https://doi.org/10.18593/r.v48.30088

Fundamentos teórico-metodológicos das diretrizes curriculares do ensino fundamental de Criciúma/SC (2020): continuidade e ruptura

Theoretical-methodological fundamentals of the curricular guidelines of elementary education in Criciúma/SC (2020): continuity and rupture

Fundamentos teórico-metodológicos de las directrices curriculares de la educación primaria en Criciúma/SC (2020): continuidad y ruptura

Géssica Dal Pont1

Universidade do Sul de Santa Catarina; Professora de Educação Física efetiva da Rede Municipal de Ensino de Criciúma. https://orcid.org/0000-0001-9212-3064

Matheus Bernardo Silva2

Universidade do Sul de Santa Catarina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Sul de Santa Catarina. https://orcid.org/0000-0002-5964-368X

Resumo: O presente artigo tem como enfoque os fundamentos teórico-metodológicos que norteiam as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma/SC (2020), sendo este um apanhado das reflexões presentes numa pesquisa documental para dissertação de mestrado. A elaboração das novas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) se deu na tentativa de continuidade do documento anterior, do ano de 2008, bem como para atender a necessidade de conformidade com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Temos como hipótese que as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) caracterizam uma relação paradoxal no que se refere a sua condição ontológica das ideias pedagógicas predominantes no documento, visto que as diretrizes apresentam tanto a psicologia histórico-cultural (presente em seus documentos curriculares anteriores) quanto a pedagogia das competências (presente na BNCC). Serão feitos apontamentos sobre o processo de continuidade, tratando-se da teoria histórico-cultural, como também sobre a ruptura, dada no momento em que há a tentativa de articulação entre pedagogia das competências e psicologia histórico-cultural, sabendo-se que a psicologia histórico-cultural requer uma pedagogia contra-hegemônica, advinda dos preceitos marxistas, tal qual a pedagogia histórico-crítica.

Palavras-chave: Políticas Educacionais; Diretrizes Curriculares de Criciúma; Teoria Histórico-Cultural; Pedagogia Histórico-Crítica; Pedagogia das Competências.

Abstract: This article aims to discuss the theoretical-methodological fundamentals which guide the curriculum documents of Criciúma/SC (2020), being an overview of the reflections present in documental research for a master’s thesis. The elaboration of the new Curriculum Guidelines for Elementary Education in Criciúma (2020) occured to continue the previous document, from 2008, as well as to meet the need for compliance with the National Curricular Common Base (BNCC).Our hypothesis is that the Criciúma Elementary School Curriculum Guidelines (2020) present a paradox regarding their ontological condition of the predominant pedagogical ideas in the document since the guidelines present both historical-cultural psychology (present in their previous curriculum documents ) and the pedagogy of competences (present in the BNCC). Observations will be made on the process of continuity of the historical-cultural theory, as well as on the rupture that exists in the attempt to articulate pedagogy of competences and historical-cultural psychology, knowing that historical-cultural psychology requires a counter-hegemonic pedagogy, arising from Marxist precepts, such as historical-critical pedagogy.

Keywords: Educational Policies; Curriculum Guidelines of Criciúma; Historical-Cultural Theory; Historical-Critical Pedagogy; Pedagogy of Competences.

Resumen: Este artículo se centra en los fundamentos teórico-metodológicos que orientan las Directrices Curriculares para la Educación Básica en Criciúma/SC (2020), siendo este un panorama de las reflexiones presentes en una investigación documental para una disertación de maestría. La elaboración de las nuevas Directrices Curriculares para la Educación Básica en Criciúma (2020) fue un intento de dar continuidad al documento anterior, de 2008, así como de atender la necesidad de cumplimiento de la Base Común Curricular Nacional (BNCC). Tenemos como hipótesis que las Directrices Curriculares de la Escuela Básica de Criciúma (2020) caracterizan una relación paradójica en cuanto a su condición ontológica de las ideas pedagógicas predominantes en el documento, una vez que las directrices presentan tanto la psicología histórico-cultural (presente en sus documentos curriculares anteriores) como la pedagogía de las competencias (presente en el BNCC). Se harán inferencias sobre el proceso de continuidad, tratándose de la teoría histórico-cultural, así como sobre la ruptura, dada en el momento en que se intenta articular entre la pedagogía de las competencias y la psicología histórico-cultural, sabiendo que la psicología cultural-histórica exige una pedagogía contrahegemónica, surgida de los preceptos marxistas, al igual que la pedagogía histórico-crítica.

Palabras clave: Políticas Educativas; Directrices Curriculares de Criciúma; Teoría Histórico-Cultural; Pedagogía Histórico-Crítica; Pedagogía de las Competencias.

Recebido em 17 de março de 2022

Aceito em 18 de maio de 2023

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como enfoque os pressupostos teórico-metodológicos das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), que são resultado da reelaboração das Proposta Curricular de 2008 para que esta estivesse às vistas da nova BNCC.

Para nos situarmos, algumas informações sobre o município: Criciúma está localizado no extremo sul do Estado de Santa Catarina, e pelas estimativas do IBGE (2020) a cidade já conta com aproximadamente 217.311 habitantes. Por tratarmos das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), cujo conteúdo rege a prática das escolas subordinadas à Secretaria Municipal de Educação, faz-se importante situar também que, das 110 escolas presentes no município, 65 são escolas municipais que contam com cerca de 20 mil alunos e 2 mil professores.

Buscando cumprir as especificações Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, bem como de seu Plano Municipal de Educação (PME) também de 2014, Criciúma lançou um edital de chamamento de professores atuantes na rede de ensino no ano de 2019 para que suas diretrizes curriculares fossem reformuladas às luzes da BNCC. A reformulação ocorreu durante encontros mensais entre os professores de cada área específica, inscritos no edital.

