https://doi.org/10.18593/r.v47.30140

Entrevista: A didática na formação inicial de professores para a atuação na educação básica, com Ilma Passos Alencastro Veiga

Interview: The didactic in the initial teacher’s training in order to work in the basic education, with Ilma Passos Alencastro Veiga

Entrevista: La didáctica en la formación inicial de profesores para la acción en la educación básica, con Ilma Passos Alencastro Veiga

Edileuza Fernandes Silva1

Universidade de Brasília; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da FE/UnB; https://orcid.org/0000-0003-0576-1119

Maria Alessandra Lima Moulin2

Universidade de Brasília; Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da FE/UnB;

https://orcid.org/0000-0001-8486-2852

Resumo: Esta entrevista discute a didática na formação inicial de professores para a atuação na educação básica a partir do diálogo com Ilma Passos Alencastro Veiga, Professora Emérita da Faculdade de Educação da Universidade da Brasília. São abordadas questões teórico-práticas que retomam experiências, estudos, pesquisas e produções da entrevistada acerca da disciplina Campo da Pedagogia, a qual cumpre papel central na formação didático-pedagógica nas licenciaturas. A Didática é disciplina do currículo de cursos de licenciatura que tem como objeto o ensino com vistas às aprendizagens dos estudantes. Fundamentada na relação teoria-prática, concretiza-se no ato educativo para o alcance das finalidades da educação básica. As reflexões possibilitadas pelas questões indicam que o confronto entre teoria e prática foi uma constante na formação da autora, bem como em sua atuação profissional, levando-a a questionamentos acerca da Didática na formação docente. Suas reflexões reafirmam a complexidade da formação de professores e a relevância dessa disciplina nesse processo, portanto, é necessário repensar a Didática para os cursos de licenciatura de forma democrática, com discussões abertas e críticas. Seu desafio atual é a convergência para uma proposta de Didática inovadora, fundamentada na Pedagogia Histórico-Crítica.

Palavras-chave: Didática; Formação de professores; Educação Básica.

Abstract: The interview, based on Ilma Passos Alencastro’s thoughts, discusses the Didactic in the initial teachers’ training to qualify students as teachers to work basic education. Theoretical and practical issues are addressed that take up interviewee’s experiences, studies, research, and productions about this discipline, which is part of the pedagogy field and that plays a central role in the didactic-pedagogical training at the undergraduate level. Didactic is a discipline that, in turn, has as its object the successful teaching of the students. The interviewee‘s answers addressed a long-lasting confrontation between theory and practice, not only in her academic training but also in her professional performance. This led to deep reflections on didactics in the teacher training field. Her reflections confirm the complexity of the teachers’ training and the central role of the didactic over this process. Besides, it may conclude that it is necessary to rethink the way this discipline is carried out in undergraduate courses throughtout Brazil to make this process democratic with open and critical discussions. Its current challenge is the convergence towards an innovative Didactic based on the Historical-Critical Pedagogy.

Keywords: Didactic; Teacher Training; Basic Education.

Resumen: Esta entrevista aborda la didáctica en la formación inicial de profesores para trabajar en la educación básica a partir del diálogo con Ilma Passos Alencastro Veiga, profesora emérita de la Facultad de Educación de la Universidad de Brasilia. Se abordan cuestiones teóricas y prácticas que retoman experiencias, estudios, investigaciones y producciones del entrevistado sobre el tema Campo de la Pedagogía, que desempeña un papel central en la formación didáctica y pedagógica en los cursos de pregrado. La didáctica es una asignatura del plan de estudios de los cursos de grado que tiene por objeto la enseñanza con vistas al aprendizaje de los alumnos. A partir de la relación teoría-práctica, se materializa en el acto educativo para lograr los propósitos de la educación básica. Las reflexiones posibilitadas por las preguntas indican que la confrontación entre la teoría y la práctica fue una constante en la formación de la autora, así como en su desempeño profesional, lo que la llevó a cuestionarse sobre la Didáctica en la formación docente. Sus reflexiones reafirman la complejidad de la formación del profesorado y la relevancia de esta asignatura en este proceso, por lo que es necesario repensar la Didáctica para los cursos de grado de forma democrática, con discusiones abiertas y críticas. Su reto actual es la convergencia hacia una propuesta de Didáctica innovadora, basada en la Pedagogía Histórica Crítica.

Palabras claves: Didáctica; Formación de profesores; Educación básica.

