https://doi.org/10.18593/r.v46.27438

Sobre a capa

Seção temática Uma alternativa às políticas currículares centralizadas

Foto da atividade do projeto SlamLevi na Escola Municipal Levi Carneiro da Rede Municipal de Ensino de Niterói – Rio de Janeiro, coordenado pelas professoras Adriana Arouck Damasceno e Luciene Alves. O relato dessa experiência, curricularmente muito expressiva e desafiadora, está expresso no texto de Adriana Arouck Damasceno que pode ser conhecido na sequência. Agradecemos as professoras, a escola e os alunos e as alunas envolvidos pela autorização para publicar essa foto.

Alice Casimiro Lopes

E.M. Levi Carneiro da Rede Municipal de Ensino de Niterói – RJ

Professora responsável: Adriana Arouck Damasceno

Projeto SlamLevi: Relato de experiência

“Get up, stand up!

Levante, resista!

Get up, stand up: stand up for your rights!

Levante, Resista: lute pelos seus direitos!”

Bob Marley

O Projeto SlamLevi surgiu no decorrer de 2019 como forma de fomentar formação crítica, autoestima, cidadania, gosto pela leitura, pela expressão oral e pela escrita junto aos alunos de 6º ao 9º ano na E. M. Levi Carneiro, localizada no Sapê em Niterói-RJ.

Sou professora de português e Capoeira Angola nessa escola. Cito também minha formação e atuação como capoeirista, porque essa Arte de matriz africana - e o modo como aprendo e me desenvolvo no Ngoma (Escola de Capoeira Angola) - têm muito a ver com o fato de eu ter estado à frente do Slam. A noção da capoeira como resistência, como afirmação da inteligência negra numa sociedade que estruturalmente racista, me despertou para a busca da descolonização do pensamento que incide na minha busca por novas práticas pedagógicas.

Tudo começou com uma conversa minha com a também professora de português, Luciene Alves na sala dos professores da Levi. Comentávamos sobre a importância de instigar a vontade de posicionamento em alunes na nossa escola. Estávamos sentindo apatia crescente nos adolescentes. Notávamos desânimo na hora de elas e eles se expressarem. Faltava o que dizer? A gente se questionava. Onde a gente estava falhando para não conseguir despertar a vontade discente para protagonizar o processo de aprendizagem?

Profa Luciene Alves é cantora, portanto uma artista, além de professora da escola, e foi dela que ouvi pela primeira vez falar em Slam. Fiquei fascinada com a possibilidade de levar para es alunes a dinâmica dessas performances poéticas. Fiquei encantada com o mundo de possibilidades em função dos pilares da resistência que baseia essa manifestação cultural contemporânea que tem atraído pessoas de todas as idades.

As batalhas poéticas do Slam surgiram nos USA na década de 1980 com o caráter de denúncia e protesto contra uma determinada organização de mundo que privilegia uns em detrimento de outros. Talvez por isso aqui tenha ganhado adesão de jovens de periferias, já imersos na cultura de batalhas de MCs, do Rap que aparecem como representação da voz dos menos favorecidos numa sociedade desigual; dos que não são aceitos socialmente; os excluídos dos privilégios sociais. O protesto com esse caráter de jogo, de batalha, sem dúvida, é um dos elementos que torna o Slam atrativo para o público jovem pelo mundo. Aqui no Brasil, essa manifestação cultural só chegou em 2008 com a poetisa Roberta Estrela D’Ávila, do ZAP, Zona Autônoma da Palavra, em São Paulo.

Com os Slams, os jovens estão levando a sua voz, sua crítica, sua palavra-protesto pra rua, tirando a palavra poética desse pedestal elitizado e popularizando o gênero poesia. Por isso está ganhando mais e mais adesão dos adolescentes e jovens, principalmente nas áreas menos privilegiadas das cidades. Vi como um caminho de promoção de revolução cultural em tempos de falta de interesse generalizada dos estudantes. E me entusiasmei ... e fui buscar parcerias para realizar.

