https://doi.org/10.18593/r.v47.27409

Escolas Cívico-Militares: constituição/rendição de subjetividades em prol de obediência e servidão

Civic-Military Schools: constitution/rendering of subjectivities for obedience and servitude

Escuelas Cívico-Militares: constitución/rendición de subjetividades para la obediencia y la servidumbre

Andrerika Vieira Lima Silva1

Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, Professora.

https://orcid.org/0000-0003-4427-9464

Roque Strieder2

Universidade do Oeste de Santa Catarina, Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, Professor.

https://orcid.org/0000-0002-0007-7628  

Resumo: Nesse estudo pretendemos refletir, para entender melhor o quase apelo ao retorno das forças militares, de mando e obediência, como modelo educacional e de valorização humana. Entender como práticas de sujeição se tornam aceitáveis – estilo servidão voluntária -, reduzindo a pessoa à condição de coisa, numa trama que perpetua a violência e a crueldade, das, e nas relações ditas sociais, reforçando a profunda desigualdade econômica, social e cultural. Partimos das problemáticas: Por que boa parte da população brasileira acredita que a ordem e a disciplina militares são adequadas para crianças e jovens em idade escolar? Quais implicações decorrem da forma(ta)ção cívico militar enquanto constituinte de subjetividade? Quais alternativas esperançar? Para uma compreensão mais profunda e desveladora das contradições e das tensões presentes nessa proposição formativa – escola cívico militar - buscamos apoio em referenciais teóricos construídos por autores como Foucault, Guattari, Maturana, Varela e outros, cujas vertentes reflexivas convidam para debates e envolvimentos de diferentes dinâmicas. Ressaltamos que escolas cívico-militares, nas asas da hierarquia, da dominação, da ordem e da obediência visam muito mais um corpo capturado do que um corpo pessoa constituído nas interações das experiências do viver. Lógicas formativas que aderem ao mando e à obediência exigem rendição a verdades incontestes que, de forma instrumental, enquadram e condicionam. Acreditamos que a experiência do pensar em e como subjetividade, a partir da profanação de dispositivos, da autopoiese como viver educativo e da produção de descontinuidades por parte de educadores, pode contribuir para a superação da lógica do mando e da obediência.

Palavras-chave: educação; dessubjetivação; obediência; experiências reflexivas.

Abstract: In this study we intend to reflect, to better understand the call for the return of the military forces of command and obedience, as an educational and human valorization model. We try to understand how subjection practices become acceptable - voluntary servitude style -, reducing the person to the condition of a thing, in a plot that perpetuates the violence and cruelty of, and in the so-called social relations, reinforcing the economic, social and cultural inequalities. We started from the problems: Why does a large part of the Brazilian population believe that military order and discipline are suitable for school-age children and young people? What implications arise from the military formation as a constituent of subjectivity? What alternatives to hope for? For a deeper and unveiling understanding of the contradictions and tensions this formative proposition brings - military civic school - we seek support in theoretical references constructed by authors such as Foucault, Guattari, Maturana, Varela and others, whose reflective aspects invite debates and engagements of different dynamics. We emphasize that civic-military schools, based on hierarchy, domination, order and obedience aim much more at a captured body than at a person’s body constituted by the interactions of living experiences. The formative logics that adhere to command and obedience demand surrender to undisputed truths, that, in an instrumental way, frame and condition the people. We believe that the experience of thinking about, and as subjectivity, from the desecration of devices, from autopoiesis as an educational living, and from the production of discontinuities caused by educators, can contribute to overcoming the logic of command and obedience.

Keywords: education; desubjectivation; obedience; reflective experiences.

Resumen: En este estudio pretendemos reflexionar, para mejor comprender, el llamado al regreso de las fuerzas militares, de mando y obediencia, como modelo educativo y de valorización humana. Comprender cómo las prácticas de sujeción se vuelven aceptables - estilo de servidumbre voluntaria -, reduciendo la persona a la condición de cosa, en una trama que perpetúa la violencia y la crueldad, de, y en las llamadas relaciones sociales, reforzando la profunda desigualdad económica, social y cultural. Partimos de los problemas: ¿Por qué gran parte de la población brasileña cree que el orden y la disciplina militares son adecuados para los niños y jóvenes en edad escolar? ¿Cuáles implicaciones surgen de la forma(ta)ción militar como componente de la subjetividad? ¿Cuáles alternativas podemos esperar? Para una comprensión más profunda y reveladora de las contradicciones y tensiones presentes en esta propuesta formativa -escuela cívica militar- buscamos apoyo en referencias teóricas construidas por autores como en Foucault, Guattari, Maturana, Varela y otros, cuyos aspectos reflexivos invitan a debates y compromisos de diferentes dinámicas. Destacamos que las escuelas cívico-militares en las alas de la jerarquía, la dominación, el orden y la obediencia apuntan mucho más a un cuerpo capturado que al cuerpo de una persona constituido en las interacciones de las vivencias. Las lógicas formativas que se adhieren al mando y la obediencia exigen entregarse a verdades incontestables que, de manera instrumental, enmarcan y condicionan. Creemos que la experiencia del pensamiento y como subjetividad, desde la profanación de los dispositivos, desde la autopoiesis como vivir educativo y desde la producción de discontinuidades por parte de los educadores, puede contribuir a superar la lógica del mando y la obediencia.