Após este percurso as novas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) foram apresentadas no início de 2020, mas o início da sua elaboração se dá com um edital de chamamento dos professores da rede de ensino no ano de 2019. O edital requisitava professores atuantes na rede de ensino naquele ano, efetivos ou em caráter temporário, de todas as disciplinas oferecidas pela rede de ensino para que participassem do processo de reelaboração das diretrizes. O desenvolvimento desse documento curricular municipal se deu na tentativa de estabelecer uma continuidade da Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008), bem como realizar uma articulação com a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (CRICIÚMA, 2019).

À vista disso, tomamos como uma hipótese inicial que os fundamentos teórico-metodológicos das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) se caracterizam como um processo de continuidade e, ao mesmo tempo, um processo de ruptura, ou seja, trata-se de uma questão paradoxal.

Verifica-se, inicialmente, que o processo de continuidade se dá na tentativa desse documento estar alinhado à Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008), no que se refere a determinados pressupostos teórico-metodológicos, visto que a Proposta Curricular de Criciúma (2008) assume como principal referencial a teoria histórico-cultural sob base materialista histórico-dialética, como a própria cita em sua introdução quando diz:

[...] o aporte teórico a ser adotado na prática pedagógica, das escolas da rede municipal fosse a concepção de conhecimento, ensino e aprendizagem na perspectiva histórico-cultural de sociedade; de currículo e diversidade na expectativa de consolidar na rede uma proposta curricular sustentada na diversidade dos sujeitos envolvidos no processo educativo garantindo, além do acesso, a permanência e sucesso de todos. (CRICIÚMA, 2008, p. 01)

As Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), por um lado, também apresentam, de certo modo, o mesmo referencial, o que se evidencia quando enuncia: “Sem deixar de observar toda a trajetória histórica da Rede Municipal de Educação, os grupos de estudo revisitaram a Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008) e aproximaram discussões [...]” (CRICIÚMA, 2020, p. 07).

Paralelamente, observa-se um processo de ruptura, pois há a tentativa de articular as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017), quando anuncia que: “reformulou o currículo base escolar da Rede Municipal de Educação, à luz da Base Nacional Comum Curricular” (CRICIÚMA, 2020). Tal processo de ruptura ocorre, justamente, pela contradição, em alinhar-se com os pressupostos teórico-metodológicos da principal política nacional curricular atualmente. Partindo do embasamento, por exemplo, de Malanchen e Santos (2020), Lavoura e Ramos (2020) e Zank e Malanchen (2020), confirma-se a presença da pedagogia das competências como um pressuposto teórico-metodológico da BNCC. Malanchen e Santos (2020) destacam que a própria Base anuncia:

Desse modo no documento aprovado em dezembro de 2017 estão arroladas “As dez competências gerais da Educação Básica” e os seus princípios estão explicados detalhadamente no item “Os fundamentos pedagógicos da BNCC”. As disciplinas no Ensino Fundamental e no Ensino Médio também trazem em seus fundamentos as competências específicas que devem ser trabalhadas e desenvolvidas pelos estudantes. (MALANCHEN; SANTOS, 2020, p. 06)

Portanto, verifica-se uma condição paradoxal no que se refere à dimensão ontológica (concepção de mundo, de indivíduo, de sociedade e, por conseguinte, de educação) das ideias pedagógicas predominantes nesse documento curricular (psicologia histórico-cultural versus pedagogia das competências).

Em princípio, partimos do pressuposto de que há um encaminhamento teórico-metodológico fundamentado nas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), porém há posicionamentos contraditórios, isto é, uma condição paradoxal na sua essência, ou melhor, na sua dimensão ontológica.

À vista disso, destaca-se como problema de pesquisa o seguinte questionamento: quais as especificidades dos fundamentos teórico-metodológicos que embasam as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (SC), de 2020? Toma-se, por consequência, como o objetivo geral da pesquisa: analisar o processo de continuidade e ruptura no que se refere às especificidades dos fundamentos teórico-metodológicos entre a Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008).

Quanto aos procedimentos metodológicos, foi desenvolvida uma pesquisa documental, com intuito de analisar as especificidades teórico-metodológicas das Diretrizes Curriculares de Criciúma (2020), no âmbito dos seus fundamentos teórico-metodológicos. Para o referencial teórico, procurou-se aproximar do materialismo histórico-dialético como embasamento ontológico e, consequentemente, na teoria psicológica histórico-cultural e na teoria pedagógica histórico-crítica, por ambas se assentarem, filosoficamente, no materialismo histórico-dialético, para a análise dos dados da pesquisa.

Por meio do materialismo histórico-dialético, torna-se possível realizar uma leitura sobre a realidade humana. Nesse sentido, engloba-se a própria educação escolar, bem como as suas especificidades, como as diretrizes de Criciúma, por exemplo. Uma de suas premissas se dá em conhecer o indivíduo no seu plano real. Não o que dele se representa, seja por si próprio ou por outros indivíduos. É compreender que apesar de este indivíduo estar condicionado pela classe dominante a realizar determinadas representações, não significa que aquele seja seu retrato fiel (MARX; ENGELS, 2020).

Toma-se, por consequência, a psicologia histórico-cultural no sentido de compreender o processo de desenvolvimento do ser humano e, por consequência, as implicações no campo da educação escolar. Para além das contribuições para a pedagogia histórico-crítica, aborda-se a psicologia histórico-cultural principalmente por ela ser apresentada nas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) como sendo a “[…] concepção para fundamentar os processos de ensino e aprendizagem da rede municipal” (CRICIÚMA, 2020, p. 10).

Justamente por a teoria histórico-cultural se tratar de uma teoria psicológica, utilizamos os fundamentos da pedagogia histórico-crítica na tentativa de apontar os aspectos oriundos de uma teoria pedagógica, isto é, de uma ciência da e para a educação, visto que ambas fundamentam-se pela dialética e apresentam o indivíduo em sua particularidade e totalidade como sua preocupação.

2 APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A BNCC E AS DIRETRIZES CURRICULARES DO ENSINO FUNDAMENTAL DE CRICIÚMA/SC (2020)

Procura-se, neste momento, apresentar determinados elementos sobre movimento que possibilitou a elaboração e, por conseguinte, a efetivação da BNCC como política curricular nacional.

