https://doi.org/10.18593/r.v47.28152

teoria e prática no referencial curricular do Paraná: implicações no desenvolvimento do psiquismo humano

Theory and practice in the curricular reference of Paraná: implications in the development of the human psyche

Teoría y práctica en el referente curricular de Paraná: implicaciones en el desarrollo del psiquismo humano

Elisabeth Rossetto1

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Professora

https://orcid.org/0000-0002-4581-2446

http://lattes.cnpq.br/9680222435474093

Solange de Castro2

Rede Estadual de Ensino do Paraná, Professora e Pedagoga

https://orcid.org/0000-0002-5142-2217

http://lattes.cnpq.br/0108340414866627

Resumo: Este estudo discute acerca da teoria e da prática no âmbito escolar e a sua relação com o desenvolvimento do psiquismo humano. De modo específico, concentramo-nos nas proposições das diretrizes de políticas públicas educacionais que orientam a prática pedagógica no Estado do Paraná, como é o caso do Referencial Curricular do Paraná: princípios, direitos e orientações (PARANÁ, 2018a) e das Semanas Pedagógicas (2010, 2018 e 2019), a fim de discutir o modelo de educação e o formato da construção de sujeito propostos. As reflexões estão balizadas pela Psicologia Histórico-Cultural e pela Pedagogia Histórico-Crítica. Os resultados apontam que os documentos analisados se apresentam esvaziados de reflexão teórica, com uma metodologia de ensino voltada a “treinar” os alunos por meio de exercícios repetitivos, com vistas a alcançar bons índices nas avaliações externas. Sob esse viés, a aprendizagem deixa de ser internalizada pelos conteúdos historicamente produzidos e passa a se dar por repetições de exercícios aleatórios e descontextualizados. O conteúdo científico é substituído por um sistema de ensino em que o professor tem como meta trabalhar com as competências restritas e imediatas. Nesse sentido, a educação escolar não ultrapassa os limites do cotidiano, do senso comum e não contribui para a construção de um sujeito crítico, autônomo e consciente de sua posição na sociedade atual.

Palavras-chave: Referencial Curricular do Paraná. Teoria e Prática. Desenvolvimento do Psiquismo Humano.

Abstract: This study discusses theory and practice in the school environment and its relationship with the development of the human psyche. Specifically, we focus on the propositions of the educational public policy guidelines that guide the pedagogical practice in the State of Paraná, as is the case of the Curriculum Reference of Paraná: principles, rights and guidelines (PARANÁ, 2018a) and the Pedagogical Weeks (2010, 2018 and 2019), to discuss the model of education and the format of the construction of the subject proposed. The results show that the documents analyzed are empty of theoretical reflection, with a teaching methodology focused on “training” students through repetitive exercises, to achieve good grades in external evaluations. From this point of view, learning is no longer internalized by the historically produced contents, but by repetitions of random and decontextualized exercises. The scientific content is replaced by a teaching system in which the teacher aims to work with restricted and immediate skills. In this sense, school education does not go beyond the limits of everyday life, of common sense, and does not contribute to the construction of a critical, autonomous, and conscious subject of his/her position in today’s society.

Keywords: Curriculum Reference of Paraná. Theory and Practice. Human Psychism Development.

Resumen: Este artículo analiza la teoría y la práctica en el entorno escolar y su relación con el desarrollo de la psique humana. Específicamente, nos centramos en las proposiciones de los lineamientos de las políticas públicas educativas que orientan la práctica pedagógica en el Estado de Paraná, como es el caso del Currículo de Paraná: principios, derechos y orientaciones (PARANÁ, 2018a) y las Semanas Pedagógicas (2010, 2018 y 2019), para discutir el modelo de educación y el formato de la construcción del sujeto propuesto. Los resultados indican que los documentos analizados están vacíos de reflexión teórica, con una metodología de enseñanza centrada en el “entrenamiento” de los alumnos a través de ejercicios repetitivos, con el fin de conseguir buenas calificaciones en las evaluaciones externas. Desde este punto de vista, el aprendizaje ya no se interioriza por los contenidos producidos históricamente, sino por las repeticiones de ejercicios aleatorios y descontextualizados. El contenido científico se sustituye por un sistema de enseñanza en el que el profesor pretende trabajar con habilidades restringidas e inmediatas. En este sentido, la educación escolar no va más allá de los límites de la vida cotidiana, del sentido común y no contribuye a la construcción de un sujeto crítico, autónomo y consciente de su posición en la sociedad actual.

Palabras clave: Referencia curricular de Paraná. Teoría y práctica. Desarrollo del psiquismo humano.

Recebido em 28 de julho de 2021

Aceito em 01 de setembro de 2021

1 INTRODUÇÃO

Neste estudo, refletimos sobre a importância da educação escolar no rigor de sua intencionalidade, desde as séries iniciais, como promotora do desenvolvimento humano por meio da construção do conhecimento científico. Especificamente, analisamos o modelo de educação e o formato da construção de sujeito defendidos no Referencial Curricular do Paraná (PARANÁ, 2018a), documento que propõe uma educação centrada no âmbito das competências e habilidades, formando sujeitos resilientes. Esse referencial foi construído com a intenção de formar “corpos dóceis” de fácil manipulação para servir como mão de obra barata ao mercado de trabalho. Alinhando-se à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017), o documento estampa a atual política educacional brasileira, em que a educação perde sua função humanizadora em prol de uma “educação bancária”, como finalidade de produzir “consciências obnubiladas”.

Partimos do pressuposto de que o psiquismo humano se desenvolve por meio da cultura produzida e acumulada pelo homem, bem como de sua relação com as condições históricas e sociais concretas que se articulam à qualidade das atividades mediadas. Nesse contexto, intencionamos discutir a respeito da teoria e da prática no âmbito escolar e sua relação com o desenvolvimento do psiquismo humano, tomando por base o Referencial Curricular do Paraná: princípios, direitos e orientações (PARANÁ, 2018a) e as Semanas Pedagógicas (2010, 2018 e 2019). Nessa análise, procuramos destacar o distanciamento das políticas públicas educacionais que orientam a prática pedagógica no Estado do Paraná, as quais, por vezes, desconsideram a relevância da teoria articulada à prática (e vice-versa) no que se refere ao processo de ensino e de aprendizagem.

Metodologicamente, desenvolvemos um estudo teórico/bibliográfico, com base em autores como Duarte (2001, 2016); Franco (2016); Galvão, Lavoura e Martins (2019); Saviani (1996, 2011); Suchodolski (1976); Vázquez (2011), entre outros que comungam com os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica. Para o estudo bibliográfico, realizamos um levantamento de produções já existentes que tratam da temática, a partir de uma busca nas bases de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes), da Scielo e da Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Além da pesquisa bibliográfica, valemo-nos da técnica de analise documental, tendo como fonte primária a versão digital do Referencial Curricular do Paraná: princípios, direitos e orientações (PARANÁ, 2018a).

Entendemos que os documentos analisados se apresentam esvaziados de reflexão teórica, o que descaracteriza o conceito de práxis necessário no âmbito escolar. No tocante à formação continuada (especialmente no ano de 2019), apresenta-se uma proposta “inovadora”, todavia, trata-se de uma metodologia de ensino voltada a “treinar” os estudantes, por meio de exercícios repetitivos, para serem bem-sucedidos nas avaliações externas. Sob esse viés, a aprendizagem deixa de ser incorporada pelos conteúdos historicamente produzidos e passa ser treinada, isto é, mecanizada por repetições de exercícios aleatórios e descontextualizados. O conteúdo científico é substituído por um sistema de ensino em que o professor tem como meta principal treinar o estudante com uma gama de exercícios selecionados para fazer desse aluno um sujeito cada dia menos crítico, sem autonomia, distanciando-o de um princípio humanizador e emancipatório.

