https://doi.org/10.18593/r.v47.27430
Educação escolar em tempos de pandemia: direito à educação, ensino remoto e desigualdade social
School education in times of pandemic: the right to education, remote education, and social inequality
Educación escolar en tiempos de pandemia: derecho a la educación, educación a distancia y desigualdad social
Cesar Augusto Rogrigues1
Universidade Federal do Espírito Santo, Centro Universitário Norte do Espírito Santo, Departamento de Educação e Ciências Humanas, Professor Adjunto A.
https://orcid.org/0000-0001-5993-608X
Resumo: O artigo discute o tema da inclusão/exclusão no campo da educação escolar enfatizando as políticas públicas, sobretudo as elaboradas durante a pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Entre essas, destaca-se o ensino remoto como alternativa mais comum das Secretarias Estaduais de Educação visando garantir o direito à educação. Contudo, a partir da análise das políticas públicas adotadas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo em 2020, em especial durante o período de pandemia, verifica-se que, além de insuficientes na garantia do direito à educação de maneira igualitária, tais políticas acabam por reforçar ainda mais a desigualdade social intrínseca ao sistema capitalista. Com base na abordagem histórico-cultural, analisam-se as limitações e contradições envolvendo o ensino remoto, evidenciando a maneira pela qual essa alternativa, não por acaso, está diretamente ligada ao processo de aprofundamento da precarização das políticas públicas educacionais a partir da crise econômico-política brasileira dos últimos anos e que se expressa agora de maneira contundente em meio à crise sanitária determinada pela pandemia. Conclui-se que a luta cotidiana por ampliação do direito à educação deve ser a mediação de um projeto de inclusão para além do capital.
Palavras-chave: inclusão/exclusão escolar; ensino remoto; desigualdade social; direito à educação; políticas públicas educacionais.
Abstract: The article discusses the theme of inclusion/exclusion in the field of school education, emphasizing public policies, especially those developed during the new coronavirus pandemic (Covid-19). Among these, remote teaching stands out as the most common alternative for the State Departments of Education in order to guarantee the right to education. However, from the analysis of public policies adopted by the São Paulo State Department of Education in 2020, especially during the pandemic period, it appears that, in addition to being insufficient in guaranteeing the right to education in an equal manner, such policies they end up further reinforcing the social inequality intrinsic to the capitalist system. Based on the historical-cultural approach, the limitations and contradictions involving remote teaching are analyzed, showing the way in which this alternative, not by chance, is directly linked to the process of deepening the precariousness of educational public policies from the economic crisis -Brazilian policy of recent years and which is now expressed in a forceful way in the midst of the sanitary crisis determined by the pandemic. It is concluded that the daily struggle to expand the right to education must be the mediation of an inclusion project that goes beyond capital.
Keywords: school inclusion/exclusion; remote teaching; social inequality; right to education; educational public policies.
Resumen: El artículo aborda el tema de la inclusión / exclusión en el ámbito de la educación escolar, haciendo énfasis en las políticas públicas, especialmente las desarrolladas durante la nueva pandemia de coronavirus (Covid-19). Entre estos, la teleeducación se destaca como la alternativa más común de los Departamentos de Educación del Estado para garantizar el derecho a la educación. Sin embargo, a partir del análisis de las políticas públicas adoptadas por la Secretaría de Educación del Estado de São Paulo en 2020, especialmente durante el período pandémico, parece que, además de ser insuficientes para garantizar el derecho a la educación en igualdad de condiciones, tales políticas terminan reforzando aún más la desigualdad social intrínseca al sistema capitalista. A partir del enfoque histórico-cultural, se analizan las limitaciones y contradicciones que implica el aprendizaje a distancia, mostrando la forma en que esta alternativa, no por casualidad, está directamente vinculada al proceso de profundización de la precariedad de las políticas públicas educativas a partir de la crisis económica - Brasileña política de los últimos años y que ahora se expresa de manera contundente en medio de la crisis de salud determinada por la pandemia. Se concluye que la lucha diaria por ampliar el derecho a la educación debe ser la mediación de un proyecto de inclusión que vaya más allá del capital.
Palabras clave: inclusión/exclusión escolar; enseñanza remota; desigualdad social; derechos a la educación; políticas públicas educativas.
Recebido em 15 de abril de 2021
Aceito em 09 de novembro de 2021
1 INTRODUÇÃO
A pandemia do novo coronavírus tem impactado a vida da sociedade brasileira, mas não de maneira homogênea. É certo dizer que, com milhões de infectados e centenas de milhares de pessoas mortas pela doença em praticamente um ano, a propagação do vírus se mostra como real ameaça à vida de todos, demandando novos hábitos pessoais e de sociabilidade. Porém, enquanto uma parte pequena da população pode cumprir, sem maiores dificuldades, todos os protocolos de prevenção à Covid-19, especialmente aqueles relacionados ao distanciamento social, podendo sobretudo ficar em casa, alimentar-se e acessar os serviços de saúde, isso está fora de cogitação para a outra parte da população, especialmente aquela em situação de pobreza.
