https://doi.org/10.18593/r.v47.29548

BNCC E BNC-formação: consequências na formação de professores para as escolas do campo

BNCC and BNC-Training: consequences on teacher training for rural schools

BNCC y BNC-Formación: consecuencias en la formación de profesores para escuelas del campo

Mauro Titton1

Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, Professor

https://orcid.org/0000-0001-9146-4019

http://lattes.cnpq.br/6319128486898465

Resumo: Este artigo traz elementos derivados de reflexões coletivas no âmbito dos movimentos sociais acerca das consequências da BNCC e da BNC-Formação sobre a formação dos professores. Para tal, parte de uma pesquisa qualitativa e de análise documental. Apresenta breve síntese dos aspectos formativos contidos naqueles documentos normativos, historiciza o surgimento de cursos próprios para a formação de professores para as escolas do campo, recupera elementos estratégicos da proposta formativa elaborada por professores e movimentos sociais ao longo de sua trajetória de lutas e finaliza reconhecendo desafios e problemáticas que necessitam de aprofundamento nas reflexões. Com isso, busca contribuir no debate e na construção da resistência ao avassalador avanço do capital sobre a formação.

Palavras-chave: Formação de professores. Educação do campo. Licenciatura em educação do campo. BNCC. BNC-Formação.

Abstract: This article brings elements derived from collective reflections within the scope of social movements about the consequences of BNCC and BNC-Training on teacher training. Does a qualitative research and document analysis and presents a brief synthesis of the formative aspects contained in those normative documents, historicizes the emergence of specific courses for the formation of teachers for rural schools, recovers strategic elements of the formative proposal elaborated by teachers and social movements throughout their trajectory of struggles and ends by recognizing challenges and issues that need further reflection. With this, it seeks to contribute to the debate and building resistance to the overwhelming advance of capital on education.

Keywords: teacher training; rural education; teacher training for rural education; BNCC; BNC-Training.

Resumen: Este artículo trae elementos derivados de reflexiones colectivas en el ámbito de los movimientos sociales sobre las consecuencias de la BNCC y de la BNC-Formación en la formación docente. Para ello, desarrolla una investigación cualitativa y análisis documental. Presenta una breve síntesis de los aspectos formativos contenidos en dichos documentos normativos, historiciza el surgimiento de cursos específicos para la formación de docentes para escuelas del campo, recupera elementos estratégicos de la propuesta formativa elaborada por docentes y movimientos sociales a lo largo de su trayectoria de luchas y termina reconociendo desafíos y problemas que necesitan una mayor reflexión. Con ello, se busca contribuir al debate y a la construcción de resistencias ante el arrollador avance del capital en la formación.

Palabras Clave: Formación de profesores. Educación del campo. Licenciatura en educación del campo. BNCC. BNC-Formación.

Recebido em 14 de outubro de 2021

Aceito em 07 de janeiro de 2022

1 INTRODUÇÃO

O artigo aqui apresentado traz resultados de estudo bibliográfico acerca de aspectos históricos e de concepções que estiveram na base da constituição de cursos de formação de professores para as escolas do campo e de análise documental que abarcou dispositivos legais que implicam diretamente na reconversão do processo de formação de professores. De caráter qualitativo, o estudo objetivou reconhecer consequências das normativas sobre a formação de professores, refletir aspectos das experiências desenvolvidas com os movimentos sociais. No processo de estudo e reflexão, também identificou questões que necessitam de aprofundamento através da continuação do estudo e debate. Com isso, visa contribuir na compreensão do processo que está em andamento e na construção das necessárias resistências coletivas, bem como com formulações e concepções que respondam aos interesses dos movimentos sociais da classe trabalhadora.

A formação de professores é estratégica para a implementação de qualquer proposta educacional (EVANGELISTA et al., 2019). Cientes disso, tanto movimentos sociais quanto organizações da classe dominante brasileira têm travado intensa disputa sobre o conteúdo da formação docente. Está claro, neste processo, que a formação dos professores para as escolas do campo não está fora desta disputa. Pelo contrário, esta disputa está na própria origem da Educação do Campo como proposição de um ideário educacional que busca deitar suas raízes nas concepções e anseios da experiência histórica dos trabalhadores e suas organizações.

Desde os anos 1990, as políticas públicas no Brasil passam a ser implementadas com forte cariz neoliberal, alinhadas às orientações dos Organismos Multilaterais (OM), visando materializar as condições exigidas pelo novo ciclo de expansão do capital (LEHER, 1999). As políticas educacionais também passam a ser alinhadas às demandas exigidas pelo capital, impondo um amplo processo de contrarreformas educacionais, segundo interesses de classe (SHIROMA, 2015).

Mudanças profundas no ordenamento legal buscaram limitar o alcance das poucas conquistas alcançadas pela classe trabalhadora no plano constitucional. O processo de aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a definição de Parâmetros Curriculares Nacionais, de Diretrizes Curriculares Nacionais, dos Planos Nacionais de Educação, a profusão de pareceres e normas foram limitando o parco espaço para o exercício da autonomia nas instituições educacionais. Sob orientação dos OM e de Aparelhos Privados de Hegemonia (APH) da classe burguesa, as alterações no marco legal alinharam-se ao ideário burguês definindo um claro perfil neotecnicista, que foi sendo organizado a partir da presença da pedagogia das competências2 e de suas definições como perspectiva obrigatória no desenvolvimento das atividades educacionais em todos os níveis e modalidades da educação brasileira.

Este alinhamento ao ideário das competências – alinhamento às exigências do mercado – foi sendo ampliado e articulado a importantes mudanças conceituais e organizacionais, tais como aquelas derivadas da ascensão das aprendizagens essenciais, da flexibilização curricular, do aprender a aprender3 etc. Apaga-se ainda mais a formação humana e assume em seu lugar um processo de amoldamento da força de trabalho às condições do atual estágio de desenvolvimento do capital, aprisionando os processos formativos na teia de interesses dos setores dominantes. A atividade educacional assume centralidade para o desenvolvimento das qualificações demandadas pelo mercado. Fundamental é lembrar, com Mézsáros (2005, p.45), que “[...] uma das funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir tanta conformidade ou ‘consenso’ quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados.”

A ampliação dos mecanismos de controle e a padronização e homogeneização dos sistemas educacionais, permitindo criar escala, são essenciais para o capital avançar sobre a educação, tanto para impor sua lógica formativa quanto para explorar o setor para a sua valorização. A criação e aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o controle sobre a formação dos professores são parte importante deste processo. Com a aprovação da Resolução CNE/CP n. 2 do Conselho Nacional de Educação (CNE), em 2017, institui-se a BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental (BRASIL, 2018) e com a Resolução CNE/CP nº 4, em 2018, a BNCC do Ensino Médio (BRASIL, 2019a), impondo mudanças profundas na organização e no currículo da Educação Básica, com previsíveis consequências sobre a formação de professores. Para regular esse aspecto, em 2019 foram aprovados a Resolução CNE/CP n. 2/2019 (BRASIL, 2019b), que implica na reformulação dos cursos de licenciatura e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), e o Parecer CNE/CP n. 22/2019 (BRASIL, 2019b), que a fundamenta.

Esses documentos normativos extrapolam o caráter de diretrizes, prescrevendo detalhadamente os currículos da educação básica e da formação de professores nos cursos de licenciaturas, fundamentados em princípios da pedagogia das competências, vinculando a organização dos sistemas às perspectivas mercadológicas. Sacristán (2000) nos auxilia a compreender que as definições curriculares são iminentemente políticas, pois o currículo serve como instrumento de regulação e ordenamento de sistemas educativos, relacionando-se ao controle da educação formal como um sistema político e ideológico. Assim, nos alerta que o currículo prescrito, inerente aos sistemas educacionais, ao mesmo tempo, relaciona-se com e compõe formas sociais de regulação de relações econômicas, políticas e administrativas e traz implicações não apenas na ordenação do sistema educativo, na estruturação institucional, mas também na prática docente e na formação dos professores.