Recebido em 18 de abril de 2022

Aceito em 19 de maio de 2022

Ilma Passos Alencastro Veiga é bacharel e licenciada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Goiás; e licenciada em Educação Física pela Escola Superior de Educação Física de Goiás. O mestrado em Educação foi realizado na Universidade de Santa Maria; já o doutorado e o pós-doutorado em Educação foram pela Universidade Estadual de Campinas. É professora Titular Emérita da Universidade de Brasília. Suas experiências na área de Educação são em Formação de Professor, Didática, Educação superior, docência da educação superior e projeto político-pedagógico, desenvolvendo atividades de ensino, pesquisa, extensão e gestão. É autora de inúmeros artigos científicos, capítulos e livros autorais. Duas de suas obras foram indicadas ao Prêmio Jabuti, evento organizado pela Câmara Brasileira do Livro com o propósito de premiar os melhores livros brasileiros publicados em diferentes categorias.

Em função da pandemia de covid-19, a entrevista com Veiga foi realizada via on-line, utilizando-se plataforma aberta, no dia 10 de fevereiro de 2022. A entrevista orientou-se por um roteiro semiestruturado, elaborado pelas entrevistadoras e enviado anteriormente à entrevistada.

A entrevista gravada e transcrita sugere a estruturação do diálogo nos seguintes eixos:

1) a didática na fase pré-profissional;

2) a prática pedagógica do professor de Didática;

3) o repensar da Didática na formação docente.

Professora Ilma Veiga apresenta incialmente suas percepções acerca da didática, construídas desde a tenra idade, na convivência com sua mãe, por ela reconhecida como uma grande Mestra. A educadora-pesquisadora cujas concepções e práticas docentes foram engendradas a partir de paradigma tecnicista de Didática, percorre uma longa trajetória de estudos, pesquisas, diálogos com estudantes, orientandos e com seus pares visando a construção de uma Didática crítica.

Na entrevista, Ilma Veiga apresenta recupera as mudanças dos currículos de licenciatura para a formação de professores, com alterações na perspectiva tecnicista para a perspectiva crítica e enfatiza a necessidade de uma reflexão sobre as práticas pedagógicas, analisando suas contradições e assumindo os movimentos evolutivos constituídos histórica e criticamente.

Em seguida, a entrevistada apresenta sua percepção acerca das Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial de professores da Educação Básica (2019), destacando que estas favorecem o fortalecimento das dicotomias entre formação e realidade social, trabalho e educação, professor e aluno, entre outros elementos estruturantes na formação docente e no trabalho didático-pedagógico.

Professora Ilma Veiga aborda, ainda, os desafios para a Didática pós pandemia (COVID-19) e finaliza com sua visão acerca de como é possível repensar a didática nos cursos de licenciatura.

A história de vida da professora Ilma Veiga demonstra o quanto essa educadora dedicou-se ao estudo da Didática e da formação docente. A Pedagogia Histórico-Crítica, apontada por ela ao final da entrevista, demonstra a atenção necessária ao estudo de uma vertente teórica que possibilite ao docente o protagonismo no processo de mudança social. Por meio da elaboração de uma proposta de didática inovadora, fundamentada na Pedagogia Histórico-crítica, a professora busca ferramentas teórico-práticas para a promoção dessa mudança.

A seguir a entrevista na íntegra.

Entrevistadoras: Para iniciar nosso diálogo, fale-nos um pouco sobre a sua história com a didática?

Veiga: Minha história com a Didática, na fase pré-profissional, iniciou-se com o convívio diário com minha mãe, Julieta de Passos Alencastro Veiga, professora de Desenho Geométrico e Ornamental, da Escola Técnica Federal de Goiás, na década de 1950, hoje Instituto Federal Goiano. Naquela década, eu cursava o Ginásio no Liceu de Goiânia e me aproximava da Mestra para aprender como ensinava, como avaliava por meio de provas de desenhos e como se relacionava com os estudantes.

O que depreendo desse contato pré-profissional converge para a preocupação com a qualidade exigida pela Mestra, na precisão com os desenhos da prova; na relação amigável, respeitosa e ética com seus estudantes; e pela preocupação com o seu próprio desempenho. Assim, concluo que esse momento me aproximou, de certa forma, às questões do ensino no diálogo com a Mestra Julieta. Estava plantada a semente didática.

