https://doi.org/10.18593/r.v48.30015

Trajetórias, Memórias e Narrativas em pesquisas na área de Educação do Campo

Trajectories, Memories and Narratives in research in the Countryside Education area

Trayectorias, Memorias y Narrativas en investigaciones en el área de Educación del Campo

Miriã Lúcia Luiz1

Universidade Federal do Espírito Santo; Professora do Centro de Educação.

http://orcid.org/0000-0001-6825-1541

Alessandro da Silva Guimarães2

Universidade Federal do Espírito Santo; Professor adjunto.

http://orcid.org/0000-0002-5581-4808

Resumo. Partindo de indícios e pistas presentes em dissertações e teses que exploram a área da educação do campo enquanto lócus de pesquisa, este artigo busca compreenderas trajetórias, experiências e memórias narradas por pesquisadores deste âmbito do saber, buscando identificar nexos entre a produção do conhecimento no campo da educação e a elaboração de narrativas autobiográficas nesse processo (JOSSO, 2004). Neste caminho, dialoga com os conceitos de narrativa e experiência em Walter Benjamin (1987, 2016), de memória e história (BOSI, 2012; HALBWACHS, 1990); parte da operação historiográfica proposta por Ginzburg (2007a, 2007b, 2014) no método indiciário, referenciado na micro-história italiana. Entre as linhas e as margens, entre tantas narrativas e várias confidências presentes nestas produções acadêmicas defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo entre 2006 e 2019, emergiram memórias de infância, de suas trajetórias de vida, atuação e formação, das experiências de desumanização-resistência-humanização (ARROYO, 2019) e de estranhamento e reencontro com os contextos do campo e da cidade. Por fim, evidenciaram-se processos existenciais que implicam uma relação singular entre as trajetórias desses sujeitos e sua opção político-existencial pela educação do campo enquanto lócus de pesquisa e de trabalho, constituindo-se, portanto, como um retorno à própria terra, à sua história e sua existência em seu sentido mais amplo, num movimento que envolve fazeres, saberes, afetos e ideais construídos no processo de luta e trabalho.

Palavras-chave: memórias; narrativas; experiências; paradigma indiciário; educação do campo.

Abstract. Starting from clues and indications present in dissertations and theses that explore the countryside education area as a research locus, this paper seeks to understand the trajectories, experiences and memories narrated by researchers in this field of knowledge, seeking to identify links between the production of knowledge in the educational field and the elaboration of autobiographical narratives in this process (JOSSO, 2004). In this way, this study dialogues with the concepts of narrative and experience in Walter Benjamin (1987, 2016), memory and history (BOSI, 2012; HALBWACHS, 1999); it departs from the historiographical operation proposed by Ginzburg (2007a, 2007b, 2014) in the indiciary method, referenced in the Italian micro-history. Between the lines and the margins, among the many narratives and various confidences present in these academic productions defended in the Graduate Program in Education of the Federal University of Espírito Santo between 2006 and 2019, memories emerged from childhood, their life paths, performance and formation, experiences of dehumanization-resistance-humanization (ARROYO, 2019), and of strangeness and reunion with the contexts of the country and the city. Finally, existential processes were evidenced that imply a singular relationship between the trajectories of these subjects and their political-existential option for the education of the field as a research and work locus, constituting, therefore, as a return to the land itself, to its history and its existence in a broader sense, in a movement that involves doing, knowing, affecting, and ideals constructed in the process of struggle and work.

Keywords: memories; narratives; experiences; indiciary paradigm; countryside education.

Resumen. Analiza las trayectorias, experiencias y memorias narradas por investigadores del área de Educación del Campo, buscando identificar nexos entre la producción del conocimiento en el campo de la educación y la elaboración de narrativas autobiográficas (JOSSO, 2004). Entre las líneas y las márgenes, narrativas y confidencias presentes en las producciones académicas defendidas en el Programa de Post-Graduación en Educación de la Universidad Federal del Espíritu Santo entre 2006 y 2019, se evidenciaron procesos existenciales que implican una relación singular entre las trayectorias de esos sujetos y su opción político-existencial por la educación del campo como locus de investigación y de trabajo, constituyéndose, por consiguiente, como un retorno a la propia tierra, a su historia y su existencia en su sentido más amplio, en un movimiento que envuelve haceres, saberes, afectos e ideales construidos en el proceso de lucha y trabajo.

Palabras clave: memorias; narrativas; experiencias; paradigma indiciario; educación del campo.

Recebido em 15 de fevereiro de 2022

Aceito em 11 de janeiro de 2023

1 INTRODUÇÃO

Ginzburg introduz a obra O fio e os rastros (2007a, p. 7) narrando parte do conto mitológico Teseu e o Minotauro: “Os gregos contam que Teseu recebeu de presente de Ariadne um fio. Com esse fio se orientou no labirinto, encontrou o Minotauro e o matou. Dos rastros que Teseu deixou ao vagar pelo labirinto, o mito não fala”. Assim como neste conto grego, estamos interessados no fio que orienta as narrativas de nossos pesquisadores da Educação do campo, já que são pistas para pensarmos suas trajetórias, experiências e memórias narradas, buscando identificar nexos entre a produção do conhecimento no campo da educação e a produção de narrativas autobiográficas3 nesse processo. Contudo, também aproximamos a lupa para a identificação dos rastros, aqueles elementos sutis e quase imperceptíveis que compõem as tessituras narrativas dos pesquisadores da Educação do campo.

Desse modo, a escrita deste texto que toma as narrativas de pesquisadores – expressos sob a forma de dissertações e teses – como fontes, cujas experiências e memórias são engendradas na composição argumentativa e textual, nos mobiliza a pensarmos esses processos de produção em sua dimensão histórica. Para tanto, interessam-nos os modos como Ginzburg opera historiograficamente, ou seja, os caminhos que segue para elaborar a narrativa a partir da interrogação das fontes e, de forma indissociável a isso, a inclusão no itinerário da escrita, das incertezas e dos erros, o que torna a narrativa, ao longo de sua constituição, muitas vezes confusa e desordenada. Em sua ótica, a leitura minuciosa dos textos torna-se indispensável, pois toda fonte, mesmo que tenha “[...] uma linguagem supostamente clara por si mesma e transparente, precisa ser decifrada” (GINZBURG, 2014, p. 58).