Para que possamos apresentar as reflexões propostas, inicialmente, discorremos sobre a articulação entre a teoria e a prática, as quais se alteram e se incluem em um processo formador da práxis. Na sequência, conduzimos as discussões no âmbito da prática pedagógica como uma ação docente fundamentada no Materialismo Histórico-Dialético, na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica. Contemplamos, ainda, as práticas pedagógicas contidas no Referencial Curricular do Paraná: princípios, direitos e orientações (PARANÁ, 2018a), no entendimento de que esse documento está fundamentado em uma educação hegemônica, inserido no lema do “aprender a aprender”, desenvolvida com base nas competências que dificultam o processo de conscientização do sujeito.

2 TEORIA E PRÁTICA NO CENÁRIO DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Concebemos que a teoria pedagógica que trabalha com o princípio da dialética, da complexidade e da totalidade entre os diversos fenômenos, tomando como pressupostos a cultura, o social e a historicidade na vida do homem, caracteriza-se como uma pedagogia com princípios marxistas, ou seja, uma pedagogia revolucionária que posiciona a escola na perspectiva de superação da sociedade capitalista e, consequentemente, das desigualdades sociais. Nesse sentido, a pedagogia que melhor adere a essa descrição é a Pedagogia Histórico-Crítica, que surgiu no final da década de 1970 com Dermeval Saviani.

A concepção de educação apresentada pela Pedagogia Histórico-Crítica pode ser caracterizada “como um movimento coletivo que tem procurado produzir nos educadores brasileiros uma tomada de posição consciente em relação ao papel da atividade educativa na luta de classes.” (DUARTE, 2016, p. 21). Quanto mais a prática pedagógica se desvincula do seu objetivo real - que é o de distanciar a educação do senso comum, ao transmitir os conteúdos clássicos -, mais se aproxima do cotidiano da sociedade capitalista, a qual limita a educação escolar em um marco de alienação.

Nesse sentido, concordamos com Saviani (2011) ao afirmar que,

[...] o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. (SAVIANI, 2011, p. 13).

O trabalho pedagógico é compreendido como um processo de humanização dos indivíduos, que incide no cerne do processo histórico de desenvolvimento do gênero humano. Dessa forma, a educação escolar deve direcionar o aluno, ao mediar a vida cotidiana e as esferas mais complexas de objetivação do gênero humano. A escola encontra-se em “situação privilegiada” (SAVIANI, 2011, p. 13), visto que a dimensão pedagógica perdura na essência da prática. Para tanto, é necessária a compreensão de que “a prática será tanto mais coerente e consistente, será tanto mais qualitativa, será tanto mais desenvolvida for a teoria que a embasa [...].” (SAVIANI, 2011, p. 91).

Na prática pedagógica, com um sentido transformador, é essencial fundamentar-se teoricamente para justificar a necessidade de transformação, mas é preciso também compreender o movimento inverso, isto é, a teoria a partir da prática, pois ambas se fundem em uma construção dialética no processo de ensino e aprendizagem. Saviani (2011, p. 120) afirma que, “se a teoria da prática se configura como contemplação, a prática desvinculada da teoria é puro espontaneísmo. É o fazer pelo fazer.”

Nessa lógica, a prática pedagógica deve ser concebida a partir de uma reflexão filosófica que apresente ao educador a possibilidade de superar a ação docente simplista e fragmentada, direcionada pelo senso comum. A consciência filosófica discute uma abordagem crítica dos problemas apresentados na realidade educacional. De acordo com o Materialismo Histórico-Dialético, não é possível compreender os fenômenos humanos em âmbito sociais na categoria da totalidade se não conhecermos a sinuosidade do contexto histórico e cultural. Desse modo, a prática pedagógica deve compreender os problemas educacionais à luz de tais conjunturas.

De acordo com Vázquez (2011, p. 260),

[...] à atividade prática social, transformadora, que responde a necessidades práticas e implica certo grau de conhecimento da realidade que transforma e das necessidades que satisfaz. Mas, mesmo assim, a prática não fala por si mesma, isto é, não é diretamente teórica. Como Marx observa em sua Tese VIII sobre Feuerbach, existe a prática e a compreensão dessa prática. Sem a sua compreensão, a prática tem sua racionalidade, mas permanece oculta [...].

A prática pedagógica, mesmo amparada pela prática social que expressa o conhecimento da realidade, da vida concreta dos sujeitos, ainda necessita da fundamentação teórica, uma vez que a compreensão da prática é intrínseca à teoria e, assim, reciprocamente. O papel que define a prática como fundamento do conhecimento não pode remover a conclusão de que teoria e prática se identificam e trilham o mesmo caminho, uma vez que a prática não se resume em si mesma, mas demanda uma relação teórica com ela, ou seja, uma compreensão da práxis.

Na Psicologia Histórico-Cultural, o homem é compreendido como um ser social, e as relações que estabelece com o mundo, com os seres da mesma espécie, o transformam. O homem diverge da espécie animal, uma vez que, por meio do trabalho, transforma a natureza e a aperfeiçoa de acordo com suas necessidades.

Nesse sentido, o conhecimento, na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, constitui-se na interação do sujeito com o objeto mediado socialmente. O desenvolvimento do psiquismo humano está enraizado na formação das Funções Psicológicas Superiores (FPS), as quais se desenvolvem por meio das práticas pedagógicas sistematizadas e orientadas à transmissão dos conceitos científicos. Esses, por sua vez, não são construídos por meio de uma prática pedagógica sem sustentação teórica consistente. Nesse caso, “a prática pedagógica será tanto mais consistente e coerente quanto mais desenvolvida for a teorização sobre ela.” (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 160).

No decorrer dos anos, encontramos muitas fragilidades para efetivar uma prática pedagógica revolucionária, uma vez que, para que ensino seja revolucionário, ele necessita ser construído no âmbito da formação dos conceitos científicos e da formação da consciência em suas formas mais elevadas. Dessa maneira, faz se necessário o

[...] combate a movimentos conservadores, como o “Escola sem Partido”, expressão de regressão democrática e de cerceamento de liberdades, exige que a educação assuma um ensino que não se identifica com “quaisquer conteúdos”, transmitidos em um edifício denominado escola. É preciso defender o ato de ensinar e o direito de aprender, em suas formas mais desenvolvidas. Esse é um desafio complexo, e as questões didático-pedagógicas estão umbilicalmente ligadas às demais esferas do complexo tecido que constitui a educação escolar (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 163).

As instituições de ensino, no cume de sua função social, que é a transmissão dos conhecimentos historicamente construídos e acumulados, devem assumir a prática pedagógica mediada pela Psicologia Histórico-Cultural e pela Pedagogia Histórico-Crítica, perspectivas que possibilitam a realização de atividades pedagógicas a serviço do desenvolvimento humano, fazendo com que os alunos reconheçam a sociedade na qual estão inseridos, momento em que

[...] a escola desponta como “campo de batalha”. Impor obstáculos à formação de consciências críticas, que apreendam os fenômenos físicos e sociais com radicalidade, é premissa para a manutenção da ordem instituída. Atacar e encaminhar as escolas públicas para o desmonte é estratégia para a manutenção de “consciências obnubiladas” e para a formação de “corpos dóceis”. É, mais que isso, representa também eliminar a educação como direito social e bem público, convertendo-a em mercadoria e a escola, consequentemente, em nicho de mercado (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 3).

