https://doi.org/10.18593/r.v47.29931

A formação de professores de linguagens para as escolas do campo na luta de classes: um estudo comparativo de duas propostas curriculares

Language teacher education for rural areas schools in the class struggle: a comparative study of two curricular proposals

  

La formación de profesores de lenguajes para las escuelas del campo en la lucha de clases: un estudio comparado de dos propuestas curriculares

 

 Priscila Monteiro Chaves1

Universidade Federal do Espírito Santo; Professora do curso de Licenciatura em Educação do Campo e do Programa de Pós-Graduação em Educação

https://orcid.org/0000-0002-3986-6157

Maria Amélia Dalvi2

Universidade Federal do Espírito Santo; Professora dos cursos de Licenciatura em Pedagogia e em Língua Portuguesa e respectivas literaturas e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Letras

https://orcid.org/0000-0002-8729-2338

Silvanete Pereira dos Santos3

Universidade Federal do Espírito Santo; Professora do curso de Licenciatura em Educação do Campo

https://orcid.org/0000-0001-9814-1781

Resumo: Contextualiza a criação dos cursos de licenciatura em Educação do Campo no Brasil e esboça um breve histórico da formação por área do conhecimento no interior de tais cursos. Por meio de uma pesquisa exploratória, documental, realiza uma apreciação dos Projetos Pedagógicos dos cursos de licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Estabelece um estudo comparativo entre os componentes curriculares de ambos para a habilitação em Linguagens, ressaltando as principais diferenças entre eles no que compete à carga horária, aos referenciais, às concepções centrais orientadoras e aos conteúdos programáticos. A partir de tal apreciação, debate algumas contradições e pontua as principais lacunas para a constituição de um projeto destinado à formação do campesinato no contexto de luta de classes. Ao final, enfoca que a negação de uma formação teórica consistente e coerente com os pressupostos que o curso assume mistifica as possibilidades de uma ação contra-hegemônica, coloca entraves na promoção de intelectuais orgânicos da comunidade campesina e configura uma maneira de negar as possibilidades, ainda que muito cerceadas, de se forjar qualquer alternativa ao capital.

Palavras-chave: Formação por área do Conhecimento; Licenciatura em Educação do Campo; Linguagem; Formação de professores; Luta de classes.

Abstract: The present article contextualizes the development of teacher-training colleges in Rural Education in Brazil, and outlines a brief historical overview of their formation according to the fields of knowledge they encompass. Through an exploratory and documentary research, the article carries out an assessment of the Pedagogical Projects from teacher-training colleges in Rural Education at Universidade de Brasília (UnB) and Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). It provides a comparative study between the curricular components of both colleges in regard to their Languages degree, highlighting their main differences concerning the course load, theoretical background, basic guideline conceptions and programmatic contents. As of the assessment, it also discusses some contradictions and punctuates the main gaps regarding the constitution of a project which aims at the formation of peasantry in the context of class struggle. At last, it reinforces that the denial of a theoretical education both consistent and coherent with the course premises implies on mystifying the possibilities of a counter-hegemonic action, thus hindering the promotion of organic intellectuals from the peasant community and representing a way of denying the possibilities, still very much hampered, of developing any alternatives to the capital.

Keywords: Formation by fields of knowledge; Rural Education degree; Language; Teacher formation; Class struggle.

Resumen: Contextualiza la creación de los cursos de graduación en Educación del Campo, en Brasil, y esboza un breve histórico de la formación por área de conocimiento en el interior de ellos. Por medio de una investigación exploratoria, documental, realiza una evaluación de los Proyectos Pedagógicos de los cursos de graduación en Educación del Campo de la Universidad de Brasília (UnB) y de la Universidad Federal de Espírito Santo (Ufes). Establece un estudio comparativo entre los componentes curriculares de ambos para la habilitación en Lenguajes, resaltando las principales diferencias entre estos en lo que compete a la carga horaria, a los referenciales, a las concepciones orientadoras centrales y a los contenidos programáticos. A partir de tal evaluación, debate algunas contradicciones y señala las principales brechas para la constitución de un proyecto destinado a la formación del campesinado en la lucha de clases. Al final, enfoca que la negación de una formación teórica consistente y coherente con los fundamentos que el curso asume desorienta las posibilidades de una acción contra hegemónica, coloca obstáculos en la promoción de intelectuales orgánicos de la comunidad campesina y configura una manera de negar las posibilidades, todavía muy restringidas, de forjarse cualquier alternativa al capital.

Palabras clave: Formación por área de Conocimiento; Graduación en Educación del Campo; Lenguaje; Formación de profesores; Lucha de clases.

Recebido em 13 de dezembro de 2021

Aceito em 02 de maio de 2022

1 INTRODUÇÃO

A profissionalização da escola de educação básica do campo foi uma luta historicamente encampada por profissionais da educação que atuam fora do espaço urbano, por povos campesinos e/ou por militantes pela Reforma Agrária, organizados, com frequência, no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os primeiros resultados tangíveis desses esforços podem ser confirmados pela criação, há 26 anos, do Instituto Técnico de Capacitação e Reforma Agrária (Iterra), e se desdobram em projetos experimentais ou permanentes de cursos de Pedagogia da Terra e de licenciaturas em Educação do Campo. Vincula-se a esse esforço a produção coletiva de uma pedagogia que inclui a, mas não se limita à, organização consignada pela pedagogia da alternância.

Teorias educacionais que eventualmente possam explicar as dificuldades e contradições inerentes à educação básica nas escolas do campo não necessariamente formulam diretrizes que orientem a prática educativa4, razão pela qual os desafios, nos cursos de licenciatura em Educação do Campo, são justamente: a) forjar um projeto de sociedade e de formação humana que vise a superar a estratificação socioeconômica (entre campo/cidade, proprietários/trabalhadores, dirigentes/dirigidos etc.); b) desenvolver uma formação docente coerente com esse projeto de sociedade e formação humana; e c) fundamentar (em termos teórico-práticos) o trabalho pedagógico na realidade das escolas do campo contemporâneas, no bojo de uma sociedade dividida em classes antagônicas e, portanto, estratificada. Como se vê, são desafios articulados e, para tal, é necessária a formulação coletiva de uma pedagogia.

Com base no conhecimento sincrético de diferentes licenciaturas que formam os profissionais para as escolas do campo, supúnhamos, em primeiro lugar, que essa formulação coletiva de uma pedagogia, no interior das licenciaturas, de maneira pouco orgânica e com diferentes graus de maturação, incorporava contribuições como o método freiriano, a teoria pedagógica histórico-crítica, além daquelas hauridas às revoluções socialistas (experiências soviética, cubana, chinesa entre outras, consoante diferentes apropriações da epistemologia materialista histórica e da lógica dialética). Outra aposta presente em nossas conjecturas era que o conhecimento artístico, filosófico e científico historicamente sistematizado no interior da área tivesse centralidade, sob pena de que, de modo contrário, fossem agravados os entraves na compreensão da realidade objetiva. Em terceiro lugar, acreditávamos que, face às contradições no processo de implementação das licenciaturas em Educação do Campo pelo país, tais esforços poderiam cortejar teorias que, mesmo sob aparência crítica, confirmam a hegemonia burguesa, sobretudo, ao desconsiderarem a centralidade da luta de classes na discussão sobre o projeto de sociedade e de formação humana em disputa. Mas essas suposições, apostas e crenças se confirmam, se partirmos à análise das experiências concretas em desenvolvimento no momento contemporâneo?

Dada a impossibilidade de, nos limites deste trabalho, apresentarmos uma resposta apropriada à complexidade da questão, os resultados que ora se apresentam na forma sintética de um artigo decorrem de um objetivo específico, obviamente articulado a essa questão maior já apresentada nas linhas precedentes. De que objetivo específico estamos falando? Conhecer as prioridades curriculares e a fundamentação teórico-prática preconizada para o trabalho pedagógico com a área de Linguagem, na realidade das escolas do campo contemporâneas, a partir de documentos normativos e orientadores, próprios à habilitação em Linguagens de cursos de licenciatura em Educação do Campo ofertados por duas universidades públicas brasileiras. Noutras palavras, quando se focaliza a formação do professor do campo para a área de Linguagens, a análise dos documentos oficiais de tais cursos revela que concepção(ões) de linguagem e que teoria(s) pedagógica(s)? Que lugares ocupam os conhecimentos gerais e os específicos da área? Como essas duas modalidades de conhecimentos são articulados? Quais escolhas vêm sendo feitas no momento de deliberar sobre o que não pode ficar de fora? Que tendências tais escolhas sugerem?

