https://doi.org/10.18593/r.v47.29363

Prática educativa em salas multisseriadas do campo a partir dos temas geradores de Paulo Freire

Educational practice in multigrade classes in the field from the generating themes of Paulo Freire

Práctica educativa en aulas multigrado en el campo a partir de los temas generadores de Paulo Freire

Débora Monteiro do Amaral1

Universidade Federal do Espírito Santo; Docente do Mestrado Profissional em Educação.

https://orcid.org/0000-0002-8397-864X

Irani da Silva de Jesus2

Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo do Espírito Santo (GEPECES); Pedagoga nas Escolas do Campo do Município de Linhares/ES. https://orcid.org/0000-0002-0439-5543

Resumo. Este artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado desenvolvida durante os anos de 2018-2020 e que buscou investigar o processo de ensino-aprendizagem em sala multisseriada de uma escola do campo no município de Linhares/ES na busca por uma atuação pedagógica humanizadora a partir dos temas geradores na perspectiva de Paulo Freire. Justifica-se pela relevância que representa para a educação do nosso país, no sentido de deixar explícito, para a sociedade, a importância da valorização da Educação do Campo e das salas multisseriadas, porque nos deparamos com um cenário em que muitas escolas multisseriadas vêm sendo fechadas, o que representa um retrocesso perante toda luta e resistência defendidas pelos movimentos sociais, que buscam garantir uma Educação Básica do campo com foco na realidade dos (as) camponeses (as). O referencial teórico-metodológico utilizado fundamenta-se nos conceitos de Salomão Hage (2014), que aborda conhecimentos relevantes sobre as salas multisseriadas e suas características, Roseli Caldart (2004), refletindo sobre a luta histórica por uma Educação do Campo e a partir das ideias de Paulo Freire (2019, 2018), que discute sobre o processo de ensino-aprendizagem em uma perspectiva crítica libertadora.

Palavras-chaves: salas multisseriadas; educação do campo; ensino-aprendizagem; temas geradores.

Abstract. This article is the result of a master’s degree research developed throughout the years 2018-2020 and which sought to investigate the teaching-learning process in a multigraded classroom of a rural school in the city of Linhares/ES in the search for a humanizing pedagogical performance based on the generative themes in the perspective of Paulo Freire. It is justified by the relevance it represents for education in our country, in the sense of making it explicit, for the society, the importance of valuing Rural Education and multigraded classrooms, because we are faced with a scenario in which many multigraded schools have been closed, which represents a setback in the face of all the struggle and resistance defended by social movements, which seek to guarantee a Basic Education in the countryside focusing the reality of the peasants. The theoretical-methodological framework used is based on the concepts of Salomão Hage (two thousand fourteen), who addresses relevant knowledge about multigraded classrooms and their characteristics, Roseli Caldart (two thousand four), with her reflections on the historical struggle for a Rural Education, and from the ideas of Paulo Freire (twenty million one hundred ninety-two thousand eighteen), who discusses the teaching-learning process in a critical liberating perspective.

Keywords: multigrade rooms; rural education; teaching-learning; generative themes.

Resumen. Este artículo es el resultado de una investigación de maestría desarrollada durante los años 2018-2020 y que buscó indagar en el proceso de enseñanza-aprendizaje en un aula multigrado de una escuela rural de la ciudad de Linhares / ES en la búsqueda de una actuación pedagógica humanizadora desde de los temas generativos en la perspectiva de Paulo Freire. Se justifica por la relevancia que representa para la educación en nuestro país, en el sentido de hacer explícita, para la sociedad, la importancia de valorar la Educación Rural y las aulas multigrado, porque estamos ante un escenario en el que se han cerrado muchas escuelas multigrado, lo que representa un retroceso ante toda la lucha y resistencia que defienden los movimientos sociales, que buscan garantizar una Educación Básica en el campo con enfoque en la realidad de los campesinos. El marco teórico-metodológico utilizado se basa en los conceptos de Salomão Hage (2014), quien aborda conocimientos relevantes sobre las aulas multigrado y sus características, Roseli Caldart (2004), con sus reflexiones sobre la lucha histórica por una Educación Rural y desde las ideas de Paulo Freire (2018,2019), que discute la proceso de enseñanza-aprendizaje en una perspectiva crítica liberadora.

Palabras clave: aulas multigrado; educación rural; enseñanza-aprendizaje; temas generativos.

Recebido em 04 de outubro de 2021

Aceito em 04 de abril de 2022

1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta reflexões desenvolvidas em uma pesquisa de mestrado realizada durante os anos de 2018-2020 que dissertou sobre o processo de ensino-aprendizagem em salas multisseriadas em uma escola do campo no município de Linhares/ES. Pretendeu-se, com isso, investigar as possíveis contribuições freireanas para pensar o processo de ensino-aprendizagem nestas salas.

Sabe-se que o ensino-aprendizagem em escolas do campo e em salas multisseriadas é colocado em questão e é pontuado por várias eventualidades, visto que o processo para a consolidação da aprendizagem é desafiador, sendo que a alfabetização em nosso país, até hoje, apresenta-se como um dos maiores desafios da área educacional brasileira. Sobre essa realidade, Hage (2014, p. 1174) destaca que “[...] a da maioria das escolas brasileiras com salas multisseriadas revela grandes desafios para que sejam cumpridos os preceitos constitucionais e os marcos legais operacionais anunciados nas legislações específicas”.

Nesse aspecto, fica em evidência que a prática educativa3 é complexa e multifacetada, em que diversos fatores estão envolvidos, sendo que o desenvolvimento da leitura, os diferentes olhares são uns dos importantes destaques que não podem passar despercebidos.

Há ainda a diversidade entre os(as) estudantes que dependerá do sujeito para desenvolvê-la de acordo com sua formação pessoal, suas experiências adquiridas e habilidades ao longo de seu desenvolvimento integral. É essencial entender a complexidade que perpassa o processo de ensino-aprendizagem, além dos aspectos da prática pedagógica nas salas multisseriadas em escolas do campo. A primeira percepção é que a Educação do Campo em salas multisseriadas é uma modalidade negativa, afinal como poderia dar certo, várias turmas juntas mediadas por apenas um(a) professor(a)? Parece até impossível associar qualidade ao ensino. Em sua maioria, as escolas do campo organizam-se no sistema de multisseriação, no qual crianças de diferentes anos e níveis de ensino são agrupadas na mesma classe. Estas se constituem onde há poucos(as) aluno(as) para cada ano escolar e nos locais em que as comunidades exigem escolas em suas proximidades.

Assim, surgem questionamentos sobre o processo de ensino-aprendizagem, levando-nos a indagar: como acontece o processo de ensino-aprendizagem em salas multisseriadas de escolas do campo? Existem fragilidades nesse processo? Qual a visão dos(as) educadores(as) que atuam em salas multisseriadas do campo? Como possibilitar uma educação que seja crítica libertadora para os(as) estudantes no contexto das salas multisseriadas?

Nesta perspectiva, buscou-se obter com o estudo, melhor compreensão dos questionamentos, com o intuito de pensar em propostas de intervenção pedagógica a partir desta realidade, levantando problematizações acerca da Educação do Campo e de salas multisseriadas, visto que, segundo Caldart (2004), Educação do Campo é fruto de muita luta dos movimentos sociais e de articulações por uma Educação Básica do campo de qualidade. Esta pesquisa se justificou pela relevância que representa para a educação do nosso país, no sentido de deixar explícito, para a sociedade, a importância da valorização da Educação do Campo e das salas multisseriadas, pois ainda continuam sendo a única possibilidade de oferta de ensino para algumas comunidades campesinas.