Essa perspectiva historiográfica na qual Ginzburg se insere – a micro-história4– aceita o limite constitutivo do ofício do historiador, “[...] explorando as suas implicações gnosiológicas e transformando-as num elemento narrativo” (GINZBURG, 2007a, p. 271). Complexa e de difícil definição e configuração, a micro-história, para os efeitos deste texto, pressupõe que “[...] toda configuração social é o resultado da interação de incontestáveis estratégias individuais: um emaranhado que somente a observação próxima possibilita reconstituir” (GINZBURG, 2007a, p. 277).

Dentro desse conjunto interpretativo, situamos o paradigma indiciário como modelo epistemológico da operação historiográfica, a partir do qual buscamos elementos para lermos as narrativas dos pesquisadores da Educação do Campo, buscando identificar em seus dados marginais, nos dados aparentemente negligenciáveis, elementos que nos permitam “[...] remontar uma realidade complexa não experimentável diretamente” (GINZBURG, 2007b, p. 152).

A partir do “rigor flexível” dessa postura interpretativa, lançamos nossos olhares para as produções dos pesquisadores da Educação do Campo do Espírito Santo, especificamente, para cinco dissertações e dez teses defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, entre os anos de 2006 e 2019, selecionadas5 em meio a um conjunto maior composto por 776 estudos em diversas linhas de pesquisa (544 dissertações de mestrado e 232 teses de doutorado).

Conceitualmente, esse estudo se baseia nas noções de narrativa e experiência (BENJAMIN, 1987), na relação com as compreensões de memória e história (BOSI, 2012; HALBWACHS, 1990), cujo esforço analítico busca pensar as narrativas dos pesquisadores na perspectiva dos processos autoformativos, pensados por Josso (2004) e Nóvoa (2004), cotejando esses relatos com a literatura da Educação do Campo, especialmente as teorizações de Arroyo (2019). Nesse sentido, ao reconhecermos a centralidade das trajetórias autobiográficas dos educadores no processo de formação e compreensão de si e do mundo, este estudo busca, de modo estrito, entender como esses pesquisadores se apresentam enquanto sujeitos históricos e pensar como suas trajetórias nos permitem pensar a respeito de tantas outras histórias de diferentes sujeitos que vem cotidianamente (re)construindo e (re)inventando a(s) experiência(s) na realidade campesina brasileira, e, em especial, como isso vem sendo feito por educadores e educadoras que estão mergulhados produzindo e vivenciando experiências educacionais ligadas à educação do campo.

Com isso posto, o artigo organiza-se em dois movimentos: o primeiro trata dos elementos conceituais, no qual apresentamos as noções de narrativa, experiência, memória e história e a operação historiográfica pautada no pensamento de Ginzburg (2007a, 2007b, 2014). No segundo movimento, analisamos as narrativas dos pesquisadores da Educação do campo, indicando pistas eloquentes para pensamos os nexos possíveis entre a produção do conhecimento no campo da educação e a produção de narrativas autobiográficas nesse processo.

2 AS NOÇÕES DE MEMÓRIA, HISTÓRIA E EXPERIÊNCIA PARA PENSARMOS AS NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS DOS PESQUISADORES DA EDUCAÇÃO DO CAMPO

Um texto decisivo para discutirmos o conceito de experiência em Walter Benjamin é Experiência e pobreza (2016), publicado no período entre as duas grandes guerras mundiais, mais precisamente no ano de 1933. Essa pequena narrativa apresentada por Benjamin nos conta uma fábula de um velho senhor que, já moribundo, revela a seus filhos um segredo: um tesouro que estaria enterrado em suas terras. E, para reaver o tesouro, sua prole deveria obviamente cavar. E o fizeram com labor, sem, com isso, alcançarem o objetivo de encontrar tal tesouro. Todavia, chegando o outono, a vinha plantada naquelas terras produziu mais do que nunca! Daí seus filhos percebem o verdadeiro significado das palavras do pai: aquilo que nos leva à fartura e à riqueza é o próprio trabalho. Com isso, Benjamin mostra que a experiência (Erfahrung) assume, no intercambio existencial entre os homens, uma força fecunda que conecta gerações.

Todavia, com o declínio das narrativas que se processa com a modernidade (e a produção de outra noção de tempo criada por um sistema de produção que valoriza a velocidade, o transitório e o futuro enquanto progresso, subvalorizando o passado enquanto experiência viva), Benjamin ressalta o declive da narrativa e, com isso, da própria noção de experiência, enquanto elementos de conexão social que durante a história humana na terra foram fundamentais para ligar diferentes gerações. Desse modo, o filósofo alemão apresenta os seguintes questionamentos:

[...] Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um anel de geração? Um provérbio hoje serve para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 2016, p. 114).

Para compreendermos mais detidamente o que Benjamin denomina de experiência, devemos diferenciar dois conceitos centrais em seu pensamento: a noção de Erfahrung (experiência ligada à vida coletiva, comunitária) e a noção de Erlebnis (vivência individual). Segundo Konder (1999) a Erfahrung está relacionada a um saber que é adquirido por meio de uma experiência que se desdobra e se prolonga, do mesmo modo como acontece na experiência de uma viagem (lembrando que “viajar”, em alemão, é expresso pela palavra fahren). De acordo com Konder (1999, p. 83), no pensamento Benjaminiano, “[...] o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas, com o tempo” (p. 83). Já na Erlebnis(vivência individual), falamos de um sujeito isolado, da valorização da vida particular ligada, sobretudo, ao nascimento de uma sociedade moderna que cria uma noção de tempo efêmero, de relações cada vez mais passageiras e superficiais nas quais as narrativas (e a consequente valorização das memórias nesse processo) vão perdendo sua importância enquanto espaço de amálgama entre histórias, vidas e sujeitos.