Quanto uma possível definição sobre o termo política educacional, vale-se da proposição de Saviani (2008, p. 07), em que expõe: “[…] diz respeito às decisões que o Poder Público, isto é, o Estado, toma em relação à educação”. Em linhas gerais, pode-se compreender que o Estado é o responsável pelas normativas legais que orientam a educação.

O Estado é responsável pela educação pública desde a colonização do Brasil. Em 1548, pela educação catequética dos jesuítas, apresentava-se como uma primeira política educacional, os “Regimentos” de Dom João III (SAVIANI, 2008). Desde então, mesmo séculos a frente, cada governo que passou pela administração do país tinha sua própria reforma, no sentido de atender seus objetivos no âmbito da educação para o país. Destarte, ocorre o problema da “não” efetivação de um Sistema Nacional de Educação. Cada reforma trazia consigo suas particularidades, o que leva a atentar para o processo de descontinuidade nas políticas e reformas educacionais no país.

Desde a primeira fase do Brasil independente, as reformas sucedem-se, passando da Lei das escolas de primeiras letras, em 1827, para o Ato Adicional de 1834, a reforma Couto Ferraz, de 1854, Leôncio de Carvalho em 1879, sem contar os vários projetos de reforma apresentados no Parlamento no final do império, que não chegaram a vingar, como os de Paulino de Souza em 1869, de João Alfredo em 1871, de Rui Barbosa em 1882 e de Almeida Oliveira, também em 1882 e o do Barão de Mamoré em 1886. Observe-se que prevalece a tendência em nomear as reformas pelos seus proponentes, em geral ministros da pasta de instrução pública ou da educação, a indicar que cada um que chega ao poder procura imprimir sua marca, desfazendo o que estava em curso e projetando a ideia de que é com ele que, finalmente, o problema será resolvido (SAVIANI, 2008, p. 11).

Assim sendo, pode-se destacar o período pós-regime militar, de acordo com Malanchen (2014), que um dos principais fatores para as reformulações na política educacional e, inexoravelmente, na política curricular se deu devido às mudanças no cenário econômico mundial e nacional, acontecidas no final da década de 1980. Prova disso, a implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), a sociedade brasileira começa a adequar-se à ordem mundial do capitalismo (MALANCHEN, 2014). O movimento neoliberal, aproveitando-se do movimento histórico a favor do capitalismo, inicia o emparelhamento da educação brasileira aos seus ideais.

Toda a política de currículo necessitava estar de acordo com a nova ordem mundial. Essa nova ordem, em relação aos condicionantes curriculares, pode ser verificada no seguinte pressuposto: “A modernização da produção, a subordinação da economia nacional às exigências da globalização e a adoção da ideologia neoliberal, trouxeram mudanças profundas na área social, cultural e educacional, exigindo a readequação dos currículos escolares” (MALANCHEN, 2014, p. 24).

Portanto, é necessário ressaltar a influência neoliberal nas políticas educacionais no Brasil, em especial, no campo curricular. Tal influência advém também em virtude de um amplo movimento “pós-moderno”.

O clima cultural próprio dessa época vem sendo chamado de” pós-moderno”, desde a publicação do livro de Lyotard, A condição pós-moderna, em 1979. Esse momento coincide com a revolução da informática. Se o mundo moderno se liga a revolução centrada nas máquinas mecânicas, na conquista do mundo material, na produção de novos objetos, a pós-modernidade sempre no mundo da comunicação, nas máquinas eletrônicas, na produção de símbolos. Isso significa que antes de produzir objeto e se produzem os símbolos; ou seja, em lugar de experimentar, como fazia a modernidade para ver como a natureza se comporta a fim de sujeitá-la aos desígnios humanos, a pós-modernidade simula em modelos, por meio de computadores, a imagem dos objetos que pretende produzir. (SAVIANI, 2019, p. 426-427)

Possivelmente por influência da política neoliberal, a Constituição Federal de 1988 traz em seu corpo o que Malanchen e Santos (2020) chamam de uma primeira indicação de intencionalidade de elaboração de um currículo nacional, quando no artigo 210 diz: “[...] serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988). Anterior a isso, as deliberações relacionadas à educação se concentravam em repasses de verba, não se identificando nenhum movimento relacionado a questões curriculares.

A proposta de uma Base Nacional começou a ser discutida ainda em 2010, seguida das discussões do Plano Nacional de Educação (PNE) iniciada em 2009, sendo retomada com a aprovação do mesmo em 2014. Em 2015, um documento preliminar foi elaborado e colocado para consulta pública até abril de 2016. Por conseguinte, em dezembro de 2017, é aprovada a Base Nacional Comum Curricular (MALANCHEN; SANTOS, 2020). Ao observar as datas e a caminhada anterior mais longa do que a da aprovação da BNCC, pode-se constatar uma aceleração na publicação da base, o movimento mais expressivo quanto à educação na gestão de Michel Temer. Este movimento nos leva a pensar que, com a aproximação das eleições presidenciais de 2018, havia uma pressa em que a BNCC fosse efetivada antes de uma nova gestão.

Uma Base Nacional, juntamente com um Plano Nacional de Educação, é a manifestação da continuidade necessária à educação de qualidade do país, pois uma base e um plano nacional ultrapassam governos, eles servem à educação do país independentemente de quem esteja a frente. Ou seja, não estaríamos postos a planos e bases tendenciosos, que sirvam interesses individuais de cada governo e suas ideologias. O que passa é que a atual Base Nacional está alinhada a uma pedagogia hegemônica. Faz-se necessário refletir sobre os interesses que perpassam pelas entrelinhas de um documento tão importante e relevante para a educação do país.

Perpassado brevemente o percurso até a aprovação da BNCC, faremos neste momento o mesmo movimento sobre as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020). O Município de Criciúma apresentou ao seu corpo docente no início do ano letivo de 2020 suas novas Diretrizes Curriculares, com o título: “Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental”. Como anuncia em sua apresentação, trata-se de uma reformulação do “currículo base escolar da Rede Municipal de Educação, à luz da Base Nacional Comum Curricular” (CRICIÚMA, 2020, p. 05). Tal movimento, além da necessidade de alinhamento com a BNCC, também faz parte do Plano Municipal de Educação (PME) de 2014.