Palabras clave: educación; desubjetivación; obediencia; experiencias reflexivas.

Recebido em 01 de abril de 2021

Aceito em 29 de setembro de 2021

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Apesar de o Brasil não se envolver em guerras há décadas (desconsiderando as ações em missões de paz das forças armadas brasileiras no exterior), e de termos um governo pretensamente civil, observa-se que a educação militar (ou cívico-militar) volta a ganhar relevância no contexto das políticas educacionais no país, a ponto de, no atual governo, ganhar status de subsecretaria, através do decreto n. 9.465, de 02 de janeiro de 2019 (BRASIL, 2019a).

Evidentemente, a educação militarizada não pode ser desconsiderada como política pública no contexto atual. De acordo com o Art 2º do decreto n. 10.004, de 5 de setembro de 2019, o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim) pretende promover “atividades com vistas à difusão de valores humanos e cívicos para estimular o desenvolvimento de bons comportamentos e atitudes do aluno e a sua formação integral como cidadão em ambiente escolar externo à sala de aula.” (BRASIL, 2019b). O projeto se encontra em fase de implantação, via redes de escolas municipais, estaduais e distritais. Entre seus objetivos estão a adoção do modelo de gestão dos colégios militares1 e o fortalecimento de valores humanos e cívicos. Para a viabilização da proposta, está prevista a contratação de militares da reserva para atuarem como gestores educacionais, em ações de apoio didático-pedagógico e administrativo. De acordo com o decreto, cabe ao Ministério da Educação o apoio financeiro para a execução desse projeto, com exceção do pagamento dos salários dos servidores da reserva.

Além dessa nova política pública, soma-se o fato de que veículos de imprensa (VARGAS, 2020) noticiaram, no ano de 2020, a perspectiva de que para o ano de 2021 o Ministério da Defesa teria orçamento maior que o Ministério da Educação. Relata o autor que se observou apatia, senão aceitação e conivência em grande parte de setores da sociedade civil, mesmo sendo evidente termos mais crianças na escola que militares no serviço militar. É como se, internamente, a sociedade entendesse como natural, escolas com intervenção cívico-militar3.

Ao investigar os modos dominantes da valorização e dignidade humanas, Guattari (2012) refere-se ao domínio da lógica do mercado em nível mundial, destaca a violência esmagadora da ideologia neoliberal, e referencia uma predisposição quase generalizada de tendências à servidão voluntária4. Trata-se de um conjunto de relações e interações entre seres humanos ao estilo de servos forçados ou cooptados, por e frente a poderes da tecnociência, dos dispositivos legais de opressão, vigilância e punição efetivados por opressores também policiais e/ou militares. Essa reflexão revela uma espécie de retorno ao deslumbramento coercitivo e o aumento da importância dos militares a estender-se como fenômeno mundial. Mais do que isso, associa as máquinas militares do mando e da obediência como relação de valorização humana.

Nesse estudo pretendemos refletir, para entender melhor com base em referenciais teóricos, esse quase apelo ao retorno das máquinas militares do mando e da obediência como relação de valorização humana. Ou seja, como as práticas de sujeição se tornam aceitáveis – estilo servidão voluntária -, que reduzem a pessoa à condição de coisa, violam o ser como pessoa, violam a sua subjetividade numa trama que perpetua a violência e a crueldade, das e nas relações ditas sociais, conservando e acentuando a profunda desigualdade econômica, social e cultural.

Para além de uma simples discussão maniqueísta, interessa-nos refletir acerca de questões que tocam essa temática da dessubjetivação formativa, segundo a qual nem o si mesmo e nem o outro são reconhecidos como pessoa, nem como pessoa de direitos, não reconhecidos como subjetividade, como alteridade.

