ativa e consciente com seu espaço e tempo para conhecer a realidade e transformá-la. Para o autor, o agir humano no mundo implica em dupla e conexa transformação: o mundo da natureza adquire a qualidade de mundo da cultura e este transforma o ser humano em sujeito de relações. Segundo Freire (2006, p. 47) “[...] o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é”. A relação é a abertura que o ser humano faz ao mundo e ao outro, isto é, sua saída de si para o outro externo, sua realidade. Como sujeito no mundo, ele sai de si para estar objetivamente com o mundo e com o outro. Nessa abertura, ele transforma o mundo e é transformado também por este. O mundo é uma realidade objetiva, que não depende do ser humano e é passível de conhecimento. Esse conhecimento se dá justamente através dessas relações com o mundo.

Falando da experiência existencial em Freire, Henning (2019, p. 43) afirma que “os seres humanos não se encontram, assim, desligados do mundo, nem são consciências des-espacializadas, vazios de realidade [...]; tampouco, são mentes acopladas a um corpo, mas sim, são corpos conscientes, que experimentam o mundo existencialmente”. A existência do ser humano é marcada por um agir situado em termos espaciais e temporais, ela não ocorre no vazio, nem seu resultado é ausente de significação.

A noção freiriana de relação nos leva, assim, a sua noção de integração, ou seja, ao ser humano como sujeito integrado. Segundo Freire (2006, p. 51), “[...] enquanto o animal é essencialmente um ser da acomodação e do ajustamento, o homem o é da integração”. Freire entende a integração como a compreensão que o ser humano deve ter de seu contexto dentro do espaço e tempo. A sua realidade de hoje está conectada significativamente com a de ontem, o que o prepara para a do futuro. Essa compreensão o faz se integrar ao contexto e à época sendo sujeito de relações, ou sujeito de ação e de comunicação.

A integração está ligada à consciência, ao pensar reflexivo que permite desvelar as consequências da situação existencial. Ela é aperfeiçoada na medida que a consciência do ser humano se torna crítica, superando os fatores que o acomodam e o ajustam no mundo, isto é, que ameaçam sua dignidade humana (humanização). Acomodação e ajustamento nas relações com o mundo significam opressão do ser humano, condição que ele tenta constantemente superar em busca da libertação. Freire argumenta que o ser humano é sujeito de integração, pois:

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescendo a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. (Freire, 2006, p. 51).

A integração se dá pelos atos de criar, recriar e decidir que exigem do ser humano o identificar-se com sua realidade e com sua época histórica e participar dela, apropriando-se de seus temas fundamentais e reconhecendo suas tarefas concretas, o que significa conhecê-la para transformá-la e não para contemplar como espectador o próprio conhecido. Em cada época, a sociedade se modifica a partir da práxis do ser humano no mundo, construindo seus próprios valores, temas e anseios. Freire entende que, seja qual for o período, o ser humano precisa não apenas perceber a mudança de época para se manter plenificado, como também superar seus valores, aspirações e anseios em prol dos novos. Segundo o autor, “Nestas fases [...], mais do que nunca, se faz indispensável a integração do homem. Sua capacidade de apreender o mistério das mudanças, sem o que será delas um simples joguete.” (Freire, 2006, p. 54). Ou seja, sem essa capacidade de apreensão, as mudanças seriam meramente transitórias, o que não exigiria do ser humano o uso de funções intelectuais, sendo necessário que sua consciência fosse crítica e seu pensar reflexivo.

No entendimento de Freire, ser sujeito de integração é vocação natural do ser humano, justamente por ter liberdade para criar, recriar e decidir. Sem liberdade não há integração, pois não é possível criar, recriar e decidir estando em uma situação de opressão. Dessa maneira, Freire entende que a liberdade pressupõe sua relação com o mundo e com os outros. Sua capacidade de transformar, construir e de ter vontade depende do quão livre se torna. Segundo Freire (2002, p. 40), a liberdade é “[...] a vontade de ter vontade. De autodeterminação do povo [...]”, algo impossível na situação de opressão e de dominação. A ideia de integração como experiência existencial local faz Freire se opor a toda qualquer experiencia educacional importada.

A partir dessa concepção de integração, Freire propõe pensar uma educação também de forma integrada, provocando o pensar reflexivo. Uma educação que reflete o espaço e tempo a qual se aplica. Uma educação, cujo agir pedagógico possibilita a conscientização dos educandos de suas situações de opressão por meio da autorreflexão e do pensar crítico; bem como, aquela que estimula a reflexão sobre o espaço e o tempo deles. Esse pensar reflexivo acerca da condição opressora permite aos estudantes a prática de desvelamento dessa realidade de forma objetiva. E o desvelamento da realidade deve estar em constante dialética com a sua transformação, isto é, a busca pela libertação, eliminando a condição de opressão. Segundo o autor,

Se não há conscientização sem desvelamento da realidade objetiva, enquanto objeto de conhecimento dos sujeitos envolvidos em seu processo, tal desvelamento, mesmo que dele decorra uma nova percepção da realidade desnudando-se, não basta ainda para autenticar a conscientização. Assim como o ciclo gnosiológico não termina na etapa da aquisição do conhecimento existente, pois que se prolonga até a fase da criação do novo conhecimento, a conscientização não pode parar na etapa do desvelamento da realidade. A sua autenticidade se dá quando a prática do desvelamento da realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação da realidade (Freire, 1992, p. 103).

Com isso, podemos afirmar que essa prática pedagógica, epistemológica e política de conscientização se dá por uma educação que dialetiza o desvelamento da realidade para interagir criticamente por meio de ação transformadora. Freire possibilita aos estudantes verem a educação na sua dialeticidade com a transformação pelo processo de conscientização, isto é, como uma força de mudança e de libertação. Esse tipo de agir educacional se opõe ao modelo de educação importado que desvincula os educandos de suas experiências de mundo e os concebe como passivos, receptores e vazios, cujas consciências são entendidas como espaços de armazenamento compartimentado para serem preenchidos de conhecimento pela prática “bancária”. Quanto mais os educandos estiverem adaptados ao que lhes é depositado, melhor será para uma sociedade opressora e elitista.