Pelas definições curriculares, selecionam-se e delimitam-se culturalmente os conhecimentos, saberes, formas de atividades e comportamentos que deverão ser apropriados pelos estudantes, demarcando objetivos formativos e implicações educativas, o que geralmente faz com que já estipulem as metodologias as quais os professores deverão utilizar para alcançar os objetivos estabelecidos (SACRISTÁN, 2000).

Entretanto, a padronização curricular em curso pelas novas orientações legais e a rígida flexibilização curricular - também auxiliada pela definição curricular por áreas gerais do conhecimento - parecem desconsiderar as necessidades sociais da classe trabalhadora brasileira pela aquisição dos conhecimentos elaborados ao longo da história da humanidade (SAVIANI, 2008).

A formação de professores para as escolas do campo se insere no quadro geral da formação de professores, com especificidades que permitem identificar sua inserção nas disputas e contradições que perpassam a formação humana nos tempos atuais.

2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DO CAMPO: RECUPERANDO ELEMENTOS PARA COMPREENDER OS DESAFIOS

A clareza com que os movimentos sociais do campo compreenderam a importância da educação para auxiliar nos processos de transformação social implicou, desde o início, na compreensão da necessidade de pensar e planejar a formação de professores. Um longo processo de reivindicações de políticas públicas que atendessem a essa necessidade desembocou em importantes conquistas, sobretudo pela realização da formação dos professores com a participação dos movimentos sociais em parceria com as Universidades Públicas, com destaque às experiências derivadas do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária) em parceria com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Cursos de formação inicial de professores em nível médio (magistério e cursos normais) e em nível superior (Pedagogia da Terra) e de formação continuada, bem como de formação de militantes culturais para atuar nas turmas de alfabetização e elevação de escolaridade nas áreas de reforma agrária permitiram um amplo processo de experimentação pedagógica, o que possibilitou alinhavar a formação docente com as ricas formulações educacionais derivadas das experiências de luta dos movimentos sociais, tornando possível inclusive a construção de uma pedagogia própria, a Pedagogia do Movimento (CALDART, 2000).

De forma mais ampliada, na relação do MST com outros movimentos sociais e sindicais e com outras organizações governamentais e não governamentais, surgiu o movimento Por Uma Educação Básica do Campo,4 que reivindicava educação básica, inicialmente, mas que logo após passa a reivindicar educação em todos os níveis. Desde o início, além de reivindicar educação para os povos do campo pensada, planejada e organizada com eles, também reivindicou formação dos professores para nela atuarem, seguindo a trajetória do MST e de outros movimentos.

A formação de professores para as escolas do campo segue as mesmas orientações, normas e diretrizes da formação de professores em geral, mas neste processo de lutas garantiu-se a possibilidade de experiências específicas. Para atuar na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, a formação em nível médio teve importante participação (dado o histórico de baixa formação dos docentes das escolas do campo) e segue sendo admitida, ainda que dispositivos legais indiquem a necessidade de formação em nível superior. Porém, em acordo com o disposto na LDB (Lei 9394/96), a formação mínima para essas etapas da educação básica deve ser em cursos superiores, e na atualidade ocorre nos cursos de Pedagogia. Para atuar nos anos finais do ensino fundamental e para o ensino médio, a formação preconizada é em cursos superiores de licenciatura e, por sua especificidade, os movimentos organizados na Articulação Por Uma Educação do Campo reivindicaram uma licenciatura específica para formar professores para as escolas do campo, com forte vínculo com a realidade social dos povos do campo.

Ao olhar para a realidade brasileira, identifica-se que as históricas desigualdades educacionais entre campo e cidade persistem. No Gráfico a seguir, podemos visualizar que a diferença entre a média de anos de estudo entre a população do campo e das áreas urbanas é de 1,8 anos a menos em desfavor dos primeiros.

Gráfico 1 – Número médio de anos de estudo da população de 18 a 29 anos de idade - Brasil 2019

Fonte: o autor com base em Brasil (2019c).

Em relação à formação dos docentes, segundo dados do INEP (BRASIL, 2019c) atualizados em junho de 2021, nas escolas do campo, 29,6% dos professores que atuam na educação infantil não possuem formação em nível superior, enquanto nas áreas urbanas são 16,8%; no ensino fundamental são 24,9% e 9,4% dos docentes sem formação superior, respectivamente; já no ensino médio são 7,6% e 1,9%, respectivamente, enquanto na Educação de Jovens e Adultos são ٤٧,١٪ e ١٠,٣٪ no ensino fundamental, e 8,7% e 2,0% dos docentes sem formação em nível superior, atuando no campo e na cidade, respectivamente (BRASIL, 2019c).

Ainda, identificamos que há uma clara mudança no lócus da formação e no encaminhamento dos estudantes para cursos a distância, com predomínio absoluto das instituições privadas na oferta de matrículas. No Gráfico 2, vemos a evolução das matrículas em cursos de graduação por modalidade de ensino, com destaque à variação entre ٢٠١٨-٢٠١٩ com amento de 45% nas matrículas em cursos de Educação a Distância (EaD) e diminuição de 5,02% nos presenciais.

Gráfico 2 – Número de vagas oferecidas em cursos de graduação, por modalidade de ensino - Brasil, 2014-2019

Fonte: o autor com base em Brasil (2019c).

Os professores que atuam na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental deveriam ter sua formação em nível superior nos Cursos de Pedagogia, tanto para atuar nas escolas do campo quanto para as escolas urbanas. São esses cursos que hoje no Brasil apresentam o maior número de matrículas na modalidade EaD nas instituições particulares.

Gráfico 3 – Frequência de matrículas em cursos de Pedagogia, por categoria administrativa e modalidade de ensino – 2017 – Brasil

Fonte: Brasil (2017 apud Evangelista et al., 2019, p. 29).

Até o ano de 2015, as instituições privadas concentravam 61,7% das matrículas dos cursos de licenciatura. Com a explosão nas matrículas EaD, o que se identifica é que os professores estão sendo formados majoritariamente por instituições mercantis e nessa modalidade. Apesar de não dispormos de dados sobre a formação em serviço dos professores que atuam nas escolas do campo, em nossas visitas às escolas e nas experiências de formação continuada e de ações de extensão com esses professores pudemos identificar que grande parte deles estuda em cursos EaD dessas instituições mercantis.

Em relação à formação inicial de professores em um curso específico para atuar nas escolas do campo, o lançamento do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) foi uma das formas de responder às demandas dos movimentos sociais. Através de editais específicos, induziu a criação de cursos fornecendo apoio temporário às licenciaturas que apresentassem organização do trabalho pedagógico e das atividades escolares alternativos e articulados com elementos preconizados pela Educação do Campo.

Sobre a política de editais que vicejou e ainda está em plena implementação e suas consequências, Evangelista et al. (2019, p. 21) afirmam que

A política de editais, ademais de intermitente, não raro atendeu a interesses de grupos de pressão que lograram transformar em política pública demandas específicas. A abertura de editais para financiamento de temas em alta configurou-se numa potente forma de cooptação de segmentos intelectuais radicados nas universidades, públicas especialmente.

Sobre os editais indutores para a criação da Licenciatura em Educação do Campo, no bojo do Procampo, Carvalho (2011) afirma que foi lançado no “apagar das luzes” do primeiro mandato do Governo Lula, o que evidencia o aprisionamento da educação do campo na política governamental (TITTON, 2010). Inicialmente lançado como experiência piloto em quatro Universidades Públicas, não atendeu a demanda e as necessidades reais apresentadas pelos movimentos sociais, demonstradas pelos dados. Carvalho (2011) afirma que a implementação do Procampo foi mais uma ação da política eleitoral com vistas à reeleição do governo Lula do que uma política lançada com vistas à solução do problema da falta de professores com formação adequada.