A problemática gira em torno das questões: Por que boa parte da população brasileira acredita que a ordem e a disciplina militares são adequadas para crianças e jovens em idade escolar? Quais implicações decorrem da forma(ta)ção militar enquanto constituinte de subjetividade? Quais alternativas esperançar?

Para uma compreensão mais profunda e desveladora das contradições e das tensões presentes nessa proposição formativa – escola cívico militar - buscamos apoio em referenciais teóricos como Foucault, Guattari, Maturana, Varela e outros, cujas vertentes reflexivas convidam para debates e envolvimentos de diferentes dinâmicas.

Indicamos como objetivo, sensibilizar para reflexões que envolvem, não somente o sensacionalismo que move em direção à escola cívico-militar, mas também de como e do quanto se perde o exercício da subjetividade, o exercício para o social, o exercício para um pensar crítico. Toda lógica formativa que adere ao mando e à obediência exige rendição às verdades incontestes que, de forma instrumental, enquadram e condicionam. Acreditamos ser a reflexão, como experiência do pensar, em e como subjetividade, capaz de contribuir para a superação da lógica do mando e da obediência.

Entendemos as reflexões como capazes de detectar a força e o poder de criação de subjetividades do tipo ‘sujeição social’ baseadas em “semióticas significantes”, bem como uma servidão ‘maquínica sustentada’ pela operacionalidade de “semióticas a-significantes” (LAZZARATO, 2010), como veremos na sequência. Escolas cívico-militares, nas asas da hierarquia, da dominação, da ordem e da obediência visam muito mais um corpo capturado do que um corpo pessoa construído nas interações no decorrer de sua existência, de suas experiências do e no viver.

2 SUBJETIVIDADE: UMA DINÂMICA DE CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES

No pensamento moderno a concepção de subjetividade, dentre outras, encontra fundamento no “Penso logo existo” de Descartes, que entendeu ser a subjetivação o momento em que a representação é pensada como auto-reflexiva. Guattari (2012) considera que há muitas formas de ser, fora da consciência. Para Deleuze e Guattari, diferentemente da concepção moderna, a subjetividade não está dada. Ela se encontra em constante composição e, por entre arranjos distintos, não se trata de uma moldura fechada, algo identificável a padronizar um indivíduo. Toda subjetividade é uma invariável, não é inata e nem existe no interior do indivíduo como algo a ser desvelado. Em Caosmose, Guattari (1992, p. 11) escreve: “A subjetividade, de fato, é plural, polifônica [...] não conhece nenhuma instância dominante, de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca.”

Para Guattari (1992, p. 14) existe uma heterogeneidade de componentes

[...] que concorrem para a produção de subjetividade, já que encontramos aí: 1- componentes semiológicos que se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte; 2 - elementos fabricados pela indústria das mídias, do cinema, etc; 3 - imersões semiológicas a-significantes colocando em jogo máquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ou independentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significações e denotações que escapam então às axiomáticas propriamente lingüísticas.

Subjetividade não significa um ato de posse, mas uma construção ininterrupta movida e envolvendo inúmeras inter-relações nos cotidianos na e com a natureza e nos ambientes sociais. Guattari e Rolnik, (1996, p. 31) afirmam que a “[...] subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo” e nem é “essencialmente fabricada e modelada no registro do social.” As subjetividades são indissociáveis de uma multiplicidade de vetores que se atravessam e se recompõem constante e incessantemente. Envolvem a política, o Estado, as tecnologias, os espaços urbanos e rurais, os meios de comunicação, as convivências, as multiplicidades, as singularidades e as diversidades.

Deleuze e Guattari (2010) reforçam também a existência de uma concepção de subjetividade como sujeição social e servidão maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida e consumida.

Como sujeição social produz-se um ser humano individuado que, na lógica neoliberal, será registrado como “capital humano” e como empresário de si. Como servidão maquínica os mecanismos de dessubjetivação constituem um indivíduo como sendo uma engrenagem, um componente de um sistema. Segundo Lazzarato (2010, p. 38), a sujeição social e a servidão maquínica relacionam-se com “regimes distintos de signos.” A sujeição social baseia-se nas “semióticas significantes”, tais como a linguagem, enquanto a servidão maquínica tem sustento e operacionalidade através de “semióticas a-significantes”. Especificamente em suas palavras,

O que importa no capitalismo é controlar os dispositivos semióticos a-significantes [...] através dos quais ele busca despolitizar e despersonalizar as relações de poder [...] Na crise econômica, taxas financeiras a-significantes e índices do mercado de ações dominam, decidindo a vida e a morte dos governos e impondo programas sociais e econômicos que oprimem os governados. As semióticas significantes das mídias, dos políticos e dos especialistas são mobilizados a fim de legitimar, de apoiar e de justificar, diante dos sujeitos individuados – com suas consciências e representações -, o fato de que “não há alternativa.” (LAZZARATO, 2010, p. 41).