Neste aspecto, Josso (2004) nos traz reflexões significativas quando assume o desafio de compreender de que modo as experiências existenciais vividas por educadores podem, quando tomadas como narrativas que expressam histórias de vida, se tornar um valioso instrumento de formação destes profissionais, proporcionando que estes sujeitos assumam suas histórias, simultaneamente, como processo formativo e também de constante (auto)conhecimento. A pesquisadora enfatiza essa noção de que todo conhecimento também é um modo de autoconhecimento. Percebendo as histórias e narrativas de vida em sua riqueza e singularidades próprias, Josso (2004) apropria-se das mesmas tanto enquanto um saber que constrói uma concepção teórico-epistemológica sobre os processos formativos do educador, quanto na proposição de uma metodologia de pesquisa e de formação.

Portanto, Josso (2004) nos provoca a um movimento de explorar nossas experiências enquanto lugar de abertura dialética que, entre o exercício da alteridade e a autoconsciência que pode emergir de nossa (auto)descoberta, nos possibilita assumir uma posição de lucidez em torno do nosso papel enquanto pessoas e educadores. Essa ação que articula de forma “mais ou menos” consciente as heranças e experiências formadoras, expressa pela autora, nos lembra do papel das memórias – individual e coletiva – nesse processo. A primeira questão a considerarmos é apontada por Bosi (2012, p. 197): “[...] a memória atende ao chamado do presente”, contudo, a autora alerta que é necessário transpor, muitas vezes, a enorme distância temporal entre o fato narrado pela testemunha e o acontecido.

Diante disso, podemos interrogar: Como opera a memória individual e coletiva? Para respondermos a essa questão encontramos pistas no pensamento de Halbwachs (1990), para quem há uma impossibilidade de uma memória exclusivamente ou estritamente individual, já que as lembranças dos indivíduos são, sempre, construídas a partir de sua relação de pertença a um grupo (SCHMIDT; MAHFOUD, 1993). Nesse sentido, a memória individual pode ser entendida como um ponto de convergência de diferentes influências sociais e como uma forma particular de articulação das mesmas, enquanto a memória coletiva

[...] é o trabalho que um determinado grupo social realiza, articulando e localizando as lembranças em quadros sociais comuns. O resultado desse trabalho é uma espécie de acervo de lembranças compartilhadas que são o conteúdo da memória coletiva. (SCHMIDT, MAHFOUD, 1993, p. 291).

Os modos como a memória opera em relação à história são também significativos nessa reflexão, pois, como lembra Ginzburg (2014), memórias são matérias da história, e há um movimento de historiadores6que busca tornar as fronteiras dessa ciência mais próximas das vidas das pessoas. O entendimento de história aqui não nos parece irrelevante, já que para Halbwachs (1990), se pensamos a história resumida às datas e eventos, ela pode ser extremamente exterior, ao menos em aparência, às nossas experiências pessoais; porém, quando a refletimos e comparamos com nossas memórias individuais, compreendemos e significamos muitos desses acontecimentos. Para esse autor: “Não é na história aprendida, mas na vivida que se apoia nossa memória” (HALBWACHS, 1990, p. 60), pois essa história vivida tem tudo o que é preciso para constituir um quadro vivo em que um pensamento pode se apoiar, para conservar e reencontrar a imagem de seu passado.

Se considerarmos que o passado é, por definição, um dado que não se modifica, concordamos com Bloch (2001) que a interpretação desse passado encontra-se em incessante movimento de transformação e aperfeiçoamento. Seguramente, essa é uma questão bastante pertinente que se manifesta nas narrativas dos educadores-pesquisadores da educação do campo com as quais dialogaremos mais adiante. Daí a relevância, no âmbito desta investigação, do lugar ocupado pela memória e pela narrativa, pois o passado constituindo-se como alteridade absoluta só se tornará cognoscível mediante a voz do nosso depoente, nosso narrador (BOSI, 2012). Nesse sentido, bem mais que um documento unilinear, a narrativa da testemunha

[...] oferece uma via privilegiada para compreender a articulação dos movimentos da história com a cotidianidade. É muito belo escutar esse rememorar meditativo da testemunha. E nós então compreendemos que se pode fazer da memória um apoio sólido para a construção do presente [...]. (BOSI, 2012, p. 197).

3 TRAJETÓRIAS, EXPERIÊNCIAS E MEMÓRIAS NARRADAS POR PESQUISADORES DA ÁREA DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

Ouvir a história do outro é de algum modo ouvir a si mesmo e, para Benjamin (1987), essa é a lógica das narrativas: dar continuidade, dar movimento à história que foi contada. Por trabalhar com narrativas e trajetórias de outros educadores, as dissertações e teses aqui focalizadas constituíram-se em processos existenciais e formativos em perspectiva multilateral, no âmbito dos quais evidenciam mudanças em convicções dos sujeitos, ressignificação de experiências, estranhamentos e reencontros com o campo e, notadamente, relações profundas com suas trajetórias de vida. É o que aprofundaremos nos tópicos a seguir.

3.1 QUEM SÃO OS PESQUISADORES DA ÁREA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO DA UFES E COMO NARRAM SUAS TRAJETÓRIAS ENQUANTO SUJEITOS HISTÓRICOS E EDUCADORES?

A partir dos olhares que lançamos para as narrativas dos pesquisadores da Educação do campo, notamos elementos que nos permitem uma compreensão de suas trajetórias, enquanto sujeitos históricos, em sua constituição e atuação como educadores. Especificamente, situamos seus relatos em três perspectivas, que convergem para pensamos seus contextos de vida, atuação e formação: a) os modos de narrar suas histórias de vida a partir de suas memórias na relação com o contexto histórico; b) memórias de desumanização-resistência-humanização (ARROYO, 2019) expressas nas narrativas; c) experiências que revelam estranhamento e reencontro com os contextos do campo e da cidade durante os processos ensejados nas pesquisas.