No documento “Licenciatura Plena em Educação do Campo” (BRASIL, 2006) são apresentados os fundamento da proposta: corrigir a desigualdade histórica nos níveis educacionais das populações do campo em termos de acesso, da situação das escolas e dos seus profissionais através de ação afirmativa; construção de políticas públicas para a expansão da rede de escolas públicas para ofertar educação básica no e do campo, com a criação de alternativas de organização curricular e do trabalho docente para alterar o quadro atual, buscando garantir a implementação das “Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo”; formulação em sintonia com as demandas provenientes de comunidades, entidades da sociedade civil, movimentos sociais e sindicais e de secretarias de educação de municípios e estados, consubstanciadas no debate atual sobre a Educação do Campo, reconhecendo a necessidade de valorização e de formação específica dos educadores como uma das principais demandas (BRASIL, 2006, p. 1).

Neste documento inicial já era possível identificar a controversa política de atendimento às solicitações de apoio financeiro de propostas de formação docente desde que atendidas as condicionalidades presentes nos editais elaborados pelo governo. O objetivo definido de formar educadores para atuar nas escolas ou outras instituições educativas com as populações do campo exigiu que deveria ser desenvolvida uma formação multidisciplinar com a organização curricular por área de conhecimento.

No documento inicial elaborado pelo Grupo Permanente de Trabalho em Educação do Campo (GPT) do Ministério da Educação (MEC) e nos editais posteriores a indução esteve calcada em alguns pressupostos que demarcaram uma crítica à formação universitária dos professores (EVANGELISTA et al., 2019), ao mesmo tampo em que impunha condicionalidades. As primeiras experiências desses novos cursos ocorreram por meio de quatro Universidades Públicas, através de projetos piloto, em parceria com movimentos sociais e sindicais e com o MEC. Antes mesmo de proceder a uma avaliação dos projetos pilotos, no ano de 2008 foi lançado o Edital n. 02/2008 (BRASIL, 2008), fazendo um chamamento às Instituições de Ensino Superior para que apresentassem propostas de criação de cursos de Licenciatura em Educação do Campo. Em 2009, com o mesmo conteúdo, foi lançado o Edital n. 09/2009 (BRASIL, 2009). Em ambos editais, o objetivo foi apoiar e fomentar “projetos de cursos de licenciatura específicos em educação do campo que integrem ensino, pesquisa e extensão e promovam a valorização da educação do campo e o estudo dos temas relevantes concernentes às suas populações” (BRASIL, 2008, p. 1; BRASIL, 2009, p.1).

O Edital n. 02/2008 estabeleceu que “os projetos apoiados deverão contemplar alternativas de organização escolar e pedagógica” visando contribuir com “a expansão da oferta da educação básica nas comunidades rurais e para a superação das desvantagens educacionais históricas sofridas pelas populações do campo” (BRASIL, 2008, p. 1), realizando uma indevida vinculação de mudanças na “organização curricular e pedagógica” com a “expansão da oferta”, como se não fosse possível expandir a oferta com estratégias distintas daquelas estabelecidas no edital. Além disso, estabeleceu a exigência de que os projetos pedagógicos da Licenciatura em Educação do Campo contivessem, dentre outros, os seguintes aspectos:

3.2. Os projetos apresentados deverão observar a seguinte fundamentação político-pedagógica:

a. considerar a realidade social e cultural específica das populações a serem beneficiadas, devendo ser elaborados com a participação dos Comitês/Fóruns Estaduais de Educação do Campo, onde houver, e dos sistemas estaduais e municipais de ensino;

b. estabelecer condições metodológicas e práticas para que os educadores em formação possam tornar-se agentes efetivos na construção e reflexão dos projetos político-pedagógicos das escolas do campo;

[...]

d. apresentar organização curricular por etapas equivalentes a semestres regulares cumpridas em Regime de Alternância entre Tempo-Escola e Tempo-Comunidade. Entende-se por Tempo-Escola os períodos intensivos de formação presencial no campus universitário e, por Tempo-Comunidade, os períodos intensivos de formação presencial nas comunidades camponesas, com a realização de práticas pedagógicas orientadas;

[...]

g. apresentar currículo organizado de acordo com áreas de conhecimento previstas para a docência multidisciplinar – (i) Linguagens e Códigos; (ii) Ciências Humanas e Sociais; (iii) Ciências da Natureza e Matemática e (iv) Ciências Agrárias, e com duas áreas de habilitação. Recomenda-se, preferencialmente, que as habilitações oferecidas contemplem a área de Ciências da Natureza, a fim de reverter a escassez de docentes habilitados nesta área nas escolas rurais; (BRASIL, 2008, pp.02-03).

Disfarçado pela política de edital, o ataque à autonomia universitária constitucionalmente definido é patente, ainda que se considere que o conteúdo disposto seja importante e necessário. Àquelas instituições que não aceitarem as condicionalidades, não haverá recurso público para expansão da oferta. Àquelas que renunciarem à sua autonomia, haverá recursos, mas temporariamente, pois já no Edital está claro que não serão assegurados permanentemente os recursos necessários à manutenção das atividades: “3.3. Terão prioridade propostas que demonstrem capacidade progressiva de financiamento e manutenção do curso.” (BRASIL, 2008, p. 3).

Por ocasião de mais um edital, em 2012 – Edital de Seleção n. 02/2012- SESU/SETEC/SECADI/MEC – o governo apresentou mais uma condicionalidade às universidades públicas, estabelecendo que àquelas que atendessem ao edital deveriam apresentar projetos político-pedagógicos para o desenvolvimento dos cursos de Licenciatura com no mínimo 120 vagas para cursos novos e 60 vagas para ampliação de cursos já existentes. Ainda, estabeleceu três anos para os cursos, alterando em relação aos editais anteriores que previam quatro anos. Além disso, houve uma mudança na organização por áreas do conhecimento, como vemos no Quadro 1.

Quadro 1 – Áreas do conhecimento para a formação em Licenciatura em Educação do Campo, por Edital

EDITAL N. 2/2008

EDITAL DE CONVOCAÇÃO N. 09/2009

EDITAL DE SELEÇÃO N. 02/2012

(i) Linguagens e Códigos

(i) Linguagens e Códigos

(i) Linguagens e Códigos

(ii) Ciências Humanas e Sociais

(ii) Ciências Humanas e Sociais

(ii) Ciências Humanas e Sociais

(iii) Ciências da Natureza e Matemática

(iii) Ciências da Natureza e Matemática

(iii) Ciências da Natureza

(iv) Ciências Agrárias

(iv) Ciências Agrárias

(iv) Matemática

-

-

(v) Ciências Agrárias

Fonte: Brasil, (2008; 2009; 2012).