O excerto em destaque auxilia-nos na compreensão de que a educação escolar, na atual conjuntura, vive momentos de repressão e de obscurantismo, no que diz respeito à valorização do pensamento científico. É nesse momento que a escola necessita reforçar as práticas pedagógicas, principalmente no sentido da sua caracterização de mediação dos conteúdos científicos. Por meio do Materialismo Histórico-Dialético, é possível compreendermos a educação escolar no âmbito da totalidade e da contradição, quer dizer, com vistas à formação omnilateral do sujeito. As práticas pedagógicas amparadas pelos pressupostos desse método criam possibilidades de romper com o obscurantismo e com a barbárie impregnados na essência da sociedade capitalista e, desse modo, propõem a autonomia e a humanização do indivíduo, que não podem ser fortalecidas e consolidadas por meio de uma educação escolar firmada nos princípios do imediatismo.

O processo de desenvolvimento e de aprendizagem, desde a Educação Infantil até a adolescência, necessita ser organizado de modo que a formação dos conceitos seja constante. Nesse processo, a prática pedagógica intencional medeia os conceitos cotidianos no viés da formação dos conceitos científicos, que serão formados no período da adolescência. Para tanto, o papel da educação escolar é fundamental para que essas questões sejam disponibilizadas.

Ressaltamos a necessidade de se considerar as etapas anteriores na construção desse processo, uma vez que o desenvolvimento humano, na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, ocorre por meio da mediação como aquilo que foi dito anteriormente. A mediação, entendida como atividade entre professor x aluno, é um importante movimento que age no desenvolvimento das funções psíquicas, atuando na zona de desenvolvimento iminente, que diz respeito àquilo que a criança realiza com ajuda do adulto ou com auxílio de crianças mais experientes, visto como possibilidades a serem desenvolvidas. O nível de desenvolvimento atual/real, por sua vez, é caracterizado por aquilo que a criança faz sem auxílio, sem a ajuda do outro, uma vez que já domina aquele conhecimento.

A zona de desenvolvimento iminente é a possibilidade de se atingir novos patamares de desenvolvimento, considerando-se que, se a criança não tiver ao seu lado pessoas que proporcionem saltos qualitativos de desenvolvimento psíquico, poderá ou não amadurecer algumas funções intelectuais. Nesse sentido, Vigotski (2021) trata o desenvolvimento da criança, não na perspectiva do ontem, mas sim do ponto de vista do dia de amanhã, quer dizer, aponta para o futuro, para as novas e mais estruturadas formações psíquicas. Os conceitos apropriados na zona de desenvolvimento real, por meio do processo de mediação, passam a ser incorporados chegando à zona de desenvolvimento iminente, em uma linha em espiral, e os conceitos científicos mediados pela prática pedagógica intencional (práxis) superam os conceitos cotidianos por incorporação.

3 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E O REFERENCIAL CURRICULAR DO PARANÁ: PRINCÍPIOS, DIREITOS E ORIENTAÇÕES

O Referencial Curricular do Paraná: princípios, direitos e orientações (PARANÁ, 2018a) foi construído após aprovação da BNCC pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e da homologação pelo Ministério da Educação (MEC), em 20 de dezembro de 2017. O Referencial Curricular, por sua vez, foi homologado pelo Conselho Estadual de Educação (CE), com base na Deliberação n. 03, aprovada em 22 de novembro 2018.

Esse documento “[...] será válido para todo o Sistema Estadual de Educação Básica do Estado, incluindo a Rede Estadual, as Redes Municipais e a Rede Privada de ensino. O Referencial estabelece os princípios, os direitos e objetivos de aprendizagens para a Educação Infantil e Ensino Fundamental.” (PARANÁ, 2018a.). O seu objetivo é nortear o trabalho pedagógico no âmbito escolar, na perspectiva de reformular, revisar e reorganizar os currículos de todas as instituições de ensino na esfera da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Estado do Paraná.

No decorrer deste estudo, verificamos que, diante dos pressupostos teóricos metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético, o Referencial Curricular apresenta fragilidades e parece não contemplar fundamentos teóricos suficientes para sustentar a prática pedagógica pautada na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica. Tais teorias tomam o Materialismo Histórico-Dialético como método de investigação científica para explicar seu objeto de estudo, em suas especificidades e complexidades, não perdendo de vista a totalidade, a materialidade e a dialética. Vigotski, precursor desta nova Psicologia, buscou no Materialismo Histórico-Dialético estudar as categorias que compunham o método de pesquisa de Marx, utilizando-se desse método para realizar seus estudos em psicologia.

A Psicologia Histórico-Cultural era vista, por Vigotski, não como o surgimento de mais uma corrente psicológica, mas sim como a construção de uma psicologia centrada na ciência e, nesse sentido, “Vigotski afirmou ser necessária uma teoria que desempenhasse para a psicologia o mesmo papel que a obra de O capital de Karl Marx desempenhou para a análise do capitalismo” (DUARTE, 2000, p. 80, grifo do autor).

Entendemos a Psicologia Histórico-Cultural como um dos principais fundamentos da educação escolar. No entanto, para que seus pressupostos se concretizem no trabalho educativo, ela necessita dialogar com uma pedagogia amparada em princípios marxistas, como é o caso da Pedagogia Histórico-Crítica: uma psicologia e uma pedagogia com bases epistemológicas comuns, convergentes, porém, cada uma com seu objeto de estudo, que dialogam entre si. Esse movimento confluente entre ambas se apresenta como um caminho para uma prática educativa que prima pela humanização e pela autonomia do sujeito como ser histórico construído culturalmente.

Nessa perspectiva, a atividade do trabalho principal, categoria do método marxista, contempla em seu bojo a possibilidade de transformação da espécie humana em gênero humano. Por sua vez, o trabalho educativo direcionado pelo processo de ensino e aprendizagem possibilita a formação da consciência em suas formas mais complexas quando a atividade escolar, ou seja, a tarefa organizada pelo professor permite que o estudante transforme o objeto de estudo e, ao mesmo tempo, a si mesmo. Desse modo, a Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica, adotando o mesmo método de análise, trabalham com a formação omnilateral do homem. Ambas as teorias buscam o vir a ser do sujeito, em uma perspectiva de desmembrar nele o essencial-geral do particular.

É nesse contexto que o Referencial Curricular do Paraná não demonstra apresentar essa possibilidade de transformação do sujeito, levando em consideração o seu rol de conteúdos prontos e engessados trimestralmente. Além disso, há a não compreensão por parte de muitos professores, considerando a carência de formação continuada, de quais atividades permitem que o estudante reestruture o material didático e o seu próprio modo de pensar e agir, já que sabemos que não é qualquer atividade que apresenta possibilidade de guiar o desenvolvimento no âmbito do pensamento científico.

No que tange à criticidade da pedagogia, essa exibe cada vez mais um distanciamento das práticas pedagógicas revolucionárias, uma vez que, de acordo com Franco (2016), é admissível discutir o esgotamento da racionalidade pedagógica. Observamos que a crítica e o diálogo se apresentam cada vez mais distantes das práticas educativas contemporâneas, as quais se encontram confundidas por pacotes instrucionais prontos, com o intuito de preparar as crianças e os jovens para as avaliações externas, como é o caso a Prova Paraná (2019 e 2020), direcionada à Educação Básica.