A leitura de um dos estudos chamou especialmente a nossa atenção, a começar pela própria forma de intitulá-lo. Gerke de Jesus (2014), ao buscar compreender os sentidos da formação docente para a profissionalização, subintitula sua pesquisa com a expressão: na voz do professor do campo. Com isso, a autora abre um importante canal de interlocução com os sujeitos participantes dessa investigação: os professores do campo. Para esse diálogo, a autora toma como ponto de partida suas narrativas autobiográficas, destacando, com isso, a relevância desse exercício de rememoração:

Quão bom é rememorar, narrar, ouvir e recontar histórias... uma incrível capacidade que nos dota e que nos permite o encontro. Encontro com as histórias e experiências vividas, sejam elas boas ou não; encontro com o outro que se faz interlocutor nos movimentos de narrar e escutar; encontro com nossa imaginação e criatividade que nos permite sistematizar nossas lembranças [...]. (GERKE DE JESUS, 2014, p. 15).

Nesse registro encontramos indícios do que seria a Erfahrung (experiência ligada à vida coletiva, comunitária) (BENJAMIN, 2016), pois a autora, além das experiências evocadas pelas memórias individuais, refere-se ao encontro com o outro que se faz interlocutor nos movimentos de narrar e escutar. Nesse movimento, entendemos os encontros e suas múltiplas possibilidades formativas envolvendo a autora, narradora dessa experiência, os professores do campo que participaram da pesquisa e, potencialmente, leitores e interlocutores desse estudo, tendo em vista que aquele que “[...] escuta uma história está na companhia do narrador, mesmo quem a lê partilha dessa companhia” (BENJAMIN, 1987, p. 213).

Inserindo-se na perspectiva da formação que não despreza o seu caráter técnico e tecnológico, mas a inscreve num percurso pessoal, o estudo de Lovatti (2014) visibiliza a “[...] caminhada do formador enquanto eu pensante e sensível que se convoca na sua construção pessoal e caminhada do formador na sua relação com os outros, ajudando-os a mobilizarem-se para o processo formativo” (NÓVOA, 2004, p. 18, grifos do autor). Em um primeiro momento, Lovatti rememora suas experiências infantis, em meio às peculiaridades de uma vida no campo, cujos espaços, rotinas, saberes e fazeres são próprios daquele espaço e tempo vivido:

Então, foi preciso assumir o compromisso de compreender o contexto [...]. Nesse momento, nossos fios de memória nos conduziam à nossa infância, às vivências no sítio da família com a tia, professora em escola unidocente, às rotinas com lógica temporal diferenciada, a vivência nos espaços mais amplos do campo, correndo, brincando, subindo em árvore e, muitas vezes, longe dos olhos da mãe [...]. (LOVATTI, 2014, p. 23).

A autora prossegue, assim, nesse duplo movimento entre suas memórias de infância e de escolarização e o contexto da pesquisa, portanto, os espaços e tempos de vida e de atuação dos sujeitos envolvidos nos processos por ela narrados. É o que lemos em seu relato:

Essa lembrança nos sensibilizava a entender que aquele contexto e seus sujeitos tinham um modo próprio de organização da vida, com culturas, estruturas e tempos diferenciados. Nesse momento, começamos a tentar nos aproximar das vivências e estudos que dialogavam com os contextos do campo [...]. (LOVATTI, 2014, p. 23).

Elementos para pensarmos o contexto campesino, em suas pluralidades e singularidades, emergem desse fragmento e nos são essenciais, já que esses espaços/tempos são focalizados nas trajetórias de vida e de formação, tanto dos nossos narradores, como dos sujeitos que participaram das experiências de pesquisa e de formação por eles ensejadas. Assim, escolas unidocentes, rotinas com lógica temporal diferenciada, um modo próprio de organização da vida, nos dizem de contextos campesinos e de processos educativos construídos nesses espaços por sujeitos que os significam a partir de seus saberes aprendidos nas lutas por terra, trabalho e vida (ARROYO, 2019).

Na busca por apoiar suas memórias na história vivida (HALBWACHS, 1990), Cosmo (2014, p. 151) constrói sua narrativa buscando “[...] contribuir para o impedimento de que a memória histórica se desvaneça e de que as identidades não se percam no fluir inexorável do tempo contínuo”. Nesse sentido, a autora aposta na constituição das múltiplas identidades, em meio à consolidação da memória coletiva e a exterioridade que a história pode assumir nessa produção. Nas palavras da autora:

Vinculando a razão histórica à memória, dedicamo-nos à tarefa de fazer afluir o passado, desvelando, por meio da história de vida, os fenômenos narrados e velados que constituem os modos e sentidos de ser mulher, de ser professora, de ser pomerana. (COSMO, 2014, p. 151).

Arroyo (2019) destaca a necessidade de centralizar a memória na formação humana. Ao referir-se aos processos formativos dos educadores militantes, esse autor aponta para as potencialidades de aberturas para que esses educadores

[...] narrem, socializem suas memórias de vivências tanto de opressão, desumanização na condição de sem-terra, sem trabalho, sem vida justa, humana quanto que narrem, sobretudo, suas memórias de lutas por terra, trabalho, vida, justiça, humanidade. Que reconheçam essas narrativas de suas memórias como matrizes de formação, de saberes, de culturas, de identidades. (ARROYO, 2019, p. 139).

É nesse sentido que pensamos nossos narradores e os sujeitos que foram por eles visibilizados nesse processo como testemunhas, sujeitos da centralidade da memória na sua formação humana. Nos relatos aqui privilegiados se presentificam os brutais processos de expropriação da terra, as lutas por espaços dignos de sobrevivência, enfim, lutas por memórias, identidades, valores e culturas. Emergem, portanto, memórias de desumanização-resistência-humanização, como lemos em Santos (2015, p. 30):

Sendo filho de pais, habitantes e trabalhadoras da ‘roça’ (campo), que foram ‘expulsos’ desse território em razão das dificuldades de vida e trabalho e tiveram também que abandonar precocemente os seus estudos escolares, migrando para a ‘rua’ (cidade) e passando a morar na década de 1980 em Resistência [...], bairro que, atualmente, pertencente à Região São Pedro, periferia do município de Vitória/ES, desprovida de condições mínimas de vida, eu sofri, senti e testemunhei os reflexos da desigualdade social produzida e reproduzida no sistema capitalista, como a fome e a violência. Apesar de não ter vivido a experiência de desterritorialização campesina de meus pais, cresci escutando os seus relatos sobre a vida difícil no campo e a consequente necessidade de migrar para a cidade.

