https://doi.org/10.18593/r.v47.30172

Resenha

Por uma didática sensível na educação superior

Giovana Cristina Zen1

Universidade Federal da Bahia; Professora Adjunto;

Orcid:  https://orcid.org/0000-0001-6405-9843

D’ÁVILA, C. Métodos e técnicas de ensino e aprendizagem para a Educação Superior: cardápio pedagógico. Salvador: EDUFBA, 2021.

Recebida em 26 de abril de 2022

Aceita em 19 de maio de 2022

O livro “Métodos e técnicas de ensino e aprendizagem para a Educação Superior: Cardápio Pedagógico”, da Professora Cristina D’Ávila, publicado em 2021 pela EDUFBA, apresenta um conjunto de propostas didático-pedagógicas que foram reunidas ao longo de seu exercício docente no Ensino Superior. Desde o título do livro já é possível identificar a relação estabelecida entre o ato de ensinar e o ato de cozinhar, entre o saber e o sabor. A alusão ao cardápio está relacionada à ideia de diversidade de possibilidades e de reinvenção da prática pedagógica no Ensino Superior. Na introdução a autora convoca o leitor a resgatar o elo perdido entre o saber o sabor para que se possa estar inteiro na experiência da aprendizagem. Destaca que ensinar é um verbo transitivo direto que implica o comprometimento com o outro. A ideia de que ensinar pressupõe ocupar-se do outro se constitui em uma diferença fundante entre o que é o proposto no cardápio pedagógico e os modelos transmissivos de ensino. A autora enfatiza que este cardápio deve ser degustado, saboreado e ensinado, mas salienta também que os métodos e técnicas não podem ser escolhidos à revelia do que se pretende ensinar, do perfil de cada turma e da disponibilidade de recursos didáticos, tempo e espaço para sua realização. Na Introdução, a autora também esclarece que as reflexões, métodos e técnicas apresentadas no livro estão ancoradas na pedagogia raciovitalista, uma construção própria que foi produzida a partir dos princípios que regem a teoria raciovitalista de Michel Mafffesoli (2005) e o ideário da complexidade de Edgar Morin (1990). Desta pedagogia decorre uma didática sensível, que provém da compreensão sobre o enlace inelutável entre pensamento, sensibilidade, razão e emoção.

O Ensino como mediação didática é o título do segundo capítulo do livro e nele consta um importante esclarecimento sobre o objeto da didática e seu lugar no campo educacional. A didática, responsável pelo estudo do processo de ensino em uma relação de interdependência com a aprendizagem, filia-se à pedagogia como uma área de conhecimento. A autora também retoma e aprofunda a reflexão anunciada na introdução de que ensinar pressupõe trabalhar com e para a aprendizagem de outrem. A partir disto, defende que o processo de ensinar é mediacional, ou seja, uma ação mediadora sobre os processos de aprendizagem dos alunos. Esclarece que a mediação didática, exercida pelo professor sobre a mediação cognitiva do estudante, consiste em estabelecer as condições ideais à ativação do processo de aprendizagem e destaca a necessidade de incluir, nesta mediação, os saberes lúdicos e sensíveis. A autora ressalta ainda que para saber ensinar é preciso saber como se aprende e conclui que os conceitos de mediação cognitiva e de mediação didática representam um avanço na compreensão do trabalho docente.

No capítulo intitulado “Saberes pedagógicos, saberes didáticos: saber sensível e lucidade transversalizando as metodologias de ensino” é retomado o pressuposto de que os saberes pedagógicos e didáticos são saberes que provêm da formação docente e do exercício da docência. O ato de planejar, de gerir uma classe, de mediar didaticamente os conteúdos e de avaliar são alguns dos saberes pedagógicos-didáticos apresentados pela autora como estruturantes da profissão docente. Na sequência, esclarece que os saberes pedagógicos são os saberes da formação pedagógica, provenientes das ciências da educação e da ciência pedagógica. Os saberes pedagógicos são os conhecimentos que sustentam a prática docente e abarcam os didáticos que se dividem em dois tipos: saberes sobre a mediação da aprendizagem e saberes sobre a gestão de classe. Entre os saberes pedagógico-didáticos fundamentais, destaca a escolha das metodologias de ensino como um saber fundante da ação docente, objetos de mediação que operam no coração da didática.