Mesmo depois de anos de lutas, visando conquistar uma Educação Básica de qualidade para a população que vive no campo, vivemos em um cenário em que muitas dessas escolas vêm sendo fechadas. Parece haver um retrocesso perante toda essa luta e resistência defendido pelos movimentos sociais que buscavam garantir uma Educação Básica do campo de qualidade que priorizasse a realidade dos(as) camponeses (as). Diante do retrocesso pelo qual passa a Educação do Campo, fica evidente a necessidade de produzir conhecimento referente ao processo de ensino-aprendizagem em salas multisseriadas, com o intuito de colocar em evidência suas potencialidades, que nesse contexto de fechamento são os principais alvos, em que, de forma empírica e a partir dos estudos realizados, alguns acreditam que a causa das mazelas do ensino nas escolas do campo são as salas multisseriadas. Desse modo, o trabalho proposto pretende refletir questões relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem em salas multisseriadas em escolas do campo, já que são uma realidade presente nas escolas brasileiras do campo e é de suma importância compreendermos como são organizadas essas classes e o trabalho pedagógico.

2 AS SALAS MULTISSERIADAS COMO SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA

Segundo o dicionário brasileiro online de português o ato de resistir significa “ação ou efeito de resistir, de não ceder nem sucumbir. Aptidão para suportar dificuldades. Defesa contra um ataque: opor forte resistência a assaltantes. Recusa de submissão à vontade de outrem; oposição, reação”. O termo também pode se referir a resistência em caráter político, conforme posto a seguir “o termo pode também se referir a qualquer esforço organizado por defensores de um ideal comum contra uma autoridade constituída”.

As salas multisseriadas vêm passando por esse processo de resistir ao longo dos anos, lutando contra os fechamentos que são cada dia mais recorrentes. A justificativa é sempre a mesma: “pouca quantidade de alunos, não compensa manter”. Com isso, vale destacar o breve histórico das salas multisseriadas, suas características e os desafios enfrentados, em que iniciaremos falando como as salas multisseriadas ganham vida nesse processo.

As salas multisseriadas nascem no contexto educacional em que se tinha como o objetivo principal implantar estratégias favoráveis que possibilitassem à população do campo uma educação formal. Essa situação se deu devido à dificuldade em formar salas seriadas; assim, as salas multisseriadas ganham vida, definidas como a junção de alunos(as) de diferentes idades e níveis de ensino ocupando o mesmo espaço em sala de aula. Podemos dizer que as salas multisseriadas possuem uma organização de ensino nas escolas do campo que visa agregar educandos(as) de duas ou mais séries e anos em uma mesma sala, onde o ensino é mediado por apenas um(a) professor(a). Ao longo do contexto histórico, as salas multisseriadas tornaram-se uma possibilidade para o acesso à escolarização da população que vive no campo.

No contexto brasileiro, é comum associar a precarização do ensino do campo às salas multisseriadas, raramente vistas como possibilidade de inovação, pois, dependendo da metodologia adotada, se for proporcionado maior interação entre alunos(as), possibilita-se construir um ambiente produtivo, onde todos(as) aprendem e ensinam juntos(os), visto que, conforme Freire (2018, p. 25), “[...] ensinar inexiste sem aprender e vice-versa [...]”. Há quem defenda o fim das salas multisseriadas. Como assim? Quais alternativas seriam implementadas para o fim dessas escolas no campo, que “[...] reúnem estudantes de várias séries e níveis em uma mesma turma, com apenas um professor responsável pela condução do trabalho pedagógico?” (HAGE, 2014, p. 1173). A organização que agrega alunos(as) de tempos escolares diferenciados talvez ainda por um bom tempo seja vista como uma opção para ser efetivado o direito consagrado pela Carta Magna, a Constituição de 1988: que garante a educação como um direito de todos(as) em seu artigo 205: “a educação direito de todos dever do Estado e da família”.

3 DENÚNCIAS: INFRAESTRUTURA PRECÁRIA, DIFICULDADE DE ACESSO, AUSÊNCIA DE FORMAÇÃO ESPECÍFICA, SOBRECARGA DE TRABALHO E DESVIO DE FUNÇÃO

As escolas multisseriadas em sua maioria possuem uma realidade desafiadora, pois são compostas por inúmeras contradições. Lembrando que não são apenas desafios que perpassam a gestão escolar; ressaltamos que as experiências fundamentadas na resistência objetivam superar os obstáculos e dificuldades que são desenvolvidos por meio de relevantes fatos que se manifestam de maneira negativa na prática pedagógica, causando um distanciando na busca por uma educação humanizadora, transformadora e libertadora. Frequentemente ouvimos discussão de que (os)as professores(as) demonstram ter dificuldades em realizar atendimento individual aos (as) estudantes e em planejar as aulas para quatro séries iniciais do Ensino Fundamental para uma mesma turma. A falta de material didático e bibliotecas no ambiente rural também é um entrave rotineiro na realidade das salas multisseriadas.

Cotidianamente somos surpreendidos por notícias de escolas que estão “caindo aos pedaços”, sem estrutura física mínima para receber os(as) alunos(as) que são seres de direito de uma educação pública de qualidade. Sabemos que uma infraestrutura de qualidade influencia diretamente no desenvolvimento e na qualidade do processo de ensino-aprendizagem. Costuma-se associar a qualidade da educação, meramente, ao contexto pedagógico, porém é necessário enfatizar que a escola pode contar com o melhor suporte pedagógico possível bons(as) diretores(as), professores(as) dedicados(as), mas os resultados podem não ser satisfatórios devido à falta de um ambiente adequado e que favoreça uma prática docente eficaz. É na escola que as(os) alunas(os)passam boa parte de seu dia durante anos de suas vidas; assim, destacamos a importância de a escola ser um ambiente agradável, estimulante e funcional.

Desse modo, destaca-se que em sua maioria as escolas urbanas não possuem uma infraestrutura de “se encher os olhos”, mas as escolas do campo conseguem ficar aquém a essa realidade; é o que nos mostram os dados do censo escolar de 2018, principalmente sobre as dependências, ou seja, há um enorme abismo entre as escolas urbanas e as escolas do campo conforme apresentado no gráfico a seguir.

Gráfico 1 – Infraestrutura/dependência das Escolas Urbanas/Rurais no Brasil

Fonte: Censo Escolar/INEP (2018), organizada pela pesquisadora.

A partir da análise dos dados, fica em evidência a diferença existente entre as escolas urbanas e as escolas rurais, visto que 47% das escolas urbanas possuem biblioteca; e apenas 15% das escolas rurais possuem esse espaço. Outro ponto importante é que 47% das escolas urbanas possuem laboratório de informática; ao passo que apenas 19% das escolas rurais possuem. Outro fator que chamou atenção foi que 45% das Escolas Urbanas possuem Quadra de Esportes, já as escolas rurais apenas 13%. Os dados só confirmam a disparidade existente entre as escolas urbanas e as escolas rurais. Essas diferenças só contribuem ainda mais para a ampliação dos desafios, pois, além da diferença existente na infraestrutura, há a questão da dificuldade de acesso à escola, tanto das/os professores(as) quanto dos(as) alunos(as), em razão da distância e da falta de transporte.