As experiências de expropriação do território, citadas por Santos (2015) são também mencionadas por Zen (2006) e, com esse processo de expulsão do território, somam-se inevitavelmente às difíceis condições de sobrevivência enfrentadas por sua família:

Alguns acontecimentos importantes em minha história pessoal foram formando o meu modo de ser e de estar no mundo, juntamente com minhas opções e valores. O fato de ter nascido numa família pequena e empobrecida fez com que desde muito cedo experimentasse o drama da luta pela sobrevivência como tantos trabalhadores urbanos e rurais. Meus pais, como muitos sem-terra, foram expulsos da roça e vieram para a cidade engrossar as fileiras dos desempregados. (ZEN, 2006, p. 8).

As narrativas de Santos (2015) e de Zen (2006) nos permitem ler, ainda, os modos como eles se instituem como sujeito de seu projeto de conhecimento (JOSSO, 2004). É também nessa direção que a narrativa de Peizini (2016, p. 23-24) se insere:

As vivências com os alunos dessa escola [do campo] e com as pessoas da comunidade me remetiam às minhas próprias memórias de infância que, outrora, também vivenciei na liberdade que os amplos espaços do campo oferecem [...]. Lembrança que me sensibilizava e motivava a compreender o contexto, os tempos diferenciados e os próprios modos de organização.

Essa inscrição dos percursos pessoais no processo de escrita indicia-nos possibilidades para compreendermos os sentidos atribuídos por esses sujeitos aos processos de pesquisa como espaços-tempos de formação. Assim, evidenciaram-se, não apenas elementos relativos à vida cotidiana no campo, mas também práticas, rotinas e modos de pensar e organizar os movimentos educativos naquele contexto, como podemos observar na narrativa de Silva, ao relacionar sua relação com o campo de pesquisa com suas experiências de escolarização na infância: “A minha relação com a Educação do Campo vem de muito tempo, aliás, a minha vida acadêmica inicia-se numa Escola do Campo onde cursei as séries iniciais em sala multisseriada” (SILVA, 2013, p. 24).

Alguns pesquisadores não se eximiram de revelar as duras realidades vividas nos contextos campesinos que, mesmo com suas singularidades, são marcados por elementos históricos comuns, principalmente no que se refere às desigualdades sociais aprofundadas pela ausência histórica de políticas de valorização do homem do campo e, principalmente, de implementação da reforma agrária. Isso, obviamente, caminha em direção distinta da imagem negativa que se construiu do campo, inclusive difundida pelo pensamento pedagógico, vinculando-o a um lugar habitado por sujeitos “[...] vencidos pelo analfabetismo, pela irracionalidade, pela falta de valores de trabalho, logo sem territórios, sem terra” (ARROYO, 2019, p. 140).

A intenção que pareceu ser seguida pelos autores das narrativas é evidenciar que, em meio aos seus percursos de pesquisa, constituídos, em grande medida, por suas memórias de infância, de escolarização e por suas trajetórias profissionais, há marcas profundas das lutas cotidianas em meio a essas realidades desafiadoras, como registrado por Hehr (2015, p. 24):

Tive um começo bem difícil, característico dos profissionais em início de carreira, e que se torna pertinente registrar. Andava uma hora a pé até chegar à vila de Soído e dia a dia enfrentava várias adversidades: chuva, lama, poeira. Na vila, subíamos na carroceria de uma caminhonete, adaptada com bancos de madeira e lona para cobrir, que levava alunos, professoras, diretora e servente até a escola [...].

Dois contextos igualmente significativos são narrados pelos pesquisadores do campo: o Movimento dos Sem-terra (MST) e a Educação de Jovens e Adultos. Isso nos mostra as pluralidades do campo e as múltiplas identidades que nesse espaço se constituem, nos impelindo a reconhecer que os sujeitos que ali produzem suas existências são portadores de memórias, muitas vezes ocultadas, proibidas, segregadas, sobretudo, memórias de resistências humanas, políticas de que eles e seus coletivos, de que os movimentos sociais dos campos são sujeitos históricos (ARROYO, 2019). São exemplos os relatos a seguir:

Minha trajetória de vida e formação tem encontros profundos com a Educação de Jovens e Adultos que, até há algum tempo, eu evitava revelar por receio de ser identificado como educando da EJA em função do estigma que este segmento carrega, ou mesmo por pensar que poderia ser discriminado por alguns ‘amigos’, que pensam a EJA como o antigo MOBRAL. (BARBOSA FILHO, 2011, p. 23-24).

A educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é resultado de uma longa caminhada marcada pelo descaso, pela exclusão social, pela negação da história e da identidade Sem Terra[...]. A história de luta do Movimento se entrelaça à realidade que vivenciei na infância, quando participava com minha família dos diversos espaços de formação/ação na/da associação de uma comunidade carente, em Belo Horizonte, na década de 1980, onde fomos morar ao sermos expulsos do campo. (FRANÇA, 2013, p. 19).

Ao longo do movimento de pesquisa, perspectivando re(criar) suas memórias, por meio da reconstrução de uma experiência do passado (SANTOS, 2015), emergem outras memórias distintas daquelas de infância e imagens que transcendem as experiências aparentemente áridas, mas extremamente necessárias, expressas no início de suas pesquisas. Santos (2015) deixa rastros desse metamorfosear formativo quando releva que, após seu percurso de pesquisa, as suas narrativas iniciais, advindas de memórias individuais e coletivas, encontram-se em ruínas e, com isso, peças foram recriadas. Aqui encontramos ecos no que expressa Bosi (2012, p. 198): “[...] a memória deixa de ter aqui um caráter de restauração do passado e passa a ser a memória geradora do futuro: memória social, memória histórica e coletiva”.