Nessa direção, Franco (2016, p. 54) argumenta que “a educação, rendendo-se à racionalidade econômica, não mais consegue dar conta de suas possibilidades de formação e humanização das pessoas.” A educação, formatada aos moldes do capital, tem proporcionado a formação de mão de obra barata para suprir a demanda do mercado, enquanto que o papel da educação escolar, no sentido de humanizar as pessoas, se encontra distante da sua real função, transformando o processo de humanização em processo de construção do saber alienado.

A prática pedagógica fundamentada pela Psicologia Histórico-Cultural e pela Pedagogia Histórico-Crítica não trabalha o desenvolvimento da aprendizagem do aluno por meio de atividades repetitivas, treinando-o para fixação dos exercícios ou para realizar a avaliações externas, mas sim, como defende Mèszáros (2007),

a escola deve incentivar a prática pedagógica fundamentada em diferentes metodologias, valorizando concepções de ensino, de aprendizagem (internalização) e de avaliação que permitam aos professores e estudantes conscientizarem-se da necessidade de uma transformação emancipadora [...]. (MÈZÁROS, 2007, p. 15).

Compreendemos que a transformação emancipadora do sujeito, por meio do trabalho educativo, ocorre com a internalização dos conceitos, os quais dependem da atividade elaborada pelo(a) professor(a). Essa internalização dá sentido às relações que circundam o mundo dos homens, apresentando-lhes perspectivas de transformação. Ou seja,

[...] a formação da psique humana constitui um processo em que o trabalho educativo consciente desempenha um papel decisivo. Esta educação apetrecha o intelecto humano com o saber acerca da realidade e das suas leis, capacitando os homens para uma eficaz actividade. Com estes processos mudam também as relações dos homens com o mundo circundante e mobilizam-se forças imensas da transformação revolucionária. (SUCHODOLSKI, 1976, p. 90, grifo do autor).

No entanto, percebemos que isso, na prática, não se tem efetivado, uma vez que o trabalho pedagógico desenvolvido atualmente no âmbito escolar não ultrapassa a compreensão do conteúdo curricular por exclusão; a compreensão por incorporação limita-se à esfera da não contradição do conteúdo. O exemplo da não contradição do conteúdo escolar encontra-se radicado nas práticas pedagógicas que se utilizam de uma Matriz de Referência por ano/série para treinar aqueles descritores que os estudantes não demonstram ter se apropriado. Essa Matriz é elaborada pela Secretaria Estadual de Educação (SEED) com a intenção de melhorar os índices das avaliações externas, nesse caso, a Prova Paraná.

Quando a teoria e a prática não se incluem na construção da práxis, existe a possibilidade da prática pedagógica se esvaecer. A educação escolar, no ápice de sua função, necessita compreender que a nossa sociedade se fundamenta no modo de produção capitalista, dividida em classes sociais. No entanto, a formação continuada de professores ofertada pelo Estado do Paraná não fundamenta os professores da Educação Básica a ponto de empreenderem tal discussão.

A prática pedagógica necessita estar aliada a um currículo que expresse, historicamente e culturalmente, a construção do conhecimento. A organização do currículo não deve ser fragmentada em uma condição de hierarquia, mas sim organizada de maneira que as disciplinas dialoguem continuamente. Nessa perspectiva, Saviani (2011) explica que

[...] currículo diferencia-se de programa ou elenco de disciplinas; segundo essa acepção, currículo é tudo o que a escola faz; assim, não faria sentido falar em atividades extracurriculares. Recentemente, fui levado a corrigir essa definição acrescentando-lhe o adjetivo “nucleares”. Com essa retificação, a definição, provisoriamente, passaria a ser a seguinte: currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola. E por que isso? Porque se tudo o que acontece na escola é currículo, se apaga a diferença entre curricular e extracurricular, então tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre-se caminho para toda sorte de tergiversações, inversões e confusões que terminam por descaracterizar o trabalho escolar. (SAVIANI, 2011, p. 15).

Nesse sentido, o currículo escolar deve orientar o conteúdo e a prática pedagógica no viés da cientificidade. A educação escolar, por sua vez, contempla em sua essência o saber erudito, a episteme (ciência), que resulta no saber elaborado. A especificidade da educação se dá por meio da concretude da prática pedagógica, a qual socializa o saber sistematizado, que não é um saber qualquer. Em uma perspectiva que se propõe à continuidade do salto qualitativo que visa à transformação do homem biológico em cultural, cabe à escola centrar suas ações pedagógicas em uma estrutura organizada.

Podemos dizer que o homem se faz humano pelo ato educativo. Esse ato deve ser organizado de maneira a identificar os elementos da cultura que, necessariamente, “precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos.” (SAVIANI, 2011, p. 13). Consequentemente, é preciso compreender o que é essencial e o que é acessório na composição dos elementos culturais, e, nesse aspecto, a pedagogia se sobrepõe como elemento fundamental em que não se pode perder de vista a importância da compreensão entre o clássico e o tradicional. Nesse contexto, torna-se relevante o entendimento de que, na organização dos elementos culturais, é necessária uma adequação do trabalho pedagógico, no sentido de organizar “conteúdos, espaço, tempo e procedimento” (SAVIANI, 2011, p. 13).

Diante disso, sugerimos que a prática pedagógica e o currículo sejam mediados com atividades que aproximem o indivíduo e a cultura humana. Devem ser realizados de forma intencional e conduzidos com o objetivo de garantir, de forma universal, as possibilidades suscitadas pelo processo histórico de desenvolvimento do gênero humano a todos os indivíduos.

Ao analisarmos o Referencial Curricular do Paraná (PARANÁ, 2018a), parece-nos que esse documento não se preocupa em articular a prática pedagógica no viés do desenvolvimento do gênero humano em sua forma consciente, haja vista que a teoria não se inclui na prática e vice-versa. A prática pedagógica é efetivada sem o conhecimento teórico, isso quer dizer que o conteúdo não amparado pela práxis se torna vazio de intencionalidade. O conteúdo que não direciona o sujeito às possibilidades da formação dos conceitos científicos e a uma concepção crítica da sociedade onde está inserido não contempla o processo de humanização.

O referido Referencial Curricular, fundamentado em teorias neoliberais, é composto e gestado por representantes de Secretarias que estão a serviço do poder, por isso, a não preocupação com a construção de um currículo que valorize a efetivação da práxis com o objetivo de que essa seja elemento na desconstrução da alienação.

Destacam-se como gestores do Referencial Curricular do Paraná a

[...] Secretaria de Estado da Educação do Paraná – SEED/PR, Conselho Estadual de Educação do Paraná – CEE/PR, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – UNDIME/PR e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação – UNCME/PR, considerando que são as instituições representativas dos sistemas estadual e municipais de educação e responsáveis por executar e normatizar a educação escolar nos diferentes sistemas. (PARANÁ, 2018a, p. 1, grifo nosso).

A defesa de um currículo organizado e desenvolvido com base nos princípios do Materialismo Histórico-Dialético, método que sustenta teoricamente o desenvolvimento da prática pedagógica fundamentada pela Pedagogia Histórico-Crítica, de acordo com as Diretrizes Curriculares de Educação Básica – DCEs – (PARANÁ, 2008), dilui-se quando analisamos a constituição do comitê gestor responsável por coordenar os trabalhos da constituição do documento curricular. Acreditamos que não representam o sistema estadual de educação e, tão pouco, os sistemas municipais de educação, mas sim exercem a representatividade do governo de cada segmento.