A homeschooling é uma modalidade de educação importada dos EUA, onde surgiu na década de 60 e 70 com o americano John Holt, professor universitário de Harvard. Nessa época, ele liderou e defendeu fortemente a ideia de descolarização e a legalização do ensino domiciliar nos EUA e no mundo. Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), essa modalidade de ensino atualmente está presente em mais de 60 países5. Assim, sendo importada da experiência dos norte-americanos, essa modalidade de ensino não é integrada à realidade do Brasil. A experiência política, econômica, religiosa e sociocultural dos norte-americanos é diferente das brasileiras. Para Freire (2018, p. 27), a experiência não pode ser exportada, ela só pode ser reinventada”. A natureza histórica da educação é reinventá-la dentro do espaço e tempo em que se encontra. E os educadores-educandos devem “estar inteiramente molhados pelas águas culturais do momento e do espaço onde atuam” (Freire, 2018, p. 27) para assim transformá-la constantemente.

Educação libertadora respeita o saber feito na prática comunitária dos estudantes, partindo sempre dele para o processo da criticidade e de curiosidade epistemológica. É isso que Freire chama de “pensar certo”, que é o pensar do sujeito que exige a criticidade na compreensão dos fatos, a partir de sua dimensão existencial, como ser inacabado que busca ser mais. Conforme o autor:

Pensar certo, em termos críticos, é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade para o que venho chamando “curiosidade epistemológica”. A curiosidade ingênua, de que resulta indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso comum. O saber de pura experiência feito. Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da educadora com a consciência crítica do educando, cuja “promoção” da ingenuidade não se faz automaticamente (Freire, 2011, p. 31).

A educação, entendida no processo de integração, e a libertação não acontecem de forma unilateral, ou seja, dadas aos educandos pelos educadores, mas reciprocamente entre os sujeitos (educandos-educador, educandos-educandos). Ensinar aqui é dialogar possibilitando a aquisição, produção ou construção do conhecimento.

É na relação dialógica e libertadora que os estudantes, sendo seres educáveis, realizam seu quefazer crítico, criador e recriador através dos estudos de sua própria condição existencial, aprendem a agir-refletir de forma crítica, criando e recriando na sua relação com o ensinar do educador. E essa realização deve partir sempre da experiência de vida do estudante para a sua experiência escolar e desta volta para a experiência de vida, melhorando-a, criando e recriando-a. Esse processo, na visão de Freire, ajuda a superar o conhecimento ingênuo para aquele crítico, que é um dos papéis da educação libertadora.

A partir do entendimento da relação entre integração e a práxis educacional libertadora de Freire, é possível fazer a correlação com o pensar reflexivo de Lipman, premissa que o autor traz na sua proposta de uma práxis pedagógica libertadora de Comunidade de investigação. Analisaremos, primeiro, os pressupostos da homeschooling, mostrando suas incoerências e depois buscaremos a compreensão do conceito de pensar reflexivo a partir de Comunidade de Investigação.

3 HOMESCHOOLING E O PENSAMENTO REFLEXIVO E O PENSAR CERTO

A atual discussão sobre homeschooling, no Brasil, vinda dos EUA, começou em 2010, segundo ANED6, quando alguns pais em Belo Horizonte decidiram retirar seus filhos das escolas, porque estavam insatisfeitos com a educação que estes recebiam. E esses pais, mais tarde, criaram uma associação para ir atrás de seus direitos de liberdade na justiça para escolarizar/educar seus filhos em casa. ANED tentou várias vezes regulamentar essa modalidade de educação no Brasil junto aos Poderes Judiciário e Legislativo, mas sem sucesso. De iniciativa e interesse do governo do presidente Jair Bolsonaro, o Projeto de Lei 1332/22, do deputado Lincoln Portela (PL-MG) recebeu um texto substitutivo da deputada Luisa Canziani (PSD-PR) e foi aprovado na Câmara dos deputados em 2022. À época, esse projeto foi para o Senado e passou a tramitar como PL 1.388/2022, tendo como relator o senador Flávio Arns (Podemos-PR). O que nos chamou a atenção foi a justificativa dada pela relatora desse Projeto de Lei, deputada Luisa Canziani, ao afirmar que a urgência da regulamentação desse assunto se dá pelo fato de haver algumas pessoas praticando essa forma de educação7. Esse tipo de argumento é muito vago e perigoso, porque cabe tudo nela. Ou seja, qualquer coisa que há pessoas praticando, por menor que seja e mesmo controverso, cabe regulamentá-la através de uma lei. Será que os deputados estão dispostos a aplicar objetivamente, em relação aos outros temas, esse tipo de argumento usado para justificar a aprovação desse PL do homeschooling? Tudo nos leva a crer que não. Não pretendemos explorar essa problemática, porque o que nos interessa aqui é analisar a fundamentação filosófica por trás da defesa dessa modelo de ensino.

Pode haver várias possibilidades de fundamentação de educação domiciliar, isto é, “as famílias que recorrem à educação na casa, portanto, normalmente, estariam também buscando uma formação diferente daquela oferecida pelas escolas públicas, seja por motivos religiosos, filosóficos, contextuais, especiais ou circunstanciais” (Vasconcelos, 2017, p. 127). Mas, o fato é que homeschooling rejeita a ideia de obrigatoriedade escolar pública, proposta pelo Estado como meio para oferecer a educação para todos. Porque o Estado, no entendimento dos defensores dessa modalidade de ensino, faz nada mais e nada menos do que usurpar e dominar o que é ensinado (conteúdos), obrigando os indivíduos a segui-los. Em oposição a isso, homeschooling propõe um ensino livre a depender das famílias, a partir de teorias liberais.

A ideia de um ensino livre por parte dessas famílias fundamenta-se na perspectiva do capital humano, que encara a educação como um investimento individual capaz de elevar a produtividade e o valor de um indivíduo no mercado de trabalho. No entanto, essa abordagem tende a dar excessiva ênfase à formação direcionada para a produtividade econômica, negligenciando uma educação abrangente que estimule o pensamento crítico, a participação cidadã e o desenvolvimento integral dos indivíduos. O perigo reside em transformar a educação em mera mercadoria e impor uma prática tecnicista e doutrinadora, negando uma formação integral por meio da socialização, do contato com a diversidade social, com a variedade de práticas pedagógicas docentes e acesso amplo à cultura como se pretende na escola pública. Esta tem a prerrogativa de formar o cidadão para a vida pública e democrática, tarefa que dificilmente se consegue quando a criança fica à mercê de decisões estritamente particulares.