No contexto da lógica do mercado, de base neoliberal, que determina o funcionamento capitalista em escala internacional, a construção das subjetividades segue a “A ordem capitalística que produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como se ama, como se trepa, como se fala, etc.” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 42). O capitalismo induz o indivíduo a tornar-se um consumidor de demandas produzidas artificialmente pelos seus dispositivos. Entendem os autores que “um indivíduo sempre existe, mas apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade.” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 32).

Na obra, “As três ecologias”, Guattari (2012) reforça a relação entre capitalismo e subjetividade, afirmando que o capitalismo mundial integrado tende cada vez mais a descentralizar seus focos de poder, das estruturas de produção de bens e de serviços, para as estruturas produtoras de signos.

Foucault (1981, p. 536), mesmo tendo anunciado em “As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas”, “que o homem se desvaneceria, como na orla do mar um rosto de areia” retoma, nos volumes sobre História da sexualidade, o tema do sujeito. Ele indaga-se a respeito das práticas pelas quais nos tornamos sujeitos “para compreender de que maneira o indivíduo moderno podia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma ‘sexualidade’. (FOUCAULT, 1998, p. 11). Para o autor a subjetividade envolve um modo de vida, um modo de viver, o que significa estar numa relação com o tempo, no relacionar-se com as coisas e no relacionar-se com o mundo, contendo uma perspectiva prazerosa. Não se trata de uma subjetividade imóvel, fixa e rígida, como proposto por Descartes. Admite Foucault, que todo sujeito é corpo e que a subjetividade acontece no corpo e nele se firma como corpo construído nas relações com as coisas e com o mundo no decorrer de sua existência. Subjetivações históricas, em contínuo movimento, atribuem grande atenção aos acontecimentos do e no existir, do e no modo como o indivíduo pode e deve preparar-se para neles viver.

Uma subjetividade que não se refere à identificação com o sujeito como categoria ontologicamente invariável, mas aos modos de agir, a processos de subjetivação em constante modificação, ou seja, plurais entendendo a subjetividade como diferenciação e não como identidade. Para Foucault (1998), subjetivar-se implica numa constante conversão a si, um retorno ao mesmo lugar de si, significa residir em si, ou seja, existe todo um forte movimento pelo qual se volta a si. Uma historicidade “para a instauração e o desenvolvimento das relações para consigo, para a reflexão sobre si, para o conhecimento, o exame, a decifração de si por si mesmo, as transformações que se procura efetuar sobre si.” (FOUCAULT, 1998, p. 29). Foucault denomina esse envolver-se de história da ética e da ascética, como histórias das subjetivações morais e das práticas de si que as assegura.

O autor reconhece ainda que, se toda ‘moral’ comporta os códigos de comportamento e as formas de subjetivação não dissociados, em momentos, tanto um quanto outro podem desenvolver-se de forma independente. Então, em certas ‘morais’ sobrepõe-se a importância ao código pela sua capacidade de ajustar-se a inúmeras possibilidades e cobrir todos os comportamentos. Nesse caso, segundo Foucault (1998, p. 29),

[...] a importância deve ser procurada do lado das instâncias de autoridade que fazem valer esse código, que o impõem à aprendizagem e à observação, que sancionam as infrações; nessas condições a subjetivação se efetua, no essencial, de uma forma quase jurídica, em que o sujeito moral se refere a uma lei ou a um conjunto de leis às quais ele deve se submeter sob pena de incorrer em faltas que o expõem a um castigo.

Para Foucault, existe um corpo que resiste à violência, um corpo em resistência, um corpo que foge à captura de sua potência. A potência dos corpos procura escapar aos dispositivos disciplinares e de controle por se verem possuídos, dominados e tornados ineficientes. Pensa Foucault num corpo transformacional e criativo – corpo-prazer - em contraposição ao corpo capturado. Uma possibilidade de gerar e conservar uma potência na qual o elemento forte e dinâmico deve ser procurado nas formas de subjetivação das práticas de si, uma vez que “[...] o privilégio das práticas de si, o interesse que elas podiam ter, o esforço que era feito para desenvolvê-las, aperfeiçoá-las, e ensiná-las [...].” (FOUCAULT, 1998, p. 30). Para Foucault o desejo comparece como um novo modo de subjetivação, pois na modernidade a relação do prazer com a verdade uma “scientia sexualis [...] para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam [...] em função de uma forma de poder-saber” e, “o indivíduo não será mais autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de (ou obrigado a) ter sobre si. A confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder.” (FOUCAULT, 1988, p. 58).