Optamos por realizar um estudo comparado entre os documentos oficiais de dois cursos de licenciatura em Educação do Campo existentes em instituições de ensino superior públicas. As instituições em questão são a Universidade de Brasília e a Universidade Federal do Espírito Santo, sendo que a primeira compõe o conjunto de instituições que sediaram experiências-piloto surgidas logo no momento de criação dessa licenciatura; e a segunda é uma instituição “herdeira” desse movimento inicial, sendo também sede onde se realiza a pesquisa cujos resultados ora se apresentam. Desse modo, por uma pesquisa exploratória, documental e que tem como escopo duas instituições com movimentos e processos distintos (mas relacionados por um objetivo maior) consoantes à criação e implantação da licenciatura em Educação do Campo, foi possível não apenas sistematizar uma síntese (provisória) às questões enunciadas acima, como também ensaiar procedimentos metodológico-analíticos com vistas a um esforço futuro que leve em conta o conjunto de todas as habilitações em linguagens nas licenciaturas em Educação do Campo em funcionamento no país.

2 UM BREVE HISTÓRICO DA FORMAÇÃO POR ÁREA DO CONHECIMENTO NA LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO

As licenciaturas em educação do campo foram criadas a partir de 2007, nas universidades públicas, apoiadas pelo Ministério da Educação (MEC), como decorrência de um movimento que já se iniciara com pelo menos uma década de antecedência. Considerando que “[...] o atendimento às reivindicações dos movimentos sociais é realizado em ações morosas, envolvendo, geralmente mais que uma secretaria e por meio de editais” (ANHAIA, 2018, p. 131), a mobilização mais consistente ocorreu somente em 2006, quando, como resultado da correlação de forças entre movimentos sociais e aparelho do Estado, o MEC estabeleceu diálogo com algumas universidades para começar a experiência-piloto desse projeto.

A experiência-piloto começou, no ano de 2007, com o primeiro curso implementado pela Universidade de Brasília (UnB) em parceria com o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra). A primeira turma do curso teve como sede a cidade de Veranópolis-RS. Além da UnB, outras três universidades afiliaram-se à proposta: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Com base nessas experiências-piloto, o MEC criou o Procampo (Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação do Campo). O programa tinha como objetivo “[...] apoiar a implementação de cursos regulares de licenciatura em educação do campo nas instituições públicas de ensino superior de todo o país” (BRASIL, 2007). Vale ressaltar que o objetivo desses cursos é a formação docente, para atuação nos anos finais do ensino fundamental e médio.

Em relação ao financiamento por parte do MEC, segundo a Resolução/CD/FNDE nº. 06/2009, o poder público autorizou o subsídio financeiro às instituições de ensino superior, como forma de garantir o acesso e a permanência de educandos de baixa renda. No tocante à Educação do Campo, a Resolução afirma, em seu Art. 1º, parágrafo primeiro, que os projetos educacionais a que se refere o artigo “[...] são aqueles, particularmente, voltados à oferta de cursos de formação inicial ou continuada de professores indígenas, professores de educação do campo e professores afrodescendentes ou que atuem na educação para as relações étnico-raciais, no âmbito da educação básica” (BRASIL, 2009). Entretanto, por ser constituída a partir de uma política de editais, a dita garantia de acesso e permanência apresenta um limite bastante restrito, haja vista a ausência de uma política orçamentária definida e sua caracterização como uma ação de atendimento específico. Dessa forma, até hoje os cursos de licenciatura em Educação do Campo permanecem reféns “[...] de financiamento específico, de vontades de agentes políticos pontuais e da correlação de forças tanto na sociedade política quanto na sociedade civil” (ANHAIA, 2018, p. 128).

Quanto à organização didático-pedagógica dos cursos, a opção foi pela alternância e seus diferentes tempos pedagógicos, ou seja, tempo universidade e tempo comunidade. O tempo universidade e o tempo comunidade são compreendidos como elementos organizadores do trabalho pedagógico. Esses diferentes tempos articulam a inserção do estudante na sua realidade, na realidade de sua comunidade e da escola do campo. Nesse sentido, o tempo universidade consiste no período de formação que acontece na Universidade e o tempo comunidade são as atividades, as práticas, as pesquisas e as vivências realizadas no período em que o estudante está em sua comunidade.

É no período do tempo comunidade que acontecem as atividades de inserção do estudante nas atividades da escola e da comunidade. Essa inserção se dá por meio de ações de estudo e pesquisa, a partir da mediação das diferentes disciplinas do curso, bem como por meio das ações dos movimentos sociais e sindicais do campo, no qual o educando esteja inserido. O objetivo desse tipo de atividade é desenvolver o olhar de pesquisador e membro da comunidade, a partir da inserção na escola (espaço da docência), com a mediação das reflexões e dos aprofundamentos teóricos e práticos viabilizados nas diferentes disciplinas do curso.

As ações teóricas e práticas desenvolvidas pelo estudante, no tempo comunidade, possibilitam a promoção da investigação, com o levantamento, a sistematização e a análise de dados por meio da pesquisa que o estudante realiza. São atividades tão formativas quanto aquelas realizadas durante o tempo universidade. Além disso, é importante destacar que essas ações suscitam no estudante a atitude de pesquisador, bem como contribuem para um conhecimento mais aprofundado da realidade da escola e da comunidade onde reside.

Nessa perspectiva, a alternância proposta pelas licenciaturas em Educação do Campo (LEdoC) é a alternância integrativa, ou a verdadeira alternância, conforme destaca Gimonet (2007). Segundo o autor, esse tipo de alternância não acontece pela sobreposição de um tempo sobre o outro, nem tampouco uma mera aproximação do tempo universidade com o tempo comunidade. A integração se materializa a partir de uma complexa relação dos diferentes tempos formativos e, dialeticamente, os dois tempos se intercomunicam para que a formação aconteça tanto no tempo universidade quanto no tempo comunidade. A alternância integrativa se inicia no tempo comunidade e, em seguida, acontece o tempo universidade, retornando, posteriormente, à comunidade, em um movimento espiralado. É importante destacar que, nesse movimento, fenômenos sociais que mais notadamente determinam a comunidade do estudante são preponderantes na alternância, pois é a partir desses elementos que as pesquisas começam a se materializar em diálogo com as diferentes teorias do conhecimento.

A formação por alternância, por sua natureza, requer uma concepção específica de educador para atuar com essa proposta formativa, pois, segundo Gimonet (2007, p. 30), o educador precisa ter “[...] um conhecimento dos ambientes socioprofissionais, uma presença no terreno sócio-profissional dos alternantes, uma formação pedagógica específica e um aperfeiçoamento contínuo”. Essa concepção sugere observar a importância da construção de um coletivo docente sólido, de modo que possa oportunizar a integração dos diferentes tempos formativos, da relação teoria e prática, do trabalho como princípio formativo e da dialética da práxis.

É no diálogo entre as concepções de alternância integrativa e de trabalho coletivo docente que a concepção de formação por área do conhecimento deveria estar sendo construída. Haveria, portanto, um inequívoco papel do trabalho coletivo docente na construção e consolidação, tanto da alternância quanto da formação por área do conhecimento, na formação dos estudantes das LEdoC. Para isso, faz-se necessário compreendermos qual é a concepção de formação por área do conhecimento e qual é a concepção de docência multidisciplinar defendida pela educação do campo no âmbito das Licenciaturas em Educação do Campo – ao menos, pelo grupo que assumiu, junto com os movimentos sociais, desde sempre, a luta pela profissionalização das escolas e dos profissionais de educação básica do campo.