Tal análise parte do pressuposto de que as coordenações de cada instituição são compostas por membros próprios da instituição, como a comissão gestora da SEED, que, no caso da elaboração do documento curricular, foi constituída somente por professores que fazem parte do quadro de funcionário da própria Secretária Estadual. Esses professores descrevem a elaboração do documento como uma construção curricular coletiva, quando, na verdade, não passou de um processo aligeirado, no período do recesso do meio do ano e da Semana Pedagógica em julho de 2018. Os educadores da rede pública tiveram dois dias para analisar toda a proposta do novo Referencial Curricular enviado pela SEED, conforme informa a página Dia a Dia Educação, disponível no Portal da Educação do Paraná.

CAROS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO!

A Semana Pedagógica a ser realizada nos dias 26 e 27 de julho marca o início do segundo semestre de 2018 e um momento histórico no Estado do Paraná. Nesse momento, todos os profissionais da educação das redes estadual, municipal e privada estarão analisando e contribuindo com a elaboração do Referencial Curricular do Paraná: princípios, direitos e orientações, em um trabalho simultâneo e colaborativo das redes de ensino. No primeiro dia da Semana Pedagógica, as escolas terão um momento para acolhimento dos profissionais e orientações quanto à organização do trabalho pedagógico do segundo semestre. O segundo período desse dia, contempla atividades comuns a todos os profissionais da educação que atuam nas escolas, com a apresentação geral do Referencial Curricular do Paraná e sua fundamentação legal para análise e contribuições. No segundo dia, os professores das escolas regulares farão a análise e contribuições às etapas de ensino: Educação Infantil, Ensino Fundamental Anos Iniciais e Finais, conforme seus organizadores e componentes curriculares. Os professores que atuam nas disciplinas específicas da Educação Profissional discutirão a avaliação da aprendizagem e avaliação externa na perspectiva de estabelecer ações que potencializem a formação integral dos estudantes. (PARANÁ, 2018b, p. 1-2, grifo nosso).

Conforme a citação em destaque, o Referencial Curricular foi apresentado às escolas sem tempo para um estudo mais aprofundado. Totalizando 901 páginas, encontramos no documento 44 vezes as palavras “práticas pedagógicas”. No entanto, não localizamos a junção dos termos “prática” com “teoria” ou “teoria e prática”. Vejamos uma das vezes em que a expressão “práticas pedagógicas” foi utilizada:

As práticas pedagógicas devem conduzir ao contato e à aprendizagem sobre as especificidades expressas em diferentes tipos de manifestações artísticas e culturais. Para isso a criança deve vivenciar experiências diversas, que estimulem sua sensibilidade e valorizem seu ato criador. Desta forma, por meio de sensações, que devem ser as mais diversificadas possíveis, as crianças desenvolvem sua percepção que consequentemente contribui para se tornarem criativas. (PARANÁ, 2018a, p. 41, grifo nosso).

Nesse sentido, o documento, ao mencionar as Funções Psicológicas Superiores (sensação e percepção), não explica teoricamente a relação da atividade prática com as crianças, quer seja de estimular a sensação de maneiras diversificadas para desenvolver a percepção. Em nenhum momento, o documento aborda, de maneira mais aprofundada, o desenvolvimento do psiquismo humano como um todo. Nas 901 páginas que compõem o documento, Vigotski é citado somente duas vezes, no texto introdutório da disciplina de Arte, com as seguintes obras: “VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, ١٩٩٨3 e “VYGOTSKY, Lev Semenovitch. A imaginação e a arte na infância. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D`água, 2009” 4.

Ainda nesse viés de análise, notamos a preocupação com a manutenção e o gerenciamento de sistemas, o que permitiu a SEED disponibilizar uma consulta pública, que visava à formatação do currículo no que concerne ao período de avaliação da aprendizagem escolar, antes mesmo dele entrar em vigor.

Atualmente, a SEED direciona os trabalhos à escola, visando ao objetivo do ensino e à aprendizagem em uma perspectiva que demonstra um saber condicionado, repetitivo e memorizador, almejando o aumento do índice do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), mesmo que esses dados sejam camuflados, quer dizer, velados por um processo educacional fragmentado e distante do desenvolvimento psíquico do homem em suas formas mais complexas. Com a intenção de reforçar a preocupação da SEED com relação ao índice do IBEB, destacamos um fragmento da apresentação dos trabalhos pedagógicos dos Dias de Estudo e Planejamento de fevereiro de 2019:

Para tanto, a Secretaria de Estado da Educação e Esporte realiza, no período de 11 a 13 de fevereiro os dias de Estudo e Planejamento – 2019 - nas Instituições de Ensino da Rede Pública Estadual de Ensino e Escolas Especializadas. Essa formação destina-se a todos os Profissionais da Educação: Equipe Diretiva, Equipe Pedagógica, Professores e Agentes Educacionais. Em continuidade aos estudos iniciados na formação dos diretores, realizada no mês de janeiro, os dias destinados ao Estudo e Planejamento pretendem divulgar e analisar os dados do Ideb. (PARANÁ, 2019, p. 1).

Em nenhum momento percebemos o rigor teórico/prático do currículo, e tão pouco nas formações continuadas. Nessa perspectiva, Saviani (1996) valida que a reflexão filosófica possibilita ao educador a superação de uma compreensão sobre a prática pedagógica concebida de forma fragmentária, incoerente, desarticulada e simplista, guiada pelo senso comum, por uma compreensão unitária, coerente, articulada, intencional e cultivada, porque essa é guiada pela consciência filosófica. Trata-se de uma reflexão crítica sobre os problemas que se apresentam na realidade educacional. A superação, pelo educador, de uma prática pedagógica fragilizada encontra-se pautada na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica, teorizações que apresentam uma visão de formação humana de acordo com a categoria da totalidade expressa pelo Materialismo Histórico-Dialético.

A educação escolar, de acordo com Duarte (2016), caminha na direção do relativismo epistemológico e cultural que caracteriza as pedagogias hegemônicas na atualidade. A pós-modernidade relativizou o conhecimento, os conteúdos escolares, deixando de abranger a ciência, pois, nas palavras de Duarte, vemos que

[...] às vezes me parece que a classe dominante e os intelectuais a seu serviço têm mais clareza do que a própria esquerda acerca das consequências que podem advir da universalização de uma escola que permita o acesso à ciência, a arte e à filosofia. Não é por acaso que a burguesia mobiliza tantos recursos materiais ideológicos para assegurar que a escolarização da classe trabalhadora não se caracterize pela transmissão dos conteúdos clássicos. No que diz respeito à escolarização da classe trabalhadora, a burguesia e os intelectuais a seu serviço há muito tempo vêm lançando mão de duas estratégias, a da seletividade e a da precariedade. (DUARTE, 2016, p. 25-26, grifo nosso).

Diante disso, a educação formatada aos moldes do capital construiu um currículo vazio de cientificidade, atendendo à lógica do capitalismo. Nessa perspectiva, a mão de obra barata para suprir o mercado de trabalho não necessita de um currículo elaborado a partir de conteúdos clássicos e de práticas pedagógicas humanizadoras, ou seja, não necessita da práxis pedagógica, porque ela traz para a compreensão do sujeito o fato de que maneira o homem, mesmo imerso na materialidade do mundo real, não se confunde com ele no sentido de uma absorção passiva das condições oferecidas por este.