Em 1955, iniciei minha primeira fase pré-profissional ao ser aprovada no processo seletivo para o Curso Normal, oferecido pelo Instituto de Educação de Goiás. Entre as várias disciplinas curriculares desenvolvidas, tive a oportunidade de cursar a Didática Geral com a professora Silvia Alessandri. Gostava muito das suas aulas de Didática e das demais disciplinas pedagógicas. Concluí a formação em 1957, sendo prestigiada com a nomeação de Professora Primária pelo Governo do Estado de Goiás.

As características mais marcantes da Didática Geral desenvolvida no Curso Normal com orientações escolanovistas foram: a valorização da infância com respeito, iniciativa, autonomia; a valorização do clima de harmonia na sala de aula; e a ênfase nos métodos ativos e em ambientes com materiais didáticos, tendo por base os fundamentos psicológicos. Essa formação profissional acrítica foi fortalecida pelas orientações práticas da Escola Guatemala do Rio de Janeiro, influenciando superficialmente o Jardim de Infância de Aplicação do Instituto de Educação de Goiás, onde eu exercia a docência com as crianças, com ênfase no lema aprender a aprender. A Escola Nova, com o objetivo de renovação, tanto no meu processo formativo quanto na prática docente, não atingiu o intento previsto. Os autores mais divulgados foram Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Afro do Amaral Fontoura. Lembro-me, ainda, dos fundamentos do manual pedagógico “Técnica da Pedagogia Moderna” (teoria e prática) publicado em 1934, do autor Everaldo Backheuser, na vertente da filosofia católica.

A prática docente na Escola Nova, no entanto, não foi alterada por conta da ausência de estruturas físicas e processuais da escola. Tenho uma vaga lembrança de ter trabalhado com alguns instrumentos didáticos da médica italiana Maria Montessori junto a crianças com necessidades educativas especiais (Método Montessori). Faltavam também leituras sobre a teoria desenvolvida por ela. Assim, a Didática desenvolvida teoricamente por meio de aulas expositivas não produziu os efeitos esperados do projeto escolanovista.

Considero que a minha formação profissional, em nível médio, não propiciou o confronto didático entre o que foi transmitido pela via expositiva sobre os fundamentos escolanovistas e o que foi praticado pela Didática conservadora, transmissiva de conteúdo teórico e distante da prática. Cabe, ainda, uma palavra sobre esse confronto e o compromisso da Didática Geral que, ao procurar novos caminhos para o ensino sob a perspectiva escolanovista, fortaleceu uma prática com postura fincada nos ideais da visão tradicional. Hoje, ao rememorar a formação vivenciada e com outra concepção de Didática Geral para os cursos de licenciatura que formam professores para a educação básica, compreendo que, para inovar e implementar uma teoria didática, é necessário estabelecer relações entre intencionalidades, objetivos, conteúdos, metodologias, procedimentos e avaliação; além de considerar as condições concretas para a efetivação da prática docente.

A Didática na perspectiva da Escola Nova está centrada nos fundamentos da Psicologia Evolutiva e da Aprendizagem, compreendida como um conjunto de métodos e técnicas necessárias ao processo de ensino. A Didática escolanovista, de inspiração norte-americana, criada e difundida por John Dewey, ao fortalecer os processos de ensino, reduziu o conteúdo escolar. Nessa direção, a Didática Geral vivenciada do Curso Normal também enfatizou métodos e técnicas, como Centro de Interesse de Decroly3; Unidade Didática de Morrison4; e Métodos de Projetos de Kilpatrick 5, entre outros.

Ainda na fase pré-profissional, no período marcado entre 1958 e 1960, fiz o bacharelado em Pedagogia. Ao término do bacharelado, realizei o curso de Didática em 1961, considerado independente da licenciatura no esquema “três mais um”, assim denominado pelo conselheiro Valnir Chagas, no Conselho Federal de Educação (1962-1976). Nesse ano vivenciei o ideário escolanovista marcado pela ênfase metodológica que conferia objetividade à prática docente.