Corroborando a crítica à ideia liberal, Oliveira e Barbosa (2017, p. 195) afirmam que “a fundamentação da educação domiciliar é originária de uma vasta gama de posições antiestatistas, que passam por anarquistas, liberais individualistas e posições religiosas fundamentalistas, entre outras”. O liberalismo é a teoria político-filosófica que sustenta a defesa da educação domiciliar no Brasil. E a ideia central no liberalismo é a valorização e a defesa da liberdade individual como direito básico perante o Estado ou perante a sociedade, isto é, que o Estado e os outros não podem interferir. O que essas famílias querem, com esse posicionamento liberal, é o respeito da liberdade delas em educar seus filhos de acordo com sua moral, crença e valores, porque entendem que as famílias possuem religião e visão de mundo diferentes e, por isso, não deve haver um único sistema de educação para todos. Aqui, há várias ideias que podem ser analisadas, mas focaremos em três: a liberdade; o ensino em casa; os sujeitos que optam por tal ensino.

Alegar ser a liberdade um direito dos pais sobre a educação de seus filhos é problemático. Em outras palavras, entraremos na seguinte questão: a liberdade dos pais, tida como direito, sobrepõe a liberdade dos filhos? Em termos de sociedade, a liberdade individual sobrepõe a liberdade social ou comunitária? A reflexão sobre a liberdade é sempre interessante, porque é um dos valores fundamentais dos seres humanos, complementar aos outros, tais como a vida, justiça, solidariedade, diálogo, bem-comum etc. O problema é que ela é capitalizada, especialmente no Brasil, a partir de uma interpretação liberal-fundamentalista para impor a visão de mundo de alguns sobre a dos outros de forma autoritária, isto é, a liberdade de decidir sobre os outros, a liberdade de expressar seus pensamentos e seus valores, mesmo que sobrepõem os dos outros. Para Freire (1987), isso é acomodação, dominação, opressão.

A liberdade é muito importante, pois faz o ser humano se integrar a seu contexto para o transformar; viver sua vocação de decidir, escolher, recriar e ser mais. Sem essa marca da liberdade no humano, segundo Freire (2006, p. 50), este “fica um ser meramente ajustado ou acomodado”. No ensino domiciliar, nessa perspectiva liberal, os pais ou os responsáveis almejam acomodar os filhos em suas visões de mundo, seus pensamentos, sem estes terem a possibilidade de liberdade de pensamento, de pensar reflexivo. Em outras palavras, os filhos são negados a liberdade de pensamento. Lipman sustenta essa ideia quando aponta a incongruência entre os que defendem a liberdade de expressão seja dos pais ou educadores, mas sem entusiasmo com a liberdade de pensamento dos filhos ou educando. De acordo com o autor, “alguns daqueles que carregam a bandeira de liberdade de expressão demonstram um entusiasmo menor quanto à liberdade de pensamento. [...] sem liberdade de pensamento não poderia haver liberdade de expressão, e [...] sem liberdade de expressão não poderia haver liberdade de pensamento” (Lipman, 1995, p. 362). Acomodar e dominar os outros, sem possibilitá-los a liberdade de pensamento, é a atual característica do conservadorismo liberal brasileiro, sustentada pelos opressores através de um modelo de educação/ensino que não permite um pensar reflexivo e nem tomar os conteúdos ensinados como objetos de conhecimento. Pelo contrário, realça o poder do opressor no “o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos (Freire, 1987, p. 59), diferentemente da educação libertadora que, para Freire, é dialógica permitindo trabalhar criticamente as contradições existenciais.

Quanto ao segundo ponto de análise, referente ao ensino em casa, da maneira como foi defendida no Brasil a partir do direito à liberdade dos pais, entendemos que é contraditório e é o outro lado da extremidade. Se por um lado, essas famílias retiram seus filhos da escola pública por acharem que a escola não contempla seus valores religiosos, filosóficos, suas visões de mundo, por outro, elas impossibilitam seus filhos de conhecer e dialogar com outros valores e outras visões de mundo diferentes. O lema de homeschooling no Brasil é a liberdade dos pais, conforme consta no site de ANED: “para todas as famílias que desejam a liberdade de educar seus filhos”8. É uma contradição, porque negam em casa o que criticam da escola. Nesse tipo de ensino, os pais se preocupam em transmitir aos filhos suas visões de mundo, de forma dogmática, de modo que passa a ser a única visão de mundo que eles terão acesso. Sustentamos essa nossa defesa nas ideias de Lipman, com as quais concordamos. E autor também faz críticas ao modelo de escola, que ele denomina de “paradigma padrão da prática normal”. Porque o objetivo dele é repensar a escola e a sala de aula buscando uma educação de qualidade e não rejeitar este patrimônio público.

No modelo de ensino criticado pelo autor, a metodologia, o material e o processo educacional têm direção externa ao mundo da criança e está sob controle da autoridade do professor, que é também o pai/mãe no contexto de ensino domiciliar. Este modelo de escola, segundo Lipman (2001), desenvolve um processo de fragmentação dos conteúdos, desassociando-os entre si e da realidade experiencial da criança, isto é, ele é castrador do interesse da criança. Assim a criança vai se adaptando ao sistema, tornando-se passiva, uma vez que a lógica do ambiente escolar se faz dominante e opressor com suas exigências próprias, desintegradas e desconectadas da vida da criança. A experiência neste ambiente se transforma em experimento pedagógico voltado para a aprendizagem desvinculada da experiência, conforme analisa Larrosa (2014).

O interesse e gosto da criança pela escola vai diminuindo na medida em que a educação que recebe se distancia de sua experiência e lhe impõe o peso das lições. Essa queda de interesse se justifica em decorrência do sistema tradicional, religioso e dogmática de ensino que trabalha com a transmissão de conteúdos e conhecimentos ensinados como não ambíguos, não equívocos, exaustivamente dominados e, por isso, definitivos e absolutos. A experiência de descoberta e aventura é substituída pela rotina de decorar noções para a prova sob a ordem dos pais. Visando dar conta do conteúdo, esse modelo educacional não leva em consideração as curiosidades, interesses das crianças, as quais devem reproduzir o conhecimento transmitido e seguir a ordem. Apesar dessa crítica, que se paira sobre uma dimensão de escola: a tradicional, a bancária, dogmática, reitera-se que a escola pública, como um ambiente educativo, é intrinsecamente dinâmica, caracterizada por desafios e contradições. A crítica à escola e à educação é necessária para o seu contínuo aprimoramento. A crítica tem como critério centrar a defesa da educação pública, de qualidade, laica e para todos e todas. Neste sentido, é importante notar que, nesse cenário complexo, também se desenrolam experiências e avanços notáveis que desempenham um papel crucial na transformação contínua do sistema educacional.