Estamos nos referindo ao Referencial Curricular do Paraná, quando esse estabelece nove princípios orientadores da Educação Básica a serem considerados na elaboração do currículo pelas redes de ensino e suas escolas. Para deixar mais claro o que estamos discutindo, destacamos, a seguir, alguns desses princípios.

De acordo com o Referencial Curricular, o segundo princípio orientador é a “Prática fundamentada na realidade dos sujeitos da escola, compreendendo a sociedade atual e seus processos de relação, além da valorização da experiência extraescolar” (PARANÁ, 2018a, p. 10). Esse princípio, que fundamenta a prática na realidade do aluno e valoriza a experiência extraescolar, volta-se à construção dos conceitos cotidianos, mesmo cientes que esses são a base para a formação dos conceitos científicos. A educação escolar não deve perder de vista a cientificidade no processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança, trabalhando com possibilidades de ultrapassar os conceitos cotidianos. Segundo Duarte (2016),

[...] quanto mais as ações realizadas no interior das escolas se assemelham ao cotidiano da sociedade capitalista, mais alienante se torna a educação escolar. Ao contrário das acusações feitas à escola ao longo do século XX, de distanciamento em relação à vida, minha interpretação é a de que à medida que a escola foi universalizando-se, a burguesia e seus aliados foram pondo em ação mecanismos que aproximaram as atividades educativas escolares às formas mais alienadas que a vida assumiu na sociedade capitalista. Há quem afirme que escola foi inventada para afastar a juventude da vida, isto é, da prática social. Pois eu afirmo que a escola atende tão melhor aos interesses da burguesia quanto mais ela fortaleça a identificação natural das novas gerações à vida “tal como ela é”. (DUARTE, 2016, p. 27, grifo nosso).

Dessa maneira, os pressupostos teóricos e metodológicos do Materialismo Histórico-Dialético, que sustentam a Pedagogia Histórico-Crítica, não estão contemplados no referido currículo. Analisando o quadro de conteúdos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, notamos que há uma apresentação dos conteúdos escolares, no entanto, não existe suporte teórico para amparar a prática pedagógica, nem no que se refere à parte teórica do documento e muito menos no que se refere à formação continuada do professor. Assim, os conteúdos e a prática fundamentada na realidade dos sujeitos da escola não superam o cotidiano, o que contribui para perder de vista a cientificidade do currículo.

Duarte reforça esse pensamento ao dizer que

[...] uma crítica feita com muita frequência aos currículos escolares é a de que eles seriam constituídos por “conteúdos prontos e acabados”, coisas mortas, inertes, desconectados da vida dos alunos e opostos ao caráter ativo que deveria ter a aprendizagem. É nessa direção que a educação escolar recebe o adjetivo de “conteudista” e, em contraposição, é defendida uma educação pautada na vida, nos processos de construção do conhecimento e na realização de atividades voltadas para questões do cotidiano. Morte e vida, inércia e atividade, passado e presente, produto e processo são realidades consideradas de maneira isolada e antagônica por esse tipo de crítica à escola. [...] reafirmarei a tese defendida pela Pedagogia Histórico-Crítica de que a escola é uma instituição cuja tarefa reside em fazer com que todos os indivíduos se apropriem dos conteúdos científicos, artísticos e filosóficos, como parte do processo de formação da individualidade para si [...]. (DUARTE, 2016, p. 48).

A expressão humana adquirida nas formas complexas da cultura não reduz nem anula as outras formas, mas determina novos processos de superação por incorporação. A educação escolar, por meio do currículo e da prática pedagógica, deve mediar o processo sistemático de ensino, o qual, fundamentado com o aporte teórico da Pedagogia Histórico-Crítica, permite a ascensão da subjetividade nos níveis mais altos e complexos alcançados pelo gênero humano. Essa pedagogia “situa-se na perspectiva de superação tanto do relativismo quanto do dogmatismo e toma a luta histórica pela emancipação do gênero humano como referência para postular que a escola trabalhe com conteúdos no campo científico [...].” (DUARTE, 2016, p. 110).

No segundo princípio, o Referencial Curricular destaca que “[h]á a necessidade de ressignificar a prática pedagógica e ultrapassar a ideia da pretensa homogeneização dos estudantes, considerando suas pluralidades. Isso implica, de acordo com a BNCC (2017), em aprofundamento teórico-metodológico [...]” (PARANÁ, 2018a, p. 14). Tal aprofundamento teórico-metodológico deveria ser orientado por meio de formação continuada mediada pela SEED, mas essa formação tem-se limitado a estudar o número de acertos e erros dos alunos na Prova Paraná (avaliação externa). A formação proposta pela SEED resume-se em apresentar dados estatísticos relacionados à avalição mencionada.

Para comprovarmos isso, destacamos um trecho das orientações gerais para a formação continuada de fevereiro de 2019: “Na rede pública estadual de ensino do Paraná, os dias de Estudo e Planejamento terão como foco o uso pedagógico dos resultados das avaliações externas, o diagnóstico e a elaboração de um plano de ação que tenha como foco o avanço da aprendizagem.” (PARANÁ, 2019, p. 1).

Como observamos, o foco da formação não foi trabalhar com o professor uma perspectiva teórica que poderia situá-lo no contexto educacional vigente, possibilitando-lhe uma leitura da realidade na educação, na sociedade, na política e na economia. Entendemos que a ação de ressignificar a prática pedagógica necessita da compreensão do que é a práxis, que é a teoria e a prática conduzidas no campo da intencionalidade, não pode estar inserida na esfera do imediato, do espontâneo e do relativismo epistemológico. Ainda, ressignificar é dar outro olhar, é propor mudanças, porém, não é isso que observamos nos princípios desse documento em pauta.

Nesse âmbito, analisando o Referencial Curricular do Paraná, há um exemplo de estratégia didático-pedagógica:

[...] o desenvolvimento de diferentes metodologias, atendendo a diversas necessidades e ritmos de aprendizagem, é a entrada da escola na cultura digital. Entende-se por cultura digital os processos de transformação socioculturais que ocorreram a partir do advento das tecnologias digitais de comunicação e informação (TDIC). Trabalhar na perspectiva da Educação na Cultura Digital possibilita aliar aos processos e às práticas educacionais novas formas de aprender e ensinar. (PARANÁ, 2018a, p. 14, grifo nosso).

O uso da tecnologia é um instrumento importante, no entanto, as práticas pedagógicas devem ser alicerçadas na teoria. As possibilidades de aprender e ensinar estão calcadas na busca do conhecimento, que é construído nas bases da formação de conceitos científicos. Para isso, o advento das tecnologias digitais da comunicação e da informação parece se manter no âmbito do conhecimento imediato e espontâneo. Desse modo, concordamos com Duarte ao afirmar que:

[...] o impacto dessas tecnologias sobre a vida social contemporânea, a começar do simples fato de que qualquer recurso tecnológico que seja disseminado pela sociedade exerce impactos sobre a maneira como as pessoas pensam o mundo. Mas continuo a afirmar o que defendi há anos (DUARTE, 2001), ou seja, que o uso dessas tecnologias não gera, por si mesmo, o acesso livre e pleno ao conhecimento. É importante não se esquecer a distinção entre informações e conhecimento. O conhecimento organiza-se em sistemas conceituais cujo domínio é adquirido por meio de processos que só raramente ocorrem na vida cotidiana. Cabe à escola a produção deliberada desses processos e a condução dos alunos pelas sendas do saber sistematizado. (DUARTE, 2016, p. 139-140).