O fato é que a pandemia desnudou e aprofundou o quadro da desigualdade social presente histórica e estruturalmente no Brasil, devido à condição economicamente dependente do país no interior do sistema capitalista mundial.
Esse aspecto constitutivo da desigualdade social é, inclusive, o que explica não só a manutenção do processo de acumulação de capital e de concentração da riqueza como também a forma pela qual os problemas historicamente existentes na sociedade brasileira, e agravados durante a pandemia, são administrados politicamente. Esta doença que assola o Brasil desde março de 2020 evidencia esse fenômeno, por exemplo, ao observarmos que, o momento em que o país mais necessita de investimentos em áreas sociais, a política econômica do atual governo federal e do Congresso Nacional segue em sentido oposto, mantendo-se fiel ao ideário neoliberal de diminuição do papel do Estado como regulador social e econômico. Postura que impossibilita qualquer perspectiva de reversão do colapso do sistema de saúde, do desemprego e da miséria e dos consequentes danos ao direito à educação que se aprofundaram ao longo da pandemia.
O Estado brasileiro segue impedido de investir recursos suficientes nas áreas sociais, não só por optar pela conservação do Novo Regime Fiscal estabelecido pela Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016 (BRASIL, 2016), que congelou o teto dos gastos públicos, como por promover o aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento econômicos, por meio da manutenção da agenda de privatizações de empresas públicas – economicamente estratégicas para a soberania nacional –, e de contrarreformas que retiram o pouco que ainda restou de direitos sociais e trabalhistas.
A falta de recursos públicos esteve ao lado da ausência de planejamento que objetivasse o atendimento das reais necessidades da população. Entre elas, destacamos a educação escolar pública, objeto de nossa análise, como uma das áreas sociais mais afetadas no período.
Para discutirmos esse problema, analisaremos especificamente a situação da educação no estado de São Paulo, que, desde o cancelamento necessário das aulas presenciais em 2020, convive com situações de desigualdade de acesso a tecnologias da comunicação e da informação para o ensino remoto e a direitos mais elementares, como o direito à alimentação escolar dos estudantes da rede pública estadual, o que, por consequência, resulta em desigualdade de acesso ao direito à educação. Tais problemas se devem a decisões equivocadas ou ausência de decisões da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, além de adoção de critérios pedagógicos duvidosos, alguns deles concebidos por empresas, institutos e fundações empresariais, como é o caso da parceria entre a Secretaria e o Instituto Ayrton Senna.
Tendo por base a abordagem histórico-cultural, o artigo pretende analisar essas limitações e contradições envolvendo o ensino remoto durante a pandemia do novo coronavírus e, do ponto de vista histórico-social, discutir o conflito entre o direito à educação e o dever do Estado de garanti-lo. Enfatiza-se o tema da inclusão/exclusão na educação escolar, procurando demonstrar que a desigualdade educacional, que é resultado da desigualdade social, é uma consequência de ações, decisões e omissões governamentais que vão na contramão do interesse público, especialmente durante um período em que os direitos sociais são mais do que nunca imprescindíveis, como é o caso deste que estamos vivendo.
2 O CONFLITO ENTRE O DIREITO À EDUCAÇÃO E O DEVER DE EDUCAR
Em 2020, o Brasil registrava 47,3 milhões de matrículas de estudantes na educação básica. Separando esse total de matrículas por dependência administrativa, verifica-se que, enquanto a rede privada foi responsável por 18,6% das matrículas, as redes públicas continuaram acolhendo a grande maioria dos estudantes em todo o país, a saber, 81,5% dos estudantes (38,5 milhões). A rede municipal foi responsável por 48,4% das matrículas; a rede estadual, por 32,1% e a rede federal, 1% (BRASIL, 2021b).
Embora a análise em abstrato dos dados seja positiva, uma vez que este trabalho se situa no campo daqueles que defendem a educação pública, universal, laica e gratuita, sabemos que a maior parte desses 38,5 milhões de estudantes são oriundos daquela parcela da classe trabalhadora menos favorecida social e economicamente. Para se ter uma ideia, em 2019, portanto antes da pandemia, havia no Brasil 11 milhões de pessoas com 15 anos ou mais de idade analfabetas (IBGE, 2020b) e 1,8 milhão de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos vivendo em situação de trabalho infantil (IBGE, 2020d). Naquele mesmo ano, a maioria dos trabalhadores empregados não possuía qualquer vínculo formal de trabalho. Do total de trabalhadores empregados no país na época, 47,3% contavam com algum tipo de vínculo formal, nível mais baixo desde 2015 (IBGE, 2020c). Complementar a isso, a partir de 2015 registram-se elevações de “população ocupada sem carteira de trabalho e, principalmente, de trabalhadores por conta própria” (IBGE, 2020c p. 20), chegando a patamares de 20% e de 25,8% respectivamente.