Eu e Luciene então organizamos a apresentação na escola de um Slam muito especial composto por quatro jovens incríveis do “Slam das Mina” da nossa cidade liderado pela raper Marcelly Cash. A apresentação foi poderosa. As diretoras Eliane Gordiano e Jackeline Marques se entusiasmaram muito. Todo o alunado vibrou com a presença desse Slam. Foi incrível a energia vinda daquelas jovens que tematizavam uma realidade que rapidamente estabeleceu conexão conosco, educadores e alunes, que assistiam àquelas jovens falar sobre “Machismo”, “Racismo”, “Preconceito social”, “Violência imposta pelas incursões policiais”, “Gêneros e minorias”... Poesias faladas em performances impactantes. Tocando em feridas sociais. De repente também cantavam. E muito bem. Foi arrebatador! Sentimos naquela hora a força do “Slam”, vale aqui comentar que esse termo de origem inglesa significa “batida”, “tapa”. Palavra vibrante como um grito, que soa com a força de “batidas”; denúncia que se apresenta como “tapa” na cara da sociedade.

Com isso, veio a ideia do projeto, que foi comemorado pela gestão da escola. O primeiro passo foi a ampla divulgação com cartazes pelo espaço escolar buscando a adesão des alunes. O propósito era buscar alunes dispostos a embarcar conosco na formação de um Slam. A performar. A escrever. A contribuir. Tinha lugar pra diversas contribuições, bastava participar pra descobrir. Em seguida, eu fui de sala em sala falar um pouco do que vinha ganhando a cabeça da juventude pra que os discentes do Fundamental II dessem uma chance, acreditassem comigo no projeto e se inscrevessem. Tive alunes parceirxs do projeto da capoeira que me ajudaram na divulgação do Slam e no entusiasmo com a ideia. É traço característico da nossa escola trabalhar com projetos. Nosses alunes esperam por isso. Gostamos de trabalhar com Artes (capoeira angola, dança, teatro, música, canto) investindo na ludicidade pra provocar interesse e engajamento nos estudos. A maior parte do alunado não sai do Sapê pra nada. A escola atua, com isso, como um portal que possibilita acesso a muitos bens culturais. Talvez esse tenha sido um fator relevante para que, no decorrer do tempo, o perfil do nosso alunado fosse ganhando cada vez mais esse traço de interesse pela expressão artística. Inclusive nossa escola é conhecida na rede municipal por esse caráter.

Por isso não foi difícil encontrar os integrantes do SlamLevi. E depois de formado o grupo, começamos a nos encontrar na sala de leitura. A minha formação como angoleira entrou em cena, porque é uma formação que me abre a cabeça para trabalhar fora da caixa, me tornou mais sensível a entender as nuanças do corpo, que fala, expressa recalques, dores... ao avivar o entendimento em mim do ser humano como ser político.

Nos encontros iniciais, conversamos muito. Estudamos o Slam para entender os seus fundamentos. Assistimos a muitos vídeos de performances. Lemos muitos poemas, conhecemos muitxs poetas de Slams como Mariana Felix, Bell Puã, Pietra Poeta, entre outros. Sempre em roda, onde todos os olhares podiam se comunicar. Desses momentos, tiramos as temáticas para que nosso Slam pudesse se inspirar e escrever sobre: “Racismo”, “Machismo”, “Preconceito social”, “Intervenção policial” qualquer tipo de “discriminação”, “bullying”. Esses foram os eixos escolhidos por elas e eles. Em seguida, partimos para a dinâmica dos ensaios: começávamos, como já disse, sempre na roda de conversa, líamos os poemas produzidos, debatíamos e contribuíamos com uma reescrita. Ou aprovávamos para entrar em cena de algum modo. No começo, eu atuava mais com minha mediação. Aos poucos, foram tomando gosto por protagonizar mais e mais em todas as frentes do projeto. Tinham solução para quaisquer problemas no processo de construção da apresentação. Todos os poemas, inclusive uma canção do gênero funk, são de autoria des alunes, que foram entendendo que tinham, em relação a muitos temas, mais autoridade do que eu para falar, simplesmente porque sentiam na pele muito do que líamos sobre. Em seguida, partíamos para os exercícios, jogos e técnicas teatrais do teatrólogo Augusto Boal. A apresentação foi construída muito apoiada no Teatro do Oprimido, uma vez que as dinâmicas abriam as mentes para entender-se no mundo e aprofundavam a noção de respeito e empatia. Foram pouco a pouco se empoderando, tornando-se muito questionadores da realidade circundante e passaram a escrever expressando um posicionamento. Uau!!!