Ainda em 2013, a formação de professores para atuar no campo passa a fazer parte do Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo), criado pela Portaria n. 86, de 1º de fevereiro de 2013 (BRASIL, 2013), aglutinando as políticas de educação do campo das diversas frentes de ação. No Pronacampo, o Eixo III: Formação de Professores, absorveu a formação inicial e continuada de professores das escolas do campo, prevendo o atendimento por meio da Educação à Distância, ofertada por instituições públicas de ensino superior e pela Universidade Aberta do Brasil (UAB), prevendo 200 polos e destinação de recursos de apoio à manutenção, por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola. Hoje sabemos que essas previsões legais não se efetivaram, auxiliando a compreender que os discursos emanados através de dispositivos legais cumprem também objetivos implícitos de arrefecer a disposição de luta dos movimentos para alcançar suas reivindicações. Em estudo de Anhaia, essa questão também é abordada:

Podemos constatar que o Pronacampo é a manifestação da disputa pela hegemonia das políticas públicas para o campo, pois ao mesmo tempo que sofre a influência dos movimentos sociais e sindicais do campo, é disputado pelo agronegócio. Essa correlação de forças se evidencia, por exemplo, no lançamento do Pronacampo, no dia 20 de março de 2012, pois contou com a presença da presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), senadora Kátia Abreu, a qual elogiou o Pronacampo e afirmou que “com todo esse investimento, nenhuma escola do campo vai mais fechar nesse país”. Para a presidente da CNA, “a educação no campo é da maior importância para fazer com que o agronegócio seja cada vez mais pujante. Não queremos um País de pobres e miseráveis, queremos que os produtores, independente do tamanho da propriedade, tenham terras produtivas para garantir lucro e dignidade para manter suas famílias” (BRASIL, 2013). A Senadora Kátia Abreu destacou a parceria do SENAR com o MEC, no âmbito do Pronatec, criado com o intuito de promover a inclusão social de jovens e trabalhadores no campo. Das 120 mil vagas disponibilizadas, 50 mil serão destinadas ao SENAR, que promoverá cursos de capacitação voltados principalmente ao empreendedorismo no meio rural (BRASIL, 2013). (ANHAIA, 2018, p. 134).

Enfim, o que se evidencia nesse percurso é que a principal ação do Ministério da Educação5 para buscar superar o quadro desastroso em relação à formação de professores do campo foi a indução para a criação de cursos específicos para formar professores para as escolas do campo. E qual seria a situação atual de disponibilização de vagas nestes cursos? Na Tabela 1, verificamos que, praticamente uma década e meia após o lançamento da política de indução para criação desses cursos, temos ainda um número bastante limitado sendo ofertado.

Tabela 1 – Dados Gerais dos Cursos de Graduação Presenciais e a Distância em Licenciatura em Educação do Campo, por Categoria Administrativa das IES - Brasil - 2019

Curso

Número de

Instituições que oferecem o Curso

Número de Cursos

Matrículas

Vagas Oferecidas - Total

Total

Pública

Privada

Total

Pública

Privada

Total

Pública

Privada

Total

Pública

Privada

Licenciatura em Educação do Campo

39

38

1

57

56

-

8.210

8.172

38

3.343

3.303

40

Fonte: o autor com base em Brasil (2019c).

Já em relação ao número de matrículas, a Tabela 1 permite identificar que se concentram nas instituições públicas. Apesar do Pronacampo ter previsto a oferta de cursos EaD, a Tabela 2 permite visualizar que sua presença é pouco significativa no montante geral de matrículas:

Tabela 2 – Matrículas dos Cursos de Licenciatura em Educação do Campo de Graduação a Distância, por Organização Acadêmica e Categoria Administrativa das IES - Brasil - 2019

Áreas Gerais, Áreas Detalhadas e Tipo de Cursos

Matrículas dos Cursos de Graduação a Distância

Total

Total

Pública

Privada

Federal

Estadual

Municipal

Educação do campo, formação de professor

287

287

-

-

-

Fonte: o autor com base em Brasil (2019c).

Ao que tudo indica, precisamos aprofundar a análise do porquê termos ainda um número pequeno de cursos e de como as especificidades da Educação do Campo são ou não atendidas nesses cursos. Outro aspecto importante a analisar é se há presença dos movimentos sociais e de estudantes, deles provenientes, nos cursos existentes. Esses aspectos não serão desenvolvidos neste artigo, mas registramos sua importância para a compreensão da relação entre específico e geral, seguindo a indicação de Vendramini (2008).

Diante desse quadro, parece-nos que há indicações de que precisamos compreender de forma mais aprofundada as determinações sociais que geram os profundos problemas sociais presentes na área educacional. Pensar a educação e a educação escolar de forma histórica, como nos ensina Fernandes (1966), é reconhecê-las como um problema social, produzidas e produtoras de desigualdades sociais, compostas por contradições. Por isso mesmo os movimentos sociais indicaram em sua origem a necessidade de partir das lutas coletivas para buscar as transformações da escola e da formação.

3 BNCC E BCN-FORMAÇÃO: ESTRATÉGIA DO CAPITAL PARA FORMAÇÃO HUMANA

A Base Nacional Comum Curricular configura-se como instrumento fundamental para a aplicação do projeto burguês no campo da educação. Na contramão das reivindicações históricas dos trabalhadores em educação, através de suas organizações sindicais e acadêmicas, impõe uma padronização e um rebaixamento sem precedentes na formação escolarizada. A reivindicação histórica sempre esteve vinculada a ideia de uma Base Nacional Comum com caráter orientador, garantindo às redes federal, estaduais e municipais e às suas escolas autonomia para a formulação de seus projetos político-pedagógicos com seus currículos construídos pela comunidade escolar.

Entretanto, a BNCC aprovada possui caráter distinto. Estabelece um grau de detalhamento e de definições obrigatórias que inviabiliza o exercício coletivo de definição dos objetivos formativos e de seus necessários conteúdos. Define peremptoriamente o conteúdo da formação, atrelado, obviamente, ao ideário burguês e às demandas formativas do capital. Vejamos na própria definição expressa no documento:

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE).

Ao longo da Educação Básica, as aprendizagens essenciais definidas na BNCC devem concorrer para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de dez competências gerais, que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e desenvolvimento.

Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. (BRASIL, 2018, p. 7-8).

A concepção não poderia estar mais clara: aprendizagens essenciais, direitos de aprendizagem e desenvolvimento e competências já implicam na concepção o que vem sendo caracterizada por Freitas (2014) como neotecnicismo. A estrutura rígida presente no documento, ainda que nomeada de flexível, impõe uma estrutura composta por direitos de aprendizagem e desenvolvimento e campos de experiência na educação infantil e por áreas do conhecimento, competências específicas de área, componentes curriculares e componentes específicos de componentes, definindo ainda unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades para o ensino fundamental. Já no ensino médio, determina áreas do conhecimento, competências específicas de área (língua portuguesa e matemática são definidas como obrigatórias) e habilidades. Em todas as etapas da educação básica, as dez competências gerais estipulam os conteúdos a serem tratados. Vejamos o quadro a seguir as áreas do conhecimento definidas na BNCC:

Quadro 2 – Áreas do conhecimento definidas na BNCC, por etapa da educação básica

Ensino Fundamental

Ensino Médio

Linguagens

Linguagens e suas tecnologias

Matemática

Matemática e suas tecnologias

Ciências da Natureza

Ciências da Natureza e suas tecnologias

Ciências Humanas

Ciências Humanas e Sociais Aplicadas

Ensino Religioso

Fonte: Brasil (2018; 2019a).

Após definir essa estrutura, a BNCC detalha os conteúdos formativos, com claro rebaixamento da formação a uma concepção de desenvolvimento de comportamentos condicionados, atrelando-a a uma perspectiva educacional reacionária. O máximo que é permitido no processo de discussão curricular nas escolas é a escolha de certos aspectos formativos da parte diversificada, dentro de predefinições já estabelecidas. A definição de conteúdos de forma centralizada e estandardizada, entretanto, é componente essencial para permitir o controle via implementação de avaliações externas periódicas. Tanto que a BNCC chega ao nível de estabelecer códigos alfanuméricos para cada conteúdo e habilidade obrigatórios, que serão posteriormente aferidos pelas avaliações externas.