Como formação por área do conhecimento compreendemos a formação por meio da docência multidisciplinar. Caldart (2011) destaca que a escolha pela docência multidisciplinar se deu pela razão de o movimento objetivar a implementação de um novo projeto de formação de professores, que melhor se adequasse às necessidades atuais da escola do campo. Além disso, conforme destaca a autora, a formação por área do conhecimento já estava presente nas diretrizes do Ministério da Educação, no âmbito das escolas de Educação Básica e, por esse motivo, seria mais fácil aprovar uma proposta inovadora junto ao referido ministério.

Adicionalmente, ao optar pela formação por área, a LEdoC busca a superação da concepção de conhecimento que compreende teoria e prática de modo dissociado e, assim, rechaça a separação entre educação e trabalho na realidade vivida. Desse modo, a licenciatura em Educação do Campo foi pensada como ferramenta de transformação da escola e de fortalecimento do projeto de sociedade da classe trabalhadora do campo e da cidade. Para isso, é indispensável repensar a forma como as relações sociais se materializam nas práticas pedagógicas, no currículo, nos conteúdos, enfim, na organização do trabalho pedagógico da escola do campo.

A escolha pela formação por área se deu, também, a partir da ideia de propor uma nova concepção de licenciatura, donde a escolha pela docência multidisciplinar na área de conhecimento. Por meio dela, via-se a possibilidade de implementar uma concepção de formação de professores para as escolas do campo como crítica à fragmentação do conhecimento que estrutura a escola e a sociedade brasileira, uma vez que, segundo Caldart (2011), o modelo disciplinar obedece a uma lógica capitalista de produção do conhecimento, ou seja, a um modelo positivista de se pensar a ciência.

Outra questão importante para compreender a formação por área do conhecimento na LEdoC é sua vinculação à concepção de escola a partir do interesse dos trabalhadores, ou seja, a partir das necessidades reais de suas condições de vida, de existência e de manutenção e reprodução do campesinato, diante das ofensivas brutais do agronegócio. Portanto, a escola do meio rural é convidada a se tornar a escola da classe trabalhadora do campo; para isso, precisa ser modificada em seu conteúdo e forma, conforme destaca Caldart (2011, p. 146): “[...] a forma da escola educa e não apenas seus conteúdos de ensino. Por isso é essa forma, ou seja, a lógica do trabalho escolar como um todo, que precisa ser alterada para colocá-la na direção da sociedade dos trabalhadores”. Para a autora, transformar a escola é recolocá-la em conexão com a vida, com o princípio educativo na luta fundamental que a classe trabalhadora engendra todos os dias pela sua sobrevivência.

Nessa lógica, a autora destaca que o trabalho pedagógico organizado por área problematiza a estrutura disciplinar do currículo escolar e questiona o lugar da disciplina como lugar de excelência na construção do conhecimento, uma vez que, na lógica atual da escola, a disciplinarização é um sintoma da fragmentação dos saberes e dos esforços da hegemonia burguesa para que os trabalhadores tenham ainda mais dificuldade de alcançar a compreensão orgânica da totalidade. Portanto, é preciso sim questioná-la, pois o desafio não é simplesmente garantir ações de contextualização do conteúdo trabalhado, mas de estabelecer uma profunda relação entre teoria e prática.

A proposta da formação por área do conhecimento tem como uma das metas vincular o trabalho pedagógico ao trabalho como princípio educativo e às práticas sociais daqueles que constituem a escola, entendendo que:

[...] negar o conhecimento como aproximação da realidade objetiva faz das relações revolucionárias um fetiche independente, sem relação com o conhecimento e com leis tendenciais. O arcabouço político e ideológico capitalista combate e desacredita esforços dessa natureza, ou seja, questiona a própria necessidade de uma teoria que busque desvendar os meandros e a dinâmica da realidade social (DELLA FONTE, 2020, p. 25).

Assim, a inter-relação entre formação escolar, práticas docentes e compreensão da realidade, na perspectiva da totalidade, em suas múltiplas determinações, foi a escolha política que o movimento da educação do campo fez, de modo a possibilitar uma reflexão sobre as práticas sociais derivadas do trabalho “socialmente útil”, conforme declara Freitas (2012).

O conhecimento, nessa concepção referenciada no materialismo histórico e dialético, como um dos elementos da educação potencialmente omnilateral dos trabalhadores, tem como meta a transformação coletiva do atual modo de produção e de organização social, na perspectiva de um novo projeto histórico de sociedade. Sabemos que o afastamento da realidade e a dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual poderá distanciar a formação de professores para as escolas do campo do seu propósito original. Se o propósito maior está na construção de uma nova ordem social e de um novo projeto de desenvolvimento para o campo e para o campesinato (CALDART, 2011), entendemos que a formação por área do conhecimento na LEdoC deve ser um meio e não um fim em si mesma.

A Licenciatura em Educação do Campo compreende que, para formar o professor para atuar nas escolas do meio rural, faz-se necessário um projeto formativo que dê condições de educar um professor comprometido com a classe trabalhadora e sua luta pela sobrevivência em uma sociedade marcada pela espoliação do trabalho. Entende que esse professor precisa confrontar perspectivas ideológicas que transitam nas escolas do campo e se comprometer com a construção de uma escola que supere a perspectiva capitalista e mercadológica da formação.

Segundo Caldart (2011), na LEdoC, o centro do processo formativo não deve ser a docência por área do conhecimento. Ela é, pois, apenas uma ferramenta definida em um dado momento histórico. Movimento esse, em grande medida, dado pela força das circunstâncias e das condições sociais, políticas e materiais do momento. A formação por área, segundo a autora, deve ser ancorada em um projeto de transformação de conteúdo e forma da escola que temos, na perspectiva de superar a fragmentação do conhecimento e de promover uma necessária vinculação às questões da vida dos estudantes, objetivando fomentar o trabalho coletivo docente na escola com base no materialismo histórico.

Considerando esses princípios mais gerais, passamos à apreciação dos dois referidos Projetos Pedagógicos dos Cursos, sob justificativa introdutoriamente anunciada.

3 PROJETOS DE CURSOS: UM ESTUDO COMPARATIVO

Tomando a história como ato de nascimento consciente dos sujeitos e, portanto, ato que se supera (MARX, 2002), adentramos a empiria eleita para melhor compreendermos determinados sentidos na gestação desses cursos, como fatos históricos, no interior de todos os limites que essa circunstância nos coloca e levando em consideração as condições em que tais documentos foram elaborados. É certo que nossa breve apreciação se inscreve no movimento maior de entender “[...] quem somos, porque estamos aqui, que possibilidades humanas se manifestaram, e tudo quanto podemos saber sobre a lógica e as formas de processo social” (THOMPSON, 1981, p. 57-58). Todavia, de modo bem mais específico, buscamos alguns rastros para pensarmos outras formas de existência no interior de um curso que tenta não somente sobreviver em tempos de conservadorismo acerado, de descrédito da ciência e da universidade pública, mas não perder o sentido mais radical de sua existência e a razão de ser que lhe deu origem.

Para apreendermos dos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) aquilo que os determina estruturalmente e aquilo que os constitui como efeito de realidade, esboçamos particularidades das duas Instituições de Ensino Superior (IES) eleitas. Isso nos ajuda no movimento de pôr em crise as inquirições introdutoriamente levantadas, questionando se fazem sentido. Dessa forma, esboçamos uma brevíssima apresentação geral e, em seguida, passamos às particularidades das partes que interessam à nossa apreciação.

Os elementos apresentados no histórico da seção anterior contemplam ambas as licenciaturas. As duas são compostas pela articulação entre formação básica do professor nas diferentes licenciaturas ofertadas e formação específica, sendo que esse processo se desenvolve em ambas até o final do curso. Em nenhuma das duas licenciaturas as disciplinas específicas são ofertadas já no primeiro período. Contudo, há uma distinção no modo de operacionalizar isso. Na LEdoC UnB, os alunos fazem a escolha por uma das três habilitações que desejam cursar no 2º semestre, o que faz com que não haja sempre os mesmos cursos ofertados em todos os períodos; na LEdoC Ufes, essa opção já é feita quando do processo seletivo para o ingresso.5 Ambos os cursos estão estruturados em regime de alternância, organizados em tempos educativos diferenciados (tempo universidade - TU e tempo comunidade - TC) e em ambas o ingresso ocorre por meio de vestibular próprio, com datas, especificidades e público-alvo distintos dos outros cursos e também das demais licenciaturas das universidades.