A garantia de acesso à educação de qualidade em todos os segmentos da Educação Básica se constitui como grande desafio para o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Destacamos que em algumas regiões a distância se constitui como outra dificuldade, pois, para chegar às escolas, os(as) estudantes e os(as) professores(as), muitas vezes, enfrentam distâncias quilométricas, com chuva ou sol, promovendo risco que atenta contra a integridade física e emocional dos(as) alunos(as) e docentes, sem falar no cansaço, pois podem ter que acordar muito cedo para chegar à escola depois de horas de caminhada. A questão da distância é corriqueira nas discussões que englobam a Educação do Campo, mas não podemos deixar de mencionar que a ausência de professores(as) com formação específica que o habilite a atuar neste contexto é outro fator relevante.

Em sua maioria, o(a) docente que atua em escolas do campo é licenciado(a) em Pedagogia. Sabemos que a graduação no curso não proporciona uma formação específica voltada para realidade das salas multisseriadas, buscar a formação continuada se configura como relevante para o processo de ensino-aprendizagem nas escolas do campo. Os (as) profissionais que atuam no contexto educacional das escolas do campo buscam alternativas com objetivo de desenvolver práticas pedagógicas da melhor maneira, mas vem se tornando cada dia mais árduo e difícil desempenhar um trabalho de qualidade imerso nas condições de trabalho inadequadas em que se encontram as escolas do campo atualmente. Enfatizamos que, segundo dados do censo de 2011, 78% dos (as) professores(as) que atuam na área urbana possuem curso superior, enquanto no campo esse percentual cai para 53%. Devido às condições inadequadas que já foram citadas, cria-se uma resistência dos(as) profissionais, por não quererem atuar nas escolas do campo, seja por conta da infraestrutura, ou por falta de recurso e suportes pedagógicos, ou até mesmo devido à distância. Tal condição acaba potencializando a visão negativa para com as escolas do campo, fortalecendo o grau de rotatividade dos(as) professores(as) que atuam nessas escolas.

Verifica-se elevada rotatividade de professores(as) que atuam nas escolas do campo. Um dos fatores que pode estar associado se deve ao fato de que vários profissionais que atuam nas escolas do campo residirem na área urbana. Em sua maioria, os docentes não ficam muito tempo nas comunidades, dificultando a compreensão de elementos que constituem a identidade dos(as) estudantes assim como da comunidade na qual estão inseridos(as). O sistema de ensino que é estabelecido entre os profissionais pode constituir como justificativa para a constante rotatividade docente. E como o que prevalece nas escolas do campo seja o Ensino Fundamental dos anos iniciais (1° ao 5° Ano), grande parte dos docentes são vinculados ao sistema municipal e educação, e, em alguns casos, podem até ser influenciados pelo sistema político local. Sendo assim, o perfil do docente do campo é daquele profissional que tem vínculo por contrato temporário, por causas políticas, seleção de designação temporária, ou aprovado em concurso, e cuja opção apresentada é a escola do campo.

No contexto da atuação docente em algumas situações, os profissionais necessitam dividir o seu tempo para ministrar aulas, organização e limpeza do espaço escolar e, em circunstâncias mais extremas, quando necessário, preparar os alimentos e refeição. Além disso, em situações de conflitos na escola, o que é normal visto que é um ambiente que acolhe uma diversidade de pessoas, ou até mesmo para conversar com os pais, os docentes geralmente atuam sozinhos, já que a presença da gestão escolar não é constante no espaço.

No contexto educacional da escola, é indispensável que seja priorizado o respeito e a equidade, valorizando as diferenças que existem nessa conjuntura, com o objetivo de incentivar os(as) educandos(as) a perceberem que é possível conviver em um ambiente que valorizamos e que leve em consideração a sua visão de mundo, pois assim contribuirá para que os(as) educandos(as) se sintam acolhidos(as) e possam compreender que fazem parte desse processo, favorecendo para que o diálogo faça parte do cotidiano escolar. Para isso, será necessário compreender que dentro da comunidade escolar existe essa diversidade, por mais que vivam dentro da mesma comunidade de núcleo social. Porém, os currículos costumam não ser interessantes, não cativam os(as) estudantes, pois em sua maioria não têm nada a ver com a realidade do(a) educando(a), o que se tenta é incutir a cultura da área urbana na cultura dos homens e mulheres do campo.

4 ANÚNCIOS: O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM NA PERSPECTIVA DE PAULO FREIRE A PARTIR DE TEMAS GERADORES

Ao refletir sobre a temática do processo de ensino-aprendizagem no país, em especial sobre as salas multisseriadas nas escolas do campo, vários pontos importantes devem ser evidenciados. Na tentativa de elucidar alguns questionamentos, consequências e soluções referentes ao processo ensino-aprendizagem, tentaremos abordar neste artigo premissas filosóficas e epistemológicas do processo de ensino-aprendizagem na perspectiva freireana.

A partir da pesquisa realizada foi possível perceber, a partir dos depoimentos de alunos(as) e professores(as), que o processo de ensino-aprendizagem tende a se concretizar de forma mecânica, em que o papel do(a) professor(a) se configura meramente como transmissor(a) de conhecimento. Nesse processo, o(a) aluno(a) é aquele(a) que está ali para receber o conhecimento “transferido”, não se considerando a bagagem de conhecimento que já carrega consigo, ou seja, é como se sua trajetória na construção de conhecimento não fosse necessária, deixando passar despercebido o verdadeiro sentido no papel da formação do(a) cidadão(a) crítico(a). Nessa visão tradicional da construção do conhecimento, o(a) aluno(a) é percebido(a) apenas como mero(a) reprodutor(a) passivo(a) do que lhe é introjetado.

Desse modo, esse processo configura-se da seguinte forma: o(a) professor(a) leciona e o(a) aluno(a) é lecionado(a), o conhecimento é transferido e o ciclo vicioso se perpetua. Nessa perspectiva, há necessidade de refletir criticamente sobre a prática pedagógica que está sendo desenvolvida nesses espaços escolares e sua intencionalidade.

Para desenvolver um processo educativo que tenha significado para o(a) estudante, é essencial que os objetivos estejam delimitados, visando identificar qual é o papel do(a) professor(a) neste processo para a formação de cidadãs(os) críticos(as), sujeitos(as)do pensar, com capacidade para enfrentar os desafios do mundo. “Professorar” não se resume em apenas instruir, mas ao mesmo tempo educar, promovendo meios para que o(a) estudante consiga caminhar com autonomia como cidadã(o) na sociedade em que vive.

Assim, o mais importante não está apenas na instrução que o(a) professor(a) oferece, mas sim no desenvolvimento que será proporcionado à(ao) educando(a), criando possibilidades que este(a) necessita para desenvolver suas próprias habilidades em sua busca incessante pela sabedoria e pelo conhecimento, por meio do desenvolvimento da sua autonomia como ser crítico e capaz de atuar no mundo que vive.

Com isso, destacamos que o principal caminho para organizar o processo de ensino-aprendizagem em salas multisseriadas será o de abordar as diferenças como possibilidade pedagógica e não mais como as causas das dificuldades encontradas para mediar esse processo. Nesse sentido, Freire (2019) defende essa visão quando observa que a aprendizagem significativa pode tornar o processo de aprendizagem mais engajadora por meio de intervenção pedagógica compartilhada com a classe.

Os desafios existem, seja em classes multisseriadas ou não, no que tange ao trabalho que favoreça a aprendizagem significativa. Para tanto, é necessário trabalhar a partir de situações que emergem de problemáticas do cotidiano dos(as) educandos(as), pois, assim, serão motivados(as) a interagir e passarão a ser/ver como parte fundamental no processo de desenvolvimento do conhecimento.