Um adendo sobre a educação do município de Criciúma é de que possui documentos curriculares anteriores: do ano 2000, que trazia nos seus princípios a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural; do ano de 2008 que tem como base teórico-metodológica a psicologia (tratada apenas como teoria) histórico-cultural, documentos estes que foram considerados no processo de reformulação das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020):

Sem deixar de observar toda a trajetória histórica da Rede Municipal de Educação, os grupos de estudo revisitaram a Proposta Curricular de Criciúma (2008) e aproximaram discussões, de forma a garantir o protagonismo do professor nesse movimento dialético para a construção de um currículo que possa nortear e fundamentar as práticas pedagógicas docentes. De forma colaborativa e participativa, professores analisaram e refletiram sobre as competências, as habilidades e os conteúdos necessários a serem trabalhados em cada um dos anos do Ensino Fundamental. (CRICIÚMA, 2020, p. 05)

Sobre seu conteúdo, as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) estão divididas em capítulos onde o primeiro trata sobre os “Marcos históricos e concepções teóricas”, em que podemos encontrar o primeiro sinal de continuidade e ruptura quando anuncia sua fundamentação: “Portanto, para a escrita das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental buscou-se fundamentação teórica e metodológica na BNCC (2018), na Proposta Curricular da Rede Municipal (2008) e no Currículo Base da Educação Infantil e Ensino Fundamental do Território Catarinense (2019)(CRICIÚMA, 2020, p. 07)”.

Afirmando mais à frente a perspectiva histórico-cultural:

As Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental da rede municipal de ensino de Criciúma reafirmam a perspectiva histórico-cultural como concepção para fundamentar os processos de ensino e de aprendizagem da rede municipal de ensino, pois acreditam que o estudante, em sua integralidade, possui uma história que deve ser considerada, e a escola, partindo desse pressuposto, deve oferecer condições para que ele se aproprie das máximas possibilidades do conhecimento científico, que foram/são elaborados pela sociedade historicamente de maneira integral. (CRICIÚMA, 2020, p. 10)

E, juntamente com as afirmações da teoria histórico-cultural, são apresentados pressupostos da BNCC:

Assumindo a educação integral como um princípio da Rede Municipal de Ensino de Criciúma, tem-se apoio na BNCC (2017) ao defender a não fragmentação curricular, mas, sim, a importância do contexto para dar sentido aos conhecimentos, propiciando o protagonismo dos estudantes. Trata-se, também, de compreender que a formação integral, em um percurso formativo, permite que os conhecimentos sejam apropriados de maneira orgânica e progressiva, em um movimento contínuo de aprendizagens. Desse modo, a integralidade diz respeito ao desenvolvimento das múltiplas dimensões do estudante, visando ao seu pleno desenvolvimento nesse percurso que se amplia. (CRICIÚMA, 2020, p. 10)

Ainda demonstrando sua conformidade com a BNCC, as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) trazem de forma íntegra as Dez competências gerias, tal qual apresentadas na base.

O segundo capítulo das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) traz a “Concepção histórico-cultural na rede municipal de ensino de Criciúma”. O capítulo se encarrega de apresentar a proposta histórico-cultural e a expectativa da rede de ensino quanto sua aplicação na prática docente. Ressalta a importância da apropriação para o desenvolvimento, bem como reflete sobre um novo pensamento pedagógico, em que teoria e prática são, de fato, complementares (CRICIÚMA, 2020).

Os capítulos três a nove, apresentam as perspectivas da rede sobre: a gestão escolar e o currículo a partir da Base Nacional Comum Curricular; educação para competências socioemocionais; educação especial na rede municipal de criciúma; educação para a diversidade étnico-racial; temática indígena nas instituições de ensino; a alfabetização e a Base Nacional Comum Curricular; avaliação; e educação de jovens e adultos. Em cada seção, colocam-se os ideais de abordagens tanto no ambiente escolar quanto nos componentes curriculares sobre cada uma destas temáticas supracitadas, apontando suas necessidades metodológicas e práticas.

Apresentados seus pressupostos teórico-metodológicos e objetivos, as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) inicia a apresentação das áreas de conhecimento e seus componentes curriculares.

Até o momento, a principal análise feita sobre as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) é que, ao mesmo tempo que se busca dar continuidade na Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008), tendo-a como base de estudos e trazendo elementos como a teoria histórico-cultural, citando seus princípios, busca-se também considerar a BNCC pela necessidade de alinhamento requerido por lei nacional, como pudemos observar pela sua configuração (ordem em que trata os elementos), a presença das dez competências gerais. A seção própria para as competências socioemocionais também se trata de uma aproximação, mas dela trataremos mais a frente, ao abordar os pressupostos teórico-metodológicos.

3 O PROCESSO DE CONTINUIDADE NAS DIRETRIZES CURRICULARES DO ENSINO FUNDAMENTAL DE CRICIÚMA: A MANUTENÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL

Observado o percurso curricular do município de Criciúma, percebemos o constante anúncio da teoria histórico-cultural em seus documentos. Ao considerar o processo de continuidade e sua importância, em se tratando de um documento curricular, apontaremos o processo de continuidade entre a Diretriz Curricular de 2008 (documento anterior ao atual) e as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental (2020).

O movimento de contextualização da teoria psicológica histórico-cultural se faz necessário pelo fato de ela estar presente, tanto na Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008) quanto nas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020). A teoria é anunciada pela primeira vez nos documentos curriculares do município na Proposta Curricular de 2000 e é mantida nos dois documentos seguintes.

A teoria histórico-cultural é uma teoria psicológica originada no início do século XX, na União Soviética, sendo que seus principais idealizadores são Vigostki, Leontiev e Luria. A intenção destes autores era o de construir uma teoria psicológica de base marxista, ou seja, assentada no materialismo histórico-dialético (MARTINS; PASQUALINI, 2021).