É importante ressaltar que, na esteira do movimento escolanovista, eu passei a lecionar a disciplina Didática, obrigatória no currículo do Curso Normal, como também na Licenciatura em Educação Física. O ensino de Didática seguia as orientações do período de 1961 a 1984, voltada para o aspecto instrumental, ou seja, enfatizavam-se procedimentos e recursos de ensino. As aulas eram ministradas com as técnicas de ensino expositivas trabalho em grupo e estudo dirigido, entre outros. Não se utilizavam, por exemplo, resultados de pesquisa, porque esta não fazia parte dos planos de ensino das disciplinas, nem no ensino médio, nem na educação superior. Os textos e os artigos mais difundidos eram principalmente os da professora Amélia Americano Domingues de Castro, da Universidade de São Paulo. Dentre eles ressalto “Redefinição da Didática” (CASTRO, 1972), documento básico apresentado no I Encontro Nacional de Professores de Didática, em Brasília, 1972; “A licenciatura do Brasil”, 1974 (CASTRO, 1974); “A Didática na REBEP” - Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, 1984. (CASTRO, 1984). Destaco também outros autores, como Vera Maria Candau, Paulo Freire, José Carlos Libâneo, Alaíde Lisboa de Oliveira.

O ensino da Didática foi influenciado pelo Acordo celebrado entre o Ministério da Educação/Governo de Minas Gerais e a Missão de Operações dos Estados Unidos (Ponto IV). Por esse Acordo, criou-se o Programa Americano Brasileiro de Auxílio ao Ensino elementar (Pabaee), objetivando o aperfeiçoamento de professores do Curso Normal. Tendo em vista o caráter potencializador dos cursos ofertados no âmbito do Acordo, o ideário renovador-tecnicista foi difundindo-se. O convênio foi executado pelo Centro de Recursos Humanos João Pinheiro (CRHJP), em Belo Horizonte, ao longo do ano de 1969. De 1960 a 1968, o foi período marcado pela crise da Pedagogia Nova, com o predomínio de um novo autoritarismo (Governo Militar) e a hierarquização de funções com a formação de especialistas em educação.

O enfoque do papel da Didática, a partir da abordagem tecnicista, teve como pano de fundo a neutralidade científica, com a preocupação básica com a eficiência e a eficácia do processo de ensino. Visava, ainda, à descrição e à especificação comportamental e operacional dos objetivos, empregando a classificação elaborada por Bloom, Mager, Skiner e outros sobre a conhecida taxinomia dos objetivos educacionais nos domínios cognitivo, afetivo e psicomotor. No Brasil, o livro mais utilizado para a formação de professores foi o “Planejamento de ensino e avaliação”, organizado por Turra, Enricone, Santana e André, cuja 1ª edição ocorreu em 1975. Trabalhei muito com esse livro de Didática nas licenciaturas oferecidas pela Universidade Federal de Uberlândia.

Em busca por outras perspectivas para superar a didática tecnicista num processo contínuo de desenvolvimento de estudos, pesquisadores e professores da disciplina realizaram análises críticas de educação dominante. Saviani (1983, p. 19) agrupou e denominou esses estudos de “[...] teorias crítico-reprodutivistas”, as quais se empenharam em denunciar o carácter reprodutor da escola com ênfase na dimensão política, o que possibilitou à Didática realizar o discurso da denúncia, deixando de lado a sua função de anunciar novos caminhos para a disciplina, ao assumir o discurso sociológico, filosófico e histórico. Se, de um lado, esse movimento de crítica contribuiu para uma postura de denúncia da Didática; de outro, serviu para colocar a Didática em questão e isso apontou para novos tempos, novas tramas e novos rumos.

Entrevistadoras: Professora, foi nesse contexto de questionamento da Didática que você produziu uma obra basilar para a área da Didática e da formação do professor, a qual resultou de pesquisa que contou com a participação de professores e estudantes e a observação em salas de aula, para compreender a relação entre eles no ensino-aprendizagem. Quais as contribuições do seu livro “A Prática Pedagógica do Professor de Didática” (VEIGA, 1989) nesses campos?

Veiga: No período de 1984 a 1988, realizei o doutorado em Educação, na Universidade de Campinas (Unicamp), estado de São Paulo. A tese de doutorado defendida intitulava-se “A prática pedagógica do professor de Didática” e foi rapidamente publicada pela Papirus Editora, em 1989, atualmente na 12ª edição e na 10ª reimpressão. Por trás dessa temática,

[...] havia o pressuposto de que o professor de Didática deveria ter um ideário pedagógico relacionado com a prática que ele desenvolve no dia a dia da sala de aula e outros momentos de sua atividade docente. (VEIGA, 1989, p. 15)

A Didática, sob essa perspectiva, tem contribuído para uma prática pedagógica reflexiva, crítica e pressupõe:

No último capítulo do livro, denominado de “Encontro e desencontro: um possível reencontro”, encerro com a seguinte declaração:

[...] Não resta dúvida de que a tomada de consciência e a revelação das contradições que permeiam a dinâmica interna de sala de aula são pontos de partida para a construção de uma Didática comprometida. (VEIGA, 1989, p.175). (Grifos meus)

Freire (1986, p. 88) complementa, afirmando que “[...]. Temos que tomar a iniciativa de dar um exemplo de como fazê-lo.”. Desse modo, o livro em pauta situa a Didática dos cursos de formação de professores a partir da perspectiva crítica que arquiteta a identidade da disciplina curricular, obrigatória, que corresponde a sua natureza de práxis e com inúmeras dimensões: humana, técnica e política. A perspectiva crítica que permeou todo o livro procurou abrir caminhos para superar contradições da própria prática dos professores de Didática. Ao terminar, é preciso dizer que a proposta explicitada no livro não foi fundamentada nos aportes teóricos metodológicos da Pedagogia Histórico-Critica (PHC). Só em outros estudos, a PHC foi a referência pedagógica utilizada.

Entrevistadoras: A partir dessas reflexões, recuperamos que, na década de 1980, vivencia-se no Brasil, um movimento de revisão da didática tecnicista instrumental que dominou a educação nos anos de 1970 para a didática crítica. O que mudou nos currículos das licenciaturas visando à formação de professores na perspectiva crítica? Podemos considerar que essa didática se concretizou?

Veiga: Na década de 1980, arquitetaram-se as primeiras reflexões em torno de alternativas para a Didática a partir da Pedagogia Histórico-Crítica. Em 1982 foi realizado o I Seminário de Didática em questão, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Destaco que as discussões desse Seminário contribuíram para se pensar a formação de professores nas licenciaturas considerando:

Na mesma direção, na VI Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), realizada na Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro no ano de 1983, o Grupo de Trabalho em Didática (GT4 – Didática) propôs retomar a pesquisa e a reflexão crítica na Didática. Com esse intuito, foi proposta uma pesquisa sobre o conteúdo da Didática em várias Unidades da Federação. Os resultados evidenciaram a permanência do enfoque instrumental tecnicista na formação didática dos licenciandos.

Na década de 2010, pesquisa interinstitucional coordenada por mim contou com doze pesquisadoras e três Instituições de Ensino Superior, tendo como objetivo geral compreender o papel da Didática na formação de professores para a Educação Básica. Seus resultados foram publicados no ano de 2012 pela Editora UEPG, mantendo o título original do projeto: “Didática: entre o pensar, o dizer e o vivenciar”. As discussões realizadas nos permitiram apontar alguns desafios naquele momento ainda existentes para o campo da Didática, os quais, sinteticamente, descrevo:

  1. superar a visão de escola imaginária, buscando compreendê-la inserida em um contexto social mais amplo;
  2. romper com a formação acrítica e focada no como fazer desvinculado do para que fazer, ou seja, as instituições que formam professores devem primar pela elaboração de um projeto pedagógico de curso de Pedagogia e de Licenciaturas articulado aos projetos das escolas de educação básica;
  3. superar o descompasso entre a didática que se ensina para formar o professor e a vivenciada nas aulas da disciplina Didática, visando à formação do futuro professor na unicidade teoria-prática, conteúdo-forma, ensino-aprendizagem, professor-aluno, finalidades, objetivos e avaliação. A perspectiva é da construção de uma didática como práxis;
  4. superar a concepção da Didática no bojo da perspectiva do formalismo metodológico por meio da adoção de metodologias participativas e da articulação entre conteúdo e forma; e
  5. criar condições nas instituições de ensino superior que viabilizem o trabalho coletivo dos professores de Didática, o que requer a valorização dos profissionais com a realização de concursos, a formação continuada e as condições de trabalho (VEIGA, 2012).

É preciso considerar que a formação de professores para a Educação Básica é um processo dinâmico, contínuo e, portanto, complexo. É uma atividade coletiva para realizar uma reflexão sobre as práticas pedagógicas contextualizadas, analisar as contradições e assumir os movimentos evolutivos constituídos histórica e criticamente.

Entrevistadoras: Então, professora, considerando esses movimentos históricos evolutivos, podemos apreender que essa complexidade que envolve a formação de professores para a educação básica foi considerada na Resolução CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015 (BRASIL, 2015) que Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada, tendo em vista que funda-se na defesa da valorização do profissional do magistério, na formação inicial e continuada, no plano de carreira, no salário e nas condições dignas de trabalho. No entanto em 2019, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e instituiu a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BRASIL, 2019). Como você percebe a formação didática dos professores retratada nessas diretrizes?