Com isso, será possível criar espaços favoráveis para que todos(as) educandos(as) alcancem progressos, sendo necessário, num primeiro momento, romper com a ideia de que todos (as) “são iguais” e com as aulas centradas na atuação docente que desenvolve seus planejamentos sem considerar a heterogeneidade da turma. É importante ressaltar que “[...] as escolas multisseriadas são espaços marcados predominantemente pela heterogeneidade onde reúnem-se grupos com diferenças de série, de sexo, de idade, de interesses, de domínio de conhecimentos, de níveis de aproveitamento, etc.” (HAGE, 2014, p. 5). Se o objetivo é o de ampliar o processo de ensino-aprendizagem numa perspectiva colaborativa que busque a autonomia dos(as) educandos(as), é essencial que sejam levadas em consideração as rotinas das aulas e suas complexidades singulares.

Apesar de as salas multisseriadas serem consideradas como um resultado da precariedade da educação, especialistas da temática ressaltam que “[...] as escolas multisseriadas oportunizam aos sujeitos o acesso à escolarização em sua própria comunidade, fator que poderia contribuir significativamente para a permanência dos sujeitos no campo” (HAGE, 2014, p. 5). A heterogeneidade da turma deve ser entendida como colaboração para a inovação na prática pedagógica, desde que não esteja condicionada às más condições de trabalho e à degradação na estrutura física dos prédios escolares. Além disso, a partir dos diferentes saberes e idades dos(as) educandos(as), há a oportunidade de aprendizagem coletiva.

As concepções de aprendizagem tradicionais são criticadas por Paulo Freire, o que defende que o ato de ensinar vai muito além de meramente transferir conhecimento. Com isso, depreende-se que o(a) professor(o) deve apresentar a seus(as) alunos(as) múltiplas possibilidades para a construção e a produção de seu próprio saber.

Para superar a concepção tradicional, ele trouxe uma outra perspectiva de se conceber o processo de ensino-aprendizagem, que se materializa em um modelo que se consubstancia e se traduz em conceitos, o qual apresentaremos nos tópicos seguintes, tais como: conceitos “Educação Bancária”, “Educação Libertadora” e, por fim, o conceito de “Temas Geradores”.

5 A CONCEPÇÃO BANCÁRIA DE EDUCAÇÃO E A DESUMANIZAÇÃO

Na compreensão de Paulo Freire, ponderar que o processo de desumanização seja puramente resultante da vocação histórica do homem seria como “entregar os pontos”, não sendo necessário mais lutar em busca de um sentido maior, por melhores condições de trabalho, pelo fim da alienação e da coisificação, pela confirmação do homem como ser que pode “ser mais”, a lutar pela efetiva humanização.

Assim, devemos considerar que na concepção de Paulo Freire, a desumanização, mesmo sendo um fato concreto histórico, não pode ser determinada como “destino dado”, pelo contrário, é resultado de uma organização injusta, que concretiza a violência dos(as) opressores(as), que ocasiona o “ser menos”.

No âmbito educacional, o que simboliza o “ser menos” ou a desumanização? É quando no contexto da “educação bancária”, à (ao) educando(a) é visto(a) como mero(a) receptor(a) de informações e de conteúdo, cujo papel resume em apenas decorar, transferir para a prova, ser avaliado(a) e, depois de um tempo, esquecer. A Educação bancária expressa a probabilidade de desumanização, produzindo características passivas, violando a possibilidade de o ser humano desenvolver suas habilidades.

Para Paulo Freire, a concepção “Bancária de Educação” parte do pressuposto de que o(a) educando(a) é um ser que não possui conhecimentos, é vazio(a) e precisa ser preenchido(a), já o(a) professor(a) é tido(a) como aquele(a) que detém o conhecimento e o saber. Construindo-se, assim, uma relação vertical entre o(a) educador(a) e o(a) educando(a).

A partir da análise de Paulo Freire sobre a relação professor(a) aluno(a), fica em evidência que o(a) educador(a) o(a) sujeito(a) da aprendizagem, quem deposita o conhecimento; o(a) educando(a), então, é o objeto que recebe o conhecimento. Assim, a educação abordada se posiciona em defesa de uma formação pautada no conformismo, na qual os(as) indivíduos(as) costumam ser acomodados(as) na condição que se encontram, sem questionar, e submersos(as) à estrutura do poder vigente: “a narração que o educador é o sujeito que conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda a narração os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem enchidos” (FREIRE, 2019, p. 80).

A partir do contexto histórico implantado na sociedade, de uma visão de educação “bancária”, para Paulo Freire o saber é destacado como uma doação feita por aqueles(as) que se julgam mais inteligentes e detentores(as) desse saber. Numa perspectiva bancária de educação, aquele(a) que detém o saber nega o direito ao pensamento crítico, impondo sua concepção, com o objetivo de manter os acontecimentos favoráveis apenas para si, dificultado a construção de uma educação libertadora e emancipatória.

Assim, destacamos o pensamento defendido por Paulo Freire (2019, p. 81) em sua obra Pedagogia do Oprimido:

Na visão “bancária” de educação, o saber é uma “doação” dos que se julgam sábios, os que julgam nada saber. Doação que se funda numa manifestação instrumental da ideologia de opressão – a absolutização da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.

Dessa forma, a construção do conhecimento se dá numa lógica de educação “bancária” cujo currículo mantém uma concepção epistemológica historicamente predominada pelo empirismo, mergulhada numa escola meramente tradicional, que aborda o conhecimento como algo relativamente fechado, sendo o(a) educando(a) concebido(a) como aquele(a) que recebe a transferência do conhecimento.

Nesse processo, o(a) professor(a) é visto (a) como o(a) único(a) ser ativo(a), aquele(a) que realiza a transferência de todo o saber acumulado; e à(ao) aluno(a), a posição de passivo(a) que recebe toda a transferência de saberes. Assim, esse contexto não leva em consideração de desenvolver um ensino que parta da situação existencial do(a) educando(a), constituindo-se em apenas comunicados verticais, nos quais a(o) professor(a) só comunica, sem abrir espaço para comunicar-se, conforme Paulo Freire:

Em lugar de comunicar-se o educador faz “’comunicado” e depósitos, que os educandos, meras incidências recebem parcialmente memorizem e repitam. Eis a concepção bancária da educação, onde a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receber o depósito, guardá-los e arquivá-los (FREIRE, 2019, p. 80-81).

Podemos destacar, que se o material didático fornece às(aos) educandos(as) o saber que de certa forma já vem construído por meio da perspectiva do(a) educador(a), como ou de que forma serão proporcionadas as condições viáveis para a construção seja da autonomia dos(as) educandos(as)? Segundo Freire (2018, p. 24), “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”.

Na busca pela libertação do estado de opressão, é necessário que haja uma ação em sociedade, não sendo possível realizar isoladamente, visto que o homem se constitui como ser social. Por esse motivo, a tomada de consciência e a transformação da realidade devem acontecer em caráter social.

Nesse contexto, o papel da escola se torna fundamental, pois como poderá o ser humano se libertar da opressão, se os que “ensinam” são os mesmos que oprimem? Por isso, na concepção de Paulo Freire, torna-se necessário a conscientização do(a) educador(a) quanto ao seu papel de problematizador(a) da realidade do(a) educando(a), visto que a educação se configura como fator importante neste processo de busca pelo “ser mais” e pela humanização.

Quando a educação se constitui na perspectiva da realidade do(a) educando(a), o processo se torna mais prazeroso, porque fará sentido para o(a) educando(a). Assim, destacamos a importância de priorizar um ensino que não tenha características verticais, mas sim problematizadoras, enfatizando a prática da liberdade e superando assim as contradições existentes entre educador(a) e educando(a).

