https://doi.org/10.18593/r.v47.29750
Resenha – Os sinos se dobram por Alfredo
Mônica Tessaro1
Universidade do Oeste de Santa Catarina, Professora
https://orcid.org/0000-0003-4784-3606
EIDT, Paulino. Os sinos se dobram por Alfredo. Chapecó, SC: Argos, 2009. 376p.
A obra resenhada é fruto da tese defendida pelo professor Paulino em 2006 no curso de doutorado em Ciência Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, publicada em formato de livro no ano 2009 e, mais tarde, em 2011 foi indicada ao prêmio Jabuti. Trata-se, portanto, de um livro valoroso, que mescla a escritura científica por meio de documentos e entrevistas biográficas, com a literatura, a poesia, a ficção, fotografias e a história da colonização alemã na região extremo-oeste de Santa Catarina. Paulino nos apresenta, desde o início de sua obra, um personagem fictício, o Alfredo, que nasceu em 1927, no Projeto Porto Novo (atualmente abrange os municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis). Aborda com maestria a influência da cultura alemã, do catolicismo, do poder político e do interesse capitalista naquela região, onde as concepções humanas podiam ser apenas duas: do bem ou do mal.
O livro é dividido em um prefácio, introdução e três capítulos, a saber: Alfredo: uma vida entre unidade e multiplicidade; Alfredo é unidade; e, Um novo Deus desperta. O prefácio é apresentado pela orientadora da tese defendida por Paulino, nele a autora faz um alerta: até momento foi a pesquisa mais bonita que orientei. Certamente por se tratar de uma pesquisa acima de tudo humana. A introdução nos aproxima da trama sócio histórica contada no livro, nela, somos informados sobre a bagagem subjetiva dos fatos narrados, e tocados pela história contada, ora assumindo o papel de espectador ora do próprio protagonista – Alfredo.
Os três capítulos são divididos cronologicamente, o primeiro situa-se entre 1926 e 1945. Nele, os aspectos ideológicos que orientaram a materialização do Projeto Porto Novo são postos em cena. Somos inseridos na história com o nascimento de Alfredo, cujo nome foi escolhido pelo padre, na pia batismal, em homenagem a um cristão virtuoso. No seio do patriarcado e de um padrão cultural fechado, assim como Alfredo, cresceu também a colonização e as novas construções no Projeto Porto Novo. As orações e invocações da comunidade, sempre em defesa de Deus, da Pátria e da Família, enviadas pelos padres, era de que os alemães, colonizadores de Porto Novo, sempre guardassem uma distância dos Waldlaufer (pessoas de cor que ocupavam a mesma região sem possuir a posse das terras) “são como animais e vivem escondidos na floresta [...] vivem ocupados com futilidades e no que menos parecem pensar é no trabalho” (EIDT, 2009, p. 128).
Na década 1940 a região extremo-oeste aumentou consideravelmente, o território passou a ser ocupado por italianos, poloneses, indígenas e tropeiros, que faziam do processo migratório não um fardo, mas, uma possibilidade de mudança mais vantajosa. Contudo, os deslocamentos vindos, excepcionalmente, do Rio Grande do Sul para a região de Porto Novo, e o aumento da população, geravam um embate estatal e religioso cada vez mais fervoroso.
Ao ver crescer a colonização de forma heterogênea, escolas foram fechadas, pois, os alemães locais só aceitavam homens brancos e católicos para o exercício do magistério. Todo “homem do cor” enviado pelo Estado para assumir, junto à comunidade, a tarefa de educar, era objetivamente afastado por meio do constrangimento, e “as famílias continuavam rogando insistentemente para que o Estado mandasse professores comprometidos com a população local” (EIDT, 2009, p. 161). Assim, o Projeto Porto Novo fora, até o ano 1945, muito heterogêneo e disperso em função das diferentes etnias que ali habitavam. As famílias viviam cada qual a seu modo, em residências simples, de madeira bruta, cultivavam a agricultura de subsistência, com poucos ou nenhum recurso tecnológico.