A LEdoC UnB oferta um TU mais longo e concentrado aos acadêmicos, o que provavelmente seja possibilitado pela existência de alojamento próprio.6 Além disso, nessa mesma IES, para cada uma das habilitações é destinado um coordenador da área específica, que se responsabiliza por conduzir o momento de planejamento coletivo da área, bem como por provocar o grupo para buscar o diálogo entre as disciplinas específicas e as disciplinas do Núcleo Básico, o que potencialmente tornaria o processo mais orgânico.

Tabela 1 - Síntese da estrutura curricular da LEdoC nas instituições estudadas

Dado x Instituição

UnB

Ufes

Habilitação

Língua Portuguesa, Literatura e Artes

Língua Portuguesa, Literatura, Artes e Educação Física

Carga horária do curso

3.510h

3.440h

Total de créditos

234

229

Carga horária da área específica

1.140h

900h

Duração mínima do curso em semestres

8

8

Duração máxima do curso em semestres

12

12

Momento de escolha pela habilitação

2º semestre

vestibular

Início das disciplinas de área específica

2º semestre

3º semestre

Ano de elaboração do PPC

2018

2019

Fonte: As autoras, conforme Ufes (2019) e UnB (2018).

Comparando informações gerais, constantes na Tabela 1, em um primeiro momento, observamos que a carga horária total de ambos os cursos é bastante semelhante, bem como, consequentemente, o quantitativo de créditos a serem cursados pelos acadêmicos. O que merece relevo, segundo as preocupações centrais aqui trabalhadas, é a significativa diferença entre a carga horária destinada aos componentes específicos na matriz curricular de uma e de outra instituição. Enquanto o curso da Universidade de Brasília instituiu essa carga horária em 1.140 horas (aproximadamente 33% do total), o curso ofertado pela Universidade Federal do Espírito Santo vem destinando para essa especificidade curricular apenas 900 horas (aproximadamente 26% do total). Essa comparação resta ainda mais preocupante se observarmos que, além de uma carga horária expressamente menor destinada aos componentes curriculares específicos da área, o curso da Ufes engloba, ainda dentro dessa área, a habilitação em Educação Física, somada às demais, o que não ocorre na LEdoC UnB. Ou seja, quase um quarto a menos da carga horária total para ofertar 4 habilitações aos licenciandos, em vez de 3.

Para melhor nos apropriarmos do sentido da formação de licenciados inseridos sob um e outro projeto de curso, passamos para a análise de algumas das partes que lhes dão estrutura, enquanto relações interiores da dinâmica do objeto. Privilegiamos, especialmente, a apreciação das disciplinas específicas ofertadas no interior de uma e outra propostas, observando suas ementas e as referências bibliográficas que as fundamentam, bem como as relações que são estabelecidas entre essas e as disciplinas comuns às demais habilitações.

Tabela 2 - Rol de disciplinas constantes no PPC da LEdoC UnB

Disciplinas

Mod.

CH

Créd.

Est. Literários 1: Literatura e Nação

OBR

60

004

Est. Literários 2: Consolidação do Sistema Literário

OBR

60

004

Est. Literários 3: Representação do Personagem Popular Brasileiro

OBR

60

004

Est. Literários 4: O reflexo lírico na representação do Brasil

OBR

60

004

Est. Literários avançados: literatura mundial entre o centro e a periferia

OPT

60

004

Temas avançados de teoria literária: Realismo e ironia em Dom Casmurro de Machado de Assis

OPT

60

004

Temas avançados de teoria lit.: Realismo literário em Gyorgy Lukács

OPT

60

004

Literatura como formação: fundamentos históricos ontológicos e estéticos

OPT

60

004

Fonética, Fonologia e morfologia do português

OBR

60

004

Fundamentos da Linguística

OBR

60

004

Morfossintaxe

OPT

45

003

Semântica

OBR

60

004

Sintaxe da Língua Portuguesa

OBR

60

004

Tópicos Avançados em Linguística

OBR

60

004

Tópicos em Ecolinguística

OPT

15

001

Gêneros e Ensino de Língua Portuguesa

OPT

45

003

Alfabetização e letramento de jovens

OPT

60

004

Fundamentos básicos das artes plásticas

OBR

60

004

Teoria e História do Teatro

OBR

45

003

Oficina Básica de Artes Cênicas

OBR

60

004

Pedagogia do Teatro

OBR

45

003

Laboratório de direção e interpretação teatral

OPT

60

004

Laboratório de Dramaturgia

OPT

60

004

Processo experimental em Teatro 1

OPT

30

002

Processo experimental em Teatro 2

OPT

45

003

Teoria e história das artes plásticas e visuais

OBR

60

004

Audiovisual: Estética, Política e Educação

OBR

15

001

Introdução a Linguagem audiovisual

OBR

15

001

Projeto Experimental em Audiovisual 1

OBR

15

001

Projeto Experimental em Audiovisual: Produção e Finalização

OPT

30

002

Roteiro e Montagem em Audiovisual

OPT

60

004

Expressões, Estética e Cultura Política

OPT

60

004

Documentário, Território e Educação do Campo

OPT

60

004

TOTAL

1.680

112

Fonte: As autoras, conforme UnB (2018).

Tabela 3 - Rol de disciplinas constantes no PPC da LEdoC Ufes

Disciplinas

Mod.

CH

Créd.

Introdução aos Estudos linguísticos

OBR

60

003

Introdução aos Estudos das Artes

OBR

60

003

Linguística textual

OBR

60

003

Tópicos em Artes

OBR

60

003

Estudos Literários I

OBR

60

003

Artes e culturas

OBR

60

003

Estudos Literários II

OBR

60

003

Ensino da Educação Física

OBR

60

003

Análise de Discurso

OBR

60

003

Literatura Brasileira

OBR

60

003

Práticas corporais, esportes e Educação Física

OBR

60

003

Ensino de Língua Portuguesa e Literatura

OBR

60

003

Ensino das Artes na Educação do Campo

OBR

60

003

Educação, Corpo e Sociedade

OBR

60

003

Conhecimentos anatômicos, fisiológicos e nutricionais em Educação Física

OBR

60

003

TOTAL

900

045

Fonte: As autoras, conforme Ufes (2019).

Como podemos observar, a Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Espírito Santo, além de prever um quantitativo menor de disciplinas obrigatórias específicas da área de Linguagens, não oferece componentes curriculares de caráter optativo no interior da área.

Um importante elemento de análise para o cotejamento entre uma e outra estrutura curricular refere-se à necessidade de “[...] cumprimento das Resoluções Internas da UnB, em relação à exigência de 70% de disciplinas obrigatórias e 30% optativas” (2018, p. 29). Este elemento deve ser aliado, na análise, ao fato de que não é em todos os anos que o curso oferece as mesmas habilitações, de modo que os professores conseguem alternar a oferta entre disciplinas obrigatórias e optativas em diferentes semestres. Isso faz com que o curso apresente um rol de disciplinas optativas bastante diversificado, que permitem intensificar aspectos da formação do futuro professor da área em mais de uma dimensão de interesse. Notemos que, somadas as disciplinas obrigatórias e as optativas específicas da área de Linguagens, o curso da UnB oferta um contingente de 1.680h, distribuídas em 112 créditos, conforme mostrado nas Tabelas 1 e 2.