Fica evidente o fosso da desigualdade social brasileira quando comparamos o rendimento mensal de ricos com o de pobres. Em 2018, por exemplo, de acordo com a Agência de Notícias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “o rendimento médio mensal de trabalho da população 1% mais rica foi quase 34 vezes maior que da metade mais pobre.” (PERET; NERY, 2019). Desde 2014, o país vem apresentando uma elevação constante no número de desempregados, saltando de 6,5 milhões para 13,9 milhões de trabalhadores desempregados em 2021 (IBGE, 2021). Em 2018, quase 104 milhões de brasileiros viviam com apenas R$ 413,00 mensais em média (MENDONÇA, 2019).
Como não poderia ser diferente, a pobreza está diretamente relacionada a “precariedades e vulnerabilidades nas condições de moradia”, conforme análise da Síntese de Indicadores Sociais de 2019, produzida pelo IBGE. Isso significa “restrições ao direito à moradia adequada”, como ausência de banheiro “de uso exclusivo dos moradores”, “utilização de materiais não-duráveis nas paredes externas do domicílio”, “o adensamento domiciliar excessivo” e “o ônus excessivo com aluguel”. Pelo menos uma dessas inadequações dizia respeito à residência de um conjunto de 12,8% da população brasileira, isto é, de 26,6 milhões de pessoas (IBGE, 2020c p. 62-64). Como bem apontam os indicadores sociais da pesquisa do IBGE, além de restrições ao direito à moradia adequada, a condição de pobreza afeta o acesso da população em condição de pobreza a direitos que não dependem exclusivamente de rendimentos, mas que se enquadram em uma definição ampla de pobreza, como “os níveis de educação, alimentação e saúde abaixo dos padrões/direitos estabelecidos, falta de acesso a serviços básicos, ambiente pouco saudável, dentre outros aspectos que compõem a pobreza em suas variadas dimensões” (IBGE, 2020c p. 71), entre elas, o acesso à luz elétrica e internet.
Tendo em vista esses números, não há dúvidas de que a suspensão das aulas presenciais e a adoção do ensino remoto como alternativa, embora soluções incontornáveis e necessárias contra a disseminação do vírus, se caracterizaram por si só como problemas relevantes, não só pela imprevisibilidade desses acontecimentos e pelos impactos na rotina de estudantes, pais, professores e trabalhadores da educação, mas principalmente em razão de acentuar ainda mais o grau de vulnerabilidade social de grande parte da população brasileira, que, conforme observamos, já era uma realidade nacional antes do advento da pandemia.
Reconhecendo as diversas particularidades dos impactos sociais da pandemia causada pelo novo coronavírus, neste estudo concentraremos nossa análise nos seus impactos sobre o direito à educação, sem perder de vista que a concepção de ensino que tem sido adotada durante o período, em diversas regiões do Brasil, mas em especial no estado de São Paulo, segue uma linha pedagógica que já fazia parte de um plano de ação construído por meio de “parcerias” entre governos e entidades empresariais (RODRIGUES, 2020). A necessidade do distanciamento físico, imposta pela pandemia, apenas acelerou o processo de implementação desse plano.
Para entendermos melhor o que isso significa e as determinações do tempo presente, é necessário analisarmos historicamente como o sistema educacional brasileiro se estruturou.
Ao abordar a história da política educacional brasileira, Saviani (2012) analisa as vicissitudes do direito à educação que se desenham ao longo da história nacional exatamente como política de Estado. O autor esclarece que, embora a Constituição Federal de 1988 estabeleça a educação como o primeiro dos direitos sociais, a norma legal não é espelhada na realidade concreta, “em suas múltiplas determinações, articulações e contradições” (SAVIANI, 2013, p. 745), caracterizando-se, portanto, numa classificação meramente formal. Tal incongruência compromete o exercício dos demais direitos, uma vez que a educação é a base necessária, embora não suficiente, para esse exercício, de tal modo que é esse o motivo pelo qual a sociedade burguesa instituiu e universalizou a escola como lócus privilegiado e dominante de educação, no sentido de transformar os indivíduos em cidadãos. E na chamada “sociedade do conhecimento”, esse caráter da educação escolar é ainda mais acentuado, pois, conforme o autor, apesar de se ter convencionado caracterizar a época atual de “sociedade do conhecimento”, melhor seria considerá-la como “sociedade da informação” (SAVIANI, 2013), pois, quanto mais informação fragmentada circula socialmente, menor é o acesso ao conhecimento que capacite o cidadão a compreender o significado dessas informações.
Assim, se para cada direito existente há um dever correspondente, e se a educação é um direito do cidadão e um dever do Estado e da família, conforme diz a Constituição Federal (BRASIL, 1988), cabe ao poder público garantir que esse direito seja efetivo. E isso implica sobretudo em um sólido Sistema Nacional de Educação, constituindo de fato uma “escola pública universal, obrigatória, gratuita e laica.” (SAVIANI, 2013, p. 745). Mas, com Saviani (2013), perguntamos: “em que grau o Estado assumiu, ao longo da história do Brasil, o dever correlato de garantir o direito de todos à educação?.” O autor demonstra que, na história brasileira, há inúmeros exemplos que ilustram “o conflito entre o direito à educação e o dever de educar.” (SAVIANI, 2013, p. 746).