Veiga: A Resolução nº 2/2019 (BRASIL, 2019), do Conselho Nacional da Educação, aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial de professores para a Educação Básica e instituiu a Base Nacional Comum. Esses documentos legais foram pautados na Pedagogia das competências. A formação didática dos professores difundida pela Resolução nº 2/2019 tem por base um conjunto de orientações que minimizam a dimensão crítica de seus conhecimentos estruturantes e não rompem com a concepção instrumental, tecnicista e pragmática. São orientações que se baseiam

  1. nos conhecimentos objetivos definidos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e na lógica matemática que reparte, dicotomiza e burocratiza a prática pedagógica;
  2. na racionalidade técnica que regula e controla a vida acadêmica ao gerar um espaço-tempo apolítico, programático e com poder de controle;
  3. na apresentação de uma discussão gerencialista, de empreendedorismo e de privatização da formação docente;
  4. na incorporação dos enfoques baseados em competências gerais previstas na BNCC, bem como das aprendizagens social e emocional para desenhar o perfil identitário do futuro professor (Art. 2º), ou seja, de uma visão tecnicista de treinamento;
  5. na organização curricular regida por uma forma de controle denominada de conhecimento-regulação (SOUZA SANTOS, 1989). O currículo é prescritivo na lógica empresarial;
  6. na organização dos cursos em três grupos:
    • Grupo I: 800 horas – base comum;
    • Grupo II: 1600 horas – conteúdos específicos;
    • Grupo III: 800 horas – prática pedagógica, sendo:

400 horas – estágio supervisionado;

400 horas – práticas de componentes curriculares I e II;

  1. na distribuição do tempo cronológico transformado em tempo pedagógico que reduziu a carga horária do Grupo II de 2.200h para 1.600h. Um reforço ao pragmatismo;
  2. na concepção da Didática instrumental e técnica, descentralizada, praticista, citada cinquenta e uma vezes na Resolução 2/2019; e
  3. na disciplina curricular Didática Geral que está distante de um referencial emancipador, questionador e de reflexão crítica da formação docente. A perspectiva didática recupera a concepção do passado com fortalecimento do pragmatismo utilitarista.

Como se depreende, a Resolução nº 2/2019 pensa a formação de professores na perspectiva do passado como afirmam Zabalza e Cerdeirinha (2015, p. 34), ou seja, “[...] síndrome da mudança repetitiva”. Isso significa fortalecer as dicotomias entre formação e realidade social; trabalho e educação; técnico e político; sujeito e objeto; professor – aluno e conhecimento, entre outros pares, embasados pelos critérios da eficiência e da eficácia, não pelos critérios da efetividade e da relevância social e educativa. A Didática da Educação Superior ministrada em cursos de pós-graduação em educação também relegou a segundo plano os conteúdos estruturantes da disciplina e, em seu lugar, privilegiou os conteúdos das tecnologias.

Entrevistadoras: São reflexões importantes feitas por você e que sugerem que esse modelo de formação proposto na Resolução de ٢٠١٩ não dá conta das demandas complexas da educação básica, da escola e da sala de aula. Isso nos remete aos efeitos da pandemia sobre a educação básica que foi especialmente impactada com o isolamento social, a interrupção de atividades presenciais de ensino-aprendizagem-avaliação e a adoção do ensino remoto. No mesmo sentido, a formação de professores foi bastante influenciada. Quais os desafios para a didática no pós-pandemia?

Veiga: A dimensão política diz respeito às “[...]decisões que o Estado toma em relação à educação” (SAVIANI, 2008). Além do contágio pelo vírus da covid, a pandemia sanitária causou pânico à população. A saúde física e mental da sociedade brasileira teve de cumprir com orientações médicas de isolamento social, uso de máscaras e vacinação. Foram adotadas medidas restritivas que visavam à prevenção e a não disseminação do vírus. No plano federal, as políticas delineadas foram sempre na contramão dos fundamentos científicos: ora uma “gripezinha”, ora “não precisam vacinar” e recomendações de “remédios inoperantes”, entre outros. Assim, a pandemia foi fortalecendo o medo, a ansiedade e as doenças de fundo psicológico. A pandemia sanitária, social, política, econômica e, acima de tudo, a humana, revela a precariedade dos serviços públicos, a fragilidade do sistema de saúde – SUS e as desigualdades sociais e educacionais, entre outros problemas.