Como o quantitativo de disciplinas ofertadas pela Ufes é visivelmente menor, oferecendo uma habilitação a mais, podemos perceber, pela análise das ementas, bem como pelas referências utilizadas como bases fundamentais, que essas acabam se restringindo aos aspectos mais gerais da formação do professor da área, não havendo possibilidade de uma especificidade sobre cada uma das dimensões e temáticas essenciais para a compreensão da língua, da literatura, das artes e da educação física. Excetua-se a essa observação a disciplina de Análise do Discurso (LCE-PROP-00074), ofertada pela LEdoC Ufes, possivelmente pela necessária relação a ser estabelecida de entre língua e ideologia, de determinante importância para aqueles que vivem em disputa pela terra e por condições mais dignas de existência.7 Entretanto, torna-se quase inacessível abordar as estratégias do dizer, os funcionamentos e princípios da análise discursiva (UFES, 2019) sem o conhecimento prévio de dimensões atinentes à linguística, tais como semântica, sintaxe e pragmática, ao menos – e tais dimensões não aparecem nem como disciplinas nem como conteúdos da ementa de nenhum dos componentes curriculares da subárea.8

Ao fixarmos nossa observação nas bibliografias básicas e complementares que as embasam, três aspectos principais emergem de nossa comparação: a) o primeiro deles concerne ao quantitativo de referenciais, mais abrangente no que prevê a LEdoC UnB, o que entendemos estar estreitamente relacionado às estruturas físicas de uma e de outra Universidade; b) o segundo refere-se ao fato de que na LEdoC UnB diversas disciplinas indicam nas referências obras literárias a serem trabalhadas no decorrer do curso; c) por último, na LEdoC UnB a área de Linguagens assume o materialismo histórico como perspectiva epistemológica de forma mais patente, sobretudo no interior daquelas disciplinas que mais estreitamente trabalham com a formação estética.

É bem verdade que não podemos reduzir um projeto a uma perspectiva teórica; e nem essa a um glossário de conceitos atinentes a ela, uma vez que o próprio sentido de suas ideias depende das relações existentes entre tais no interior tanto dos projetos quanto no escopo da teoria. Entretanto, Duarte (٢٠٠٥, p. ٩٨) sugere que:

[...] alguns conceitos são necessários para a constituição de uma teoria crítica em educação, tais como: dialética, totalidade, contradição, mediação, historicidade, universalidade, sociabilidade, conhecimento, materialismo, idealismo, empírico-abstrato-concreto, trabalho, atividade consciente, objetivação, apropriação, humanização, alienação, fetichismo, divisão social do trabalho, propriedade privada, mercadoria, relações de produção, forças produtivas, capital, ideologia, hegemonia, luta de classes, consciência, individualidade (ou personalidade) em-si e individualidade (ou personalidade) para-si, gênero humano, esferas de objetivação do gênero humano, cotidiano e não cotidiano, trabalho educativo, pedagogias críticas (e não críticas), especificidade da educação escolar, entre outros. Essa listagem é apenas exemplificativa, não esgotando o rol dos conceitos necessários a uma teoria crítica em educação e não significando que toda a pesquisa crítica em educação deva trabalhar explicitamente com todos esses conceitos. Mas, se a explicitação de todos eles não é indispensável a uma pesquisa crítica em educação, por outro lado, a recusa de alguns desses conceitos pode ser sintoma de uma adesão espontânea ou consciente à ideologia dominante.

Uma modificação que o documento da Universidade de Brasília esclarece refere-se ao desenvolvimento da área em análise nas primeiras turmas da LEdoC. O coletivo avaliou “[...] quais interfaces entre os diversos componentes da área se mostravam mais produtivos em termos de articulação interdisciplinar e quais linguagens eram prejudicadas, por disporem de uma carga horária restrita” (UNB, 2018, p. 28), um dos pontos nevrálgicos de nossa análise.

No PPC que deu origem à formação em Linguagens na LEdoC UnB, o curso contava também com habilitação em Música. Os motivos supracitados, somados ao fato de a Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Tocantins (UFT) (território relativamente próximo) também oferecer tal habilitação, os “[...] fez considerar que seria melhor suprimir os componentes curriculares da formação da Linguagem musical para [os] [...] docentes” (UNB, 2018, p. 28). A carga horária a ela destinada foi redirecionada ao fortalecimento da Linguagem em Audiovisual e Teatro, mais adjuntas, em conteúdo, das Letras e das Artes e mais sólidas na formação de docentes concursados e já atuantes na LEdoC UnB. Informa o documento: “Diante deste quadro e da demanda crescente de compreensão e conhecimento técnico da linguagem audiovisual e das artes plásticas, decidimos proceder com a substituição da linguagem musical pelas artes visuais e artes do vídeo” (UNB, 2018, p. 28).

Ainda que de forma mais indireta, relacionado a isso está a reflexão que Caldart (2011) faz sobre duas questões importantes, no campo das escolhas curriculares, a serem observadas no trabalho com a formação por área do conhecimento. A primeira trata de identificar o que é básico para o ensino por área e a segunda refere-se à necessidade de levantar quais são as ações que precisam ser engendradas no trabalho por área do conhecimento que potencializará o projeto formativo das licenciaturas em Educação do Campo. Desse modo, a formação docente por área do conhecimento requer uma preparação da equipe para desenvolver um trabalho de ruptura com a lógica de escola, de ensino e de universidade, que estão em disputa nos campos pedagógico, disciplinar, de produção e sistematização do conhecimento. Assim, a efetivação desse tipo de planejamento requer: abertura dos professores à nova lógica de organização do currículo, do ensino e da docência; um processo formativo da equipe docente e dos estudantes; um trabalho cuidadoso com a seleção das diferentes teorias que compõem a área e a materialização de uma concepção de área do conhecimento, de currículo por área; bem como a construção de uma prática interdisciplinar – o que nos demanda um estudo e aprofundamento não somente sobre o tema da interdisciplinaridade, mas sobre seus sentidos, objetivos e fundamentos.

Contudo, é importante frisar que muito frequentemente as equipes não estarão prontas para realizar esse trabalho de ruptura antes de fazê-lo; é justamente no movimento que se desenvolverão as condições sociais e individuais requeridas para o processo. Mesmo a abertura dos professores à proposta é fruto de um processo coletivo de debate, estudo e desenvolvimento; lembremos que circunstâncias “[...] são alteradas pelo homem e [...] o educador deve ser ele próprio educado” (MARX, 2007, p. 537).

Sobre a interdisciplinaridade e o movimento de rearranjo do que deverá ser considerado como essencial, como vimos no histórico dos dois documentos em análise, os aportes teóricos e as reflexões feitas no âmbito da licenciatura em Educação do Campo trazem algumas indicações de que a inter e a transdisciplinaridade têm permeado o debate da formação docente por área do conhecimento (CALDART, ٢٠١١, RODRIGUES, ٢٠١١, ANTUNES-ROCHA; MARTINS, ٢٠١٥). Contudo, além das concepções fundamentais que permeiam a própria área do conhecimento, é importante recuperar no debate a necessidade de pensar o trabalho pedagógico e o currículo da LEdoC a partir de categorias marxianas articuladas. Isso porque:

Marx inspira, com sua noção de formação omnilateral e de ser humano total, formulações pedagógicas críticas, no sentido de afirmarem seu compromisso com uma constituição humana ampla e complexa, na qual a dignidade do sensível seja considerada junto com a faculdade racional; e com uma compreensão abrangente de conhecimento que unifique (em sua tensão e complementaridade) o conhecimento conceitual e o estético-artístico. Ao fazer isso, contribui para a superação, de um lado, de tendências racionalistas ou cognitivistas e, de outro, de perspectivas estetizantes (DELLA FONTE, 2020, p. 25).

Noutras palavras, assim como, em Marx, a concepção de formação humana omnilateral ou integral ganha densidade à medida que sua compreensão da sociedade capitalista se aprofunda (DELLA FONTE, 2020), para a própria LEdoC, à medida que, no debate, por aproximações sucessivas, aprofundar-se a compreensão sobre as escolas do campo na sociedade brasileira – sobre a formação e o trabalho docente, sobre o projeto de sociedade em disputa, sobre a habilitação por área de conhecimento como ferramenta de dada conjuntura – será possível atualizar e desenvolver melhor a concepção de formação dos sujeitos envolvidos. Isso pois “[...] [q]ualquer emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem” (MARX, 2002, p. 37).