De fato, a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) representou um avanço para a educação brasileira ao estatuir a autonomia universitária, ao manter o princípio da universalidade da educação, bem como a gratuidade e obrigatoriedade do ensino fundamental e a liberdade de ensino e ao restabelecer a vinculação orçamentária, que elevou para 18% (União) e 25% (estados, Distrito Federal e municípios) os orçamentos destinados à pasta.
Contudo, destaca-se que, dadas as “condições históricas herdadas e em movimento” (HOBSBAWM, 2011, p. 292), apesar do avanço que se observa na Constituição de 1988, o desrespeito governamental à norma se manteve, confirmando a história.
A partir especialmente do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a fim de burlar as exigências orçamentárias estipuladas na Constituição, foram criadas as fontes de receita que levam o nome de “contribuição” ao invés de “imposto”. Desse modo, como o orçamento da educação está vinculado ao imposto, a receita oriunda das chamadas “contribuições” (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - Cofins; Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira - CPMF e Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico - Cide) ficou desobrigada constitucionalmente de ser destinada à educação.
Em 2016, outro duro golpe foi desferido contra os direitos sociais. A aprovação da Emenda Constitucional n. 95 (BRASIL, 2016), fixou o limite dos gastos públicos por 20 anos, afetando o financiamento público de áreas fundamentais, como a educação.
Sob a prerrogativa da necessidade de equilibrar as contas públicas, e o “necessário” congelamento por 20 anos do orçamento público da União, a EC 95 tende a justificar, entre outras coisas, a “necessidade” de parcerias público-privadas devido à “inevitável” diminuição nos investimentos públicos em áreas essenciais da sociedade, entre elas a educação. Tendência que se intensifica com o empenho do atual governo federal, no curso da pandemia do novo coronavírus, em implementar a Proposta de Emenda Constitucional n. 186/19, conhecida como “PEC Emergencial” (BRASIL, 2019), uma medida de ajuste fiscal que impede a concessão de aumento dos salários dos servidores públicos e a contratação de novos servidores em troca de quatro parcelas do auxílio emergencial2, que variam entre R$ 150,00 e R$ 375,00.
Isso significa que o conflito estrutural, determinado pelo caráter dependente e subdesenvolvido do Estado brasileiro, não só permanece como se aprofunda neste momento pandêmico, se traduzindo em “dependência desejada” (PAULANI, 2008, p. 79), atravessada pelo capitalismo neoliberal rentista (BRESSER-PEREIRA, 2018; BELLUZZO; GALÍPOLO, 2017). O rentismo está atrelado ao processo de financeirização da economia, que direciona os investimentos para o especulativo mercado financeiro, sobretudo para o mercado da dívida pública, em detrimento do setor produtivo, o que gera, consequentemente, a chamada desindustrialização, que, por sua vez, deriva em aumento da taxa de desemprego.
O cenário de “crise econômica” que presenciamos hoje, declarado por boa parte da mídia corporativa e por analistas de mercado como consequência direta da pandemia (ALVARENGA; GERBELLI; MARTINS, 2020; GANDRA, 2020; QUEIROZ, 2020; SARAIVA, 2021), ainda que tenha sido intensificado por ela, é o resultado de um processo que se difunde mundialmente a partir da década de 1980. Um processo, diga-se de passagem, que é parte da lógica de funcionamento do sistema capitalista e não um desvio dela. Aliás, o termo “crise econômica” tratado em abstrato dá uma conotação de algo que se abate sobre todos. O que não é verdade, como deixa claro já em seu título a matéria da Oxfam Brasil sobre o relatório que publicou no quinto mês da pandemia: “Enquanto grandes empresas lucram na pandemia, os mais pobres pagam o preço.” (OXFAM BRASIL, 2020). Netto e Braz (2012, p. 239) explicam esse processo demonstrando que, a partir dos anos 1980, com a ofensiva do neoliberalismo e a desqualificação do Estado como algo atrasado a ser reformado, uma série de contrarreformas passou a ser executada sob o rótulo de reformas, “sustentando a necessidade de ‘diminuir’ o estado e cortar as suas ‘gorduras’”, especialmente as dos países da periferia do capital. Tal estratégia se estabeleceu hegemonicamente após o Consenso de Washington, em 1989, quando foram estabelecidas medidas de ajuste econômico.
Grande parte dos países da América Latina adotou as medidas neoliberais, entre eles o Brasil, onde se observou um processo de avanço do capital sobre o controle estatal de empresas e serviços públicos. O que se viu foi uma série de privatizações, transferindo riqueza social a grandes corporações internacionais, e a desnacionalização da economia sob o pretexto da globalização. Um aspecto, portanto, central da dependência e do subdesenvolvimento das economias periféricas.
É importante ao menos salientar que o subdesenvolvimento, e junto a ele essa forma de submissão da América Latina e da periferia do capital de modo geral aos ditames dos organismos multilaterais – como no caso das formulações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM) que culminaram no Consenso de Washington –, não é o resultado da incompetência dos países subdesenvolvidos, mas parte da dinâmica do sistema capitalista mundial, cuja reprodução da acumulação de capital nos países desenvolvidos é em grande medida o resultado da transferência de riqueza dos países subdesenvolvidos. Em outras palavras, de acordo com Marini (2017), o subdesenvolvimento não é fruto do atraso, da insuficiência ou da deformação social dos países da periferia capitalista e nem de seus erros internos – que justificariam a submissão – e sim parte constitutiva do funcionamento dependente das economias subdesenvolvidas, de acordo com a forma pela qual estão inseridas na totalidade do funcionamento do sistema capitalista mundial.