6 A EDUCAÇÃO LIBERTADORA

Na compreensão de Paulo Freire, a ação política a ser desenvolvida junto aos oprimidos deve ser uma ação cultural como prática de liberdade. O processo de desumanização coisifica o ser humano, portanto um dos objetos que favorece a concretização da humanização é possibilitar a mudança de estado e deixar de se posicionar como “coisa”. Mas, para que isso aconteça, Paulo Freire destaca que o(a) oprimido(a) precisa reconhecer o seu lugar, e descobrir claramente o(a) opressor(a), para assim iniciar o processo de luta por sua humanização e liberdade: “somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crê em si mesmo, superando, assim, sua “convivência” com o regime opressor” (FREIRE, 2019, p. 72).

Porém, salientamos que esse processo de liberdade, almejado pelo(a) oprimido(a), deve ser alcançado pelo seu próprio esforço, porém em comunhão com o(a) outro(a), como bem nos salienta Paulo Freire (2019, p. 71): “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”.

Nesse contexto, o empenho de reflexão e o diálogo serão indispensáveis, visto que o “[...] diálogo crítico e libertador, por isto mesmo que supõe a ação tem que ser feito com os oprimidos, qualquer que seja o grau em que esteja a luta por sua libertação” (FREIRE, 2019, p. 72).

Mesmo assim, quando há uma alienação e não se alcança a libertação, essa demanda não pode ser vista como caridade ou doação, mas como uma busca dolorosa para encontrar a tão almejada liberdade. Submersa no ambiente exposto pelo(a) opressor(a), a liberdade pode despertar no(a) oprimido(a) medo e insegurança, ocasionando em dúvida e sofrimento em seu interior. Desse modo:

Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam apelar a outros e a escutar o apelo que se lhes faça ou que se tenham feito a si mesmo, preferindo a precarização à convivência autêntica. Preferindo a adaptação em que sua não liberdade os mantém a comunhão criadora a que a liberdade leva, até mesmo quando ainda somente busca. Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos, ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o opressor de dentro de si. [...] Este é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem que enfrentar. A libertação, por isso é um parto. É um parto doloroso. O homem que nasce desse parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimido, que é a libertação de todos. (FREIRE, 2019, p. 47-48).

A mudança com certeza gera medo e insegurança, e isso é comum. Mas, para a transformação efetiva, sabemos que é necessário a superação das contradições que se apresentam nesse processo de opressão. Nesse aspecto, a Educação problematizadora poderá proporcionar uma consciência de si inserido(a) no mundo em que vive e diz respeito à ideia de que deve existir uma relação horizontal contínua de saberes entre educadores(as) e educandos(as), com a intenção de que os(as) últimos(as) não se limitem a repetir mecanicamente os conhecimentos abordados pelos(as) primeiros(as).

Por isso, Paulo Freire (2019, p. 94) enfatiza que “[...] a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser um ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir ‘conhecimentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação ‘bancária’, mas um ato cognoscente”. A educação problematizadora se fortalece no diálogo o qual educadores(as) e educandos(as) estabelecem uma relação vertical e comunicativa cujo objetivo está pautado na transformação do(a) educando(a) em sujeito(a) na construção de sua própria história.

É a superação da relação vertical entre educador(a) e educando(a). Nesse processo de educação problematizador(a), conforme Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia, o(a) educador(a) aprende ao ensinar através do diálogo com os(as) educandos(as), estimulando o ato cognoscente de ambos, ou seja, ensina e aprende a reflexão crítica no processo de ensino-aprendizagem: “quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 2019, p. 25).

Refletindo sobre a prática da educação libertadora/problematizadora na perspectiva de Paulo Freire, é possível compreender a educação como fator importante para a transformação social, que tem início nas relações sociais estabelecidas sendo que a liberdade e autonomia são as bases do legado de Paulo Freire.

Na perspectiva de Paulo Freire, o ensino deveria partir das situações concretas da própria realidade do(a) educando(a), sem priorizar a mera transmissão mecânica de conhecimento, em que há apenas depósitos de saberes ou de conteúdo, numa prática de ensino tradicional que visa à transmissão. Pelo contrário, o que é priorizado no ensino libertador é a ação reflexiva na construção do conhecimento. Conforme Freire (2019), para que a educação libertadora seja efetivada, é necessário que haja uma mudança na compreensão do real sentido do papel da educação no meio social.

[...] nesse sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser um ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e aos valores dos educandos, meros pacientes à maneira da educação “bancária, mas um ato cognoscente. (FREIRE, 2019, p. 94)

O ensino libertador deve propor uma prática que proporcione à(ao) educando(a) desenvolvimento da aprendizagem como um ato cognoscente, ou seja, qualifique a(o) educanda(o) como autor(a) na busca pela construção de conhecimento em sua formação, desenvolvendo, assim, a capacidade de conhecer e assimilar os saberes. Para melhor compreensão, apresenta-se, no quadro a seguir, algumas das diferenças entre a concepção de “Educação Bancária” e a “Educação Libertadora”.

Quadro 1 – Educação Bancária X Educação Libertadora

Educação Bancária

Educação libertadora

Relação vertical

educador/educando

Relação horizontal

educador/educando

Predomina a dominação

Promove a humanização

Reprime a criatividade

Sujeita/o passiva/o

Proporciona a reflexão crítica

Sujeita/o ativa/o

Promove alienação

Vivência e promove a liberdade

Tradicional

Revolucionária

Fonte: Freire (2019), organizado pela pesquisadora.

Ao analisarmos o quadro comparativo, a diferença entre as duas concepções é evidenciada. Enquanto uma mantém uma relação vertical, na qual a(o) professor (a) é a (o) detentor(a) do conhecimento, e irá doar esse conhecimento às(aos) alunos(as); a outra prioriza uma relação dialógica, de comunicação entre educador(a) educando(a). O antagonismo entre as duas é evidenciado ainda mais, pois uma serve “à dominação”, a outra serve “à libertação”. Sobre essa dicotomia.

Esse antagonismo entre as duas concepções (uma bancária, que serve à dominação; a outra, a problematizadora que serve à libertação) toma corpo exatamente aí. Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a contradição educador(a) educanda(o); a segunda realiza a superação. Para manter a contradição, a concepção bancária nega a dialogicidade.

O propósito do ensino libertador com conteúdo diferenciado, propondo métodos que façam com que a(o) aluno(a) reflita a realidade na qual está inserido(a), é para que assim o(a) aluno(a) possa tomar consciência de si enquanto sujeito(a) ativo(a) nesse processo educativo. Mas, para que isso aconteça, é indispensável que sejam priorizados diálogos, com o objetivo de refletir sobre as experiências de vida entre si, a fim de que, a partir daí, haja a tomada de consciência de sua realidade atual. Nesse sentido, Valter Giovedi, em seu livro A concepção de ensino aprendizagem de Paulo Freire: Fundamentos Teórico-Filosófico, destaca que:

Quando se despreza a dialética realidade objetiva-consciência, inevitavelmente, tem-se uma ação político-pedagógica fracassada (caso essa tenha por finalidade a libertação), pois não existe como ignorar a presença da realidade na constituição da subjetividade, bem como a intervenção desta última na realidade (GIOVEDI, 2019, p. 108).

A partir da reflexão sobre qual prática de ensino pretende-se desenvolver, no caso específico deste tópico, a intenção é refletir sobre a educação libertadora. Para isso será necessário proporcionar às(aos) educandos(as) possibilidades de reflexões de sua realidade. Quando a educação é vista como prática de dominação, ela é abordada como objeto de crítica, pois não proporciona à(ao) educando(a) uma reflexão crítica do seu objeto concreto, pelo contrário, submete-se à alienação. Paulo Freire coloca que:

[...] não é possível buscar a libertação e servir a concepção “bancária”, nosso objetivo é chamar a atenção dos verdadeiros humanistas para o fato de que eles não podem na busca da libertação servir-se da concepção “bancária”, sob pena de se contradizem em sua busca. Assim como também não pode esta concepção tornar-se legado da sociedade opressora à sociedade revolucionária (FREIRE, 2019, p. 92-93).