No terceiro capítulo a autora também discorre sobre o saber sensível como saber transversal aos demais saberes da docência. Argumenta que é preciso distinguir o inteligível do sensível e cita Duarte Júnior (2004) para explicitar que o inteligível é todo conhecimento capaz de ser articulado abstratamente por nosso cérebro através de signos lógicos e racionais, enquanto o sensível refere-se à sabedoria do corpo, se manifestando em situações variadas do cotidiano. A dicotomia corpo/mente foi responsável por engendrar a superioridade do trabalho mental sobre o manual, da inteligibilidade sobre a intuição, lesando o aprendizado prazeroso em que o corpo, a emoção e a mente devem ser convocados. Por esta razão, a autora defende que a experiência estética seja a experiência sensível portadora de sentidos, de significações que se estendem à percepção, à abstração e à conceituação. Também aporta sua discussão no entrelaçamento entre o lúdico e o saber sensível e, a partir da acepção de ludicidade proposta por Luckesi (2006), defende que a dimensão ludo-sensível engloba tanto o saber lúdico quanto o saber sensível em um imbricamento dialético. Por fim, afirma que na pedagogia raciovitalista, a didática sensível dá origem a uma metodologia criativa e sensível, ancorada no enlace entre razão e sensibilidade, o qual faz emergir uma racionalidade sensível complementar à racionalidade inteligível. As formas de intervenção didática, nessa perspectiva, aguçam a estética e o lúdico associados à inteligibilidade nas formas de apreensão e produção do conhecimento, numa lógica que rompe com o paradigma racionalista-instrumental.

Face ao exposto nos três primeiros capítulos, é possível afirmar que o livro não se resume a uma compilação de técnicas de ensino numa vertente tecnicista. A partir de uma fundamentação teórica consistente, apresenta propostas de mediação didática que visam: despertar o desejo de aprender dos educandos a partir de dinâmicas de sensibilização; fomentar a capacidade criativa mediante técnicas de imaginação; propiciar a ressignificação do conhecimento através de técnicas problematizadoras e integrar saberes e os sujeitos da ação pedagógica, professores e educandos, através de dinâmicas integradoras.

Assim, o cardápio pedagógico propriamente dito tem início no quarto capítulo, sob o título “Despertar o desejo de saber: Sensibilização”. Neste capítulo são apresentadas oito técnicas e métodos que potencializam um mergulho significativo nas subjetividades, na concentração individual e na integração entre os pares. De acordo com a autora, a sensibilização permite o abrir de canais para a apreensão sensível e inteligível dos conhecimentos. É parte da aprendizagem e conduz a um encontro, por inteiro, entre o sentir e o pensar.

O quinto capítulo é composto por doze situações com a intenção de provocar a imaginação, uma capacidade humana pela qual o pensamento criativo ganha forma. Segundo a autora, não se pode apreender um conhecimento apenas pelo raciocínio abstrato; a capacidade humana de pensar e de compreender as coisas é atravessada pelo sensível. Entre as técnicas e métodos copilados nesse capítulo, destaca-se as constelações identitárias, as mandalas, as metáforas criativas e o chão de flores.

Não menos importante do que provocar a imaginação é problematizar o conhecimento. Por este motivo, no sexto capítulo a autora reúne quinze propostas capazes de aguçar o pensamento lógico e fomentar redes amplas de significados. Algumas das propostas deste capítulo foram ressignificadas a partir de técnicas e métodos conhecidos como o GVGO e o Júri Popular. Além dessas, há outras situações interessantes, com destaque para o Varal da Sabedoria, o Pense Rápido e o Caleidoscópio.

No sétimo capítulo são apresentadas situações que permitem a ressignificação do conhecimento. Como esclarece a autora, aprender é dotar de sentido alguma coisa, dar um significado pessoal a algum conhecimento. As doze técnicas e métodos apresentados nesse capítulo fomentam a transformação dos conflitos cognitivos, oriundos da problematização, em controvérsias coletivas capazes de gerar sínteses e ressignificações do conhecimento, a exemplo de situações como o Painel integrador de conceitos e o Construindo mapas mentais.

As Dinâmicas integradoras compõem o oitavo e último capítulo deste cardápio pedagógico. Ao todo são seis propostas que visam a integração dos conceitos, a corporificação dos conhecimentos aprendidos e a expressão dos sentimentos entre os pares. Entre elas, um destaque especial para o Parangolé.