Assim, segundo Deleuze (2005, p. 109) “A ideia fundamental de Foucault é a de uma dimensão da subjetividade que deriva do poder e do saber, mas que não depende deles.” Ou seja, existe uma influência de fora na subjetividade, mas essa influência não é determinante.

Na contemporaneidade e, frente à crise, não apenas econômica, mas, antes de tudo uma crise de subjetividade, quanto mais o poder (ou biopoder) investe sobre a individualidade, mais se introjeta na subjetividade. No contexto dessa crise de subjetividade, que coincide com a crise da governamentalidade neoliberal, elevam-se os estados de depressão generalizada e o ser humano, empresário de si e empreendedor de si mesmo (FOUCAULT, 2008) sente-se obrigado a assumir a responsabilidade pelos fracassos econômico, social e político do Estado como o seu próprio fracasso no mundo dos negócios.

Como empreendedora de si, a pessoa sente-se impetrando extensamente volições capitalistas em termos de assujeitamento, todos devidamente adequados às estratégias de negócios corporativos. Na contemporaneidade acentuam-se os campos sociais, políticos e econômicos imersos em novas formas de capturas e produção de subjetividades. Nela, a máquina do capital e do Estado opera a partir de dois termos-chave intimamente conexos e cíclicos: os movimentos de liberação (inovação e produção de desejos contínuos e ilimitados) e de controle (codificação e normatizações retroalimentáveis) das populações (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Para os autores, na expansão do Estado neoliberal capitalista, as populações encontram-se reféns de domínios que buscam reduzir seus modos de existência tendo como referência essa dupla lógica de produção e exploração, ou seja, da sujeição social e da servidão maquínica. Para Lazzarato (2010), as noções de sujeição social e servidão maquínica evidenciam os componentes semióticos do capital. Escreve o autor que a sujeição social aparece num processo semiótico significante de assujeitamento, reconhecido por ele como “cinismo humanista” e, de normalização ou governamentalidade. Trata-se de um poder incisivo sobre os comportamentos sensitivos, afetivos, cognitivos e linguísticos, com a finalidade de identificação, vigilância, manipulação e quantificação. Para Lazzarato (2010, p. 37):

O conceito de sujeição, embora com variações importantes, é comum na filosofia e na sociologia dos últimos cinquenta anos. Em contrapartida, ‘servidão maquínica’ constitui uma contribuição original de Deleuze e Guattari para a compreensão de como o capitalismo funciona. [...] O que importa no capitalismo é controlar os dispositivos semióticos a-significantes (econômicos, científicos, técnicos, contábeis, do mercado de ações etc.) através dos quais ele busca despolitizar e despersonalizar as relações de poder.

Temos então indivíduos sujeitados, despersonalizados como seres humanos, registrados e quantificados estatisticamente em aquiescência ao biopoder. Foucault (2005) traz especificações entre o poder disciplinar e o biopoder. Segundo o autor, o biopoder se distingue do poder disciplinar pela forma de atuação, que se manifesta como um complemento ao poder disciplinar. Enquanto o poder disciplinar basicamente atua sobre o corpo do indivíduo, o biopoder é aplicado em suas vidas e suas existências. Se a lógica do poder disciplinar era a individualização, o biopoder gera a massificação, ou seja, não se dirige aos indivíduos isolados. Nesse sentido, especifica Foucault (2005), os efeitos do biopoder são sentidos sempre em processos de conjunto, coletivos, globais, processos que fazem parte da vida, da vida de uma cidade, de uma população, tais como os nascimentos, as doenças e as mortes. Por intervir em fenômenos coletivos que podem atingir a população e afetá-la é preciso constantemente medir e prever, calculando tais fenômenos para criar mecanismos reguladores que possibilitam essa tarefa, como, aumentar a natalidade e a longevidade, reduzir a mortalidade, previdência, entre outros.

É com essa compreensão que Carvalho (2016, p. 4) afirma: “No registro biopolítico, um indivíduo não é mais um corpo individual. É, antes de tudo, uma cifra, um número, um código ou, no limite, um corpo abstraído em um núcleo populacional passivo de gestão administrativa, visando qualquer instância de sua vida.”