Para Gramsci (1995) e Saviani (2008), a aquisição do conhecimento, por meio da educação escolar, é vista como uma importante parte do processo de formação humana. Para isso, as práticas pedagógicas encaminhadas por vias da tecnologia (cultura digital), no âmbito da escola, devem ser fundamentadas no currículo de forma a desenvolver no aluno suas formas mais complexas de pensamento, tornando-o liberto da “imediatez da vida cotidiana.” (DUARTE, 2016, p. 70).

O terceiro princípio citado no Referencial Curricular expressa “Igualdade e Equidade, no intuito de assegurar os direitos de acesso, inclusão, permanência com qualidade no processo de ensino-aprendizagem, bem como superar as desigualdades existentes no âmbito escolar.” (PARANÁ, 2018a, p. 10). Para as discussões a respeito do terceiro princípio, primeiramente, buscamos os conceitos das palavras: igualdade, equidade e qualidade.

Igualdade origina-se do latim aequalitas, que significa não se apresentar diferença de valor ou qualidade, mostrar a mesma proporção, dimensão, uniformidade, intensidade e paridade. Pode-se dizer também que igualdade é a falta de diferenças.

Equidade é um substantivo feminino, com origem na palavra latina aequitas. O significado de Equidade é exatamente o mesmo que sua palavra de origem: igualdade, simetria, retidão, imparcialidade e também conformidade. Equidade, com base em sua definição, está relacionada ao fato de a justiça ser igual para todos, de modo a prezar pelos direitos que cada indivíduo tem. Cada caso específico procura adaptar o conceito de equidade, para que ele sempre se mantenha justo.

Por fim, a qualidade é uma característica particular de um indivíduo ou objeto. Ela é vista como um conceito subjetivo, pois é a propriedade de qualificar diferentes tipos de objetos, de serviços, de pessoas etc. A qualidade é o modo de ser e está diretamente relacionada à maneira como cada indivíduo tem sua percepção sobre diversos fatores, tais como: serviço prestado, cultura ou produto. As expectativas e necessidades que as pessoas esperam de determinado fator tem forte ligação com o termo qualidade. Qualidade é um substantivo feminino e significa também um atributo, propriedade, predicado ou condição particular de uma coisa ou pessoa que a diferencia das demais. A qualidade se refere ao grau de precisão, de perfeição ou é necessário que algo esteja conforme determinado padrão.

Diante do significado dessas palavras, é possível compreender que os adjetivos adotados para a educação, no terceiro princípio do Referencial Curricular, partem de uma realidade que não considera a desigualdade social, uma vez que igualdade, equidade e qualidade não são conceitos a serem equiparados em uma sociedade dividida em classes sociais.

O Referencial Curricular do Paraná ressalta que

[...] para que esta realidade seja transformada, é importante considerar a escola como espaço em que a igualdade e a equidade possam constituir valores essenciais para a formação dos sujeitos, e por sua vez, apontem elementos para a construção de políticas públicas voltadas para a promoção da justiça social. (PARANÁ, 2018a, p. 15).

A educação, no viés da formação de sujeitos “colaborativos”, “resilientes” e “produtivos”, como temos presenciado, vem na contramão da proposta de considerar a escola como espaço de igualdade e de equidade. A educação apresentada no formato dos documentos atuais, como a BNCC (BRASIL, 2017) e o Referencial Curricular do Paraná (PARANÁ, 2018a), somando-se à classe dominante, demonstra nitidamente a intenção de produzir sujeitos passivos. Utiliza-se da educação para construir indivíduos cada vez menos conscientes e dependentes do sistema, servindo, dessa maneira, aos moldes do capital.

Duarte, ao citar Saviani (1982, p. 25), menciona que “[...] a escola é determinada socialmente; a sociedade em que vivemos, fundamentada no modo de produção capitalista, é dividida em classes com interesses opostos; portanto, a escola sofre determinação do conflito de interesse que caracteriza a sociedade.” (DUARTE, 2016, p. 9). Assim, “[...] as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCNEB) indicam que as instituições escolares, ao desenvolverem práticas pedagógicas que visem à promoção da equidade, reconheçam que as necessidades dos estudantes são diferentes, [...].” (PARANÁ, 2018a, p. 15). Por meio de tal afirmação, o documento em pauta explicita sua linha teórica em uma pedagogia distante dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórica-Crítica, uma vez que entendemos que a escola, por si só, a partir do currículo não consegue desenvolver práticas pedagógicas no âmbito da promoção da equidade, pois está imersa em uma totalidade denominada capitalismo.

A realidade tem demonstrado que, nesse sistema, a educação, que poderia ser um grande instrumento transformador dessa sociedade, é ajustada aos moldes desse mesmo sistema, que impede o sujeito de ampliar sua concepção de mundo, permitindo ser dominado pelos dominantes. Dito de outro modo, a educação não apresenta nenhuma relação com a promoção da equidade, conforme proposto no documento em análise.

Segundo Galvão, Lavoura e Martins (2019), vale ressaltar

[...] que para dominarmos e efetivarmos uma atividade educativa escolar a serviço do pleno desenvolvimento dos indivíduos e da sociedade há que se formar indivíduos capazes de dominar a própria sociedade. Assim posto, apelamos a Saviani (2009) ao afirmar a necessidade de que se ensine aos dominados aquilo que os dominantes dominam, sendo essa uma das exigências para a superação das condições de dominação. (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 2).

Ao utilizarmos o terceiro princípio do documento, queremos esclarecer que, na visão da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica, os princípios de igualdade e de equidade são estudados no viés do Materialismo Histórico-Dialético, ou seja, suas raízes estão fundamentadas nas categorias nucleares do marxismo: histórico de vida real do sujeito, contradição, condições de trabalho, totalidade. Segundo esse método, não é somente por meio das instituições de ensino e das práticas pedagógicas que se constroem os atributos necessários à promoção da equidade e da igualdade.

O quarto princípio orientador do Referencial Curricular do Paraná apresenta o enunciado “Compromisso com a Formação Integral, entendendo esta como fundamental para o desenvolvimento humano” (PARANÁ, 2018a, p. 10). O estudo desse princípio nos permitiu uma análise em que a orientação proposta sobre formação integral diverge, em linhas gerais, da educação em vigor, sendo a mesma que temos presenciado no ano de 2020, ano de estreia do referido currículo na educação paranaense. Dito isso, o documento curricular propõe o acesso

[...] aos conhecimentos historicamente construídos por meio de diferentes linguagens para agir com determinação, respeitando os princípios éticos, democráticos, inclusivos, estéticos e políticos. [...] Portanto, a educação não só organiza os conhecimentos construídos historicamente, como também, deve promover práticas democráticas que constituem valores básicos e fundamentais à cidadania. Contribui, também, para que os sujeitos repensem seus valores, hábitos e atitudes individuais e coletivas e procedam às mudanças necessárias que conduzam à melhoria das condições e qualidade de vida, ambiental, local e global. [...] Nesse sentido, a educação ultrapassa os limites da sala de aula, porque é um dos instrumentos de superação das desigualdades e discriminações. [...] Considerando os direitos e objetivos de aprendizagem, repensar o currículo constitui-se um grande desafio para os sistemas de ensino, tendo em vista a compreensão de que a educação vem a ser uma das possibilidades de transformação social, e a escola um espaço de diálogo, mudanças e contradições, sendo esses os elementos necessários para a construção de uma sociedade democrática. (PARANÁ, 2018a, p. 13, grifo nosso).