Não faz sentido querer rejeitar a obrigatoriedade da “escola” ou de conteúdo escolar pública para impor a obrigatoriedade de aprendizagem de visões de mundo dos pais no ensino livre em casa na perspectiva de homeschooling. No ambiente familiar, sendo também o ambiente do ensino aplicado pelos pais, há autoritarismo em certo grau. Segundo Lipman (1995, p. 357), “qualquer que seja a qualidade das relações entre a família, o inevitável fato da dependência dos muito jovens geralmente resulta em um certo grau de autoritarismo”. Autoritarismo hipertrofia a liberdade. Segundo Freire (2015, p. 126),

a autoridade que se hipertrofia em autoritarismo ou se atrofia em licenciosidade, perdendo o sentido do movimento, se perde a si mesma e ameaça à liberdade. [...]. A liberdade imobilizada por uma autoridade atrabiliária ou chantagista é a liberdade que não se tendo assumido se perde na falsidade de movimentos inautênticos.

Ainda referindo-se ao ser humano, Freire sustenta que autoritarismo é prejudicial ao próprio ser, pois nega essencialmente a natureza do ser humano e, tanto politicamente quanto ideologicamente, rejeita a democracia (Freire, 2013). O que é interessante fazer, em vez de rejeitar a escola, é (re)pensá-la, que é o elo ou processo de transição da criança entre os dois polos: família e sociedade. “O papel das escolas é atuar como uma instituição de transição: em parte, um substituto para a família da qual a criança está emergindo e, em parte, um substituto para a sociedade mais ampla na qual o aluno afinal se estabelecerá” (Lipman, 1995, p. 357).

Contrastando com o modelo de ensino criticado, o qual não se distancia do homeschooling, Lipman propõe uma concepção educacional que ele denomina de paradigma reflexivo da prática crítica (pensar reflexivo). Para ele, a excelência do pensar consiste em desenvolver as dimensões da criticidade, da criatividade e do cuidado buscando apoio no conhecimento filosófico para este fim (Lipman, 1995). Por sua vez, Freire propõe uma pedagogia centrada no “pensar certo”. Esse enfoque destaca a relevância de aprender através do pensamento dialógico das experiências, transformando a sala de aula em uma comunidade fundamentada em valores democráticos. Lipman toma como referência a filosofia deweyana acerca do ato de pensar, que é o princípio do ensino. Muraro e Souza reforçam esse argumento:

Contrapondo-se ao paradigma do modelo tradicional, Dewey e Lipman desenvolveram uma concepção alternativa tomando o pensar como princípio educativo. Para eles, o conhecimento passa a ser vinculado à experiência do estudante e a ação do professor volta-se para criar as condições de um trabalho reflexivo de crítica e reconstrução dos conceitos na pedagogia da Comunidade de investigação (Muraro; Sousa, 2019, p. 78).

Dewey defende que o ponto de início do processo de pensar é o acontecimento problemático, uma experiência plena em sua presente existência marcada pela incompletude ou ainda não realização uma vez que a ação é interrompida pela incerteza ou uma dúvida. Sendo assim, o pensamento é equivalente a uma representação dos elementos inteligentes das experiências sofridas, completa Pimenta (2010, p. 65), “[...] pois pensar converte uma ação puramente impulsiva em ação inteligente”. Estes elementos são considerados inteligentes quando são resultados de experiências dos problemas enfrentados pela pessoa, ou seja, que surjam da sua necessidade e curiosidade de restabelecer o equilíbrio vital na relação com o meio e as pessoas que o cercam.

Diante disto, Dewey (1979b, p. 153) afirma que “[...] o estágio inicial do ato de pensar é a experiência”. Considerando que essa forma inteligente de pensar proposta pelo filósofo trata da relação entre algo que é feito e aquilo que acontece em consequência, é concebível elaborar a ideia de que esse tipo de pensamento torna possível agir prevendo um fim. Diante dessas reflexões, Dewey passa a denominar a melhor maneira de pensar, de ‘pensamento reflexivo’, que, segundo ele (1979a, p. 13), é “[...] a espécie de pensamento que consiste em examinar mentalmente o assunto e dar-lhe consideração séria e consecutiva”. Por assim dizer, o pensamento reflexivo é a continuidade lógica dos pensamentos em busca de respostas para os problemas encontrados.

A busca de uma solução à situação problemática é o que motiva o pensamento reflexivo. Ter um objetivo que recompõe a continuidade da experiência lhe traz estímulo, sendo então o seu principal fator orientador na observação de dados relacionados à situação problemática e de conhecimento acumulado em experiências anteriores que darão suporte ao processo reflexivo. Nas palavras de Pimenta (2010, p. 65), “O pensar reflexivo como um fim educacional possibilita a ação com finalidade consciente”. O pensar reflexivo permite a autonomia da pessoa na condução consciente de uma situação problemática e se responsabiliza por consequências futuras dentro do fluir das ações presentes. Para Dewey, este é o único método duradouro de ensinar e aprender, já que ele entende o ato de pensar reflexivo como um método de aprender inteligentemente.

De acordo com Maurano e Henning (2014, p. 12), “o pensamento reflexivo tem um claro papel instrumental e funcional, que nos aproxima cada vez mais de um pensamento correto, de uma atividade encadeada, coerente, conexa, racional”. Assim, um dos objetivos da educação é desenvolver o hábito de pensar reflexivo, permitindo solucionar situações problemáticas cada vez mais complexas que, por sua vez, ampliam a capacidade de pensar. O hábito de pensar reflexivo se constitui num hábito autocorretivo de outros hábitos que influem na condução da própria experiência impedindo que ela seja aprisionada na rotina e em crenças fixas descompassadas diante das mudanças que ocorrem na realidade. Neste entendimento, Dewey postulou que aprender a pensar reflexivamente equivale a aprender a aprender. Ao aprender refletindo no enfrentamento das situações problemáticas da experiência, desenvolvemos métodos para continuar aprendendo diante das condições conflitivas novas da realidade das experiências seguintes. Diz o autor: “E isso traz a possibilidade de um contínuo progresso, porque, aprendendo-se um ato, desenvolvem-se métodos bons para outras situações. Mais importante ainda é que o ser humano adquire o hábito de aprender. Aprende a aprender” (Dewey, 1979b, p. 48). Para o autor, aprender a aprender pensando é a base para a criança conduzir com autonomia o seu crescimento.