4 CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM E OUTROS FUNDAMENTOS

“O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 47).

Pensar a área de linguagens e a interdisciplinaridade no interior do materialismo histórico e da filosofia da práxis recoloca na ordem do dia a razão de ser de determinadas escolhas curriculares no interior da luta de classes e no desmantelamento de engodos que permanecem apartando docência e política. Gramsci (2007) evidencia a intrínseca relação entre hegemonia e educação, dada tanto pelo vínculo entre hegemonia e reforma intelectual e moral, quanto pela exigência de congruência teórica e prática, no contexto histórico, para a produção e consecução de um plano estratégico de ação política que vise à transformação socioeconômica das relações sociais de produção. Hegemonia, aqui, entendida como efeito contingente de uma situação concreta (de direção e domínio estabelecidos pela relação de forças e dinâmicas conflitantes).9

Conforme Sobral e Ribeiro (2020), a construção de hegemonia decorre da elaboração, por dada classe, de sua visão de mundo; e de que essa classe seja capaz de estruturar o campo de lutas de modo a produzir intervenção e alianças. Ou seja, o horizonte daqueles que lutam pela formação de professores do campo em uma perspectiva de superação do capitalismo seria a criação de novos aparelhos de hegemonia que difundissem uma concepção de mundo unitária, visando a uma sociedade civil restaurada que, em conexão orgânica com a estrutura, se tornasse capaz de reabsorver a sociedade política pela sociedade civil.

Se há essa tomada de posição consciente na proposição dos cursos, é necessário averiguar sistemática e criticamente as concepções que dão centralidade e, em determinada episteme, redimensionam o projeto de curso. Considerada a grande área do conhecimento a que este estudo se dedica, a saber, Linguagens, nos pareceu necessário que a concepção de linguagem que tem hegemonicamente embasado a formação de professores no âmbito da licenciatura em Educação do Campo fosse elucidada, a fim de melhor depreendermos a coerência de uma epistemologia mais geral que oriente o projeto de formação de professores para o campo. Para tal, tomaremos a síntese produzida pelo Círculo de Bakhtin (autores de base referidos nos projetos de curso da LEdoC Ufes e da LEdoC UnB) na obra clássica Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009), em relação às diferentes tendências do pensamento linguístico.

Grosso modo, Bakhtin e o Círculo, autores de base para ambos os cursos em análise, não estão preocupados em estabelecer relações dualistas entre os fenômenos da língua; não diferenciam, portanto, os conceitos de língua e linguagem e dão atenção à fala (ou aos atos singulares e irrepetíveis de enunciação verbal) – questionando radicalmente os postulados daquele que, por exemplo, é considerado vulgarmente como o fundador da ciência linguística, Ferdinand de Saussure.

Conforme esclarece Cardoso (2019), à luz da dialética marxista, Bakhtin e o Círculo abordam os fenômenos linguísticos do ponto de vista sociológico, considerando, sobretudo, os valores ideológicos que perpassam a língua(gem), a qual, dialeticamente, transforma a realidade e é transformada por ela. Bakhtin/Volochinov (2009) partem de uma abordagem crítica dos estudos linguísticos produzidos até então. Sintetizam as diferenças entre tais abordagens em duas grandes correntes que denominaram subjetivismo idealista e objetivismo abstrato. Essas duas grandes correntes seriam superadas pela filosofia enunciativo-discursiva, de elaboração coletiva por parte dos integrantes do Círculo, ao longo de décadas.

É importante esclarecer que tais denominações não se referem a uma teoria ou a um autor em particular, mas englobam a produção de diferentes teorias e autores, e mesmo o tratamento metodológico e o objeto de estudos de diferentes subáreas no interior das ciências linguísticas. Não à toa, o Círculo discutiu, também, a necessidade de criação de uma ciência outra, paralela à ciência linguística, que apresentaram como “Metalinguística” – no entanto, por restrição de espaço não adentraremos nessa seara.

Em síntese, subjetivismo idealista é, nas palavras de Bakhtin/Volochínov (2009), a “primeira orientação” do pensamento filosófico-linguístico. Caracterizar-se-ia por seu centramento no psiquismo individual. Para os estudiosos identificados com esta corrente, a língua não passa de uma atividade mental. Nas palavras dos autores, de acordo com tal orientação:

1. A língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (‘energia’), que se materializa sob a forma de atos individuais de fala.

2. As leis da criação linguística são essencialmente as leis da psicologia individual.

3. A criação linguística é uma criação significativa, análoga à criação artística.

4. A língua, enquanto produto acabado (‘ergon’), enquanto sistema estável (léxico, gramática, fonética), apresenta-se como um depósito inerte, tal como a lava fria da criação linguística, abstratamente construída pelos linguistas com vistas à sua aquisição prática como instrumento pronto para ser usado (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 74-75).

Já o objetivismo abstrato é classificado pelos autores como “segunda orientação” do pensamento filosófico-linguístico. Nesse caso, o centro organizador, ao contrário do subjetivismo idealista, é o sistema das formas (fonéticas, morfológicas, sintáticas, lexicais). Disso decorre uma visão de língua racionalista, em que o código linguístico se assemelha ao código matemático. Nesse sentido, não interessa o signo que reflete e refrata a realidade, mas a relação de signo para signo no interior de um sistema fechado, como pura abstração. O essencial dessa tendência poderia ser sintetizado nas seguintes proposições:

1. A língua é um sistema estável, imutável, de formas linguísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta.

2. As leis da língua são essencialmente leis linguísticas específicas, que estabelecem ligações entre os signos linguísticos no interior de um sistema fechado. Estas leis são objetivas relativamente a toda consciência subjetiva.

3. As ligações linguísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos (artísticos, cognitivos e outros). Não se encontra, na base dos fatos linguísticos, nenhum motor ideológico. Entre a palavra e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a consciência, nem vínculo artístico.

4. Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da língua, simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas normativas. Mas são justamente estes atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da língua; enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sistema, irracional e mesmo desprovida de sentido. Entre o sistema da língua e sua história não existem nem vínculo nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre si (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 85).

No que compete à área em questão, as contribuições teóricas do Círculo de Bakhtin promovem um debate filosófico que não nos permite afastarmos o tema da linguagem, nas diferentes manifestações do humano, da vida material, dos enfrentamentos sociais e da cultura de maneira geral. Nesse sentido, é bastante provável que na elaboração das duas propostas em questão a escolha por esse referencial tenha se dado pela tentativa de uso de uma abordagem que não reifica as linguagens em uso (BAKHTIN, 2015).

O conceito de língua(gem) que provém desses escritos se apresenta para além da noção de diálogo (forma composicional de constituição do discurso), de modo que se aborda a linguagem pelas propriedades verbais e extraverbais que determinam interlocutores em diferentes condições de interação verbal, em uma progressão rumo ao dialogismo. Dessa forma, o referido arsenal filosófico coloca em cena o aspecto constitutivo da linguagem, sob o qual a noção de interlocutores situados socio-historicamente acarreta não somente modificações no plano da interação que se apresenta nos aspectos fenomênicos da realidade, mas os mais antagônicos modos e graus de interação eu/outro (confrontos de consciências, ideologias, juízos sociais, políticos e estéticos e outras tantas em tensão) (BRAIT, 2017).

Em síntese, para a concepção enunciativo-discursiva, proposta pelo Círculo de Bakhtin, “[...] a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 128). A noção de língua(gem) na perspectiva do Círculo refere-se àquela que acontece na interação verbal concreta entre sujeitos do discurso. É, portanto, dialógica (pois toda comunicação se estabelece entre um Eu e um Outro) e ideológica (já que todo signo é ideológico). Não é uma língua neutra, virtual, abstrata; ao contrário, é uma língua(gem) encarnada, mundana, aberta, corporificada. Noutras palavras, como refletiria e refrataria a realidade, a língua(gem) seria tão heterogênea e complexa quanto as relações humanas, sendo, portanto, irredutível quer a um sistema ou conjunto de regras, quer aos estreitos limites das escolhas individuais. Nas palavras dos próprios autores:

1. A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares. Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua.

2. A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal social dos locutores.

3. As leis da evolução linguística não são de maneira alguma as leis da psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas da atividade dos falantes. As leis da evolução linguística são essencialmente leis sociológicas.