Para Guattari (2012, p. 30) o contemporâneo criou um imenso vazio na subjetividade: “Mas a época contemporânea, exacerbando a produção de bens materiais e imateriais em detrimento da consistência de Territórios existenciais individuais e de grupo, engendrou um imenso vazio na subjetividade que tende a se tornar cada vez mais absurda e sem recursos.”

Existe ainda outra questão substancial para a compreensão da temática em discussão: “Um dos problemas-chave de análise que a ecologia social e a ecologia mental deveriam encarar é a introjeção do poder repressivo por parte dos oprimidos.” (GUATTARI, 2012, p. 32). Ou seja, a biopolítica promove uma introjeção tão extrema nas subjetividades que além de concordarem e defendê-la, os sujeitos tendem a desejá-la – servidão voluntária.

No contexto da biologia do conhecer - autopoiese – (MATURANA; VARELA, 1997) os seres vivos são considerados sistemas que produzem constantemente a si mesmos. Os seres vivos são sistemas autopoiéticos por que recompõem constantemente os seus componentes desgastados. Para essa recomposição utilizam recursos do entorno ambiente. Um sistema vivo e o meio no qual ele vive se modificam de forma congruente, existindo, pois, uma mutualidade de interações entre ambos. Todo e qualquer ser vivo é autônomo e dependente, condição considerada paradoxal na lógica linear e, por isso, requer a dinâmica sistêmica para sua compreensão. Como produtores e produtos, os sistemas autopoiéticos são considerados circulares. Segundo os proponentes da teoria da autopoiese todo ser vivo é determinado por sua estrutura, ou seja, o que lhe acontece em determinado instante depende de sua estrutura nesse instante – determinismo estrutural. Porém, mesmo sendo determinados por sua estrutura, os sistemas vivos não são previsíveis, por não serem predeterminados.

Ao considerar os sistemas vivos como sistemas autopoiéticos, ou seja, seres que produzem a si mesmos de modo que mantém a sua organização e carecem de finalidade, Maturana e Varela (1997) trazem uma importante contribuição à questão da subjetividade. Essa compreensão requer uma concepção distinta para a ontogenia que, tradicionalmente é considerada “como um processo integral de desenvolvimento para um estado adulto, mediante o qual se alcançam determinadas formas estruturais que permitem ao organismo desempenhar determinadas funções em concordância com o plano inato que o delimita em relação ao meio circundante.” (MATURANA; VARELA, 1997, p. 77). Os autores não entendem a ontogenia como um potencial de organização, orientada a uma finalidade e determinada pela existência de um plano interno a ser realizado por sua estrutura, como expressão de teleonomia. Para eles, nos sistemas vivos, como seres autopoiéticos, “a teleonomia passa a ser somente um artifício para descrevê-los, que não revela aspecto algum de sua organização, exceto que seu funcionamento é consistente no âmbito no qual são observados.” (MATURANA; VARELA, 1997, p. 79). Então, como ser autopoiético, o ser vivo humano, carece de finalidade.

Ao considerarem que cada ser vivente é único e carece de finalidade, reconhecem que ele tem a capacidade de produzir a si mesmo a cada instante:

[...] a ontogenia é expressão tanto da individualidade dos sistemas vivos como da maneira em que essa individualidade se concretiza. Enquanto processo, a ontogenia não representa, então, a passagem de um estágio incompleto (embrionário) a outro mais completo ou definitivo (adulto), mas apenas a manifestação do acontecer de um sistema que é em cada instante a unidade em sua totalidade. (MATURANA; VARELA, 1997, p. 79).

Ou seja, não existe ser incompleto, cada ser (bebê, criança, jovem ou adulto) é completo e, sua completude, existe em todos os instantes de sua vida. Da mesma forma, observa-se que cada ser é único e é função de cada ser vivente produzir a si mesmo realizando sua autopoiese. A ausência da autopoiese indica, para o indivíduo, sua desintegração (morte). Sendo assim, a autopoiese é necessária e suficiente para definir o vivo (MATURANA; VARELA, 1997).