Em alguns casos, por não se ter o entendimento dos conceitos bem definidos, pode acontecer essa contradição no processo de libertação. Por isso, é importante que se tenha os parâmetros nítidos, estabelecidos e evidenciados, pois, se pretendemos alcançar a liberdade, não podemos em hipótese alguma favorecer a essa alienação.

Nesse processo de libertação, uma pedagogia humanizadora será indispensável, pois o fundamental será priorizado, uma prática não manipuladora, favorecendo a formação de homens e mulheres como seres pensantes e críticos(as). Assim, deve ser valorizado ainda o conhecimento que as(os) alunos(as) já carregam consigo, e jamais devem ser tratados como “coisas” que estão vazias e necessitam ser preenchidas. Paulo Freire (2019, p.94) destaca sobre esse ponto:

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo “encha” de conteúdo; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas os homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a de depósito de conteúdo, mas a da problematização dos homens em sua relação com o mundo.

Assim, o processo formativo deve possibilitar no espaço educacional a reflexão problematizadora a partir de situações que fazem parte da realidade do(a) aluno(a), que ocorrem pelo esforço de compreender o que já foi vivido, até alcançar um nível mais crítico na busca pela construção de conhecimento, valorizando o diálogo e a troca da experiência relacionados à prática social.

Dessa maneira, não é possível desenvolver uma educação que não proporcione a libertação dos homens e mulheres. O que deve ser produzido é uma educação libertadora e problematizadora, que valorize a vocação dos seres humanos. Assim, o diálogo se destaca como fator necessário nesse processo educativo revolucionário, em oposição à educação “bancária”, que prioriza a mera transmissão de conhecimento.

7 A PRÁTICA EDUCATIVA NA PERSPECTIVA DOS TEMAS GERADORES E DA INTERDISCIPLINARIDADE

A seguir apresentaremos uma proposta de construção de prática educativa em salas multisseriadas do campo a partir de temas geradores. As etapas possíveis para este trabalho envolvem: a investigação dos temas geradores, a problematização dos temas geradores, a seleção de saberes demandados a partir das problematizações, a elaboração de planos de trabalho para desenvolver o diálogo e a elaboração de planos de aulas e atividades dialógicas.

Sobre a investigação dos temas geradores, podemos descrever que se constitui um processo de busca de conhecimento nos encadeamentos dos significados, fazendo um esforço de consciência da realidade e ainda da autoconsciência, tendo como ponto de partida a prática educativa. O momento da investigação temática acontece quando o docente se coloca numa perspectiva de conhecer as situações-limites dos estudantes, buscando conhecer a visão deles sobre o mundo que os cerca.

Nesse processo, busca-se identificar, por meio do diálogo, a visão de mundo que perpassa a vida e a realidade do educando, com o intuito de compreender quais os principais fatores de sua realidade que mais os contrariam e como eles(as) compreendem tais fatores. Assim, podemos classificar que a investigação, a partir de temas geradores, constitui-se em uma prática metodológica que busca desenvolver o processo de conscientização da realidade opressora vivida em sociedades desiguais. Pode-se considerar, ainda, que é o impulsionador no processo de construção da descoberta, e, por emergir do saber popular, os temas geradores são construídos a partir da prática de vida dos educandos. Desse modo, vejamos o que nos diz Paulo Freire sobre este contexto:

Neste sentido é que a investigação do tema gerador, que se encontra contido no “universo temático mínimo” (os temas geradores em interação) se realizada por meio de uma metodologia conscientizadora, além de nos possibilitar sua apreensão, insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica de pensarem seu mundo (FREIRE, 2019, p. 134).

Após a investigação dos temas geradores, será necessário problematizá-los a partir da sistematização significativa do que foi externado pelos estudantes, sendo necessário realizar a representação de um aspecto da realidade (codificação) desses temas geradores, buscando tanto um significado social quanto a consciência da realidade. O Trabalho com temas geradores possibilita o avanço para além do limite do conhecimento que os estudantes possuem sobre sua própria realidade, podendo assim compreender e intervir criticamente em seu contexto social. Depois de realizar a investigação, o professor deve sistematizar as falas ou pensamentos dos estudantes em busca do contexto significativo, para assim, realizar a problematização.

Após a sistematização das falas, será necessária a problematização, que pode ser realizada a partir de perguntas/questionamentos com base nas falas significativas dos estudantes. Sendo assim, a problematização dos temas geradores auxiliará na superação da primeira visão ingênua, substituindo por uma visão crítica, sendo capaz de transformar sua realidade concreta vivida.

A problematização é construída a partir da consciência que os homens adquirem de si próprios, podendo ao professor realizá-la a partir de perguntas geradoras aos educandos. Segundo Paulo Freire “A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com quem e em que se acham” (2019, p. 100).

A partir do momento que o professor reflete criticamente e toma a consciência da realidade concreta do educando, ele precisará problematizar as falas, proporcionando, através do diálogo, a problematização da proposta educacional que contribua no desenvolvimento do pensamento crítico por parte do educando.

Assim, realizar a problematização, na perspectiva do mundo do estudante, através do tema gerador, oportuniza a construção de conhecimento com o intuito de transformação da realidade, através do processo dialógico, refletindo sobre a consciência homem-mundo.

Desse modo, o principal aspecto a ser destacado é que, neste processo da práxis transformadora da realidade, é indispensável que haja coerência entre a teoria e a prática, isto é, entre a reflexão e a ação, que deve ser proporcionada pelo processo dialógico e a partir do processo problematizador, os quais proporcionarão aos educandos uma experiência crítica e dialógica perante o mundo no qual estão inseridos.

Neste aspecto, Paulo Freire destaca que “[...] se este é o objetivo da educação problematizadora que defendemos, a investigação temática, que a ela mais que serve, porque dela é um momento, a este objetivo não pode fugir também” (2019, p. 155).

Quando os professores realizam a problematização, possuem o poder de escolha, mediante o acervo dos conhecimentos acumulados, e devem buscar priorizar os que se constituem como significativos para os(as) estudantes.

A partir da problematização realizada, torna-se necessário fazer uma criteriosa seleção dos saberes que foram evidenciados pela fala dos estudantes durante o momento de diálogo e problematização. Para Paulo Freire, os conteúdos trabalhados nas escolas necessitam ter significado, sendo necessário que sejam constituídos a partir da realidade concreta e existencial dos estudantes.

A educação autêntica, reputamos, não se faz de A para B, ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia uns aos outros, originando visões ou pontos de vista sobre eles. Visões impregnadas de anseios de dúvidas de esperanças ou desesperanças que implicam temas significativos, a base dos quais se constituirá o conteúdo programático da educação [...] (FREIRE, 2019, p. 116).

Assim, Amaral, Giovedi e Pereira (2017, p.1120) destacam que:

[...] na perspectiva freireana, os conteúdos escolares não têm significado, relevância e pertinência sobre por si próprios. Eles precisam emergir das necessidades existenciais concretas dos (as) educandos (as) para que efetivamente possam ser criticamente apreendidos.

Após realizar a seleção dos saberes que foram demandados pelos estudantes, será necessário desenvolver ou elaborar planos de trabalho na perspectiva dialógica, conforme apresentaremos no item seguinte.