4. A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem com qualquer outra forma de criatividade ideológica específica. Mas, ao mesmo tempo, a criatividade da língua não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam. A evolução da língua, como toda evolução histórica, pode ser percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista, mas também pode tornar-se “uma necessidade de funcionamento livre”, uma vez que alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada.

5. A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala individual (no sentido estrito do termo ‘individual’) é uma contradictio in adjecto. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 131-132).

Em síntese, estamos diante de um conjunto de pressupostos sobre as linguagens que demandam que sua natureza social – e, portanto, ideológica – esteja no centro dos debates e projeções. Podemos dizer que o pressuposto defendido pelo Círculo de que o signo se torna arena da luta de classes, considerando, sobretudo, a linguagem em sua materialidade, encontra-se presente, de alguma forma, em ambas as propostas. Entretanto, em uma delas (LEdoC UnB) parece que tal conjectura encontra maior ressonância no restante do documento, empregando-lhe um eixo para certa (e desejável) unidade.

5 PERFIL DO EGRESSO E DIMENSÕES PRIVILEGIADAS NAS ESCOLHAS CURRICULARES

“A totalidade sem contradições é vazia e inerte, as contradições fora da totalidade são formais e arbitrárias” (KOSIK, 1976, p. 60).

Ainda que passados poucos anos da implementação das primeiras experiências nas Licenciaturas em Educação do Campo, é necessário que nos questionemos qual é o papel específico da formação por área do conhecimento na LEdoC. Caldart (2011) aponta que a área na licenciatura deve contribuir para a construção de uma nova organização curricular cuja centralidade está no fato de que os conteúdos, nessa lógica, devem possibilitar que os estudantes se apropriem do conhecimento como chave de leitura da realidade social, política, econômica e cultural, dimensões imprescindíveis para a compreensão das questões da vida real e das relações sociais que são produzidas no interior da sociedade capitalista. Nesse sentido, segundo a autora, está posto o desafio de construir um currículo interdisciplinar a partir do estudo dos fenômenos da realidade.

A autora destaca ainda que, fundamentalmente, o papel da formação por área do conhecimento é, entre outras questões, a organização do trabalho docente que pode ser arranjado a partir do planejamento por área, o que implica, necessariamente, em um profundo e dinâmico trabalho coletivo docente. Voltando a um dos principais motivos que lhe deram origem, há que se “[...] prever a possibilidade de não ter na escola um professor para cada disciplina, mas sim uma equipe docente trabalhando com o conjunto das disciplinas de cada área do conhecimento” (CALDART, 2011, p. 148). Uma possibilidade sobre o que fazer com o que se tem em determinada conjuntura, sem perder de vista seu horizonte de formação humana para emancipação: é agora e é para além.

Essa organização do trabalho docente na escola, demandada pela proposta da formação por área do conhecimento, pretendia atender a dois objetivos básicos. Segundo Caldart (2011), o primeiro se refere a um processo de organização do trabalho coletivo dos professores e na condução de uma escola que seja organizada coletivamente pelos sujeitos que a compõem, ou seja, professores e estudantes na perspectiva da superação da disciplinarização; e o segundo diz respeito à formulação dos objetivos instrucionais, a partir das áreas do conhecimento, para aprofundamento das diferentes teorias, bem como do conhecimento dos fenômenos da realidade social, política, econômica e cultural da sociedade na qual os estudantes estão inseridos, seja em âmbito local, seja nas relações subalternas na mundialização do capital.

A dinâmica de relacionar as teorias aos fenômenos da vida material requer uma revisão de quais conteúdos são pertinentes para a formação de um professor do campo que precisa dominar os conhecimentos necessários para o exercício da docência e para organização política dos camponeses nas diversas comunidades. Isso se agrava nos planos estruturais e conjunturais uma vez que, no contexto no qual se insere a questão agrária brasileira, mais do que nunca, precisamos formar professores sob os objetivos originários dessa licenciatura, que tratam da preparação do docente para a condução de processos educativos escolares e comunitários em no âmago da luta de classes.

Parece-nos que isso exige não somente um “[...] impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar os fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário, [que] vem sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo” (KOSIK, 1976, p. 15). Para buscar o sentido que vem sendo dado à formação dos licenciados, inquirindo os documentos que os orientam, não seria possível que tal movimento fosse realizado unicamente observando as seções que versam sobre o “perfil do egresso” em cada um dos projetos, por exemplo. Ainda que os recuperemos em notas – LEdoC UnB10 e LEdoC Ufes11 –, o que foi exposto sobre as recomendações, concepções, tendências e proposições nas seções anteriores nos ajuda a melhor entender os projetos históricos e perspectivas que estão ofuscadas e em disputa pelos projetos apresentados – nem sempre explicitados pelos documentos.

Molina e Hage (2015) indicam que na constituição do perfil de professor formado na Licenciatura em Educação do Campo, o propósito era “[...] promover e cultivar um determinado processo formativo que oportunize aos futuros educadores, ao mesmo tempo, uma formação teórica sólida, que proporcionasse o domínio dos conteúdos da área de formação para o qual se titula o docente em questão” (p. 137-138). Como o projeto possuía suas claras concepções políticas, isso deveria estar estreitamente articulado “[...] ao domínio dos conhecimentos sobre as lógicas do funcionamento e da função social da escola e das relações que esta estabelece com a comunidade do seu entorno” (p. 138). Ainda que, em nossa apreciação, tenham ficado claras as possibilidades de ambas as propostas no atendimento desse aspecto, ao voltarmos nossa observação sobre a necessária formação teórica sólida, nota-se que há ainda uma preocupante fragilidade no que vem promovendo o curso da Universidade Federal do Espírito Santo, especificamente na habilitação em Linguagens.

É certo que toda ação humana “[...] é ‘unilateral’, já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente” (KOSIK, 1976, p. 14-15). Contudo, do mesmo modo que a negação dessa formação teórica consistente e coerente com os pressupostos que assume mistifica as possibilidades de uma efetiva ação contra-hegemônica, seria igualmente ingênuo vislumbrarmos a promoção de intelectuais orgânicos e do “[...] pleno desenvolvimento dos estudantes” (UFES, 2019, p. 14) da comunidade campesina sem lançarmos mão de uma abordagem, a mais radical possível, das “[...] contradições do sistema existente, em nome de uma presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestações particulares” (MÉSZÁROS, 2008, p. 29). De acordo com o autor, essa configura uma maneira de negar as possibilidades, ainda que muito cerceadas, de se forjar qualquer outra alternativa ao capital. Permitir que nossa – já controlada – formação se direcione “[...] para discussões mais ou menos aleatórias sobre efeitos específicos, [...] deixa a sua incorrigível base causal não só incontestavelmente permanente como também omissa” (2008, p. 64).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“De maneira alguma é mera coincidência histórica que o século que atingiu o mais elevado grau de sofisticação em todas as esferas igualmente produziu o mais notável culto ao primitivo, desde teorias filosóficas e psicológicas até práticas sociais e artísticas” (MÉSZÁROS, 2016, p. 160, grifos do original). Constatações como essas nos recolocam, de modo mais geral, diante da questão sobre os caminhos que a educação vem trilhando como um todo e, por certo, a quem ela vem servindo. De forma mais específica, reforçam nossa recusa acerca das estruturas institucionais burguesas que fragmentam as disciplinas e lidam, de maneira bastante abreviada (quando ocorre), com os fenômenos que expressam o fracasso do sistema produtivo para a classe trabalhadora nas mais diferentes esferas da vida humana.