Em busca de experiências que revelam estranhamento e reencontro com os contextos do campo e da cidade durante os processos ensejados nas pesquisas, o estudo de Oliveira (2011) é elucidativo quando mostra situações de estranhamento do pesquisador na relação com o contexto da cidade: “Eram outras pessoas, outras culturas e, nesse momento, de extrema estranheza entre o que eu vivia no campo, na escola e em outros espaços da cidade, tempo em que já observava o processo de exploração nas relações de trabalho [...]” (OLIVEIRA, 2011, p. 12).

É nos movimentos de estranhamentos e reencontros com os espaços campesinos que nossos narradores se constituem em suas múltiplas identidades. Em comum os pesquisadores nos parecem compartilhar das lutas em meio às desigualdades sociais daquele espaço, sobretudo pela negação dos direitos à posse da terra e expropriação do território, em decorrência disso. Contudo, reencontros com o campo mostram-se promissores e assumem o papel de mola propulsora para processos de autorreflexão e de autoformação.

É o que Gerke de Jesus nos mostra, ao narrar os modos como, em sua trajetória, o campo que lhe fora sempre usado como “ameaça” pelo pai e o trabalho naquele espaço entendido como o último dos destinos possíveis são ressignificados. Ninguém melhor para explicar esse reencontro tão fecundo e potente com o campo enquanto espaço-tempo de atuação do que a nossa própria narradora, que, atuando como professora e pedagoga, revela: “[...] o retorno se fez, exatamente porque encontrei na Educação uma nova possibilidade de viver, trabalhar e pensar o campo. Ao contrário do que meu pai preconizava, voltei ao campo tão logo que sai, ou talvez nunca tenha saído!” (GERKE DE JESUS, 2014, p. 22).

3.2 EXPERIÊNCIA FORMATIVA ENQUANTO RESSIGNIFICAÇÃO E RESISTÊNCIA: DECIFRANDO INDÍCIOS NAS NARRATIVAS DOS PESQUISADORES

A leitura das dissertações e teses permitiu-nos identificar conexões entre o processo de fazer-pesquisa e as reflexões existenciais que isso suscitou. Ou seja, as experiências do fazer-pesquisa são constantemente refletidas, ao longo destas produções, enquanto processos formativos autorreflexivos, nos quais percursos de autoconhecimento e (novas) produções de sentidos são (re)criados e reelaborados no caminhar da pesquisa, trazendo memórias que reafirmam histórias e identidades que, no entanto, são reatualizadas com o novo desafio colocado no presente para estes sujeitos, ou seja, se tornarem pesquisadores, como expressa Gerke de Jesus (2014, p. 15):“Pensar acerca desses movimentos [de fazer-pesquisa] como processos singulares e subjetivos, como possibilidade de diálogo e de produção de sentidos nos permitiu não somente a experiência de pesquisa, mas a produção de novos sentidos na vida”.

Em perspectiva similar, inserem-se as palavras de Zen (2006, p. 08):

Certa vez alguém afirmou que toda busca que fazemos por conhecer algo ou alguma coisa é no fundo uma tentativa de conhecer a nós mesmos. Estou aqui a pensar o que isso tem a ver com o tema que estou investigando e com a minha história de vida. Em que momentos os dois se encontram e percorrem juntos essa jornada.

A “memória”, presente nos artifícios narrativos dos pesquisadores nos alerta, especialmente para pensarmos os modos como ela opera na produção da narrativa a respeito da produção existencial e formativa dos autores e sujeitos da pesquisa. Para Halbwachs, a memória atua no movimento de reconhecimento e reconstrução que atualiza os quadros sociais nos quais as lembranças podem permanecer e, então, articular-se entre si (SCHMIDT; MAHFOUD, 1993). Como sementes armazenadas em tulhas-paióis (OLIVEIRA, 2011, p. 17), as memórias e as narrativas pelas quais se expressam se presentificam durante as pesquisas, quando se evocam um conjunto de testemunhos do passado, no contexto de um diálogo mais amplo e atual, como bem expressou Oliveira (2011, p. 16-17):“[...] A teorização das experiências neste território ‘campo’ não se legitima apenas através da escrita, mas com a memória e as narrativas que se armazenam como se fossem rolos ou sementes bem guardadas em tulhas-paióis que resistem a ação do tempo”.

Pizetta (2014, p. 19) também indicia esse movimento:

[...] Cada tese tem suas particularidades, expressa memórias, realidades, sonhos pelos quais também dedicamos nossas vidas, e, nesse caso, a pesquisa é desenvolvida por alguém que integra esses movimentos educativos e que, portanto, não deixa de ter nítida e explicitamente uma opção/aposta política, evidentemente, observando o cuidado com o rigor que um trabalho dessa envergadura requer.

Podemos perceber como a experiência destes educadores, traduzida em suas narrativas, revela, sobretudo, o entendimento do conhecimento enquanto autoconhecimento. Deste modo, o fazer-pesquisa nos é apresentado por eles como espaço/tempo de produção de sentidos, de ver-se nesse processo e perceber nele sua potência enquanto território que integra memórias, trajetórias, ideais e projetos de vida dos mesmos enquanto educadores-pesquisadores, levando ao entendimento de que “[...] ir ao encontro de si visa a descoberta e a compreensão de que viagem e viajante são apenas um” (JOSSO, 2004, p. 58).

Os caminhos percorridos pelas pesquisas, narradas pelos pesquisadores ao longo de suas produções, os levam a um constante processo de indagações, autoquestionamentos e mudanças de olhares, de fazeres e de um novo modo de sentir-pensar-produzir o ato de educar. Portanto, as dissertações e teses nos deixam pistas e rastros (GINZBURG, 2007a) para meditarmos que o processo de elaboração das mesmas aponta para um horizonte da compreensão do “fazer-pesquisa” enquanto processo de mudança constante do sujeito-pesquisador que se lança nesse desafio, como narrado por Assis (2009, p. 17):

Esse processo constante de ‘vir a ser’ não mais nos angustia; ao contrário, tranquiliza-nos. Isso quer dizer que podemos saber como começar um projeto de tese, mas não sabemos, com certeza, como terminá-lo. As certezas nesse momento são equívocos epistemológicos. As mudanças começam com as novas leituras e discussões dentro e fora das aulas; os trabalhos em grupo; os seminários; os congressos; os colóquios; etc.; tudo vai movendo-se no tabuleiro da formação [...].