Em síntese, neste livro a Professora Cristina D’Ávila assume o risco de apresentar técnicas e métodos em formato de receitas. Em cada uma das propostas, além do objetivo, há uma entrada, um prato principal e uma sobremesa. A ousadia assumida pela autora em detalhar técnicas e métodos faz lembrar que por muitos anos a racionalidade técnica, confiante na objetividade do ato educativo, negou ao professor a autoria de seu fazer. Mesmo assim, eles seguiram em busca de alternativas didático-pedagógicas e foram acusados de querer “receita pronta” ao invés de criar suas próprias metodologias. Como esclarece Libâneo,

As críticas ao modelo da racionalidade técnica não poderiam ter deixado os professores desprovidos dos modos de condução da sala de aula. A compreensão da prática, o pensar sobre a prática, passa pelo domínio dos instrumentos do exercício profissional. Não se trata da técnica pela técnica, mas de associar de modo mais eficaz o modo de fazer e o princípio que lhe dá suporte. (2012, p. 69).

O discurso da racionalidade técnica abandonou os professores à própria sorte e o que se pode ver no livro “Métodos e técnicas de ensino e aprendizagem para a Educação Superior: Cardápio Pedagógico” é um resgate do fazer criativo e sensível de uma professora do ensino superior, comprometida com uma atuação profissional recheada de sentidos e significados.

O Cardápio Pedagógico é, em si, uma analogia à Festa de Babete2. Um banquete oferecido aos docentes universitários e que promete despertar toda a sensualidade do ato pedagógico. A referência ao termo sensual tem origem no latim sensualis, que nos remete ao que se sente, ao que apresenta sensibilidade. Portanto, este livro nos inspira a reconhecer toda a sensualidade presente em uma sala de aula e com isto compreender a aula como “um ato técnico-político, criativo, expressão de beleza e dos valores científicos e éticos de cada um dos envolvidos no processo de ensino” (VEIGA, 2011, contracapa).

A incursão pela obra vale pelas oportunas contribuições de uma didática sensível, que desde o seu prefácio, nos convoca a pensar no enlace entre pensamento e sensibilidade, entre razão e emoção. O livro “Métodos e técnicas de ensino e aprendizagem para a Educação Superior: Cardápio Pedagógico”, da Professora Cristina D’Ávila, é um ato de resistência contra a hegemonia academicista que ainda impera no contexto universitário, uma indicação referencial para aqueles que estão em busca de uma prática docente mais humanizada, mais sensual e, portanto, mais comprometida com os estudantes, com a aprendizagem e com a profissionalidade docente.

REFERÊNCIAS

D’ÁVILA, C. Métodos e técnicas de ensino e aprendizagem para a Educação Superior: cardápio pedagógico. Salvador: EDUFBA, 2021.

DUARTE JR, J. F. O sentido dos sentidos: a educação do sensível. 3. ed. Curitiba: Criar edições, 2004.

LIBÂNEO, J. C. O campo teórico e profissional da didática hoje: entre Ítaca e o canto das sereias. In: FRANCO, M. A. S.; PIMENTA, S. G. (org.). Didática: embates contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2012.

LUCKESI, C. Ludicidade e atividades lúdicas: uma abordagem a partir da experiência interna. [S. l.: s. n.], 2006. Disponível em: http://luckesi002.blogspot.com/2015_03_01_archive.html. Acesso em: 29 mar. 2021.

MAFFESOLI, M. Éloge de la raison sensible. Paris: La table ronde, 2005.

MORIN, E. Introduction à la pensée complexe. Paris: ESF éditeur, 1990.

VEIGA, I. P. A. (org.). Aula: gênese, dimensões, princípios e práticas. 2 ed. Campinas: Papirus, 2011.


1 Pós-Doutora em Alfabetização pelo Centro de Investigación y de Estudios Avanzados, México; Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia.

2 A Festa de Babette é um filme dinamarquês de 1987, dirigido por Gabriel Axel e baseado em conto de Karen Blixen. O filme conta a história de Babette, uma refugiada francesa que é recebida como cozinheira na casa de duas senhoras puritanas, filhas de um profeta protestante, em um pequeno povoado na Noruega.