Ainda sobre a intencionalidade da psicologia histórico-cultural, Duarte (2001) coloca:

Um dos grandes objetivos de Vigotski foi justamente o de superar o modelo biológico de desenvolvimento humano, e construir uma psicologia fundada na concepção marxista, portanto histórico-social do homem. Na psicologia marxista de Vigotski e seus seguidores está explícita a concepção de que a ontogênese humana não pode ser explicada através da relação biológica entre organismo e meio. A questão que não pode ser esquecida é a de que o modelo biológico de interação entre organismo e meio implica as noções de adaptação e equilíbrio na relação do organismo com o meio ambiente (sem o que o organismo não sobrevive). O modelo de interação entre organismo e meio não possibilita a compreensão da relação histórico-social entre objetivação e apropriação, que caracteriza a especificidade do desenvolvimento humano. (DUARTE, 2001, p. 53)

Sendo assim, a psicologia histórico-cultural compreende que o psiquismo humano se constrói pela atividade, não meramente pela hereditariedade. O processo de apropriação da cultura, de reprodução de “propriedades e de aptidões historicamente formadas” (MARTINS; PASQUALINI, 2021, p. 86) se faz necessário ao desenvolvimento psicológico do indivíduo.

Martins e Pasqualini (2021) colocam que as funções psicológicas humanas são síntese do desenvolvimento do homem em sociedade. As relações do homem com a natureza e suas modificações criam o comportamento cultural para além do comportamento natural. Desta forma, superadas as perspectivas idealistas e naturalizantes do desenvolvimento do psiquismo humano, apresentam-se os pressupostos teórico-filosóficos da psicologia histórico-cultural, quais sejam: historicidade, apropriação e objetivação, que “são centrais na perspectiva histórico-cultural e guardam estreitas relações com a questão do desenvolvimento e do ensino”, visto que entende a apropriação da cultura como um processo educativo (MARTINS; PASQUALINI, 2021, p. 89).

Tais reflexões, até o momento, quanto à psicologia histórico-cultural, nos levam a compreender que seu trato não deve se dar de forma naturalizante, considerando o ser humano como igual e desconsiderando seu contexto histórico e cultural. Ou seja:

O homem precisa, por meio de sua atividade, apropriar-se da realidade natural, para que possa transformar objetos naturais em instrumentos da prática social. O processo de apropriação está intrinsecamente ligado a seu oposto (e complemento) - o processo de objetivação, por meio do qual o ser humano transforma a realidade natural, imputando-lhe características humanas, adequando-a a suas finalidades, atribuindo aos objetos naturais significados e funções sociais. (MARTINS; PASQUALINI, 2021, p. 90)

Então, por meio da atividade, o processo educativo faz parte dos princípios de sociedade humana. O homem exercendo sua necessidade de modificar a natureza, também é modificado por ela, estabelecendo novas relações com o objeto e, a partir de variados objetos, se dão relações sociais (com outros homens, de mesma necessidade). Pela modificação da natureza já apropriada, dá-se o desenvolvimento do social, pelo processo de apropriação e reprodução, sempre precedido da mediação dos conhecimentos historicamente sistematizados.

Para tanto, podemos evidenciar a categoria da atividade como sendo condição para o processo de objetivação e apropriação, visto que “a atividade do homem está dirigida em satisfazer suas necessidades”. A atividade nada mais é que o meio para a satisfação das necessidades humanas, movimento a que se pode chamar de atividade vital. Além disso, a atividade é condição para a formação da consciência, uma vez que “a consciência do homem é a forma histórica concreta de seu psiquismo, que adquire particularidades diversas segundo as condições sociais da vida dos homens”. A atividade é parte integrante da vida social, e a consciência se dá pela atividade de trabalho “na qual a relação do homem com a natureza é mediatizada por suas relações com os outros homens” (MARTINS; PASQUALINI, 2021, p. 94-95).

Tomados brevemente os pressupostos da teoria histórico-cultural, vejamos agora como ela se apresenta nas Proposta Curricular de 2008 e nas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020).

Ambos os documentos possuem um capítulo específico para apresentar a teoria histórico-cultural e trazem citações que de fato concordam com a teoria histórico-cultural, como, por exemplo, na Proposta Curricular de 2008, em um trecho sobre a compreensão dos professores autores da proposta:

Portanto, o conceito na perspectiva Vygotskyana, pela sua apropriação permite uma problematização do entendimento do real. Partindo do nível real de conhecimento do/a educando/a, dialogando com ele/a, negando-o e confrontando-o, numa relação dialética. A análise do real é ao mesmo tempo, ponto de partida e chegada. (CRICIÚMA, 2008, p. 15)

E nas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020):

O desenvolvimento humano está direcionado às máximas possibilidades de desenvolvimento já alcançadas pela humanidade (DAVÍDOV, 1988; VYGOTSKI, 2004); a qualidade de “máximo” a que se direciona o desenvolvimento humano é dada pelas capacidades humanas historicamente produzidas e pelas condições sociais objetivas que efetivam esse desenvolvimento; não se trata de qualquer desenvolvimento e nem de qualquer função psíquica, mas daquelas que são capazes de contribuir para a formação do “desenvolvimento total do sujeito”; o máximo desenvolvimento dos sujeitos é uma possibilidade histórica; é preciso a atuação dos sujeitos para que se efetive a ação. (CRICIÚMA, 2020, p. 15)

Sendo assim, faremos alguns apontamentos. Primeiramente que, em ambos os documentos, em nenhum momento, demonstram-se o entendimento de que a psicologia histórico-cultural por si só, não é suficiente como base teórico-metodológica, ou seja, não se aponta a necessidade de uma teoria pedagógica, conforme apontam Magalhães e Martins (2020) “acerca da indissociável relação entre a ciência psicológica e a ciência pedagógica no ensino desenvolvente” (MAGALHÃES; MARTINS, 2020, p. 06)

Segundo que, considerando o conteúdo dos dois documentos, em princípio, ambos consideram as questões históricas e culturais necessárias à prática histórico-cultural, visto que citam a necessidade da historicização, e consideram a cultura dos indivíduos como sendo condicionantes no processo educativo.