Quanto aos desafios da Didática pós-pandemia no processo de formação de professores para a Educação Básica, vejo que essa disciplina, campo da Pedagogia, deverá passar, inicialmente, por uma reflexão coletiva a fim de se analisar as fragilidades e as possibilidades das disciplinas curriculares. É preciso, pois, rever a Proposta Pedagógica Institucional, o Plano de Desenvolvimento Educacional e, consequentemente, os Projetos Pedagógicos dos Cursos, procurando-se manter a linha de coerência e a qualidade social da formação. A Didática necessita superar a perspectiva pragmatista, pois a formação de professores é um processo complexo, contínuo e que envolve as dimensões humanas, técnicas e políticas. Formar professores para a Educação Básica é, portanto, uma aventura.

Entrevistadoras: Com essa perspectiva de contribuir para a aventura de formar professores, repensando-se a Didática (VEIGA, 2012) é uma de suas obras mais lidas no Brasil com vinte e nove edições. Para fechar nossa conversa, perguntamos como os projetos pedagógicos dos cursos das licenciaturas podem repensar a Didática?

Veiga: O Repensando a Didática foi publicado em sua 1ª edição em 1988, pela Papirus Editora. Em 2012 o livro atingiu sua 29ª edição e, daí para frente, até 2018, o livro foi reimpresso seis vezes. Todos os autores escreveram artigos para um livro coletânea pela primeira vez. Na 21ª edição, o livro foi revisado e atualizado pelos autores. São textos diversos, com temáticas didáticas, no sentido de estimular a construção de uma proposta crítica para a efetivação da prática pedagógica emancipatória. Os textos, escritos em cidades de regiões também diferentes, se completam e se interligam.

[...]. O projeto para a elaboração do livro estabelecia uma estrutura básica e a forma de ação conjunta. A estrutura básica do livro foi constituída de três núcleos fundamentais: 1ª) pressupostos filosóficos e históricos da Didática; 2ª) o planejamento e os elementos do ensino; 3ª) a relação professor – aluno. (VEIGA, et al, 2012, p. 10)

Repensar a Didática para os cursos de licenciatura de forma democrática, com discussões abertas e críticas e que contribuíssem para a superação das perspectivas conservadoras, foi o caminho percorrido. A Didática, como disciplina curricular do campo da Pedagogia, que tem como objeto o ensino, foi tratada em três núcleos já citados e em um conjunto de pressupostos: educação como prática social e de emancipação humana; compromisso com a democratização da escola pública; o professor como agente social; e a metodologia da pesquisa como modo de apropriação de conhecimento, como explicitado no livro, Veiga (2012).

O livro Repensando a Didática foi organizado no momento da denúncia crítico-reprodutivista. Este foi o ponto de partida para se atingir o ponto de chegada, objetivando-se a superação da Didática conservadora, neutra, distante da prática social, e a busca de alternativas mais condizentes com a realidade educacional brasileira. Nesse sentido, o livro tem contribuído para a ampliação e o aprofundamento das diversas reflexões realizadas.

Cabe-me agora a organização de uma proposta inovadora fundamentada na Pedagogia Histórico-Crítica, com autores de outras gerações de professores de Didática. Esse propósito representa o meu desafio e o meu compromisso com a formação de professores para a Educação Básica.

Entrevistadoras: Professora Ilma, estamos muito contempladas com o diálogo sobre o papel da Didática na formação do professor para a Educação Básica. Muito obrigada!

Referências

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ZABALZA, M.; ZABALZA, C. Formação e Docência na Educação Básica e Superior: novos tempos, novos rumos. Curitiba, PR: CRV, 2015.


1 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade de Brasília.

2 Doutoranda em Educação pela Universidade de Brasília e Mestre em Relações Internacionais e Ciências Políticas pela Universidade da Força Aérea.

3 Desenvolvem o ensino em torno de assuntos/temas atraentes e que satisfazem as necessidades básicas dos alunos.

4 Também conhecido como plano de unidades didáticas, desenvolve-se em cinco fases: exploração, apresentação, assimilação, organização e recitação.

5 Tem como ponto de partida os problemas reais da vida do aluno. As atividades escolares são desenvolvidas por meio de projetos que não requerem uma organização especial.