A ideia de que o jovem poderá escolher a trajetória de sua formação, construindo um projeto de vida e elegendo um itinerário formativo de seu interesse, não encontra respaldo na realidade, já que as escolas públicas não oferecerão todos os itinerários, o que fará com que o jovem seja obrigado a cursar o itinerário que a escola oferecer. Com isso, conteúdos essenciais à formação humana não poderão ser acessados por parte dos jovens. Porém, nada impede que nas escolas da classe burguesa todos os itinerários e os conteúdos sejam disponibilizados, o que demonstra o claro caráter de classe desta regulamentação.

A imposição da BNCC para todas as escolas, do campo e da cidade, traz importantes implicações e desafios. O documento estabelece que todas as modalidades de ensino devem seguir suas disposições:

Além disso, BNCC e currículos têm papéis complementares para assegurar as aprendizagens essenciais definidas para cada etapa da Educação Básica, uma vez que tais aprendizagens só se materializam mediante o conjunto de decisões que caracterizam o currículo em ação. [...]

Essas decisões precisam, igualmente, ser consideradas na organização de currículos e propostas adequados às diferentes modalidades de ensino (Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação a Distância), atendendo-se às orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais. (BRASIL, 2019a, p. 16-17).

Já na apresentação das primeiras versões houve reações à imposição da padronização rebaixada imposta pela BNCC. Em documento do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), de 2016, por exemplo, os docentes federais posicionaram-se contra a BNCC. Vejamos:

A crítica fundamental a fazer à BNCC é, pois, que esta não considera as diferenças entre os estudantes, nos seus aspectos culturais, sociais e econômicos, isto é, não há uma discussão sobre a natureza do cidadão que se quer formar. Também retira do trabalho docente a sua condição autônoma, coletiva e criativa na elaboração do currículo e desconsidera a complexidade da vida escolar. A diversidade, nas manifestações autônomas de cada escola, em cada município e em cada estado, é um dos avanços mais importantes que foi garanti do na LDB e é fundamental para a construção de currículos significativos que estejam inseridos na realidade vivenciada pelas escolas. Ao contrário, a proposta das BNCC representa a padronização pela desconsideração da diferença. (ANDES-SN, 2016, p. 9).

Também através da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope), da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) os professores manifestaram-se contra a BNCC. Vejamos, por exemplo, parte da crítica formulada na Anped:

Reiterar que cabe à escola desenvolver competências em relação ao “saber fazer” esvaziando seu conteúdo é uma forma de negar o que há de mais avançado no campo da ciência, da cultura e da arte para a maioria da população brasileira. É negar a escola como lugar de democratização do saber, do conhecimento. A ênfase na aprendizagem para desenvolver competências, sabemos, está articulada com as políticas que o Banco Mundial e outros organismos internacionais vêm desenvolvendo nos últimos tempos, e tem a ver com pensar a escola como se fosse uma empresa. Se o produto da empresa escolar são estas aprendizagens, ela tem que ser medida e avaliada principalmente pelos seus resultados. Não há uma preocupação com a formação integral do estudante, com um desenvolvimento omnilateral dessas novas gerações. (ANPED, 2018).

Após a aprovação da BNCC para a Educação Básica, o avanço sobre a formação docente era evidente. Já em 2019 foi sancionada a Resolução CNE/CP n. 2, de 20 de dezembro de 2019, definindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e instituiu a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), implicando em uma mudança radical na concepção de formação docente. A pedagogia das competências ganha centralidade também na formação de professores, tornando-se o eixo estruturante do currículo dos cursos.

A apropriação da formação docente pelo capital observada já nas contrarreformas educacionais do último período encontrou aqui terreno fértil. A materialização da BNCC exige o controle da formação docente, na perspectiva de sua docilização, de seu engajamento no projeto formativo do capital. A reconversão docente (EVANGELISTA et al., 2019), tem como alvo o controle da formação da classe trabalhadora. Vejamos nos termos do próprio documento: “A BNCC da Educação Básica traz dez competências gerais que devem ser desenvolvidas pelos estudantes [...]. Essas competências estabelecem um paradigma que não pode ser diferente para a formação docente.” (BRASIL, 2019a, p. 15).

Competência é definida como “[...] a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 8). Ou seja, a formação baseada no desenvolvimento de competências é o pressuposto para garantir a aplicação das disposições da BNCC na futura atividade do docente.

Art. 2º A formação docente pressupõe o desenvolvimento, pelo licenciando, das competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica, bem como das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes, quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e emocional de sua formação, tendo como perspectiva o desenvolvimento pleno das pessoas, visando à Educação Integral.

Art. 3º Com base nos mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes competências gerais docentes.

Parágrafo único. As competências gerais docentes, bem como as competências específicas e as habilidades correspondentes a elas, indicadas no Anexo que integra esta Resolução, compõem a BNC-Formação. (BRASIL, 2019a).

O que vai sendo delineada não é apenas uma alteração metodológica, como alardeado em muitos círculos, mas sim uma concepção de formação docente compreendida como treinamento, vinculada às atividades práticas. Com isso, muda o papel do professor, que passa a ser um organizador de atividades predefinidas que gerem aprendizagens essenciais (ao mercado de trabalho, que passa a definir o conteúdo útil que deve se fazer presente na formação do estudante). Ou seja, as competências precisam de um professor treinado, condicionado às novas atividades que deverá desempenhar (controle de processos, flexibilidade de pensamento, empreender, aplicar procedimentos etc.).

O controle sobre a formação se relaciona diretamente com qual formação está sendo projetada para a classe a trabalhadora. Impedir que se possa apreender as reais relações sociais de produção e compreender o processo de produção social da existência é fundamental para a burguesia, que deve interditar qualquer iniciativa de formação de um pensamento crítico. Com isso, garante-se a formação limitada, com conhecimentos definidos pelos vínculos da educação com o mercado de trabalho, preparando para viver em um mundo de subemprego, de trabalho intermitente, de trabalho precarizado, de incertezas, sem direitos e com poucas expectativas de mobilidade social (ANTUNES, 2018).

A repercussão desse ideário pode ser evidenciada pelas leituras do Parecer CNE/CP n. 22/2019 e da Resolução CNE/CP n. 02/2019, que demonstram um modelo de formação calcado na epistemologia da prática, estabelecendo o saber-fazer como elemento estruturante da formação. O rebaixamento teórico e a interdição do desenvolvimento intelectual se expressam nas três dimensões presentes no documento, fundadas na pedagogia das competências: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional. Vejamos o que estabelece o Art. 4º:

§ ١º As competências específicas da dimensão do conhecimento profissional são as seguintes:

I - dominar os objetos de conhecimento e saber como ensiná-los;

II - demonstrar conhecimento sobre os estudantes e como eles aprendem;

III - reconhecer os contextos de vida dos estudantes; e

IV - conhecer a estrutura e a governança dos sistemas educacionais.

§ ٢º As competências específicas da dimensão da prática profissional compõem-se pelas seguintes ações:

I - planejar as ações de ensino que resultem em efetivas aprendizagens;

II - criar e saber gerir os ambientes de aprendizagem;

III - avaliar o desenvolvimento do educando, a aprendizagem e o ensino; e

IV - conduzir as práticas pedagógicas dos objetos do conhecimento, as competências e as habilidades.

§ ٣º As competências específicas da dimensão do engajamento profissional podem ser assim discriminadas:

I - comprometer-se com o próprio desenvolvimento profissional;

II - comprometer-se com a aprendizagem dos estudantes e colocar em prática o princípio de que todos são capazes de aprender;

III - participar do Projeto Pedagógico da escola e da construção de valores democráticos; e

IV - engajar-se profissionalmente, com as famílias e com a comunidade, visando melhorar o ambiente escolar (BRASIL, 2019a, p. 33).