Para ele, quando pensamos, fazemos associações e disjunções a respeito de problemáticas, visando restabelecer a continuidade da interação com o mundo. Segundo o filósofo, é desta maneira que os indivíduos serão capazes de pensar por si mesmos conscientes de sua interdependência social. Lipman descreve esse paradigma como um modelo de excelência no pensamento, distinguindo-se da abordagem acadêmica predominante em pesquisas de ponta. Apesar de preparar os estudantes para esse nível de rigor, ele destaca que pode ser aplicado desde o jardim de infância, tornando-se acessível nas salas de aula.

O filósofo incorpora à sua visão do pensamento a ação investigativa, que consiste em procurar respostas para as questões levantadas durante a deliberação. Esse processo de busca é conduzido por meio de uma investigação cooperativa, facilitada pelo professor. Muraro e Sousa (2019, p. 79) complementam, “A situação problemática é a quebra de continuidade da experiência trazendo a dúvida para as crenças que conduziam a ação. Nesse caso, a dúvida faz o pensamento buscar a reconstrução dos conceitos que permite recompor a ação”. De acordo com Lipman (2001), como destacam os autores supracitados, o processo investigativo tem a característica de transição da deliberação para o julgamento:

Essa qualidade gestáltica da situação problemática única, imediatamente experienciada, é que dá o senso de direção investigativa para a CI. A investigação se origina e se orienta a partir dessa experiência problemática e progride através do diálogo comprometido em seguir o argumento por onde este conduz, tendo em vista encontrar significados que integrem e permitam a continuidade da vida (Muraro; Sousa, 2019, p. 80).

Para Lipman, a investigação tem como objetivo principal a prática autocorretiva, “[...] onde um tema é investigado com o objetivo de descobrir ou inventar maneiras de lidar com aquilo que é problemático” (2001, p. 72). A perspectiva de Lipman acerca da investigação se apoia no campo da filosofia considerando que esta qualifica o aprender a pensar e oferece instrumentos para que ele seja rico em significados, autônomo, razoável, crítico, criativo, cuidadoso e democrático. Para isso, é necessário cultivar as habilidades de pensamento por meio de uma comunidade de pesquisa dedicada à compreensão dos conceitos humanísticos intrínsecos à filosofia. Assim, esta promove a experiência do pensamento por meio da imaginação, do perguntar como o ponto de partida para a busca das descobertas significativas, da argumentação rigorosa em torno dos conceitos centrais da experiência humana, do exame crítico das crenças, da criação de alternativas de pensar, falar e agir.

Por sua vez, o pensar certo de Freire inevitavelmente se manifesta no agir libertador e transformador, resultando em um desalinhamento em relação a um modelo escolar hierárquico, autoritário e opressor. É um pensar autônomo e crítica, que possibilita aos educando problematizar e tomar tudo o que lhes foi passado como objeto de conhecimento na construção do saber, dialogar com os outros na busca constante por ser mais, pela libertação das amarras ideológicas e sociopolíticas. O filósofo brasileiro aborda a importância do pensar certo como um pressuposto fundamental para o agir certo, estabelecendo assim uma relação intrínseca entre ambos, onde o agir certo está diretamente ligado ao pensar que intencionaliza e acompanha criticamente a prática. Essa interconexão é descrita por Freire como uma unidade dialética contínua: “É exatamente esta unidade dialética que gera um agir e um pensar corretos na e sobre a realidade para transformá-la” (Freire, 1987, p. 26). De acordo com a perspectiva de Freire, o pensamento correto refere-se à capacidade do indivíduo de desenvolver consciência e intervir na realidade, ou seja, ser reflexivo. Portanto, o pensar correto surge como a condição de estruturar reflexivamente o pensamento. Nesse contexto, a expressão do pensamento correto se manifesta na habilidade de dominar a reflexão, proporcionando ao sujeito a capacidade de compreender e participar ativamente no desenrolar histórico. Como resultado, ele transcende a posição de mero objeto, concretizando-se como um ser-sujeito por meio da práxis (Freire, 1987). A construção do pensamento deve ocorrer de maneira social, como modo de vida e é por essa razão que Freire o vincula à democracia.

Freire discute a democracia como um modo de vida, destacando principalmente a presença significativa de uma consciência ativa no comportamento humano. Essa consciência ativa não surge nem se desenvolve a menos que o ser humano seja colocado em condições que o levem ao debate, à análise de seus próprios problemas e dos problemas compartilhados, permitindo assim a sua participação. (Freire, 2002, p. 76). A democracia necessita de uma consciência fundamentada no respeito, na experiência, no diálogo e no entendimento sobre assuntos públicos. Além disso, demanda um interesse compartilhado, um comportamento participativo e a capacidade de autogoverno, contribuindo assim para a construção ativa da sociedade. Em outras palavras, a democracia é conquistada de maneira colaborativa e coletiva.

Ela surge do respeito, do diálogo e do poder de tomada de decisão que pertence a todos que compartilham o percurso da humanização do ser humano, resultante de sua vocação para serem homens e mulheres, ou seja, sujeitos de sua própria existência no âmbito ontológico e social. A compreensão do mundo, a abordagem crítica dos problemas e a transformação do mundo por meio do conhecimento recém-adquirido representam a síntese que expressa a perspectiva do pensamento correto de Freire. Segundo Silva (2015, p. 15), interpretando as ideias de Freire, pensar certo implica uma abordagem holística, envolvendo a observação tanto interna quanto externa, distanciando-se para apreender o todo, analisando suas partes e apreciando as relações entre elas e com o conjunto. Abrange diversos elementos como reflexão, busca, curiosidade, diálogo, problematização, pergunta, comunicação; educação, entendimento, análise, transformação, denúncia, anúncio, crítica, ação. Vai além do conhecimento explícito, alcançando o implícito e o oculto nas coisas, fatos, informações. É conscientização e práxis, onde a reflexão se concretiza na prática e a prática ganha significado na reflexão.