Esse movimento vai se tornando, aos poucos, homogêneo, quando os moradores, cerceados pelo poder político e religioso, micropoderes que atuavam exaustivamente na formação de uma população cada vez mais cristã e politicamente correta, adquiriu força dominante. E, assim, entramos no segundo capítulo, que narra os acontecimentos políticos e sociais de 1945 a 1970. A vida comunitária exigia grande esforço dos colonizadores, a fim de erguerem, com os próprios e escassos recursos, igrejas e salões comunitários. Os homens assumiam com afinco seu compromisso cristão com a instituição divina, inclusive, jamais faltara o senso de hierarquia com as autoridades religiosas, civis e militares. A mulher lhes exigia, além da submissão aos maridos, prontidão para servir. Eram três os seus compromissos “kinder, kirche e kuche! (filhos, igreja e cozinha) [...] nada fora disso é agradável a Deus!” (EIDT, 2009, p. 202).
Para o progresso da colônia, as lideranças religiosas encorajavam os colonos a sacrificarem seus parcos recursos em doações, bebedeiras e leilões, cujos lucros ficara nas mãos da igreja. As famílias que mantinham a agricultura atrelada ao ciclo das estações eram condenadas publicamente como áridas, relapsas e relaxadas, pois, viviam na extrema pobreza e não tinham condições de colaborar com a comunidade. Assim, as autoridades religiosas visavam o desenvolvimento local, atribuindo o sucesso ao poder da comunidade, representada pela união do povo alemão com orientação dos padres jesuítas. Para os líderes comunitários era improvável o sucesso de colônias etnicamente mistas, “marcadamente, havia um vínculo indissociável entre a ordem social e a vida individual de cada um dos seus moradores” (EIDT, 2009, p. 224).
Em 1953, Porto Novo se emancipa, passara mais de duas décadas atrelado ao município de Chapecó, para o qual enviava seus impostos. Assim, foi escolhida a primeira autoridade municipal, se tratava de um homem com autênticos princípios religiosos. Contudo, Alfredo, assim como os demais habitantes, eram incapazes de compreender suficientemente os motivos que levara a criação de um município, para eles, as questões locais sempre foram resolvidas pela igreja. Contudo, os efeitos da emancipação política foram se mostrando presentes, aquisição de máquinas para abertura e melhoria de estradas, circulação de jornais dominicais, instalação da energia elétrica até que, em 1962, iniciou-se a discussão sobre a necessidade da instalação de indústrias (frigoríficas e de laticínios), era preciso melhorar e ampliar as condições dos colonos, Porto Novo estava ficando pequena para alimentar os 14.000 habitantes.
Assim, “[...] as economias, antes dirigidas para construir obras comunitárias, agora eram recolhidas para levantar sociedades autônomas, como o frigorífico, o laticínio e uma rádio local” (EIDT, 2009, p. 266). Depois de seis anos da fundação, Alfredo se juntou a outros sócios-acionistas locais para a inauguração do frigorífico. Os novos líderes, defensores do empreendedorismo, exaltavam o esforço dos colonos. Todos ali confiavam na boa índole dos futuros administradores, e assim foram eliminando o sistema antigo de criação dos animais; em paralelo, novas exigências eram demandadas para aumentar a produção, tais como a necessidade de melhorias sanitárias, melhoramento genético, introdução da ração balanceada e diminuição do tempo de engorda. Médicos veterinários faziam visitas de inspeção em todas as propriedades. Os novos dispositivos tecnológicos entusiasmavam os colonos, afinal, os primeiros resultados podiam ser sentidos no bolso: o dinheiro se multiplicara, contudo, o tempo de dedicação aos deveres religiosos diminuíram drasticamente.
Chegamos ao terceiro capítulo: Um novo Deus desperta, que apresenta os avanços da colônia entre 1970-2006. Coloca em tela o embate entre o sistema capitalista, que torna aberto e independente o espaço de Alfredo e seus conterrâneos, e o sistema religioso, espaço fechado e engessado. O que antes era unidade, agora, atraídos pela modernidade, os indivíduos tornaram-se sujeitos, todas as providências tomadas pela igreja a fim de afastar os perigosos mundanos eram em vão diante dos 20.000 habitantes de Porto Novo. Como moralizar a todos? No entanto, no âmbito político, tudo ocorria conforme o esperado, “o Estado continuava nas mão experientes e zelosas da mesma família que, há meio século, se instalara no governo, enquanto a nação estava sendo excelentemente conduzida por mãos firmes e hábeis do exército brasileiro” (EIDT, 2009, p. 292).