Se cada ser humano “é em cada instante a unidade em sua totalidade”, como aceitar a lógica do biopoder, aceitar a subordinação do indivíduo à espécie, aceitar serem tantos indivíduos, simplesmente dessubjetiváveis e mesmo prescindíveis? Ou ainda, como Maturana e Varela (1997, p. 114) questionam “Que importância tem o que acontece a um indivíduo, ou a vários indivíduos, se seu sacrifício é um bem da humanidade?.” Talvez, resida aí uma das grandes incoerências da cultura moderna: a pretensão da universalização. Ciência com caráter universal, teorias com validade universal, leis, normas e dispositivos com valores universais, economia de mercado com caráter global, a existência de uma realidade objetiva concebida como universal e suportada em base racional. Excluímos as singularidades, as particularidades, os indivíduos e visamos, com prioridade quase absoluta, o universal. Maturana (2001, p. 61) afirma: “Não há teoria adequada do humano, não há teoria adequada do social se não levar em conta os casos particulares enquanto fenômenos para os quais a teoria tem que servir.”

O ser humano é, nessa perspectiva, único mas depende da convivência com outros seres únicos. Esses seres cooperam e aprendem, sem prejuízo à sua subjetividade. Então, como, em determinado momento, humanos passaram de seres únicos, completos, que existem na cooperação, a seres formatados como iguais, seguidores da mesma moda, assistindo ao mesmo programa de televisão, classificando crianças e tentando homogeneizar seu comportamento, diante de vozes de mando e de obediência?

Maturana e Verden-Zoller (2019, p. 37) argumentam que esse comportamento iniciou em nossas sociedades a partir do momento em que se instaurou a cultura patriarcal.

Esta se caracteriza pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um mundo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade.

Na contemporaneidade nega-se a colaboração em nome da competição, nega-se a subjetividade em nome da apropriação da verdade imposta por alguns poucos poderosos. Sobrevive-se numa cultura patriarcal, longeva e milenar, não “inventada” no contexto do capitalismo ou do neoliberalismo, mas que nesse momento histórico, é reforçada no contexto da biopolítica.

Nesse contexto, a subjetividade é esmagada. Vive-se em âmbitos sociais de extrema obediência de tutela ou cooptação5 enquanto em paralelo, a desigualdade é reforçada e passa a assumir formas opressivas. Criam-se novos mecanismos de controle e de formatação social, como a demanda por escolas cada vez mais rígidas, estilo educação cívico-militar, como novo (ou nem tão novo assim) dispositivo extremo de controle e dessubjetivação. Na medida em que abre-se mão da subjetividade (servidão voluntária), destrói-se nossa capacidade autopoiética. Como permitimos que isso ocorra? Por que e como nos voluntariamos à cooptação e à sujeição?

Quais lógicas culturais, quais lógicas educativas nos induzem a, gradativamente, querer obedecer e, mais servir a outros? Como vamos sendo ensinados a servir, sendo rendidos, abrindo mão da subjetividade do existir? Como se enredam relações de poder que domesticam, silenciam e nos fazem cooptar pela dessubjetivação? Tem a concepção científica de base racional, de aposta em leis gerais, de aposta na existência de realidades objetivas, potencial para a criação de imaginários de sem alternativa para um fazer e existir diferentes? Como e quais forças nos induzem ao querer obedecer e servir, submeter-nos aos dispositivos biopolíticos de poder? Promessas de liberdade? Promessas de, igualmente sermos servidos, logo mais?

3 OBJETIVIDADE E DISPOSITIVOS DE PODER: NAS TRAMAS DA OBEDIÊNCIA E DA SERVIDÃO

Certamente a ciência moderna com seu ideal da objetividade, promessas de bem-estar contribui na construção desses imaginários de obediência. Prigogine e Stengers (1997, p. 22) alertam

Quer sejam postos em causa o ceptismo global segregado pela cultura científica ou as conclusões concretas das diversas teorias científicas, está hoje espalhada a afirmação: a ciência desencanta o mundo: tudo o que ela descreve se encontra irremediavelmente reduzido a um caso de aplicação de leis gerais desprovidas de interesse particular.

Simultaneamente, a ciência moderna encanta o mundo com a ideia de progresso e novas descobertas e, também, o desencanta. O mundo, antes povoado por mistérios inexplicáveis e incompreensíveis, passou a ser entendido como se fosse regido por leis gerais. A lógica racional e seu conhecimento objetivo das coisas, nega os conhecimentos subjetivos e interiores, tais como o religioso, o senso comum, as experiências no viver, a estética, todos lançados no algures do irreal, nominadas de ciências ‘moles’ como as sociais, as humanidades, as filosofias.

O método científico tornou-se um mito unificador, inventou seus próprios rituais, como única fonte de verdade ‘objetiva’, quer dizer, aceitável por todos, imperativa e autoritária que exprime ordem e eficácia técnica. Atlan (2000), Morin (2005), Maturana (2001), entre tantos outros sustentam ser a ciência objetiva, neutra e impessoal. Seu triunfo e êxitos fantásticos são creditados à sua metodologia nos procedimentos racionalizados de intervenção e domínio sobre a natureza e seus recursos bem como à construção de lógicas de convencimentos, submissão e condutas geradoras de credibilidade à veracidade de seus enunciados.