Nosso esforço não teve como objetivo a proposição de um modo de fazer para a formação dos professores da área de Linguagens para as escolas do campo, tarefa essa de muita relevância e sobre a qual muitos dos 600 docentes espalhados pelo país vêm se debruçando – ao mesmo tempo que enfrentam condições de trabalho e assistência estudantil cada vez mais precárias. De forma bem menos arrojada, realizamos aqui um movimento inicial de compreender as bases que fundamentam a constituição dos cursos, o que nos indicam algumas decisões, que professor é esse que, segundo os projetos, vem sendo formado e qual a consonância que essa projeção apresenta com a luta de classes. E, mais especificamente, atentamos às disciplinas que constituem as matrizes curriculares da habilitação em Linguagens e analisamos a concepção mais frequentemente enunciada – mas não necessariamente assumida pelo conjunto da proposta, conforme constatamos – de língua(gem) no interior das ementas e bibliografias de disciplinas que compõem essa matriz, a saber, a filosofia enunciativo-discursiva do Círculo de Bakhtin.

Ainda retomando as questões introdutórias que motivaram nosso estudo, restou evidente a necessidade de uma maior atenção para componentes pedagógicos que proporcionem o domínio dos conteúdos da área de formação para o qual se titulam os docentes na LEdoC Ufes, especialmente. Quadro esse que se agrava quando percebemos que não há disciplinas específicas destinadas a pensar os fundamentos filosóficos da linguagem para melhor compreensão do todo; e que, no interior das disciplinas pedagógicas gerais, não há notável preocupação com a fronteira entre educação e linguagens, espaços esses que poderiam reafirmar “[...] a relação dialética entre parte-todo” (RODRIGUES, 2011, p. 113). Além disso, sendo essa uma Licenciatura que, assim como as demais, precisa responder às normativas constantemente atualizadas pela perspectiva gerencialista adotada pelo Estado, encontramo-nos na iminência de que tal circunstância fique ainda mais preocupante se o conteúdo proposto pela Resolução n°2 de 2019/CNE for efetivamente implementado.

Somos herdeiras(os) de uma política de editais que, ao mesmo tempo que respondeu a uma importante demanda assumida pelos movimentos sociais, como já mencionado nas páginas iniciais, não garantiu uma política orçamentária rigorosa e definida desde a sua institucionalização, o que fragiliza sobremaneira nossas condições de funcionamento. Essa é uma dimensão estruturante que determina e ecoa em tudo que é produzido nas diferentes licenciaturas em Educação do Campo, e por isso esteve presente como pressuposto da apreciação realizada. No entanto, investir nossos esforços somente nessas disputas travadas no interior do aparelho de Estado, ainda que indeclinável, nos é insuficiente. É verdade, faz-se necessário sobreviver em tempos de desmonte das instituições públicas, mas igualmente crucial é não perdermos de vista o que nos trouxe até aqui.

REFERÊNCIAS

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UnB. Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação do Campo. Universidade de Brasília, Faculdade de Planaltina, 2018.

UFES. Projeto Pedagógico de Curso Lic. Educação do Campo, Universidade Federal do Espírito Santo – CE. 2019.


1 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pelotas.

2 Doutora em Educação e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo.

3 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade de Brasília.

4 Sobre essa diferença entre teoria da educação e pedagogia, Saviani (2007) esclarece: “Com efeito, se toda pedagogia é teoria da educação, nem toda teoria da educação é pedagogia. Na verdade, o conceito de pedagogia reporta-se a uma teoria que se estrutura a partir e em função da prática educativa. A pedagogia, como teoria da educação, busca equacionar, de alguma maneira, o problema da relação educador-educando, de modo geral, ou, no caso específico da escola, a relação professor-aluno, orientando o processo de ensino e aprendizagem. Assim, não se constituem como pedagogia aquelas teorias que analisam a educação pelo aspecto de sua relação com a sociedade não sem o objetivo de formular diretrizes que orientem a atividade educativa” (p. 399-400).

5 A Ufes também oferta 3 habilitações na Licenciatura em Educação do Campo, entretanto, divididas em dois campi. No campus Goiabeiras, localizado na capital, são ofertadas as habilitações em Linguagens e em Ciências Humanas e Sociais. No campus São Mateus, são ofertadas as habilitações em Ciências da Natureza e em Ciências Humanas e Sociais.

6 Segundo o documento, “[...] os estudantes entram no primeiro semestre com uma formação geral e ao final deste primeiro semestre escolhem em qual área de conhecimento irão se aprofundar” (UNB, 2018, p.17). O Curso articula “[...] formação básica, composta por disciplinas que perpassam todas as áreas de conhecimento e são imprescindíveis à formação docente, e os conteúdos relacionados à formação específica da área conhecimento escolhida pelo discente” (2018, p. 17). Essa formação específica começa a ser ofertada a partir do segundo semestre e se estende até o último período de graduação. Na LEdoC Ufes, a formação específica se inicia no 3° semestre de curso.

7 Sob o uso da vertente francesa pecheutiana de análise discursiva, Fernandes (2007) e Indursky (2019) sistematizaram oportunos estudos sobre a questão fundiária e a luta pela terra no Brasil.

8 A título de exemplo também ilustrativo, pode ser mencionada situação semelhante em Estudos Literários II, cujo conteúdo central privilegia o estudo do gênero lírico, extremamente dificultado pela ausência desses mesmos pressupostos acrescidos, sobretudo, ao estudo da fonética e da fonologia da língua.

9 Contingência essa que pressupõe “[...] que se devam levar em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida; que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativos. Mas também é indubitável que os sacrifícios e o compromisso não se relacionam com o essencial, pois se a hegemonia é ético-política, também é econômica; não se pode deixar de fundamentar na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica” (GRAMSCI, 1984, p. 132).

10 “a) Na docência em uma das áreas de conhecimento propostas pelo curso: Matemática, Linguagens (expressão oral e escrita em Língua Portuguesa, Artes, Literatura); Ciências da Natureza para atuar nos anos finais do Ensino Fundamental e no Nível Médio, também na Modalidade Educação de Jovens e Adultos. b) Na gestão de processos educativos escolares, entendida como formação para a educação dos sujeitos das diferentes etapas e modalidades da Educação Básica, para a construção do projeto político-pedagógico e para a organização do trabalho escolar e pedagógico nas escolas do campo. c) Na gestão de processos educativos comunitários, entendida como formação para a atuação em projetos de apoio ao desenvolvimento sustentável e solidário do campo” (UNB, 2018).

11 “O Curso se desenvolve de modo a profissionalizar os egressos da Licenciatura em Educação do Campo para atuação: - Na docência e extensão em uma das sub-áreas de conhecimento propostas pelo curso: Ciências Humanas e Sociais (História, Geografia, Sociologia e Filosofia), promovendo o conhecimento de forma interdisciplinar; - Na gestão ética de processos educativos escolares, promovendo o pleno desenvolvimento dos estudantes das diferentes etapas e modalidades da Educação Básica; - Na construção do projeto político-pedagógico e organização do trabalho nas escolas do campo, com ênfases na Educação Fundamental/ Anos Finais, na Educação Básica de Nível Médio, na Modalidade Educação de Jovens e Adultos integrada à Educação Profissional e em convergência com as Diretrizes Curriculares Nacionais, Diretrizes Operacionais da Educação do Campo e legislação educacional vigente; - No acompanhamento e avaliação das políticas, projetos e programas educacionais; - No domínio das tecnologias de Informação e Comunicação como recursos didático-pedagógicos que contribuem na promoção das aprendizagens dos estudantes; - Na gestão de processos educativos nas comunidades: preparação específica para o trabalho formativo e organizativo com as famílias e/ou grupos sociais de origem dos estudantes, para liderança de equipes e para a implementação de iniciativas e/ou projetos de desenvolvimento comunitário sustentável que incluam a participação da escola; - Na realização de pesquisas que possam subsidiar o aperfeiçoamento dos processos de ensino-aprendizagem e as práticas pedagógicas empreendidas nas escolas do campo; - Na atuação profissional docente que articula conhecimentos da área de formação às discussões sociais, ambientais e culturais da realidade brasileira e do contexto escolar” (UFES, 2019).