Tais desdobramentos determinaram a forma pela qual os governos passaram a gerir a educação escolar, tendo como resultado o modelo de educação que temos hoje, que começa a ser engendrado nos anos 1990, após a queda do muro de Berlim, o fim da União Soviética e o avanço das políticas neoliberais de Estado mínimo. No bojo desses acontecimentos, Anthony Giddens formula a tese da “terceira via”, que emergiu como meio de superação, segundo ele mesmo, do impasse político que se desenhava naquele período, isto é, de crise das propostas políticas da esquerda e da direita. Segundo Giddens (2000, p. 109), a saída seria uma “nova economia mista” visando “uma nova sinergia entre os setores público e privado, utilizando o dinamismo dos mercados mas tendo em mente o interesse público.”
Analisando criticamente a “terceira via” de Giddens (2000), Martins e Neves (2010) concluem que a aparente pretensão de se colocar como alternativa ao neoliberalismo se revelou, isso sim, como seu instrumento orgânico ao final da década de 1990 e início dos anos 2000, quando se observam suas ações na aparelhagem do Estado e na sociedade civil. Segundo os autores, “sua principal característica é assegurar que o exercício da dominação de classe seja viabilizado por meio de processos educativos positivos” (MARTINS; NEVES, 2010, p. 24), caracterizando-se, assim, como uma “nova pedagogia da hegemonia”.
O bloco histórico que se forma a partir dessa “nova pedagogia da hegemonia” tem por característica o realinhamento ideológico de teóricos e de forças políticas nas relações sociais e de poder, envolvendo a formulação de novas teorias, a formação de novos intelectuais orgânicos e a difusão pedagógica dos novos consensos.
E é essa “nova pedagogia da hegemonia” (MARTINS; NEVES, 2010) que servirá de base conceitual para a nova filantropia que começa a tomar corpo em meados da década de 1990 no Brasil, atraindo parte dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda. Reconfigurada sob a perspectiva da “terceira via”, passa então a se chamar de “investimento social privado” para designar uma forma de atuação social do setor empresarial, que buscava se diferenciar de formas mais tradicionais de filantropia.
O fato é que as novas teorias e metodologias pedagógicas, os novos intelectuais orgânicos e os novos consensos que surgem a partir dessa pedagogia da hegemonia não são capazes de promover e de garantir aos estudantes o direito de se apropriarem do saber produzido social e historicamente. Servem apenas para confirmar a tese de Saviani (2013, p. 752) de que “o direito à educação segue sendo proclamado, mas o dever de garantir esse direito continua sendo protelado.”
3 O DIREITO À EDUCAÇÃO E O DEVER DE EDUCAR EM MEIO À PANDEMIA
A análise dialética da realidade deve captar os elementos de continuidade entre um momento e outro, muito embora se apresentem sob novas formas. Em concordância com essa premissa, passemos, pois, a analisar a educação escolar no momento pandêmico.
Alinhada com a perspectiva da “terceira via”, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo tem estabelecido, desde 2012, parcerias com empresas, institutos e fundações empresarias, especialmente na elaboração e implementação do Programa Ensino Integral (PEI), um dos pilares do Programa Educação: Compromisso de São Paulo (RODRIGUES, 2020). Inspirado nos resultados do PEI (SÃO PAULO, 2019), o governo do estado de São Paulo, em parceria com o Instituto Ayrton Senna, lançou em 2019 o “Inova Educação”, estabelecendo “mudanças no currículo, na organização e da carga horária do ensino fundamental e médio das escolas públicas estaduais.” (FULFARO, 2019).
O Inova Educação é apresentado pela secretaria da educação como uma série de “novidades essenciais para promover o desenvolvimento intelectual, emocional, social e cultural dos estudantes; reduzir a evasão escolar; melhorar o clima nas escolas; fortalecer a ação dos professores e criar novos vínculos com os alunos.” (SÃO PAULO, 2020b).
Sem entrar no mérito acerca das “novidades” anunciadas pela secretaria da educação, entendemos que este não seria – como não foi – o momento adequado para pôr em prática um conjunto de “novidades”, qualquer que seja. A pandemia por si só desencadeia uma série de mudanças que exige um esforço de adaptação considerável e que impõe, inevitavelmente, dificuldades para o desenvolvimento intelectual, emocional, social e cultural não só dos estudantes como de todos os trabalhadores da educação, a começar pela necessidade de estabelecer o distanciamento físico e de adotar a modalidade de ensino remoto, coisas impensáveis até então e para as quais não estavam preparados.