Às experiências circunscritas à dimensão pessoal, Gava (2011) acrescenta elementos relacionados com suas vivências ensejadas no cotidiano escolar e articula as mudanças em sua própria formação como processos facilitados pela interrelação com seus pares, ao longo de sua pesquisa:

Mudei. Mudamos. Pesquisa que se pensa solitariamente e que é executada para benefício exclusivo do próprio pesquisador é insipiente, insípida. Aprendi muito. Aprendemos muito. Encontrei-me com pessoas que nem julgava vir a conhecer. Fui importante para suas vidas e elas para a minha. (GAVA, 2011, p. 73).

Todavia, movimentos de resistências e ressignificações são produzidos. As dificuldades vivenciadas tornam-se motivos de lutar e buscar, hoje, uma educação do campo fortalecida. Essa ressignificação evidencia-se, por exemplo, na narrativa de Omar (2013, p. 28):

Insistimos na ideia de inverter as análises que procuram explicar os motivos da saída do(a) jovem camponês(a) ou mesmo de toda a sua família do campo e reforçarmos os motivos que favorecem sua permanência por meio do acesso a padrões de qualidade de vida pretendidos e valorização do mundo rural[...].

Em meio aos fios e rastros deixados pelas produções aqui focalizadas, identificamos processos existenciais que implicam uma relação singular entre as trajetórias desses sujeitos e sua opção político-existencial pela educação do campo enquanto lócus de pesquisa e de trabalho. Optar pela educação do campo é fazer um retorno à própria terra, à sua história e sua existência em seu sentido mais amplo, num movimento que envolve fazeres, saberes, afetos e ideais construídos no processo de luta e trabalho. Percebemos aqui, nesse conjunto integrado de vivências, afecções e fazeres, o que Josso (2004) chama de experiência formadora. Para essa autora, “o conceito de experiência formadora implica uma articulação conscientemente elaborada entre atividade, sensibilidade, afetividade e ideação” (JOSSO, 2004, p. 48). Neste processo, trajetórias de vida, terra e conhecimento ocupam um lugar especial na produção identitárias destes sujeitos. Encontramos nos registros de Gerke de Jesus (2014) indícios dessa perspectiva:

Não temos nosso sustento somente a partir da terra, mas vivemos nela e não conseguimos deixar de ter essa relação de pertença, de botar a mão na massa, capinar, roçar, adubar, irrigar. [...] Não há como mensurar o sentimento ao colher uma laranja doce do pé. A colheita sempre significou muito pra mim, são os frutos da terra, do trabalho de meses, anos e que chegam como recompensa. (GERKE DE JESUS, 2014, p. 22).

Essa pesquisadora, ao expressar suas experiências intimamente ligadas ao contexto campesino, onde se constituiu na relação indissociável com a terra e seus frutos, não nos permite desconsiderar as referências às suas memórias familiares e aos ensinamentos que do pai recebeu: “Me permite refletir acerca da infinita maravilha que é a natureza e guardo comigo o ensinamento de meu pai: - se você não mora em cima da pedra e mora na terra tudo pode dá, basta você plantar!” (GERKE DE JESUS, 2014, p. 22).

Observamos, assim, uma ressignificação do passado (inclusive das dificuldades nele vividas) no sentido de “potencializar um presente”, como é afirmado por Pizetta (2014, p. 26-27):

Propomo-nos a desenvolver uma reflexão cujo olhar volta-se ao passado recente não para retroceder, mas, para com ele, potencializar um presente que, apesar de tênue, possa autorizar a acreditar em alternativas possíveis, articuladas em torno de um novo projeto societário. Somos parte de um contingente de homens e mulheres que, na escuridão da noite, em meio a relâmpagos e trovões e também luares e raiar de novos dias, continuam perseverantes no propósito de seguir adentrando caminhos em direção a uma nova racionalidade humana, em que a terra e o conhecimento, dentre outros elementos, sejam democratizados e compartilhados.

Assim, Pizetta (2014) ressignifica as experiências do passado, transforma dificuldades em desafios, percebe as possibilidades da educação do campo como um ato de “escovar a contrapelo” a história, conforme proposto por Ginzburg (2007a), inspirado em Benjamin. Temos aqui pistas que apontam para uma vigorosa aprendizagem experiencial que se constitui, como explicita Josso (2004), num potente amplificador no processo formativo, que junta e acolhe memórias, trajetórias e os ideais da luta pelo povo e pela educação do campo, ao produzir conhecimentos, saberes e fazeres que emanam e traduzem a cultura e vida campesinas (ARROYO, 2019).

Enfim, podemos dialogar com Josso (2004) e afirmar que a história de vida de cada um destes pesquisadores é um processo dinâmico, que vai sendo construído ao longo de toda uma vida, e que, sobretudo, sua atualização consciente primeiramente passa “[...] pelo projeto de conhecimento daquilo que somos, pensamos, fazemos, valorizamos, e desejamos na nossa relação conosco, com os outros e com o ambiente humano e natural” (JOSSO, 2004, p. 59). Falar de memórias e trajetórias de pesquisadores e educadores do/no campo é perpassar esse amálgama que funde saberes, terra, cultura e lutas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As questões das quais partimos para a escrita deste artigo que focalizou as trajetórias, experiências e memórias narradas por pesquisadores da Educação do Campo conduziram-nos a algumas conclusões, ainda que provisórias. Em meio aos fios que compuseram a tapeçaria (GINZBURG, 2007a) das produções aqui focalizadas, emergiram suas memórias de infância, suas trajetórias de vida, atuação e formação, experiências de desumanização-resistência-humanização (ARROYO, 2019) e de estranhamento e reencontro com os contextos do campo e da cidade.