Observamos avanços quanto ao conteúdo das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) em relação a Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008), visto que as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) apresentam elementos que são constituintes de estudos mais recentes relacionados à psicologia histórico-cultural, como é o caso do ensino desenvolvente.

Quanto à presença de uma teoria pedagógica3nas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), faz-se necessário compreendermos as especificidades da pedagogia das competências, e partir deste movimento, poderemos afirmar se ela é aquela que supre a necessidade dialética como pedagogia contra-hegemônica, de base marxista da psicologia histórico-cultural, ou se a relação entre psicologia histórico-cultural e pedagogia das competências se trata de um paradoxo.

4 O PROCESSO DE RUPTURA NAS DIRETRIZES CURRICULARES DO ENSINO FUNDAMENTAL DE CRICIÚMA: A INSERÇÃO DE PRESSUPOSTOS ALINHADOS COM A PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS

Ao analisarmos as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), observamos a presença da teoria histórico-cultural, no que se refere, principalmente, a um dos aportes teóricos dispostos no documento. Ao mesmo tempo, apresenta também semelhança entre conteúdos e o modelo do documento da BNCC, o que nos leva a destacar que as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) também possuem aproximações com a BNCC. Quanto ao aporte teórico-metodológico, tanto BNCC quanto Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) não apresentam a pedagogia das competências explicitamente, mas utiliza, por exemplo, o conceito de competências como uma possível base teórico-metodológica.

A esta situação, na tentativa de articulação entre a Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008) e a BNCC para a reformulação das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), compreendemos que há um paradoxo que, por sua vez, culmina em uma contradição.

Para compreendermos, a contribuição da palavra paradoxo para a nossa a análise, vamos nos valer da definição de Saviani (2010), que perpassa pela definição de aporia. Saviani (2010, p. 14) expõe que, “conforme Aristóteles, ela [aporia] se configura como um ‘problema lógico, como um paradoxo nascido da existência de raciocínio igualmente coerentes e plausíveis que alcançam conclusões contrárias’”.

Saviani (2010) vai além em definir o paradoxo existente na educação: “Quer dizer, as interpretações que comumente se fazem sobre educação, as respostas que normalmente são dadas às questões educativas são paradoxais porque se baseiam em raciocínios igualmente coerentes e plausíveis que chegam a conclusões contrárias” (SAVIANI, 2010, p. 14) e continua dizendo que o paradoxo “outra coisa não é senão um raciocínio aparentemente bem fundamentado e coerente, embora esconda contradições decorrentes de uma análise insatisfatória de sua estrutura interna” (SAVIANI, 2010. p. 15).

Ao se pensar no objeto desta pesquisa, as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), observamos que o paradoxo se forma na tentativa de apresentar elementos de cunho teórico-metodológico alinhado tanto à teoria histórico-cultural quanto à pedagogia das competências. As duas teorias possuem coerência, mas suas finalidades são contrárias, ou seja, tais teorias possuem concepções de mundo distintas e, até mesmo, opostas. Visto que a pedagogia das competências, ao final, servirá para a manutenção da hegemonia, enquanto a psicologia histórico-cultural, como teoria psicológica que deve estar alinhada à teoria pedagógica histórico-crítica (MARTINS, 2013), que é aquela que apresenta unidade com a psicologia histórico-cultural, visto que ambas são advindas do marxismo. Neste momento apontamos a aproximação entre BNCC e Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) quanto a semelhança da organização dos documentos, mais além, os pressupostos advindos da pedagogia das competências.

Observando as dez competências gerais, presentes nos documentos curriculares em análise, compactuamos que essas competências se alinham com o ideário neoliberal. Tal fato ocorre pela necessidade de produção contínua em proveito da acumulação da riqueza da classe burguesa, a educação passa de uma atividade meramente espontânea para um processo de formação das novas gerações, voltada à formação de um ser humano, em especial o que compõem a classe trabalhadora, apto a atuar no processo de produção (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019).

A formação integral dos membros que compõem a classe trabalhadora não é interessante à classe burguesa, uma vez que, desta maneira, os princípios que regem a sociedade capitalista não são questionados. Trabalhadores são mais eficazes para a classe hegemônica quando produzem mais, não dispendendo seu tempo com atividades de estudo ou com possíveis questionamentos sobre a realidade concreta.

Pela necessidade de adaptação da mão de obra, nos últimos 40 anos, a educação escolar vem sofrendo constantes mudanças, influenciadas por orientações pedagógicas de cunho pós-moderno, baseada nos pressupostos, principalmente, do lema aprender a aprender. A condição pós-moderna trata do clima cultural daquela época. Aproximando-se das questões políticas educacionais, o termo que nos cabe é o neoliberalismo, que trata das condições econômico-políticas. O neoliberalismo faz parte de um grupo de conceitos “neo”, que ascende ainda na década de 1970 juntamente com o neoprodutivismo, de onde derivam o neoescolanovismo, neoconstrutivismo e neotecnicismo.

Conforme Malanchen e Santos (2020, p. 04),

Com o discurso de colocar a escola em sintonia com as mudanças tecnológicas, culturais e socioeconômicas, o que se colocou em prática foi um intenso processo de formatação da escola segundo os moldes impostos pela lógica do capitalismo do fim do século XX e início do século XXI de acordo com o ideário neoliberal.

Por essas novas condições, a função social da escola passa dar ênfase nas habilidades e capacidades que cada indivíduo deve desenvolver, com o intuito de ocupar melhores posições no mercado de trabalho, mesmo que não haja emprego para todos. Há, portanto, o movimento de culpabilização do sujeito, que deve, por meio apenas de seu próprio empenho, tornar-se hábil a ocupar o mercado de trabalho.