Com os saberes demandados selecionados, o(a) professor(a) trabalhará na elaboração de um plano de trabalho feito a partir das falas significativas dos estudantes, sistematizados nos momentos de diálogos e da problematização. Este momento pode ser desenvolvido como sequências didáticas, que podem ser definidas como um procedimento encadeado de passos ou etapas ligadas entre si para tornar mais eficiente o processo de ensino-aprendizado. Assim, desenvolvendo uma pedagogia baseada no processo de conscientização crítica da realidade.

[...] Paulo Freire destaca a importância da seleção de conteúdos programáticos. Para uma educação que se pretende crítico – libertadora e, portanto, compromissada com a aprendizagem crítica, não é possível ensinar, se não a partir dos problemas coletivos vivenciados pela comunidade local e das visões que os sujeitos têm a respeito desses problemas[...] (GIOVEDI; SILVA; AMARAL, 2018, p. 1128).

Em consonância com esta reflexão, Paulo Freire destaca que:

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos - mas a devolução organizada sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada (FREIRE, 2019, p. 116).

A partir dessa reflexão, podemos destacar que a prática docente problematizadora proporciona aos estudantes uma reflexão crítica voltada para sua própria realidade. O professor deve ter em mente que os conteúdos delimitados pela BNCC, pelo Currículo Capixaba ou pelos livros didáticos não vão se aproximar da realidade do estudante, pois, como vários estudiosos refletem, a BNCC é um território em disputa, em que as instituições privadas querem determinar o que deve ou não ser ensinado nas escolas, logo, não irá atender às especificidades de cada região do Brasil. Assim sendo, o professor deve ter este olhar e desenvolver uma prática que possibilite ao estudante buscar “ser mais”, refletindo sobre e transformar sua realidade.

Após realizar todas as etapas, será necessário desenvolver planos de aula e atividades pautadas no diálogo. Para isso, o professor deve buscar, como ponto de partida para a abordagem de qualquer conteúdo que esteja alinhado à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a experiência dos alunos em relação ao tema ou conteúdo proposto, de modo a realizar a seleção dos conteúdos a partir do que foi dialogado na etapa de investigação e problematização. Destarte, o conteúdo é questionado e redescoberto pelos alunos com base no confronto com sua própria realidade.

Figura 1 - Charge sobre a Prática de Ensino Dialógica

Uma imagem contendo Texto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Escola Brasil.

Desse modo, destacamos que é importante que o professor desenvolva uma metodologia voltada para o diálogo, que não deve ser apenas um bate-papo, mas deve aproveitar todas as vantagens proporcionadas ao desenvolver aulas dialógicas, tais como: possibilitar aos estudantes aguçar sua curiosidade passando a desenvolver uma reflexão crítica da realidade. E o professor que desenvolve a prática educativa, nessa perspectiva, vai de encontro à prática da “Educação Bancária”, pois desenvolve um ensino no qual os estudantes não realizam apenas a memorização mecânica do conteúdo.

Figura 2 - Tirinha sobre a Prática de Ensino Expositiva

Texto, Quadro de comunicações

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Escola Brasil.

Neste contexto, o professor vai partir de perguntas problematizadoras e nunca de respostas prontas, para que assim priorize uma prática docente voltada à formação de cidadãos críticos, não apenas, à produção de conhecimento, pois a educação problematizadora, isto é, crítica libertadora deve estimular o estudante a construir seu próprio conhecimento.

8 EXEMPLO DE CONSTRUÇÃO DE PRÁTICA PEDAGÓGICA A PARTIR DOS TEMAS GERADORES

Durante a realização da pesquisa em questão, nos momentos de observação participante, aconteceram diversas situações comuns ao cotidiano escolar, que muitas vezes podem passar despercebidas. Assim, ao longo deste processo, foram selecionadas algumas das situações que mais chamaram atenção para serem utilizadas como exemplo de como poderia ser realizada a prática pedagógica das situações descritas a partir dos temas geradores. Para este artigo traremos o exemplo de uma situação.

Situação:

A professora escreveu na lousa o nome da escola e a data junto um pequeno texto. Em seguida, solicitou aos alunos do 1° e 2° anos que copiassem em seu caderno apenas o cabeçalho. Depois entregou o mesmo texto, que estava copiado no quadro, xerocado para cada estudante, solicitando que recortassem o texto e depois, olhando para o quadro, colocassem na ordem correta no caderno. Após finalizar, deveriam fazer a leitura do texto.

O nome desta a atividade é “texto fatiado”. O principal objetivo desta atividade é reconhecer as frases que compõem um texto e possibilitar o desenvolvimento de atitudes e disposições favoráveis à leitura.

PRÁTICA EDUCATIVA A PARTIR DOS “TEMAS GERADORES”

Etapa 1- Investigação dos “temas geradores”

Sabendo da importância de realizar uma leitura significativa, nesta etapa, o professor pode apresentar um texto para os alunos que desperte a reflexão de sua realidade. Como, por exemplo: o professor analisa a situação da comunidade e percebe o problema existente, algo que os incomode. Nesse aspecto, a professora poderia apresentar um texto sobre o assunto.

Exemplos: muitos alunos pensam que onde eles moram no campo não pertence a Linhares, isto ficou em evidência com a recorrente fala “meu pai foi para Linhares” ou “amanhã vou para Linhares”.

Porque não trabalhar um texto que defina que o campo pertence à cidade, tentando enfatizar esta questão que é recorrente na realidade. Pois eles não se sentem pertencentes a Linhares, quando na verdade são.

A partir da leitura do texto “O POEMA MUNICÍPIO: O QUE É?” e da relação com a realidade, poderia surgir questionamentos para investigação dos temas geradores.

O que é um município?

A região que você mora pertence a qual município?

Etapa 2 - Problematização dos temas geradores:

A partir da resposta dos alunos, será necessário compreender a percepção que o aluno tem sobre a definição de município, campo e cidade.

Numa situação hipotética, digamos que um dos estudantes diga que: não mora em Linhares, mas que mora no Chapadão das Palminhas.

Neste momento, o professor realiza a problematização a partir da fala do estudante.

Vejamos os exemplos:

Por que você acha que não mora em Linhares?

Chapadão das Palminhas é um município?

Chapadão das Palminhas não fica em Linhares?

Com certeza, muitas falas vão surgir e o professor deve estar atento, pois, após esta etapa, ele deve promover a devolução dos dados oferecidos pelos estudantes.

Etapa 3 - Seleção de saberes demandados a partir da problematização

Nesta etapa, o professor fará círculos de diálogos com a turma a partir da problematização da etapa anterior. Com o momento de diálogo, o professor poderá identificar na fala dos estudantes aquela que mais promove reação de positivo ou negativo, ou ainda de sensibilização.

Para o momento, o professor pode ir anotando, ou ainda, gravar e ouvir em outro momento. O objetivo aqui é identificar as falas que mais causaram inquietações aos educandos sobre a problematização.

Etapa 4 - Elaboração de planos de trabalho para desenvolver do diálogo

Nesta etapa, o(a) professor(a) já estará com as falas dos estudantes, sendo necessário refletir sobre elas, pois ajudará identificar os problemas que permeiam a estrutura da escola. A partir das falas significativas a(o) professora(o) poderá comparar com as habilidades estruturantes do Currículo Capixaba/BNCC, com o intuito de identificar quais dos conteúdos contidos nos documentos poderão ser associados aos temas que emergiram do diálogo realizado com os educandos.

Assim o professor organizará um plano de trabalho, no qual apresentará uma proposta para trabalhar com os estudantes a partir da investigação que foi realizada.