Mas em uma sociedade desigual como a brasileira, a pandemia impõe dificuldades mais preliminares, inclusive para a viabilidade dessas duas necessidades apontadas logo acima. O aproveitamento das aulas online carrega um profundo recorte de classe social. Embora 94% dos domicílios possuam um smartphone, somente 41,7% deles possuem um computador. Esse é um primeiro ponto importante. O aparelho celular passa a ser não uma, mas a única opção. A internet está presente em 79,1% dos domicílios do país e em 99,2% deles esse acesso é feito via telefone celular (IBGE, 2020a).
Esses dados foram decisivos para que a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo optasse por criar o Centro de Mídias SP (CMSP), um aplicativo de celular que funciona como plataforma para o ensino remoto. Além do CMSP, a secretaria também passou a patrocinar os dados móveis de celular para o acesso de estudantes e professores da rede estadual de educação aos aplicativos Minha Escola SP, Diário de Classe SP (SÃO PAULO, 2020a), além de distribuir 500 mil chips de internet a professores e prioritariamente a alunos mais vulneráveis (SÃO PAULO, 2021a). Associado ao CMSP, estudantes e professores contaram com o aplicativo Google Sala de Aula, um sistema de gerenciamento de conteúdo para escolas, lançado em agosto de 2014 pela empresa multinacional de serviços online e software Google LLC. Concomitante a essas estratégias digitais, verificaram-se algumas experiências de ensino utilizando redes sociais, como WhatsApp, Telegram e Facebook, e outras mais convencionais, como a utilização dos canais digitais TV Univesp e TV Educação, e outras ainda analógicas, como a utilização do rádio e de livro didático e materiais impressos (SALAS, 2020).
Como medida emergencial, entendemos que as ações descritas são positivas, porém muito insuficientes do ponto de vista pedagógico e social, sem considerarmos, contudo, os problemas relacionados à questão do uso de plataformas digitais, denominada por pesquisadores do tema como um “mercado de dados pessoais” (SILVEIRA; AVELINO; SOUZA, 2016), devido à apropriação de dados pessoais dos usuários.
De todo modo, se o estado de São Paulo – o mais rico da Federação – possui recursos para assegurar o acesso dos estudantes à internet, essa não é a realidade para outros entes federativos, ainda mais se permanecer o veto integral do presidente da República, assinado em 18 de março de 2021, a um projeto que objetivava assegurar que alunos e professores da rede básica de educação tivessem acesso à internet grátis (G1, 2021). A justificativa para o veto se ampara exatamente em preceitos neoliberais – mesmo no período mais crítico da pandemia até então –, alegando “óbice jurídico por não apresentar a estimativa do respectivo impacto orçamentário e financeiro [...]”, acrescentando que isso iria aumentar “[...] a alta rigidez do orçamento, o que dificulta o cumprimento da meta fiscal e da Regra de Ouro.” (BRASIL, 2021a).
E os problemas não param por aí. Mesmo que a iniciativa do governo do estado de São Paulo de patrocinar os dados de internet se mantenha, ainda há questões de ordem social e econômica que são mais graves e urgentes, de acordo com o quadro da desigualdade social que apresentamos anteriormente. Não há muito o que comemorar em relação ao acesso à plataforma criada pela secretaria da educação. Em São Paulo, assim como em Roraima, depois de cem dias de paralização das atividades presenciais nas escolas, mais da metade dos alunos não tinha acessado os conteúdos disponibilizados pelas plataformas digitais (G1, 2020). Até o dia 24 de junho de 2020, houve apenas 2,8 milhões de downloads do aplicativo CMSP e 1,6 milhão de acessos, sendo que a rede estadual de educação possui 3,5 milhões de estudantes (VIEIRA; BORGES, 2020).
A baixa adesão dos estudantes às atividades online não pode ser atribuída a fatores de ordem pessoal, como irresponsabilidade. A análise passa inevitavelmente por questões de ordem social e econômica. No entanto, tais questões, que deveriam estar entre as prioridades dos governos, dependem de investimentos públicos massivos em políticas sociais, que, como vimos também neste estudo, esbarram nos entraves impostos pelas contrarreformas implementadas pela política neoliberal que rege o Estado brasileiro.
O que esperar então do desempenho acadêmico de grande parte dos estudantes durante a pandemia, tendo em vista a situação de vulnerabilidade social na qual viviam mesmo antes dela? As precárias condições da residência, que por sua vez estão atreladas às precárias condições de emprego e de renda, a falta de espaço adequado para o estudo em casa, várias pessoas morando juntas na mesma residência, as condições inadequadas de alimentação, saúde e higiene desencadeiam processos de ordem emocional, psicológica e também cognitiva que afetam sobremaneira a motivação, o interesse, a concentração nos estudos, rebaixando o desempenho escolar. Como analisa Pavón-Cuéllar (2018, p. 69), estamos falando de sujeitos “inseridos em um conflito psicossocial entre o mortífero capitalismo e a vida humana na sociedade dissociada e na individualidade dividida”. Sem abstrair os aspectos real e simbólico, trata-se da velha luta de classes, já que:
a luta de classes não somente é uma luta pela vida, mas também uma luta entre duas lutas, entre uma luta pela vida e outra luta pela morte; entre a trincheira do operário e a do capital; entre a resistência do real e o império do simbólico; entre a força vital do sujeito e a inércia mortal de um “objeto desvitalizado.” (PAVÓN-CUELLAR, 2018, p. 69-70).