Mediante a culpabilização, se estabelece o que Saviani (2019) chama de pedagogia da exclusão, em que os indivíduos devem passar por constantes formações para facilitar seu acesso ao mercado de trabalho, ao mesmo tempo que os incita à autorresponsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso, e o encaminha para o trabalho informal, apenas por sua falta de capacidade de incluir-se no mercado de trabalho. “Eis o que ensina a pedagogia da exclusão” (SAVIANI, 2019, p. 431).

Este novo movimento, inserido nos pressupostos de aprender a aprender, tem seu foco na quantidade de conhecimentos, atualizações, para que o sujeito possa aumentar suas possibilidades de estar e se manter empregado pela quantidade formações e informações das mais diversas áreas e situações, tonando-se adaptável a diferentes áreas de trabalho.

“Em suma, a ‘pedagogia das competências’ apresenta-se como outra face da ‘pedagogia do aprender a aprender’”, incapazes de reconhecer a realidade objetiva em uma sociedade onde suas “próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas” e compreende que ninguém, além de si mesmo, é responsável por isso. O sujeito se torna incapaz de compreender seu contexto (SAVIANI, 2019, p. 437).

Esse ideário se desloca do meio empresarial para o meio escolar. Por esta transferência de importância é que ganham força os mecanismos de avaliação, sendo criado inclusive, em 1996, pela nova LDB, um sistema nacional de avaliação, e por estas avaliações, se direcionam verbas e recursos às secretarias de educação, ou seja, maior resultado, mais retorno.

Concordamos com Ferreti (1997) quando diz que a competência convergida à pedagogia escolar busca a qualificação profissional, em que os indivíduos buscam a preparação para uma entrada rápida no mercado de trabalho, despejando sobre a educação a responsabilidade de criar indivíduos aptos ao mercado de trabalho, bem como a responsabilidade de que o fim do ciclo escolar seja garantia de emprego.

Tais afirmativas nos fazem refletir quanto à forma de repercussão de tal modelo de educação:

A educação escolar, afirmam os neoliberais, deve assumir uma perspectiva neutra e objetiva, de maneira que os professore limitem-se a “passar conteúdos” desprovidos de posicionamento político-ideológicos e façam com que seus alunos adquiram conhecimentos e habilidades “úteis”. (DUARTE, 2020. p. 33)

Tratando da pedagogia das competências, uma pista importante é a presença das ideias de Piaget em seu conteúdo. Duarte (2001) aponta como um dos posicionamentos valorativos do “aprender a aprender”, no qual compreendemos que a pedagogia das competências está inclusa, a necessidade de reconhecer necessidades de aprendizado e buscá-las por conta própria. Pela pedagogia das competências, esse movimento é tratado como autonomia, justificando que o meio é suficientemente completo para ofertar aquilo que a criança necessita aprender e que intervenções externas poderiam, inclusive, comprometer seu aprendizado.

Nesta perspectiva, há também o esvaziamento da importância do conhecimento científico, que é tratado como defasado, e o fato de que ele já existe (não é um conhecimento novo, e está pronto) diminui a sua importância, visto que a necessidade está em inovar.

Não suficientemente, o desenvolvimento de habilidades de trabalho, ganham ênfase no processo de ensino e aprendizagem na educação escolar, ensino das competências socioemocionais em proveito do desenvolvimento de habilidades cognitivas. A este tipo de competência, as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) dedicam uma seção chamada “Educação para competências socioemocionais”

Utilizando-se de alguns autores, o texto traz que as competências socioemocionais combinadas com habilidades cognitivas, tem ganhados espaço em políticas públicas de diversos países para o aprimoramento do processo de ensino e aprendizagem, bem como pessoas com bom desenvolvimento socioemocional tem “maiores indicadores de bem-estar, menos sintomas depressivos e maior sucesso nos relacionamentos interpessoais”. Defende também que as competências cognitivas desenvolvem alguns recursos emocionais, necessários aos “desafios do século XXI” como “tomar decisões, trabalhar em equipe, resolver problemas, assumir responsabilidades, filtrar informações” (CRICIÚMA, 2020, p. 23).

O desenvolvimento das habilidades socioemocionais é ligado ao sucesso ou fracasso individual. Dantas e Bassi (2021) atentam, criticamente, para o fato de que todas as mazelas sociais são reduzidas pelo desenvolvimento socioemocional

Se utilizando do desenvolvimento das competências socioemocionais, o capitalismo ganha força e espaço para atuar livremente pois tem a classe trabalhadora ao seu lado. Por isso o desenvolvimento destas habilidades vem ao encontro dos objetivos de grandes organizações internacionais, que prezam pela manutenção da classe hegemônica, pois seus constituintes são parte dela.

Mas, que habilidades são estas, que quando desenvolvidas dizem transformar o mundo em um lugar mais igual e com seres humanos de sucesso? As habilidades socioemocionais são as habilidades ditas não cognitivas, ligadas ao comportamento e personalidade. Já as habilidades cognitivas são aquelas ligadas à matemática, às linguagens, ao saber acadêmico (SILVA, 2018, p. 45-46).

A pedagogia das competências afirma que há uma preocupação demasiada com a formação intelectual, visto que a formação integral do indivíduo também deve preocupar-se em formar um indivíduo de sentimentos positivos, resiliente. Percebemos, neste caso, uma supervalorização da inteligência emocional em detrimento das habilidades cognitivas (SILVA, 2018).

Para este movimento, Silva (2018, p. 49) chama de “psicologia positiva, como psicologia do enfrentamento, deve fundamentar políticas educacionais que visem disseminar a capacidade de funcionar bem, inclusive na tristeza”. As reais intenções para escola desenvolver a inteligência emocional, residem em o indivíduo reduzir ao máximo possíveis obstruções no trabalho, e caso aconteçam, saiba como superar rapidamente.