O pensar certo é um elemento importante para a humanização freiriana. Por isso, a proposta educacional objetiva necessariamente em formar os estudantes para esse modo de pensamento que é crítico, criativo e autônomo, participativo, dialógico, comprometido com a experiência transformadora da realidade sociopolítica. Uma abordagem de escola (educação) publica democrática direcionada para o desenvolvimento de sujeitos reflexivos, críticos e engajados na transformação da realidade. Dessa forma, percebemos uma convergência entre o pensamento reflexivo de Lipman e o conceito de pensamento certo de Freire. Assim como o pensamento reflexivo de Lipman, a abordagem freiriana do pensamento certo vai além da simples aplicação de fórmulas ou da adesão acrítica a ideias preexistentes. Para Freire, o pensamento correto está intrinsecamente ligado ao cultivo de uma consciência crítica e emancipadora. E os dois conceitos implicam uma educação escolar, na qual os estudantes se engajam de maneira ativa na construção do conhecimento a partir de suas experiências existenciais em busca da humanização.

Podemos inferir, portanto, que a vitalidade do pensamento reflexivo em comunidade de investigação e do pensamento correto desenvolvido na prática pedagógica de círculos de cultura está intrinsecamente ligada ao diálogo e à participação. O pensar reflexivo na prática crítica destaca a importância de aprender através de um diálogo reflexivo sobre experiências, originado na comunidade, enquanto o pensamento correto implica em questionar as estruturas sociais, culturais e políticas que perpetuam a opressão. Esse processo envolve uma análise reflexiva da realidade, considerando as nuances contextuais, conforme observado nas perspectivas de Lipman e Freire, e contrasta com os pressupostos do modelo de homeschooling.

A terceira ideia, sobre os pressupostos de homeschooling, que gostaríamos de explorar é referente a quem opta por esse modelo de ensino, especialmente no Brasil. Como vimos acima, esse pressuposto deve ser analisado também na perspectiva política. No Brasil, é fato que uma parcela considerável da população empobrecida adere a esse tipo de ensino devido a motivos ideológicos profundos, tais como o fundamentalismo e as fobias sociais, entre outros. Em termos políticos, esse modelo de ensino é defendido por aqueles que se afirmam ser conservador liberal, que fazem parte, sobretudo, das classes dominantes brasileiras. Segundo Vasconcelos (2017, p. 130), os que defendem “esse modelo de ‘escolaridade em casa’ seriam, principalmente, famílias de ‘muito alto status econômico, cultural e social’, além de possuírem ‘valores muito tradicionais’ [que incluem os religiosos] (Vasconcelos, 2017, p. 130). O emprego das crenças religiosas com esse propósito parece ser apenas um meio de desestruturar a escola pública, que é um patrimônio comum. Uma das razões fundamentais para a prática do homeschooling, que se sugere implicitamente, é o desejo desses grupos de estabelecer “outra escola” sob seu controle, preferencialmente de natureza privada.

Na defesa de suposto direito à liberdade dos pais sobre os filhos, além da preocupação com a formação do caráter de seus filhos e em direcionar os valores e as virtudes que estes devem incorporar, o foco do homeschooling é a educação “intelectual” de seus filhos, de acordo com a ANED. Rejeitando o ensino público e estabelecendo o ensino domiciliar, os opressores mantêm os privilégios que sempre tiveram sobre os outros. Ou seja, os outros pertencentes às classes populares (oprimidos) são direcionados a receber uma formação de uma educação sucateada e pobre, oferecida pelo Estado, reduzida â formação de mãos de obra, enquanto os opressores recebem uma formação elitizada de um ensino diferenciado, com muitas oportunidades. Isso contribui na manutenção das desigualdades educacionais no Brasil. Esse é o entendimento também de Vasconcelos (2004, p. 29), quando diz que “nessa perspectiva, faz-se notar que a educação pretendida pelas elites aspirava não só à instrução, mas a uma educação intelectual que já sinalizava a possibilidade de destaque de uns sobre os demais”.

Defendendo o ensino público sob a ótica de Paulo Freire e contrastando com os três pressupostos do homeschooling no Brasil mencionados anteriormente, a fundamentação repousa no conceito de pensar certo. Paulo Freire, notório defensor da escola pública, percebia que, apesar dos desafios na sua execução, essa instituição desempenhou um papel crucial no Brasil, destacando-se na superação tanto do analfabetismo literal quanto do político. Para o filósofo brasileiro, a escola desempenha um papel importante no processo de formação da consciência crítica dos estudantes, integrando-os a seus contextos. Em outras palavras, a escola “estimula a consciência transitivo-crítica” (Freire, 2002, p. 83). Essa consciência crítica ou a conscientização, dentro da educação defendida por Freire, possibilita aos educandos “discussão corajosa de sua problemática; de sua inserção nessa problemática; os coloca em diálogo constante com os outros; os predisponha a constantes revisões, à análise crítica de seus ‘achados’” (Freire, 2002, p. 38). A transição da consciência ingênua, marcada por explicações fabulosas e míticas, com uma propensão ao conformismo, para a consciência crítica, segundo o autor, ocorre por meio de uma abordagem educacional direcionada “para a consciência do grupo, e não para a ênfase exclusiva no indivíduo” (Freire, 2002, p. 85). A escola pública, portanto, configura-se como um espaço de experiência democrática constante para seus participantes, onde estes estão engajados em participar, dialogar, tomar decisões, construir e transformar a realidade.

Escola que, plural nas suas atividades, criará circunstâncias as quais provoquem novas disposições mentais no brasileiro, com que se ajustará em condições positivas ao processo de crescente democratização que vivemos. Escola que se faça uma verdadeira comunidade de trabalho e de estudo, plástica e dinâmica. E que, ao em vez de escravizar as crianças e mestras a programas rígidos e nocionalizados, faça que aquelas aprendam sobretudo a aprender, a enfrentar dificuldades, a resolver questões, a identificar-se com a sua realidade, a governar-se, pela ingerência nos seus destinos, a trabalhar em grupo (Freire, 2002, p. 85).