Então foi tomando forma nosso trabalho. Es alunes escreviam poemas dentro das temáticas eleitas para apresentá-los ao coletivo nos dias marcados. A maioria escreveu. Muitas vezes, os poemas eram adaptados na hora da performance. E todes participavam numa autoria coletiva que foi nos unindo muito. Foi nos fazendo debater sobre os temas espontaneamente, problematizando em rodas de conversa a relação dessas temáticas com a vida pessoal de cada um. Histórias muito tristes foram compartilhadas e, delas, a inspiração para novas composições poéticas surgindo. Lembro-me de um momento muito marcante envolvendo questão de gênero. O aluno abriu que sofria por não expressar seu verdadeiro gênero e seu sofrimento por isso. Disse ter sentido vontade de por fim à vida diversas vezes por esse motivo, gerando muita comoção no coletivo. Lembro-me do afeto por ele que o grupo espontaneamente manifestou após o relato. Um abraço coletivo que significou dividir com ele a dor e a esperança para construir outro mundo de mais compreensão pela diferença e respeito. Vivi ali um dos momentos mais bonitos da minha vida docente, mais humano, de maior exemplo de solidariedade e empatia.

Nos encontros, foram se definindo os papéis naturalmente: o que participava de tudo; o que só performava; o que só escrevia; as que cantariam além de declamar; o que só cuidava da criação do figurino; da maquiagem; da produção (responsável por solicitar à gestão o que precisávamos para a montagem, nos provendo assim com materiais, além de fazer a divulgação permanente da existência do SlamLevi na escola visando à entrada de novos integrantes).

Contamos com importantes parcerias. Não se faz mesmo nada só e es alunes foram vivenciando isso e constatando em diferentes momentos da construção do projeto a importância de buscar apoio fora do coletivo também. Ana Capabianco, professora de Artes da escola, foi convidada pelo coletivo a participar e fez a maravilhosa faixa no estilo grafitagem com es alunes da turma 7B para compor nosso cenário. Levamos a grafitagem para nosso figurino de tão felizes com a faixa. Cada um de nós pintou sua própria camisa no mesmo estilo, dialogando assim com uma faixa muito colorida, composta também com “palavras de ordem” conectadas às temáticas dos poemas. A professora Luciene Alves, grande parceira já citada, cuidou da direção musical e preparou as meninas que cantaram; esteve muitas vezes comigo à frente dos ensaios fazendo excelentes contribuições. As diretoras geral e adjunta, Eliane Gordiano e Jackeline Marques, foram apoio indispensável para o sucesso do projeto no valor dado à ação, no apoio, no entusiasmo, na abertura para ouvir e atender as incansáveis solicitações nossas. O pedagógico da escola também vibrou com a iniciativa. As coordenadoras de turnos, colegas professores, as profissionais da limpeza (muitas vezes nosso primeiro público) e os responsáveis des alunes que se engajaram e apoiaram suas filhas e filhos nesse aprendizado e tiveram papel indispensável, porque seguraram a faixa e garantiram nosso cenário na apresentação. Foram indispensáveis para a boa realização, portanto. E por fim a Fundação Municipal de Educação de Niterói valorizou a ação dando espaço para nossa apresentação no Concurso de Poesia que ocorreu no Teatro Popular da cidade no encerramento do ano de 2019. E foi uma noite mágica de muita autoestima, especial na afirmação da identidade do nosso coletivo e do empenho como caminho para conquistas.

O grupo amadureceu muito e tomou decisões das quais me orgulho durante o processo e revela, ao meu ver, o aproveitamento psicológico desse projeto. Lembro de um evento muito significativo. Numa de nossas rodas de conversa, sugeri que daríamos um salto de qualidade na apresentação se decorassem e performassem sem o apoio de um papel. Coloquei que a escolha seria delas e deles; porque seriam elas e eles lá no palco diante de um público na hora. Entreolharam-se e decidiram tentar. E foi muito sábio terem escolhido a coragem, porque conseguiram.

Outra importante decisão do coletivo foi em relação à competição. Não queriam uma dinâmica de competição como a de uma batalha poética. Com isso, nos afastamos do modelo do Slam que segue determinadas regras como um júri eleito na hora que elege um vencedor ao final da batalha. Embarcamos assim num contorno de Roda cultural, sob o eixo da colaboração, inspiradxs no Slam.

Com a palavra que é grito, que é ocupação de espaço simbólico na cultura dominante, fomos descortinando o espaço em torno da escola, o contexto social, os discursos adjacentes nos comportamentos guiados pelo senso comum presentes no nosso cotidiano. E tudo isso foi direcionado para a criação da palavra poética.