Por fim, desse emaranhado de memórias, experiências e narrativas, evidenciaram-se processos existenciais que implicam uma relação singular entre as trajetórias desses sujeitos e sua opção político-existencial em eleger a educação do campo como lócus de pesquisa e de trabalho. Desse modo, esse movimento revela-se como um retorno à própria terra, à sua história e sua existência em seu sentido mais amplo, que envolve fazeres, saberes, afetos e ideais construídos no processo de luta e trabalho.

A partir dos rastros deixados nos percursos que aqui percorremos, outras produções e artifícios narrativos poderão emergir, especialmente na busca pela compreensão dos múltiplos campos e identidades que se constituem no território camponês em suas intersecções com as experiências produzidas, as memórias narradas e as possibilidades que elas instauram numa compreensão mais ampla e humanizadora do sujeito-pesquisador. Afinal, nossas experiências existenciais se vinculam aos nossos modos de conhecer e também de produzir conhecimento. Cabe a nós, como Teseu, seguir o fio dentro do labirinto de experiências que compõe nossa existência.

REFERÊNCIAS

ARROYO, M. Outro paradigma pedagógico de formação de educadores do campo? In: MOLINA, M. C.; MARTINS, M. F. A. (org.). Formação de formadores: reflexões sobre as experiências da Licenciatura em educação do campo no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 115-149.

ASSIS, J. R. Práticas discursivas de reprodução e diferenciação na pedagogia da alternância. 2009. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.

BARBOSA FILHO. C. J. Entre o campo e a cidade: a oferta de educação profissional do campo no espaço/lugar de contato. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BENJAMIN, W. O anjo da história. 2. edição. São Paulo, SP: Editora Autêntica, 2016.

BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BOSI, E. Memória: enraizar-se é um direito fundamental do ser humano. Dispositiva: Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, nov. 2012 / abr. 2013. Entrevista concedida a Mozahir Salomão Bruck.

COSMO, M. Ser pomerana: histórias que desvelam a memória, a experiência e os sentidos de ser professora. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.

FRANÇA, D. M. Vivências da pedagogia do movimento em escolas de assentamentos - MST/ES. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.

GAVA, M. P. M. Professores do campo e no campo: um estudo sobre formação continuada e em serviço na escola distrital “Padre Fulgêncio do Menino Jesus”, no município de Colatina/ES.2011. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011.

GERKE DE JESUS, J. Sentidos da formação docente para a profissionalização: na voz do professor do campo. 2014. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.

GINZBURG, C. O fio e os rastros: verdadeiro, falso e fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a.

GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b.

GINZBURG, C. Medo, reverência e terror: quatro ensaios sobre iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

HALBWACHS, M. Memória coletiva. São Paulo: Editora revista dos tribunais: 1990.

HEHR, R. G. Produção escrita e educação do campo: um estudo de caso em uma escola de ensino fundamental do município de Domingos Martins - ES. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015.

JOSSO, M. C. Experiência de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.

KARSBURG, A. O. A micro-história e o método da microanálise na construção de trajetórias. In: VENDRAME, M. I. et al. Micro-história, trajetórias e imigração. São Leopoldo: Editora OIKOS, 2015. p. 32-52.

KONDER, L. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

LOVATTI, R. R. G. Formação e docência na educação infantil do campo: dizeres docentes. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.

NÓVOA, A. Prefácio. In: JOSSO, M. C. Experiência de vida e formação. São Paulo: Cortez, p. 11-17, 2004.

OLIVEIRA, W. B. Educação do campo e formação no/pelo trabalho: experiências de homens e mulheres do assentamento Sezinio Fernandes de Jesus - MST-ES. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011.

OMAR, R. A presença da família camponesa na Escola Família Agrícola: o caso de Olivânia. 2013. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.

PEIZINI, A. M. L. Escola do campo em comunidades de fronteiras. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016.

PIZETTA, A. J. A formação de educadores e a travessia de cercas invisíveis de acesso/produção de conhecimentos: experiências do MST nas inter-relações com universidades brasileiras. 2014. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.

SANTOS, J. S. GEOGRAFIA Comunitária e Educação de Jovens e Adultos: os educadores Flâneurs Sem Terra do Assentamento Paulo César Vinha - Conceição da Barra/es. 2015. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015.

SCHMIDT, M. L. S.; MAHFOUD, Miguel. Halbwachs: memória coletiva e experiência. Psicol. USP, São Paulo, v. 4, n. 1-2, p. 285-298, 1993.

SILVA, D. L. S. Salas extensivas de educação infantil do campo: uma experiência no município de Pancas, ES. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.

ZEN, E. T. Pedagogia da terra: a formação do professor Sem-Terra. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2006.

Endereços para correspondência: Av. Fernando Ferrari, 514 - Goiabeiras, Vitória - ES, 29075-910; miria.luiz@gmail.com


1 Doutora e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo; Membro do Núcleo Capixaba de Pesquisa em História da Educação (NUCAPHE). Coordena o grupo de estudos Memórias, Narrativas e Histórias das/nas escolas: diálogos na formação de professores. E-mail: miria.luiz@gmail.com.

2 Doutor e Mestre em educação pela Universidade Federal do Espírito Santo; E-mail: alessandro2210@gmail.com.

3 Neste artigo utilizamos a expressão “narrativas autobiográficas” ao longo do texto para nos referirmos aos elementos biográficos dos autores das pesquisas, produzidos a partir de suas memórias de infância, escolarização e suas trajetórias de vida.

4 Essa perspectiva teórico-metodológica tem permitido aos historiadores reconstruir trajetórias e biografias que diferem do modelo tradicional de se estudar uma vida, buscando a inserção dos sujeitos em distintos contextos e relações sociais, percebendo semelhanças e, principalmente, diferenças. (KARSBURG, 2015, p. 30).

5 Realizamos as buscas no banco de dados online do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, por meio da leitura dos títulos e dos resumos dos trabalhos.

6 O autor se refere especificamente neste ponto à comunidade de historiadores vinculados a revistas como History Workshop (GINZBURG, 2014).