Um ensino que não incentiva seu aluno a se envolver em debates e análises de problemas, privando-o de condições para uma verdadeira participação, contradiz fundamentalmente o espírito público, comum. A participação de todos e todas, no cenário demoractico, é instrumento para o desenvolvimento do pensar reflexivo na infância. Esta prática é proveniente das experiências individuais e compartilhadas das crianças e adolescentes que se deparam com questões problemáticas, dúvidas e incertezas, instigando-os a buscar respostas em diálogo com as outras crianças. Isso favorece o destaque de todas elas.

Podemos, portanto, falar em “converter a sala de aula em uma comunidade de investigação” na qual os alunos dividem opiniões com respeito, desenvolvem questões a partir das idéias de outros, desafiam-se entre si para fornecer razões a opiniões até então não apoiadas, auxiliarem uns aos outros ao fazer inferências daquilo que foi afirmado e buscar identificar as suposições de cada um. Uma comunidade de investigação tenta acompanhar a investigação pelo caminho que esta conduz ao invés de ser limitada pelas linhas divisórias das disciplinas existentes. [...] Consequentemente, quando este processo é internalizado ou introjetado pelos participantes, estes passam a pensar em movimentos que se assemelham aos procedimentos. Eles passam a pensar como o processo pensa (Lipman, 2001, p. 31).

A construção do conhecimento no processo de pensar reflexivo e pensar certo é uma prática que envolve pessoas com diferentes opiniões e visões de mundo acerca de um interesse comum, ela possibilita a democracia como modo de vida, na qual os indivíduos aprendem a lidar melhor com essas diferenças problemáticas na vida social, permitindo e estimulando que eles sejam participantes e pensadores ativos nesse processo. É ético por ser uma atividade conjunta que desenvolve o intelecto acerca do assunto proposto, considerando as diferentes visões expostas por cada membro do grupo, o que reforça o valor das experiências individuais e compartilhadas. Trata-se de uma práxis que torna os participantes mais inteligentes socialmente e mais ativos na transformação de suas realidades. A democracia se faz no diálogo com os outros e com a participação de todos. Por esse motivo, Freire acredita que a democracia, defendida por ele, não se alinha com a visão proposta pelo paradigma liberal-conservador brasileira, pois esta é fundada na ética do mercado:

uma democracia que aprofunda as desigualdades, puramente convencional, que fortifica o poder dos poderosos, que assiste de braços cruzados à aviltação e ao destrato dos humildes e que acalenta a impunidade. [...] uma democracia cujo sonho de Estado, dito liberal, é o Estado que maximiza a liberdade dos fortes para acumular capital em face da pobreza e às vezes da miséria das maiorias. [...] democracia puramente formal que “lava as mãos” em face das relações entre quem pode e quem não pode porque já foi dito que “todos são iguais perante a lei”. [...] Lavar as mãos diante das relações entre os poderosos e os desprovidos de poder só porque já foi dito que “todos são iguais perante a lei” é reforçar o poder dos poderosos. [...] democracia fundada na ética do mercado que, malvada e só se deixando excitar pelo lucro, inviabiliza a própria democracia (Freire, 2000, p. 24, colchete nossas e aspas no original).

A suposta democracia liberal, endossada pelos discursos estritamente liberais, revela-se uma ilusão. Anula a liberdade democrática conquistada a duras penas e ainda incipiente em nosso país e acarreta, como consequência, a anulação da própria liberdade individual ou familiar. De um lado, promove uma ideologia que postula a existência dos princípios de igualdade, liberdade e autonomia no domínio de ideias. Contudo, trata-se de uma fantasia, um devaneio, uma farsa elaborada com o propósito de alienar, oprimir, massificar as classes subjugadas e manter os privilégios dos opressores. Certamente, a democracia constitui um processo que abrange as esferas social, política e educacional, fundamentado na premissa da liberdade. Este processo demanda a participação ativa, a consciência crítica e a incessante busca, por meio de ações transformadoras, pela plenitude do ser humano, que é a humanização.

Para fecharmos esse item, antes de adentramos às considerações finais, diríamos que embora Freire e Lipman compartilhem a ênfase no pensamento crítico, os pensamentos dos dois têm nuances distintas. Vamos considerar a relação entre essas abordagens em oposição à proposta de homeschooling no contexto brasileiro. Matthew Lipman dedica sua atenção ao aprimoramento do pensamento reflexivo dos alunos em ambiente escolar, principalmente através da implementação da Filosofia para Crianças. Ele destaca a relevância de estabelecer uma comunidade de investigação, na qual os estudantes possam explorar questões filosóficas por meio de diálogos e reflexões. A capacidade de formular perguntas é identificada como o elemento essencial para cultivar o pensamento reflexivo, sendo essa prática também considerada uma expressão da participação democrática. O pensar reflexivo, através da Comunidade de investigação, deve proporcionar um espaço contrário à conformidade, à acomodação, trabalhando com perspectivas ainda não exploradas, o que não demanda necessariamente chegar-se em um consenso, mas proporcionar a reflexão sobre a experiência, reconstruindo os significados. A dúvida pode permanecer e dessa dúvida, novas investigações aflorarem. A prática dialógica, problematizadora, crítica e criativa, representa uma forma de atender à necessidade, de tratar os membros como seres pensantes por si mesmos na investigação com os outros, aprendendo com as experiências dos outros. Ela representa o sentido mais radical da liberdade que se faz prática dialógica razoável e responsável.

Paulo Freire explora o conceito de pensar certo, indo além da simples imposição ou transmissão de uma realidade externa. Esse conceito está intrinsecamente ligado à consciência crítica, à experiência democrática e à compreensão das estruturas de poder político-econômico que perpetuam a opressão, as desigualdades socioculturais no Brasil. Freire destaca a necessidade de uma educação libertadora e questionadora, na qual os oprimidos não apenas adquiram conhecimento, mas também desenvolvam a habilidade de analisar criticamente sua própria realidade com o objetivo de transformá-la constantemente. O filósofo brasileiro ressalta a importância de integrar a educação no contexto social e cultural dos oprimidos, tornando assim o aprendizado significativo e relevante para suas vidas porque as libertam e humanizam.