A essas competências docentes articula-se um conjunto de habilidades definidas para concretizar a atuação docente. A política de formação docente, assim, está calcada nos processos de controle e de regulação exteriores ao docente como a prática docente, ou seja, o controle sobre o que o professor deverá “ensinar” se relaciona com o tipo de conhecimento/atitude/valores/habilidades ele deve adquirir em sua formação. Por isso, a política de formação presente na BNC-Formação expressa o que está presente como concepção formativa na BNCC, calcando todo processo educativo em saberes, métodos e técnicas predefinidos, detalhados nos documentos que já buscam ser o currículo escolar pelo seu nível de articulação e detalhamento. Com isso, a autonomia docente calcada nos conhecimentos do professor vai sendo tolhida, constrangendo a possibilidade de um trabalho crítico.

A apresentação desses documentos como expressão de novas necessidades formativas para se viver no século XXI, no entanto, oculta que esse não é um novo modelo de formação, em que pese sua profunda funcionalidade ao atual estágio de desenvolvimento do capital. Os fundamentos dessa “nova” proposta encontram eco no início do século passado, na pedagogia escolanovista, e se fundamenta na educação tecnicista (SAVIANI, 2008). Entretanto, vem embalada por uma novilíngua que recupera o ideário do aprender a aprender e suas pedagogias, reabilitando o pragmatismo e visando apenas manter presente no processo de formação o tipo de conhecimento restrito e fragmentário, útil ao mercado, mas inútil para auxiliar nos processos de transformação social. Ainda que embalados por termos novos, o velho projeto burguês transparece. Por isso, atacar a formação docente universitária tem sido uma de suas prioridades.

A imposição desse modelo, que pela perspectiva legal deverá ser assumido por todas as instituições formadoras, encontra e seguirá encontrando resistência. O grande interesse do capital de aproveitar a formação também como lócus para sua valorização, além de controlar seu conteúdo, é antagônico aos interesses históricos da classe trabalhadora. No confronto mais geral entre capital e trabalho, ainda que no momento de uma correlação de forças favorável ao primeiro, vão sendo evidenciados quais interesses subjazem à proposta e os sujeitos a que atendem.

Parece óbvio que a formação humana não está no centro das intervenções do conglomerado que produziu, por meio de seus acólitos exemplares, o Parecer para as Diretrizes…, assim como o Projeto de Resolução CNE/CP n. XXX/2019, e tudo o que elas significam para o preparo do magistério nacional. Quatro sentidos emergem como fundamentais: 1) elas são importantes para a formação da mentalidade do professor por meio de conteúdos, métodos de ensino e material didático em sentido amplo, incluídos aqueles destinados à modalidade EaD; 2) elas são importantes por materializarem a reforma curricular da Educação Básica (BNCC) nas licenciaturas, retornando ao chão da escola mediante o trabalho docente; 3) elas são importantes por constituírem – no nível superior e no básico – um vastíssimo mercado, cativo, de produtos educativos que vão de material didático à bolsa de estudos; 4) os três sentidos anteriores articulam-se organicamente ao quarto: elas são importantes porque concretizam na formação e no trabalho docente nervos centrais – ao lado de outros – para a formação da classe trabalhadora no Brasil. A síntese preliminar a que chegamos é a de que estamos frente a um movimento de produção de hegemonia burguesa que lança mão da escola, em todos os seus níveis, para produzir força de trabalho dócil, a baixo custo e por meio de formação rebaixada do ponto de vista da aquisição do conhecimento científico. Nesse caso, o Curso de Pedagogia ganha realce, pois se constitui na licenciatura que prepara professores para as séries iniciais do Ensino Fundamental, ou seja, concentra-se na formação da massa de sujeitos disponíveis para o trabalho simples e emocionalmente estáveis para suportar as condições brutalmente desumanizadoras, ademais de disponíveis à reconversão segundo as mutantes formas de trabalho, processo no qual as competências socioemocionais assumem centralidade. Dirigir a formação de cabeças e corpos submissos é projeto intransferível do capital. (EVANGELISTA; FIERA; TITTON, 2019).

Fica evidente, então, que a formação docente não deve ser pensada como se decorresse apenas das ações da esfera estatal, pois a política de formação docente vigente no Brasil tem a forte presença dos APH burgueses, desde a formulação da política até sua aplicação por uma vasta rede de associações, empresas, think thanks etc. No período da pandemia, a “janela de oportunidades” que se abriu ao projeto burguês impactou fortemente as atividades formativas, pela adesão massiva ao ensino remoto, permitindo a entrada de plataformas digitais, materiais didáticos, adesão ao ensino híbrido etc. Porém, essa janela não se abriu para todos, como detalha Evangelista (2021): estavam nela o capital do ensino superior; o Estado; os APH; os bancos; as editoras; as empresas de tecnologia; os fundos de investimento. O seja, o capital e seus representantes.

Evidencia-se que há um movimento histórico no qual o projeto educacional do capital avança baseado nas formulações que vem desde a década de 90 do século passado, entremeado com novos conceitos que atualizam a concepção e se apresenta no novo ativismo burguês, permitindo ao capital apropriar-se das formulações e reivindicações construídas também pelos trabalhadores, garantindo com a isso a hegemonia burguesa. Novamente, Evangelista, Fiera e Titton (2019) alertam:

Cada vez mais as organizações aqui referidas [APH] atuam no Aparelho de Estado e no interior da Sociedade Civil tendo em vista pautar as políticas sociais que lhes interessam – não apenas as que as beneficiam diretamente, mas aquelas que fazem a mediação em direção às suas demandas, caso da formação da força de trabalho, atingida, na escola, pela ação docente, pela gestão e por uma miríade de produtos destinados aos alunos e ao professor para “ajudá-lo” em seu ofício. À medida em que a hegemonia burguesa se consolida e se capilariza na educação pública, vamos perdendo de vista os valores e conhecimentos universais que devem orientar a formação humana.

Nunca é demais destacar que há uma gritante ausência nas formulações da BNC-Formação: não se fazem presentes nela dimensões fundamentais da formação docente, como as condições de trabalho, de salário, carreira, afastamentos para formação continuada, dentre outras. Essas ausências muito dizem acerca do processo em curso.

4 RECUPERANDO POSIÇÕES HISTÓRICAS CONSTRUÍDAS NAS LUTAS SOCIAIS VISANDO IDENTIFICAR TENDÊNCIAS PARA ORIENTAR AS AÇÕES FUTURAS

Ao longo da história, diversos foram os momentos e as pautas apresentadas pelos movimentos dos educadores pensando nos processos de formação inicial e continuada como fases do trabalho docente. Uma das estratégias para uma sólida formação articulada às necessidades impostas pela realidade brasileira foi de reivindicar a formação de professores com uma Base Comum Nacional. Na formulação defendida pela Associação Nacional pela Formação de Professores (Anfope), a defesa de uma Base Comum Nacional, no entanto, não encontra semelhança alguma com o que preconiza a recente Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BRASIL, 2019b). Entretanto, a burguesia brasileira, por meio de seus representantes na estrutura do Estado e da ação de suas APH se apropriou da ideia geral de uma Base Comum para impor seu projeto educacional, gerando confusão entre os educadores que acabam sendo induzidos a acreditar que a BNC-Formação burguesa tem como fundamento suas reivindicações sistematizadas ao longo de sua árdua luta.