Segundo a abordagem histórico-cultural, as condições sociais objetivas dos estudantes – sem nos esquecer as dos professores e demais profissionais da educação – são determinantes no desenvolvimento das funções que caracterizam o comportamento consciente do ser humano, ou seja, as funções psicológicas superiores (MARTINS, 2013). É uma inversão da realidade planejar o desenvolvimento de competências socioemocionais, como responsabilidade, determinação, persistência, curiosidade para aprender e confiança, como prescreve o Programa Inova Educação (SÃO PAULO, 2020b), na medida em que há fatores objetivos limitadores para esse desenvolvimento.
Sugerir que “para lidar com insegurança, ansiedade, medo, isolamento, mudança de rotinas e indefinições é preciso ter empatia, resiliência, foco, responsabilidade, cuidado consigo e com o outro, entre outras competências” (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2021), além de ser uma inversão da realidade, é uma inversão de prioridade e uma forma de esconder tanto uma quanto a outra. É como se a “mudança de mentalidade”, sugerida pelo instituto supracitado, carregasse atributos mágicos capazes de resolver ou amenizar a precarização da vida à qual grande parte dos estudantes está submetida.
No fundo, o foco dado pelo Programa Inova Educação no desenvolvimento de competências socioemocionais, no projeto de vida e de protagonismo das crianças e dos jovens – em meio a uma pandemia e às condições sociais dos estudantes apontadas neste estudo – transfere para eles a responsabilidade de encarar um mundo cujo horizonte de possibilidades é cada vez mais estreito e sem direitos. O programa, portanto, ao contrário de promover o “pensamento crítico” (SÃO PAULO, 2020b) dos estudantes, conforme alega em seus princípios, no fundo, visa a sua conformação ao mundo. Portanto, são esvaziadas de sentido alegações de que os estudantes são “protagonistas” de sua história se não se subentender a mediação das relações sociais concretas e históricas entre os homens, incluindo a mediação das relações sociais desiguais a que eles estão submetidos. Se o jovem é o protagonista, quem seria(m) o(s) antagonista(s) nessa história? Uma coisa é eleger a pobreza, o desemprego, a fome ou os problemas ambientais como alvos, outra coisa é reconhecê-los como consequências da forma pela qual se (re)produz a riqueza social, e de como essa riqueza, que é (re)produzida socialmente, é distribuída na sociedade. O protagonismo em abstrato pode significar muita coisa e nada ao mesmo tempo. Antes de o jovem ser protagonista, nele precisa ser produzido o gênero humano, que passa primordialmente pela socialização do conhecimento produzido histórica e socialmente pelo conjunto dos homens, pois o homem é “um ser que a princípio não dispõe de propriedades que lhe assegurem, por si mesmas, a conquista daquilo que o caracteriza como ser humano.” (MARTINS, 2013, p. 271). É nisso que consiste o trabalho educativo, concebido por Saviani (2005, p. 13), como:
o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.
Inovações educacionais sem essa intencionalidade e sem esses dois objetos tendem a fazer parte daquilo que o mesmo Saviani (2012, p. 7) definiu como “sequência interminável de reformas, cada qual recomeçando da estaca zero e prometendo a solução definitiva dos problemas que se vão perpetuando indefinidamente.” As formas mais adequadas para atingir o objetivo de produzir a humanidade no estudante não podem estar alheias ou desvinculadas da realidade social em que ele vive, pois, ao contrário, o que se produz é desumanidade. Se não há igualdade de condições para a aprendizagem remota, produz-se desumanidade, apesar de permanecer escondida sob a forma de inclusão. Se a inclusão digital dos estudantes, ao menos em relação ao patrocínio de dados de internet, foi universal, essa preocupação não ocorreu com outras questões fundamentais para a garantia ao direito à educação. A começar pela alimentação dos estudantes. Só depois de três meses do fechamento das escolas, em julho de 2020, o governo do estado de São Paulo anunciou a criação do programa Merenda em Casa, destinado a 23,3% dos estudantes da rede. Deixaram de ser atendidos 2,5 milhões dos 3,5 milhões de estudantes matriculados, uma vez que o programa prevê a distribuição de alimentos somente aos estudantes cadastrados no Bolsa Família ou àqueles reconhecidos pelo CadÚnico como em situação de extrema pobreza (BASÍLIO, 2020). Ocorre que a merenda escolar não é uma política especial, mas um direito constitucional (BRASIL, 1988). Ao não universalizar o programa, o governo estadual deixa de reconhecer as dificuldades que muitas famílias estão tendo e terão ao longo da pandemia.
Além do insuficiente auxílio emergencial dado às famílias durante o período de ensino remoto, o governo estadual também não deu a devida atenção à falta de estrutura das escolas estaduais para o retorno seguro às atividades presenciais (SANT’ANNA, 2021; RAQUEL, 2020 OLIVEIRA, 2021b). O retorno das aulas presenciais não só foi arriscado como se confirmou trágico com o registro de 21 mortes e 4.084 casos de infecção por Covid-19 em fevereiro de 2021 nas escolas, embora haja indícios de subnotificação de casos (GOMES, 2021; BUFALO, 2021; PALHARES, 2021).