Diferentemente do modelo de ensino domiciliar, o pensar diferente, o dissenso, o contraditório é assumido e respeitado no processo de pensamento reflexivo e pensamento correto compartilhado construído no ensino público. A abordagem de pensar certo em Freire enfatiza a importância da práxis, ou seja, da integração entre teoria e prática. O conhecimento não é apenas um conjunto de informações isoladas, mas uma ferramenta ativa na transformação da realidade. Assim, pensar certo envolve não apenas compreender conceitos, mas também aplicá-los de maneira ética e solidária para promover a justiça social e a liberdade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da fundamentação filosófica de educação domiciliar, referente à liberdade entendida como direito dos pais sobre a dos filhos, e interpretada na perspectiva político- conservador-liberal por parte de quem defende esse modelo de ensino no Brasil, foi possível resgatar a proposta filosófica de educação de Paulo Freire, a partir de conceito de integração, que possibilita uma compreensão situacional e temporal que se faz com os outros. E essa condição permite o processo de criação, recriação e transformação do mundo por meio da imaginação, questionamento e criatividade, o que pressupõe o pensar certo e pensar reflexivo e dialógico com os outros. Uma educação integradora com o espaço e tempo dos estudantes, que são também sujeitos educacionais, permite-os assumir sua radicalidade histórico-cultural conscientemente, transformando-os com os outros (Dju; Muraro, 2021).

O ensino domiciliar no Brasil apresenta contradição quanto a sua fundamentação filosófica e, por isso, pode ser considerado insuficiente para a formação de uma sociedade democrática. É possível evidenciar que o paradigma de homeschooling tem como medida de valor a manutenção do status quo dominante. Como ideia principal, as crianças e adolescente devem adquirir os mesmos valores, as mesmas aptidões e recursos dos adultos por meio de uma direção externa e de uma prática mnemônica e seleta. Isso nada mais é, para Freire, que reproduzir a dominação através de ação educacional opressor.

O pressuposto sobre a necessidade de reconstrução da prática pedagógica a partir das filosofias de Paulo Freire e de Matthew Lipman, visa estabelecer uma alternativa para a prática educativa compromissada com o papel libertador e humanizador da educação na formação dos sujeitos para viver em comunidade, isto é, para a experiência democrática. Contrapondo-se à proposta de ensino domiciliar, as proposições dos autores defendem uma educação integrada e humanizadora, voltada para o pensar crítico a partir de teorias educacionais alternativas que têm o pensar, a experiência e interesse dos educandos como premissas. É a partir do entendimento desse conceito que os seres humanos compreendem seu papel na sociedade e, com isso, se tornam capazes de se responsabilizar por uma prática de vida libertadora. Para Freire, a integração está ligada à consciência, conscientização, ao pensar certo. Ela é aperfeiçoada na medida que a consciência do ser humano se torna crítica, superando os fatores que o acomodam e perpetuam a condição de opressão.

E a ideia de pensamento reflexivo numa comunidade de Lipman vem da associação com o(s) outro(s) que acontece por meio da comunicação, condição necessária para a vida democrática. Diante disto, é possível identificar que para a realização da prática do deliberar, do investigar e do fazer julgamentos é necessário o uso da comunicação para se expressar no compartilhamento de argumentos do processo deliberativo. Podemos entender com isso, que o raciocínio em comunidade investigativa, desenvolvido nesta ação pedagógica tem efeito transformador quando guiado pelo diálogo. A pedagogia proposta por Lipman possui o objetivo de produzir de forma reflexiva os significados de uma experiência dialogada comunitariamente. Esta característica identifica a ação da filosofia, prática que oportuniza condições de aprendizagens em todas as áreas do conhecimento.

Em face do exposto, por meio desse texto, defendemos que o caminho para uma sociedade democrática é a educação integrada e libertadora que forma o sujeito para viver em comunidade a partir da práxis dialógica, pois é nela que encontramos a oportunidade de formar cidadãos reflexivos, conscientes, críticos, dialógicos e democráticos. Sujeitos capazes de assumir responsavelmente sua participação no desenvolvimento da sociedade a partir dos ideais democráticos voltados para a integração do ser humano com o mundo. Entendemos haver sintonia na intencionalidade de ambos os autores (Freire e Lipman) que, por caminhos diferentes e adequados à experiência existencial, não se furtaram ao trabalho de pensar a educabilidade da filosofia na formação e construção da democracia como possibilidade de integração social e humana.

Por fim, deixamos o questionamento da redução ao âmbito privado da principal mediação de renovação da sociedade como função social que cabe à educação. Na aparência da contraditória boa intencionalidade da liberdade da educação se escondem artimanhas de mercantilização da educação, da precarização do trabalho docente reduzido à condição de profissional doméstico ou familiar e das inúmeras possibilidades de reinar a arbitrariedade autoritária e das violências às crianças oprimidas, sem voz e vez, no universo privado e privador que se reduz a casa.

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Endereços para correspondência:

Antonio Oliveira Dju; Patrícia Melo Magoga; Darcísio Natal Muraro - Universidade Estadual de Londrina, Campus Universitário, Cx. Postal 10011, 86.057-970, Paraná.

antoniodju@yahoo.it; patricia_magoga@hotmail.com; murarodnm@gmail.com.


1 Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina; Graduado em Philosophy and Social Sciences pela Spiritan Institute of Philosophy, SIP, Gana.

2 Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina; Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Londrina.

3 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo; Professor Adjunto no Departamento de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina.

4 Termo usado nos EUA para se referir a essa modalidade de ensino, defendidas por algumas famílias. Em português, significa educação domiciliar ou ensino doméstico. Doravante, usaremos homeschooling ou educação domiciliar ou ensino domiciliar como sinônimos.

5 Informação coletada no site oficial da ANED: https://www.aned.org.br/index.php/sobre-nos/nossa-historia-aned. Acesso em: 15 set. 2022.

6 Surgiu em 2010 e, logo em seguida, esses pais formaram uma associação nacional para defender esse interesse. Informação coletada no site oficial da ANED: https://www.aned.org.br/index.php/sobre-nos/nossa-historia-aned. Acesso em: 15 set. 2022.

7 Informação coletada em uma das redes sociais da deputada Luisa Canziani, do Paraná. Disponível em: https://twitter.com/JovemPanNews/status/1492963035593330688?s=20&t=ADhp132_Hy1n9J7gZDRxMA. Acesso em: 15 set. 2022.

8 Informação coletada do site da ANED: https://www.aned.org.br/index.php/sobre-nos/quem-somos-aned. Acesso em: 15 set. 2022.