Etapa 5 - Elaboração de planos de aulas e atividades dialógicas

Por fim, serão organizados os planos de aula a partir do tema e das habilidades dos conteúdos delimitados. Neste momento, o professor deve planejar levando em consideração o saber que o educando possui sobre a sua realidade.

O ensino por meio de temas geradores possibilita uma prática educativa problematizadora e possibilita aos estudantes uma reflexão crítica da realidade, consequentemente, um ensino crítico – libertador.

Desse modo, podemos destacar que trabalhar com temas geradores e com a interdisciplinaridade possibilita desenvolver uma metodologia que aborda conteúdo de diferentes disciplinas, com o propósito de uma disciplina contribuir com a outra em busca de alcançar objetivos comuns, a saber: a aprendizagem.

Além disso, proporciona ao educando uma reflexão crítica da realidade, visto que, quando realizada de maneira correta, pode possibilitar aprendizagem “crítica libertadora”, que é um processo pelo qual o educando é ligado a um conceito pré-existente já presente em seu imaginário.

Assim como as conexões entre o conteúdo e o cotidiano do educando são feitas, também podem ser criadas conexões entre os diferentes componentes curriculares e as áreas do conhecimento. Defendemos que a relação estabelecida entre as disciplinas, conceitos e conhecimentos possibilita uma conexão entre o conhecimento científico e o cotidiano do educando, despertando maior interesse pelos conteúdos, gerando um impacto positivo no processo de ensino-aprendizagem.

Desse modo, destaca-se que ensino por meio de temas geradores, oportuniza a ênfase na prática interdisciplinar, visto que algumas áreas do saber se entrelaçam na problemática estudada.

Assim, Freire destaca que:

Os temas que foram captados dentro de uma totalidade, jamais serão tratados esquematicamente. Seria uma lástima se, depois de investigados na riqueza de sua interpretação com outros aspectos da realidade, ao serem 'tratados’, perdessem esta riqueza, esvaziando-se de sua força na estreiteza dos especialismos. Feita a delimitação temática, caberá a cada especialista, dentro de seu campo, apresentar à equipe interdisciplinar o projeto de 'redução’ de seu tema. No processo de 'redução’ deste, o especialista busca os seus núcleos fundamentais que, constituindo-se em unidades de aprendizagem e estabelecendo uma sequência entre si, dão a visão geral do tema 'reduzido’ (FREIRE, 2019, p. 160).

A prática de ensino que valoriza apenas disciplinas isoladas não vai contemplar o trabalho por meio de temas geradores, visto que este prioriza entrelaçar o papel do professor, do estudante, do fator social e do conhecimento. Assim, o ensino interdisciplinar pode ser trabalhado com temas geradores, uma vez que o tema problematizado e estudado favorece o encontro entre as diferentes áreas que compõem o conhecimento científico. Por esse motivo é que a interdisciplinaridade e a aprendizagem “crítica libertadora” andam juntas.

Paulo Freire destaca em suas teorias que o processo de construção de conhecimento de um sujeito tem como ponto de partida a sua relação com o contexto da realidade cultural e social. Sendo assim, a interdisciplinaridade se torna um processo de construção de conhecimento devido a sua relação com o contexto sociocultural, promovendo a formação integral do educando.

Pode-se concluir que é possível construir aprendizagem de forma interdisciplinar, pois, assim, garante-se interação entre os educandos e educadores, sem deixar de mencionar a valorização da aprendizagem em grupo.

A partir desse princípio, é importante, ainda, repensar metodologia interdisciplinar como forma de promover a ação coletiva escolar em busca do objetivo comum, que é o desenvolvimento integral do estudante.

Nessa perspectiva, a função da interdisciplinaridade é de apresentar ao educador possibilidades diferentes de olhar um mesmo fenômeno. Portanto, um ensino-aprendizagem, numa abordagem crítico-libertadora, contribuirá para a formação de cidadãos críticos.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo procurou desvelar caminhos para atuação pedagógica humanizadora baseada nos temas geradores de Paulo Freire, em salas multisseriadas do campo, visando uma prática educativa voltada para um ensino crítico – libertador, pois é de suma importância proporcionar às(aos) estudantes uma reflexão crítica de sua realidade e da realidade do campo.

A pesquisa partiu das denúncias sobre a precariedade no contexto da multissérie para pensar estratégias de resistência frente a constante ameaça de fechamento dessas escolas no campo. Sabemos que são vários os fatores que contribuem para uma visão pejorativa sobre as classes multisseriadas, mas tal realidade deve ser abordada de maneira diferente. Esses fatores não podem ser usados como argumento para o fechamento das escolas como vem acontecendo. Eles devem servir como impulsionamento para as devidas melhorias e para que a organização de ensino seja menos negligenciada.

Alinhado a esse primeiro objetivo, que foi investigar o processo de ensino-aprendizagem em sala multisseriada de uma escola do campo no município de Linhares/ES, com uma atuação pedagógica humanizadora a partir dos temas geradores na perspectiva de Paulo Freire. Ficou evidenciado, que uma prática educativa que leve em consideração a realidade do estudante, trará benefícios imensuráveis ao processo de ensino e aprendizagem principalmente em salas multisseriadas. Desse modo, a pesquisa apontou com notoriedade que a prática educativa crítico-libertadora é indispensável para um ensino exitoso. Segundo Hage (2005, p. 56), “as escolas multisseriadas têm assumido um currículo deslocado das culturas da população do campo, situação que precisa ser superada caso se pretenda enfrentar o fracasso escolar e afirmar as identidades culturais das populações do campo”.

Por fim, podemos afirmar, a partir de todo o trabalho aqui exposto, que os temas geradores possibilitam abordar o ensino numa perspectiva transformadora e emancipatória de forma contextualizada e interdisciplinar, tornando o processo de ensino-aprendizagem efetivo e prazeroso. Deste modo, esperamos que as reflexões contidas aqui possam contribuir verdadeiramente na prática dos educadores/as das escolas do campo multisseriadas.

REFERÊNCIAS

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GIOVEDI, V. M. A concepção de ensino aprendizagem, de Paulo Freire: Fundamentos Teóricos-Filosóficos. Curitiba. Publishing, 2019.

GIOVEDI, V. M. SILVA, I. M. da. AMARAL, D. M. do. A Didática Que Emerge Da Pedagogia Do Oprimido. Revista e-Curriculum, São Paulo, v.١٦, n.٤, p. ١١١٠-١١٤١ out./dez.٢٠١٨ e-ISSN: ١٨٠٩-٣٨٧٦ Programa de Pós-graduação Educação: Currículo – PUC/SP. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum. Acesso em: 20 set. 2022

HAGE, S. A. M. Transgressão do paradigma da (multi)seriação como referência para a construção da escola pública do campo. Educ. Soc. Campinas, v. 35, n°. 12, p. 1165 -1182, out. Dez., 2014.

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WATTERSON, W.B. Charge sobre as diferenças entre aulas expositivas e aulas dialogada. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/. Acesso em: set. 2020.


1 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo/ES, Membro e uma das coordenadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas Paulo Freire/UFES/ES. Docente no Curso de Licenciatura em Educação do Campo/UFES e do Programa de Pós-Graduação de Mestrado Profissional em Educação da UFES.

2 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo; Especialista em Educação, Pobreza e Desigualdade Social pela Universidade Federal do Espírito Santos; Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia.

3 Segundo Freire (2019), a prática educativa é sintetizada como o conjunto de ações planejadas, organizadas e operacionalizadas em diferentes espaços que são destinados a desenvolver o processo de ensino e aprendizagem.