A proposta colocada pela pedagogia das competências, conforme pudemos observar, molda os sujeitos para ser competente ao mercado de trabalho, sendo autossuficiente, maleável, multifuncional. Pensando a questão da ruptura ela se dá no momento em que as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) ignoram o fato de que a pedagogia das competências não é aquela que está em relação de unidade com a psicologia histórico-cultural, visto que a pedagogia das competências serve a hegemonia. Já a psicologia histórico-cultural, como vimos anteriormente, requer uma pedagogia contra-hegemônica, advinda dos preceitos marxistas, tal qual a pedagogia histórico-crítica.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo se propôs a realizar uma análise sobre os pressupostos teórico-metodológicos das Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), no que se refere à sua continuidade com a Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008) e a seu alinhamento à BNCC.

Ao primeiro olhar de fato, a continuidade se faz presente, visto que a psicologia histórico-cultural se mantém. Podemos citar ainda um avanço relacionado à teoria, a qual, nas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), se preocupa em ser mais específica quanto aos pressupostos histórico-cultural, bem como aprofunda determinados conceitos, considerando os avanços da teoria no período entre 2008 e 2020.

Considerados os avanços, podemos citar também alguns retrocessos, como: o fato de a Proposta Curricular de 2000 apresentar a teoria pedagógica histórico-crítica e tal pressuposto se perder na Proposta Curricular da Rede Municipal de Criciúma (2008), mantendo apenas seus princípios psicológicos, por meio da psicologia histórico-cultural.

Outro fato é o de que as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), mesmo avançando nas discussões e demonstrando que compreende a teoria histórico-cultural como teoria psicológica, em nenhum momento disserta sobre a necessidade de uma teoria pedagógica.

Neste aspecto, as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) parecem desconsiderar a necessidade de a psicologia histórico-cultural estar em unidade com uma teoria assentada no materialismo histórico-dialético, no caso a pedagogia histórico-crítica. Tanto desconsidera que traz para o seu referencial teórico os pressupostos da pedagogia das competências, uma pedagogia hegemônica que está na contramão de uma teoria psicológica caracterizada pelo marxismo.

Ao se elucidar o paradoxo existente nas Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), ao contemplar ideário da pedagogia das competências, assume que o tipo de indivíduo que se quer formar é aquele maleável, multitarefas, capaz de solucionar problemas, autossuficiente no seu aprendizado e no seu trato psicológico, premissa das competências socioemocionais. Ao mesmo tempo, apresenta a teoria histórico-cultural, que considera a historicidade e cultura a que os indivíduos estão postos como condicionamento ao seu desenvolvimento, baseados nos conhecimentos de gerações, considerados científicos, e que formam indivíduos aptos a agir no seu contexto social, conforme pudemos observar no capítulo que trata exclusivamente da psicologia histórico-cultural.

A contradição reside no fato de que pedagogia das competências e psicologia histórico-cultural não estão em unidade por se tratar de teorias com pressupostos ontológicos opostos onde a primeira se trata de uma teoria hegemônica e a segunda de uma teoria conta-hegemônica. Enquanto a psicologia histórico-cultural quer formar sujeitos críticos e socialmente atuantes, a pedagogia das competências, por meio do desenvolvimento das habilidades socioemocionais, busca justamente o contrário. Quer sujeitos atuantes apenas nas suas relações de trabalho.

Considerar o desenvolvimento de habilidades socioemocionais é considerar o desenvolvimento emocional do indivíduo, não como forma de desenvolvimento psíquico ou seu desenvolvimento integral, mas em busca do desenvolvimento financeiro, que termina por gerar lucros apenas aos empregadores.

O desenvolvimento socioemocional do sujeito se faz importante apenas para que ele seja cada vez mais eficiente nas suas relações de trabalho, com o discurso de que este movimento é pensado na melhoria de suas condições de vida, enquanto, de fato, o que se quer é que se diminua possíveis “atrasos” no percurso de sua produtividade.

 Outro ponto é que aparentemente todo o contexto social é excluído, visto que o sucesso individual é independente de fatores externos. Quer dizer que o aproveitamento de possíveis oportunidades depende também da capacidade do indivíduo de se autorregular. Mais uma vez o fracasso é de responsabilidade total de cada um, mesmo que o meio de que faz parte não disponha de condições para seu sucesso e desenvolvimento. O sujeito é privado da sua visão crítica, de compreender sua realidade, minimizando esses fatos apenas ao fato de atingir ou não o seu sucesso financeiro e no trabalho.

  Cabe a cada um se apropriar de técnicas de autorregulação social e emocional, descartando, por exemplo, necessidade de afastar-se do trabalho para cuidar da saúde física e mental. Para além, precisa saber como proporcionar um ambiente tranquilo e produtivo de trabalho, fazendo-o pensar que isso depende apenas das suas ações e não também de fatores externos alheios a si, como as condições ofertadas no ambiente de trabalho.

Ressaltamos a necessidade e, ao mesmo tempo, sugerimos que as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), que compreendemos como um documento não finalizado, avance nos seus pressupostos teórico-metodológicos e faça o movimento de ponderar sobre a efetividade do seu conteúdo, pensando sobre a clareza em apontar ao seu corpo docente, que terá as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020) como base de atuação, o tipo de sujeito que se pretende formar.

Compreendemos a importância de um documento como as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental de Criciúma (2020), bem como o processo formativo que envolve sua reformulação, e esperamos que tais apontamentos possam contribuir tanto para a qualidade do documento e sua futura reelaboração, quanto para a educação do município de Criciúma.

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência: Rua Domênico Sônego, 542 - Paço Municipal Marcos Rovaris - Santa Bárbara - Criciúma - SC CEP: 88.804-050; dalpontgessica@gmail.com


1 Mestre em Educação pela Universidade do Sul de Santa Catarina; Graduada em Licenciatura em Educação Física pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: dalpontgessica@gmail.com.

2 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná; Graduado em Licenciatura em Educação Física pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: matheusbernardo25@gmail.com.

3 Constatamos o esvaziamento de uma teoria pedagógica e compreendemos a importância desta discussão, mas não é nossa intenção realizar esta discussão neste artigo, para tanto indicamos o texto de Magalhães e Martins (2020) “Onze teses sobre a relação entre psicologia educacional e pedagogia escolar”, que apontam a necessidade da relação entre psicologia educação e pedagogia escolar.