Dadas as condições socioeconômicas presentes no país antes da pandemia e agravadas durante seu curso, entendemos que as possibilidades reais de ensino e aprendizagem por meio da modalidade de ensino remoto adotada em boa parte do país, mas especialmente no estado de São Paulo, ficaram comprometidas. Isso não quer dizer que ignoramos as experiências bem-sucedidas de iniciativas particulares de professores ou mesmo de unidades escolares. Contudo, o objetivo deste estudo não foi analisar as possibilidades de experiências particulares, mas as limitações e contradições envolvendo o ensino remoto, evidenciando que as políticas públicas, em especial as adotadas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo durante o período de pandemia, além de insuficientes na garantia do direito à educação de maneira igualitária e universal, reforçaram ainda mais a desigualdade social intrínseca ao sistema capitalista.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo procurou evidenciar que as medidas do governo do estado de São Paulo para garantir o direito à educação durante a pandemia não se mostraram eficientes. Sem adentrarmos nos aspectos pedagógicos relacionados ao ensino remoto, analisando estritamente os aspectos relativos ao acesso, reconhecemos como corretas as iniciativas de manutenção do vínculo entre professor e aluno, seja por meios digitais ou por meios convencionais ou analógicos. Porém, mesmo admitindo a impossibilidade que havia de se manterem as aulas presenciais, ainda assim consideramos que as iniciativas não foram suficientes para garantir um grau de igualdade no acesso à aprendizagem que pudéssemos chamar de satisfatório.
Além do mais, não se pode dizer que as iniciativas do governo do estado de São Paulo levaram em conta os possíveis impactos da pandemia sobre as múltiplas dimensões da vida dos estudantes e dos trabalhadores da educação. A persistência em lançar um programa de inovações pedagógicas em um momento conturbado aliada ao insuficiente auxílio emergencial dado às famílias, bem como a falta de estrutura encontrada nas escolas estaduais para o retorno seguro às atividades presenciais e as consequentes infecções e mortes por Covid-19 nas escolas a partir do retorno presencial em fevereiro de 2021 são evidências que corroboram a nossa tese de que as possibilidades reais de ensino e aprendizagem durante a pandemia ficaram aquém do satisfatório. E isso está diretamente ligado ao processo de aprofundamento da precarização das políticas públicas educacionais nos últimos anos no Brasil, que se expressa por meio das contrarreformas neoliberais, responsáveis pela crise sanitária e humanitária que o país enfrenta.
Se há um prognóstico possível, por enquanto, sobre o legado da pandemia para a educação escolar, esse é o da desigualdade educacional. E um exemplo dessa desigualdade se constatou no recorde de 55,3% de abstenções no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020, o que representa mais que o dobro das abstenções verificadas no ano anterior (PILAGALLO, 2021; OLIVEIRA, 2021a).
A desigualdade educacional é fruto da desigualdade social. A tarefa que cabe aos educadores engajados não apenas na luta pela socialização dos conhecimentos historicamente desenvolvidos pela humanidade, como também na luta por uma educação que tenha como estratégia global transcender o horizonte das relações sociais capitalistas, esbarra em questões de ordem tanto prática quanto teórica. Sem uma estratégia pedagógica que articule os conteúdos ministrados em sala de aula com a vida social concreta, dificilmente os conteúdos escolares se tornarão instrumentos para uma prática social verdadeiramente crítica dos estudantes. É esse vínculo entre os conhecimentos aprendidos na escola e a realidade social concreta o que possibilita alçar qualitativamente a prática social tanto dos estudantes quanto dos próprios professores.
Tal proposição, contudo, deve levar em consideração as condições concretas da realidade social, desvinculando-se o quanto possível de um utopismo desnecessário. Tomando por base as considerações feitas por Mészáros (2016), entendemos que é impossível, nos marcos da sociedade capitalista, desenvolver uma educação integral do ser humano capaz de promover a superação da alienação dos indivíduos e de suas relações. Mas se é necessário superar essa relação para que seja possível instituir um processo educativo de formação omnilateral, isso não significa decretar a impossibilidade de desenvolver práticas pedagógicas contra-hegemônicas. A defesa e a socialização dos conhecimentos escolares são meios da luta pela transformação social, que, por sua vez, enquanto parte do processo de emancipação humana, passa pelo desvelamento do real, de reflexão teórica e, na medida do possível, de prática pedagógica como propósito emancipatório, isto é, como meio necessário de construção das bases de uma educação para além do capital (MÉSZÁROS, 2008). E o fundamento desse propósito é a consciência crítica sobre a realidade.
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1 Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP); Graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/ Campinas).
2 Benefício financeiro concedido pelo Governo Federal, como proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus. O auxílio emergencial previsto pela “PEC Emergencial” destina-se a uma parte das pessoas que receberam o auxílio emergencial e o Auxílio Emergencial Extensão em 2020.