Esse fragmento destoa da realidade, uma vez que a sociedade, o sistema onde a escola está inserida, apresenta dificuldade em concretizar o que está sendo proposto. A perspectiva de educação citada no excerto não ultrapassa a lógica do discurso, em que tudo na educação é imposto, usando o nome da democracia.

A formação integral, como aliada do desenvolvimento humano, precisa, de fato, de uma educação que direcione o sujeito ao seu pleno desenvolvimento omnilateral e, a educação, segundo o documento mencionado, seguindo os moldes do capital, impede seu caráter de luta pela superação das desigualdades e discriminações.

Portanto, o Referencial Curricular como um todo foi firmado em princípios que não se coadunam aos da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica, visto que a intenção dessa política de governo é dar continuidade à desigualdade e à exclusão social.

Deparamo-nos, seja em âmbito nacional ou estadual, com uma educação formalizada em políticas públicas, as quais trabalham na desconstrução da humanização e da autonomia dos sujeitos, com um modelo de uma educação neoliberal e do discurso democrático. Esse cenário, veladamente, aniquila, de forma nefasta, legislações, diretrizes, enfim, leis que asseguram a educação em uma perspectiva Materialista Histórico-Dialética, como foi o caso das DCEs (PARANÁ, 2008) que, no início de 2020, cederam espaço ao Referencial Curricular.

O compromisso com a formação humana integral, como descrito nesse quarto princípio do Referencial, parece que não vem ao encontro da educação proposta no ano de 2019 e 2020, como já mencionado anteriormente neste trabalho. Essa formação pauta-se na pedagogia do “aprender a aprender”, ou seja, o conhecimento demonstra-se relativizado em consonância com as pedagogias hegemônicas. Essa tendência educacional pauta-se

[...] no fato de que vivemos em uma sociedade dinâmica, na qual as transformações em ritmo acelerado tornam os conhecimentos cada vez mais provisórios, pois um conhecimento que hoje é tido como verdadeiro pode ser superado em poucos anos ou mesmo em alguns meses. O indivíduo que não aprender a se atualizar está condenado ao eterno anacronismo, à eterna defasagem de seus conhecimentos. (DUARTE, 2001, p. 37).

Compreendemos que o conhecimento não pode ser relativizado, que “as relações entre o ensino dos conteúdos escolares e a formação/transformação da concepção de mundo são mediadas e complexas.” (DUARTE, 2016, p. 16). Por isso, a pedagogia do “aprender a aprender”, desenvolvida no campo do imediatismo, limita-se à lógica do capital, o que é coeso com a concepção de mundo que fundamenta a pedagogia das competências, tendência pedagógica defendida na BNCC (BRASIL 2017), documento-base para a construção do Referencial Curricular do Estado do Paraná.

A prática pedagógica que fundamenta o Referencial Curricular não assegura sua gênese na Psicologia Histórico-Cultural e muito menos na Pedagogia Histórico-Crítica. A descontextualização da práxis empobrece o currículo, pois, de acordo com Galvão, Lavoura e Martins (2019), a prática pedagógica histórico-crítica, “[...] pretende elucidar, de partida, a necessária unidade dialética existente entre “teoria” e “prática”, sobretudo por conta da “onda” irracionalista pós-moderna que fetichiza a segunda em detrimento da primeira.” (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 3).

Enfim, o Referencial Curricular do Paraná (PARANÁ, 2018a) destaca uma prática pedagógica que destoa significativamente com o que as teorias supracitadas propõem. Em nosso entendimento, a prática é inserida no processo de desenvolvimento e de aprendizagem do aluno quando dialoga com a teoria na construção da práxis. Entretanto, isso não acontece no documento proposto, uma vez que tal currículo não supera a prática cotidiana do senso comum, quer dizer, o conteúdo não é trabalhado no âmbito das contradições, as quais possibilitam a formação dos conceitos científicos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com o estudo realizado, analisamos o Referencial Curricular do Paraná (PARANÁ, 2018a), além das orientações para as Semanas Pedagógicas (2010, 2018 e 2019) de formação de professores. Em nosso exame, foi possível constatar que as fragilidades no processo de ensino e aprendizagem no âmbito escolar, no que diz respeito ao desenvolvimento do psiquismo humano, são decorrentes do distanciamento existente entre a teoria e a prática nos textos analisados. Não que sejamos ingênuos em acreditar que seja um fato novo, porém, algo que tem se acentuado significativamente com as atuais políticas.

Os documentos estudados não contemplam a práxis, uma vez que o professor, ao trabalhar os objetivos de aprendizagem de cada ano e cada nível de ensino, descritos no Referencial Curricular, encontra dificuldades em compreender em que o conteúdo incide em relação ao desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores. Entendemos com isso que a prática pedagógica desarticulada da práxis, de acordo com a orientação pautada nesse currículo, não apresenta ao professor possibilidades de compreensão do processo de desenvolvimento do psiquismo humano.

O Referencial Curricular do Paraná, amparando-se em teorias hegemônicas, desconsidera a importância da práxis, o que faz com que a educação se torne frágil e não permita a formação do pensamento por conceitos científicos. Isso implica a construção de uma sociedade alienada, de fácil manipulação e, atualmente (nos anos 2019, 2020 e 2021), mais do que em anos anteriores, o que observamos é a educação trabalhando na formação de sujeitos unilaterais, na lógica de que quanto menos os alunos se apropriarem dos conteúdos, da ciência, mais fácil se torna o seu controle e a sua dominação, já que passam a aceitar todos os tipos de exploração com um olhar de naturalidade e comodismo.

Consideramos que as Políticas Públicas e de Investimentos no âmbito da educação, historicamente e com maior força nos últimos anos, apontam o professor como responsável pelo esfacelamento da educação, principalmente no que diz respeito ao aprendizado do aluno e ao seu insucesso escolar. Faz-se necessário que as Políticas Educacionais invistam seriamente em condições de trabalho para o professor, na estrutura das escolas e uma formação continuada que permita ao docente se apropriar do conhecimento, fazendo com que trabalhe com o processo de desenvolvimento e aprendizagem do aluno em fontes científicas e, dessa maneira, afaste a educação escolar do senso da “imediatez” e do processo de “naturalização” dos acontecimentos, aspectos esses que, ao longo dos anos, estamos perseguindo.

No entanto, não é por meio de qualquer conteúdo curricular que se dá tal formação. Não é em qualquer condição de existência que o sujeito se humaniza. A constituição do ser humano parte das mediações culturais intrínsecas na função escolar, as quais permitem ou não a compreensão do mundo no qual o sujeito está inserido e suas contradições.

Assim, podemos dizer que o referido currículo não apresenta fundamentação teórica que sustenta os objetivos de aprendizagem propostos, uma vez que os conteúdos organizados denotam fragilidade na articulação entre a teoria e a prática, pois essas não se fundem na construção da práxis, dificultando o desenvolvimento do psiquismo humano em suas formas mais elevadas.

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência: Rua Universitária, n. 1619, Bairro Jardim Universitário, 85819-110, Cascavel, PR; erossetto2013@gmail.com


1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM); erossetto2013@gmail.com

2 Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (PPGE-Unioeste); Pedagoga pela Faculdade Unimeo – Ctesop; solange.castro@escola.pr.gov.br

3 A referida obra não é por nós recomendada, uma vez que, na tradução para Língua Portuguesa, fluí o teor político do autor, assim como essa tradução consiste de um terço da escrita no idioma original.

4 Essa obra traz o nome do autor escrita de maneira incorreta. A forma correta é Semionovitch.