Quando cheguei à escola há uns 10 anos atrás, vivíamos uma outra atmosfera escolar. Havia problemas de indisciplina, como em toda escola. Mas não tínhamos uma escola assolada pela depressão, automutilação, baixo autoestima entre adolescentes como hoje. Quais as razões disso?

A escola se localiza no Sapê - como já disse - em meio a muitas favelas e condomínios de luxo. Logo falo de uma área onde o contraste social é muito evidente. Ademais, nossa escola atende pra além do bairro dela. Temos muitxs alunes oriundos do Complexo do Caramujo, por exemplo; um conglomerado de pequenas favelas que cresceu aceleradamente nessa última década por várias razões. Talvez uma das mais impactantes tenha sido a política das UPPs na cidade do Rio de Janeiro que levou muitos criminosos de alta periculosidade a migrar para o Morro do Caramujo, o que mudou completamente a relação dos moradores com os espaços públicos. Nesse caso, significa dizer que um lugar razoavelmente tranquilo no passado, onde as crianças podiam brincar até tarde na rua, hoje se transformou num lugar muito perigoso, pois o movimento do tráfico e as incursões policiais mantêm todes ali em estado de alerta permanente. Claro que isso chegou à escola e de variadas maneiras. As consequências desse crescimento não vieram acompanhadas de medidas necessárias para o atendimento à comunidade com serviços básicos. Essa ausência do Estado acabou por contribuir muito com o aumento da violência e com a ainda maior precarização da vida dos moradores. É provável que isso tenha muita relação com o aumento do número de casos de depressão, ansiedade e automutilação entre nossos alunos adolescentes. Outro ponto a ser considerado é que, a cada ano, alunes parecem mais alienados dos problemas sociais - talvez como forma de fugir desses problemas - que impactam muito suas vidas. Por isso o interesse por um projeto que promovesse Formação Crítica e Posicionamento.

Um corpo negro

MATHEUS REISH - 9 º Ano – SlamLEVI -2019

Saindo do portão de casa

O objetivo era dançar e dancei...

Fui parado com pedras e tiros

“Negro, favelado não combina com ballet”

E o Racismo rondando...

tentando rasgar minha sapatilha

esmagar meus sonhos

[...]

Nesse coletivo, cultivamos o reconhecimento do nosso lugar social, quem somos no jogo social e quais as causas para as tensões entre os diferentes lugares. Afirmamos o orgulho de um pertencimento: à escola, ao bairro, à cidade, à origem, à família, à ancestralidade, a uma história de própria autoria que se apresenta como possibilidade. Por isso tivemos que enfrentar a leitura da difícil realidade marcada pela violência e pela morte que existe no entorno da nossa escola e nos impacta a todes. Por isso um sentimento de nostalgia em relação a um tempo passado considerado menos violento, que antagoniza cada vez mais com o hoje, domina o imaginário da nossa comunidade escolar.

Quero bala

THAINÁ BERNARDO – 9º Ano- Slam Levi- 2019

Quero Bala

Mas quero bala de comer

Não de morrer

Quero bala de pôr na boca

Não de levar uma vez ou outra

Quero bala doce

Não bala perdida

Quero bala que dá alegria

Não bala que tira a vida

Quero bala vinda do seu Zé

Não do policial mané

Quero uma bala que se dissolve na boca

Não uma que atravessa a pessoa

Agora levar bala é bala perdida

Mas antes era bala do seu Zé da lojinha

O desgosto dos pais é perder

Filho por bala perdida

E saber que aquela criança não terá

Mais um futuro a seguir na vida

Desse esforço, emergiu a formação crítica, que avivou em nós a percepção de um mundo regido por um discurso dominante, uma voz que se afirma como centro dominante de outras vozes taxadas de periféricas. Que centro é esse? Chegamos ao entendimento de que isso não é natural e que esse status está em constante mobilidade em razão das lutas de classe numa sociedade capitalista. E a luta exige posicionamento, principalmente quando se está do lado mais vulnerável. Por isso não se tratou de cultivar o orgulho de se está à margem numa sociedade desigual. Mas de entender-se como cidadã e cidadão numa sociedade com direitos e deveres. Significou despertar a consciência para o fato de que vivemos numa sociedade em que muitos, e por diferentes motivos, têm direitos sociais constantemente desrespeitados, por isso a importância de se ter visão crítica e posicionamento. Só assim se exerce de fato uma democracia, que não é dada como um presente, mas construída com luta diariamente. Então repete bem alto: “É pra ouvir !!!!!“SlamLevi!!!”