A posição da Anfope (2008) preconiza que uma Base Comum Nacional deve ser entendida como um conjunto de princípios orientadores das condições de formação que poderiam estar presentes nos processos formativos, segundo deliberação dos coletivos escolares. D’Agostini e Titton (2014) sintetizam a posição da Anfope indicando que esta constitui eixos gerais que deveriam propiciar no âmbito da formação inicial e formação continuada:

1) o desenvolvimento de uma sólida formação teórica e interdisciplinar no campo da educação, que permita apreender seus fundamentos históricos, políticos e sociais e o domínio dos conteúdos científicos a serem ensinados pela escola (português, matemática, artes, ciências, história, geografia, química, física, educação física, entre outros);

2) compreensão dos processos de desenvolvimento das crianças, jovens e adultos em suas múltiplas dimensões: cognitiva, afetiva, estética, corporal, cultural, artística, ética nos diferentes níveis e modalidades de ensino;

3) a capacidade de conhecer a realidade, necessidade e aspirações da sociedade a que pertence, identificando as diferentes forças e seus interesses de classe, captando contradições e perspectivas de superação das dificuldades e problemas que envolvem a Educação Básica;

4) a apropriação do processo de trabalho pedagógico, criando condições de exercer a análise crítica do trabalho docente no contexto do desenvolvimento atual da sociedade brasileira e da realidade educacional. Este princípio de formação requer recuperar a importância do espaço de formação para análise da abrangência e delimitação do campo da Educação, dos métodos de estudo, do seu status epistemológico, recorrendo às diversas áreas e campos de conhecimento para construir teorias pedagógicas voltadas para o aprendizado de novas formas criativas, interrogadoras e emancipadoras do trabalho humano. A sólida formação teórica se contrapõe aos processos de desqualificação e degradação da profissão presentes no aligeiramento e minimização da formação docente proposta pelas políticas de formação. (D’AGOSTINI; TITTON, 2014, p. 170).

Ao analisarmos estes eixos, a relação, como nos lembra Mészáros (2005), é fundamental ao destacar que há dois âmbitos centrais para a formação: nas instituições formais educacionais e nas próprias relações de trabalho; nos estreitos limites do sociometabolismo do capital, a primeira deve complementar a segunda, gerando consentimento e qualificando nos estreitos limites demandados pelo processo de produção e reprodução social.

A Anfope (2008) defende que a formação docente seja parte constitutiva de um sistema nacional de educação, que para sua construção deveria considerar:

a) o reconhecimento da importância e da especificidade do trabalho docente;

b) a articulação necessária entre a teoria e a prática na sua formação;

c) a relevância de considerar na formação, a realidade social e cultural na qual se inserem a escola e os estudantes;

d) a necessidade da valorização e do fortalecimento das licenciaturas nas Universidades, entendendo-as como espaços privilegiados de formação e profissionalização qualificada da juventude e dos adultos que nela se encontram;

e) a responsabilidade real e concreta do poder público pelos processos de formação inicial e continuada dos docentes em consonância com as atuais demandas educacionais e sociais e com as mudanças no campo do conhecimento;

f) a efetiva valorização e profissionalização dos trabalhadores da educação no País, revelando as formas de materialização dessa valorização por meio de políticas e de sua consolidação nos âmbitos da carreira, do salário, das condições de trabalho, entre outros;

g) reafirmar o compromisso do Estado com a formação e a valorização do magistério.

Neste conjunto sintético de posições defendidas pela Anfope, também visualizamos muitos dos aspectos defendidos historicamente pelos movimentos sociais do campo. Entretanto, para nós é fundamental não tratar a Licenciatura em Educação do Campo como se fosse o curso que contempla as reivindicações históricas dos movimentos sociais do campo. Se é verdade que sua existência se deve às reivindicações e lutas desses movimentos, também é que sua configuração nem sempre absorveu o conteúdo das reivindicações. Ou seja, na correlação de forças entre as classes sociais, no processo de definição houve a busca de consensos, que em muitos casos forneceu a oportunidade para que se utilizasse da força dos movimentos para impor-lhes um projeto formativo que não contém suas concepções, mas se apropria de parte de seu arcabouço conceitual, ressignificando-o, para veicular um projeto formativo adverso.

A poderosa crítica que os movimentos sociais construíram à fragmentação do conhecimento na escola, por exemplo, esteve na base da formulação da Licenciatura em Educação do Campo organizada por áreas do conhecimento, visando criar condições de integração dos conhecimentos disciplinares nas grandes áreas. Porém, também está presente nesta forma de organização curricular a diluição das especificidades e a superficialidade no trato com o conhecimento científico que historicamente se constituiu em disciplinas escolares, fragilizando a formação de professores. Agora, com as novas disposições advindas da BNCC e da BNC-Formação, o alerta que já vinha sendo feito de que essa formação por área poderia ser apropriada de forma pragmática e presentista e que seria instrumento para a formação do professor flexível, demandado pelo capital, ressurge com força.

Como nos alerta Evangelista (2021), o processo real de produção da docência se impõe ao ideário defendido quando não há organização coletiva que reverta a desvantagem na correlação de forças entre capital e trabalho, em desfavor do segundo. Nesse processo, o professor vai sendo desintelectualizado, assumindo novas funções e atuando dentro das disposições que lhe são impostas externamente, internalizando aspectos da concepção burguesa e sendo submetido às disposições da pedagogia das competências. Assim, a reconversão docente vai sendo produzida, para o que as ações neste momento histórico também se dão:

a) pelas instituições de ensino médio e superior, pela formação inicial, prioritariamente; b) pelo consumo de conteúdo via material didático, soluções digitais, livros e todas as formas presentes no processo de suporte da relação ensino-aprendizagem; c) pela execução de diretrizes estatais dos vários entes federados, BNCC-BNC formação; d) pelas estratégias de formação continuada, públicas ou privadas; e) pela pós-graduação; f) pelo sistema de avaliação; g) pela formas de financiamento, a exemplo dos Editais; h) pelos Aparelhos Privados de Hegemonia; i) pelas relações de trabalho. (EVANGELISTA, 2021).

Reconhecer, compreender e enfrentar este processo é necessário se o objetivo é materializar as concepções construídas nas lutas dos movimentos sociais dos trabalhadores.

5 À GUISA DE CONCLUSÃO, ALGUMAS REFLEXÕES NECESSÁRIAS

A BNC-Formação impõe um profundo processo de reorganização, aportando novas exigências e modificações no funcionamento da política de formação docente. Como política que já formata um currículo para a educação básica e estabelece os elementos centrais da organização e do conteúdo da formação docente, pautada em competências e habilidades requeridas pelo projeto societário vigente, evidencia que o que prevalece é a lógica do capital para a formação do trabalhador adequado ao seu processo de acumulação.

Na contramão do que defendem os movimentos dos docentes em consonância com os movimentos sociais do campo, elide a formação humana ao ignorar as necessidades reais (condições de vida, de trabalho, culturais, modos de vida, saberes e conhecimentos etc.) dos trabalhadores. Com isso, acentua já no processo de formação a expropriação do conhecimento docente, organizando um sistema de controle da formação e do trabalho docente.

Resta evidente, sobretudo ao considerarmos quais são as históricas lutas dos movimentos sociais, que o projeto de formação de professores emanado pelos dispositivos do Estado confronta e antagoniza com a formação humana, mas visa impor e induzir uma formação para o trabalho simples e, para isso, a reflexão crítica sobre a realidade é substituída pelo praticismo típico das pedagogias do aprender a aprender.

A reflexão crítica e a leitura da realidade social atual nos indicam que a aderência maior da formação realizada nas Licenciaturas em Educação do Campo por áreas do conhecimento às proposições reacionárias de reorganização da educação básica por áreas do conhecimento presente na BNCC pode gerar um novo ciclo de disputas na formação docente no interior destes cursos e pode aprofundar os problemas para que os formados consigam não se subordinar à nova lógica do trabalho flexível e precarizado.