O progresso gerava individualismo e egoísmo, provocando a diluição dos laços solidários. Porto Novo experimentara a evolução, operários, em número cada vez maior para dar conta do trabalho nas agroindústrias, colonos substituindo por completo os recursos herdados dos pais pelas novas experiências tecnológicas. No lugar da formação de vocações religiosas, providenciavam a instalação de escolas agrícolas para formação técnica e, com isso, a autoridade religiosa era publicamente afrontada. As famílias, ao mesmo tempo que expressavam admiração ao novo, eram horrorizados pelos padres e, em alguma medida, procuravam manter distância de alguns hábitos tido como mundanos, contudo isso era praticamente impossível uma vez que as recomendações técnicas era de que ampliassem sua produção e, para isso, se viam obrigados a buscar financiamentos em bancos estatais e assinar contratos de integração com a agroindústria. Tais mudanças representam o que preconiza Bauman (1998, p. 29) “as pessoas são [...] produtos da cultura e, por isso, flexíveis e dóceis de serem reformadas.”
No final da década de 1970, as comunidades do interior de Porto Novo foram contempladas com a energia elétrica, Alfredo e outros moradores substituíram depressa os lampiões de querosene por lâmpadas. Com a farta colheita em 1980, graças aos novos recursos utilizados, adubos químicos e sementes selecionadas, Alfredo rompe a negociação da safra com o comerciante que negociava há décadas, buscou a concorrência devido aos excessivos descontos atribuídos à sua produção, além disso, adquiriu, no final, daquele ano, um televisor preto e branco, esquecendo-se das prescrições do padre de que o aparelho poderia destruir a cultura local. Nesse mesmo período, os diretores da agroindústria venderam o empreendimento sob alegação de serem os sócios majoritários e por isso tomaram essa decisão. Centenas de famílias viram seus investimentos se transformarem em nada. As cobranças de produtividade nas famílias integradas ao frigorífico, agora ainda maior, eram cada vez mais intensas e, as exigências sanitárias e tecnológicas, cada vez mais frequentes.
Na década de 1980, incitado pela modernidade, e na contramão do que pregava a igreja, o bispo Dom José passou a criar, na comunidade, grupos de reflexão, para discutir os problemas brasileiros, discutia-se sobre “movimento das mulheres agricultoras, grupos de sem-terras, movimentos indígenas, além de incitar a criação do Partido dos Trabalhadores.” (EIDT, 2009, p. 307). Esse debate regional passou a mexer com a estrutura política da colônia, até então, intocável. Alfredo, assim como outros colonos, crentes nos dogmas culturais que lhes foram inculcados, não foram capazes de esconder tamanho desgosto com os rumos, cada vez maiores, dos movimentos sociais. Além disso, Porto Novo sofrera mais dissoluções, novos distritos foram criados e novas culturas implantadas, além da suinocultura agora a avicultura se fazia presente. Alfredo, que conquistou sua aposentadoria no início dos anos 1990, sofre as consequências da fluidez, sabia que a comunidade havia mudado, repreendia a prática adotada pelo Estado, de minimizar a natalidade, condenava a normalização de práticas sexuais como o homossexualismo, recriminava homens de cor, desaprovava homens se curvando ao jugo das mulheres, não concordava com a frequência cada vez mais limitada das pessoas à igreja.
A obra de Paulino é um presente à região oeste de Santa Catarina, pois reconstrói e interpreta o passado cultural marginal à história da maioria. Dá vez e voz à minoria, anônimos que representam a realidade de um povo migrante, cerceado primeiro pela dominação religiosa e política e, em seguida, pelos modos de produção capitalista. Desse modo, compreendo que Alfredo continua vivo, nas palavras do autor “ainda existem Alfredos na sua mais original forma.” (EIDT, 2009, p. 28).
Esta resenha é uma homenagem póstuma ao pesquisador e professor Paulino, uma forma que encontramos de enaltecer seu legado. Paulino exerceu o magistério de 1984 a 2017, atuou na educação básica e no ensino superior. Como pesquisador interessou-se por temas relacionados a história de sua comunidade, a região extremo-oeste catarinense.
Recebido em 25 de novembro de 2021
Aceito em 26 de janeiro de 2022
REFERÊNCIAS
BAUMAN. Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
EIDT, Paulino. Os sinos se dobram por Alfredo. Chapecó, SC: Argos, 2009. 376p.
Endereço para correspondência: Rua Getúlio Vargas, 2125 - Flor da Serra, Joaçaba,SC, 89600-000.
1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), (Bolsista CAPES, cod. de fin. 001); Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó); m_tessaro@unochapeco.edu.br