Emerge a necessidade de aprofundamento da reflexão e a organização coletiva para resistir às propostas que chegam pautadas no canto da sereia das trilhas de aprendizagem da BNC-Formação e do Reuni Digital ou dos itinerários formativos na BNCC, como se esses fossem pautados nas escolhas dos indivíduos. Na Educação do Campo, a construção de sua fundamentação esteve calcada originariamente nas lutas sociais da classe trabalhadora organizada em movimentos sociais. Quando passou a ampliar sua formulação a partir da estratégia de ampliação das articulações com outros setores, como governos, organizações não governamentais, também passou a assumir contradições que na materialidade da luta social não se fariam presentes. Isso serve de alerta para essa nova fase de disputas que se acentuam, para que não nos deixemos ser enredados no cipoal conceitual e menos ainda nas armadilhas instaladas no processo de formação da classe trabalhadora pelo Estado.

Outros desafios a serem pensados, derivados das imposições da pandemia, e que aumentam quando referidos à educação do campo, são as realizações de atividades mediadas pelas plataformas digitais, como é o caso dos estágios, do acompanhamento do Tempo Comunidade realizado de forma remota, que tendem a permanecer no retorno às atividades presenciais. Como nos lembra Freitas (2021), “A tecnologia não é, necessariamente, nossa inimiga, no entanto, não podemos dizer o mesmo do projeto educativo que ela traz embutido.” O ensino híbrido vem sendo engendrado como solução para uma série de problemas derivados da não priorização da educação nas políticas de financiamento. Três dimensões do ensino híbrido, que se articulam ao disposto na BNCC e na BNC-Formação, devem ser refletidas e enfrentadas: ênfase no projeto de vida, orientado por um mentor individual; ênfase em valores e competências amplas tanto cognitivas quanto socioemocionais; equilíbrio entre aprendizagem individual e coletiva para desenvolver a competências de colaboração. Essas dimensões podem induzir aspectos importantes, como o tempo comunidade, a serem ressignificados. Também a adesão à proposta de curricularização da extensão, assentada na organização imposta pela BNC-Formação, pode ser fatal para um projeto crítico de formação.

Para finalizar, pensamos que hoje temos mais desafios e problemas a serem corretamente identificados e enfrentados para buscar respostas, do que soluções prontas, às grandes demandas que se colocam. Mas temos acúmulo histórico que não pode ser desprezado. Diante disso, podemos considerar que o desafio posto aos movimentos sociais do campo e da cidade, aos sindicatos dos trabalhadores, às universidades públicas, aos estudantes e professores, é compreender esse processo e construir a resistência para não implementar o projeto de formação burguês, antagonizando-o nas ações coletivas e promovendo uma formação pautada nas exigências e necessidades sociais da classe trabalhadora, visando contribuir com a emancipação humana.

REFERÊNCIAS

ANDES-SN. Projeto do Capital para a Educação: análise e ações para a luta. Brasília: ANDES-SN, 2016.

ANHAIA, E. M. de. Formação de professores: realidade, contradições e possibilidade do curso de Licenciatura em Educação do Campo/UFFS – Campus de Laranjeiras do Sul – 2012/2017. 2018. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: UFSC, 2018.

ANFOPE. A ANFOPE e os desafios de um sistema nacional de formação de profissionais da educação. Goiânia, 2008.

ANPED. Nota ANPEd: A proposta de BNCC do ensino médio: alguns pontos para o debate. 2018. Disponível em: https://www.anped.org.br/news/nota-anped-proposta-de-bncc-do-ensino-medio-alguns-pontos-para-o-debate. Acesso em: 23 set.2021.

ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

BRASIL. Licenciatura (plena) em Educação do Campo (texto não publicado). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Alfabetização e Diversidade Coordenação Geral de Educação do Campo, Brasília, 2006.

BRASIL. Edital n. 2, de 23 de abril de 2008. Chamada pública para seleção de projetos de instituições públicas de ensino superior para o PROCAMPO. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2008.

BRASIL. Edital de convocação nº 09, de 29 de abril de 2009. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2009.

BRASIL. Edital de seleção Nº 02/2012 - SESU/SETEC/SECADI/MEC. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2012.

BRASIL. Portaria n. 86, de 1º de fevereiro de 2013. Institui o Programa Nacional de Educação do Campo - PRONACAMPO. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2013.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular – Educação Infantil e Anos Iniciais. Brasília: MEC, 2018.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular – Ensino Médio. Brasília: MEC, 2019a.

BRASIL. Resolução CNE/CP n. 2, de 20 de dezembro de 2019. Brasília: CNE, 2019b. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2019-pdf/135951-rcp002-19/file. Acesso em: 27 set. 2021.

BRASIL. Sinopse Estatística da Educação Superior 2019. INEP, 2019c.

Disponível em: https://download.inep.gov.br/informacoes_estatisticas/sinopses_estatisticas/sinopses_educacao_superior/sinopse_educacao_superior_2019.zip. Acesso em: 23 set. 2021.

CALDART, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

CARVALHO, M. S. Realidade da Educação do Campo e os desafios para a formação de professores da educação básica na perspectiva dos movimentos sociais. 2011. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal da Bahia, Salvador: UFBA, 2011.

D’AGOSTINI, A.; TITTON, M. Política de formação de professores para a Educação do Campo: limites e possibilidades. In: Revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 6, n. 1, p. 155-173, jun. 2014.

DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.

EVANGELISTA, O. et al. Desventuras dos professores na formação para o capital. Campinas: Mercado de Letras, 2019.

EVANGELISTA, O. Aula Inaugural 2021 - PPGE/UFJ com Profa. Dra. Olinda Evangelista. 1 vídeo. 130 min 8 seg. Transmitido ao vivo em 12 jun. 2021 no Canal do PPGE UFJ no Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m5RQt4ivpbY. Acesso em: 21 set. 2021.

EVANGELISTA, O.; FIERA, L.; TITTON, M. Diretrizes para formação docente é aprovada na calada do dia: mais mercado. Florianópolis: UaE, 2019. Disponível em: https://universidadeaesquerda.com.br/debate-diretrizes-para-formacao-docente-e-aprovada-na-calada-do-dia-mais-mercado/. Acesso em: 29 set.2021.

FERNANDES, F. Educação e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966.

FREITAS, L. C. de. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out.-dez., 2014.

FREITAS, L. C. de. Neotecnicismo digital. Campinas, 2021. Disponível em: https://avaliacaoeducacional.com/2021/07/11/neotecnicismo-digital/ Acesso em: 19 set.2021.

LEHER, R. Um novo senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo. Revista Outubro, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 19-30, 1999.

MÉSZÁROS, I. A Educação para além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

RAMOS, M. N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001

SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.

SAVIANI, D. A pedagogia no Brasil: história e teoria. Campinas: Autores Associados, 2008.

SHIROMA, E.O. O Estado como cliente: interesses empresariais na coprodução da inspeção escolar. Florianópolis: UFSC, 2015.

TITTON, M. O limite da política no embate de projetos da educação do campo. 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis: UFSC, 2010.

VENDRAMINI, C. R. A Educação do Campo na Perspectiva do Materialismo Histórico Dialético. Brasília, 2008. Disponível em: https://artenocampo.files.wordpress.com/2014/07/vendramini-educac3a7c3a3o-do-campo.pdf Acesso em: 21 set. 2021.

Endereço para correspondência: Centro de Ciências da Educação, Sala 105 do Bloco D - Campus Universitário da UFSC, Bairro Trindade, Florianópolis, SC, 88010-900; m.titton@ufsc.br


1 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina; Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia; m.titton@ufsc.br

2 Para aprofundamento sobre a pedagogia das competências, ver Ramos (2001).

3 Sobre as pedagogias do aprender a aprender, ver Duarte (2001).

4 Para um panorama histórico, recomendamos os Cadernos da coleção Por uma Educação do Campo.

5 É importante lembrar que o Pronera, que possui maior relevância histórica, é um programa vinculado ao Incra, fora do Ministério da Educação.