A força da verdade dos resultados, fez estender a aplicação do mesmo método aos fenômenos humanos, como se fossem também objetivos. Para que esse método pudesse ser aplicado, era preciso que o seu objeto, a realidade do viver humano, enquanto subjetividade, fosse controlável e replicável, trivializando os indivíduos. E isso torna indivíduos cada vez menos humanos, mais obedientes e mais predispostos a servir.

Nesse contexto, as subjetividades passam a ser ruídos indesejáveis por arruinarem a beleza de uma formatação ideal. Ainda assim, a ciência moderna não está livre das disputas de poder. Não se trata, portanto, de um saber inocente, alheio às disputas no campo político e social. O sabemos agora que, mais ciência implica também mais obediência, mais controle, mais subordinação e, mais temor pela perda de liberdade. Afirma Stengers (2002, p. 137-138):

Toda teoria afirma um poder social, um poder de julgar o valor das práticas humanas, e nenhuma se impõe sem que, em algum momento, o poder social, econômico ou político tenha agido [...]. Paralelamente, que apelo as pretensões teóricas fazem a temas gerais - progresso, objetividade, ir além das aparências - eles próprios indícios de um apelo ao poder “social” [...] para dobrar os céticos e os rebeldes? Conforme o alcance de uma pretensão teórica, ou seja, o caráter heterogêneo daquilo que ela pretende unificar e hierarquizar, pode-se esperar que o relato se complique, faça com que intervenham cada vez mais argumentos, sempre mais construções ativas de alianças, sempre mais interesses coligados.

Na ciência moderna, objetiva e impessoal, as afirmações são feitas independentemente da experiência do observador. Se o conhecimento é objetivo, fruto de atividade racional, ela faz desaparecer a pessoa, o que para Maturana (2001, p. 36) implica “[...] uma petição de obediência.” Toda e qualquer afirmação objetiva tem como princípio que alguém – um iluminado – tem acesso à realidade, cuja existência independe dele. Esse acesso privilegiado à realidade, reforça a concepção de que “o que dá validade à minha afirmação é aquilo que eu posso dizer que tem a ver com algo que é independente de mim.” (MATURANA, 2001, p. 35).

Em contextos de realidade objetiva, acessível com base racional e não como experiência do viver, radica uma forma de violação da subjetividade, uma vez que “nessas circunstâncias, aquele que não está comigo está contra mim. Está equivocado [...] porque é cego, porque é cabeça dura.” (MATURANA, 2001, p. 35-36). O autor segue afirmando que “Eu não sou responsável pelas coisas serem assim: são assim, com independência de mim, e isso é o que dá poder ao meu conhecimento.” (MATURANA, 2001, p. 35).

A objetividade científica exige que todos façam o que e como “eu” digo, “uma vez que a validade do exigido não depende de mim, mas é própria do indicado, e “eu” tenho acesso privilegiado a essa realidade.” (MATURANA, 2001, p. 35). É nesse sentido que a ciência objetiva evidencia o triunfo em seus procedimentos de efetiva possibilidade de domínio, tirania e opressões sobre seres humanos, outros seres vivos e sobre a natureza. Seu método foi consensuado como uma operacionalidade que determina uma distância entre o objeto a ser conhecido e o nosso viver interior, nossa subjetividade. Na condição da objetividade científica e da existência de leis universais, a serem descobertas, por existirem independentemente da presença humana, o ser humano torna-se secundário, segregado à condição de marginalidade. Para Atlan (2000, p. 217), essa marginalidade “se caracteriza pela desumanização sendo a pessoa humana não mais considerada o foco central.” Marginalização e desumanização, de mãos dadas com a universalização planificadora, aceitam que se é capaz de referenciar realidades independentemente do observador - ser humano. De forma preocupante, essa lógica tornou-se possível “Graças ao seu método, baseado num consenso operacional, em que se estabelece uma distância entre o objecto do nosso conhecimento e a nossa vida interior na sua subjectividade.” (ATLAN, 2000, p. 217).

Apesar da anunciada pretensão à neutralidade científica, a ciência moderna está fortemente entrelaçada em relações de poder e de biopoder, sendo ela um dos principais atores hegemônicos nessas relações. Importa, ainda assim, reconhecer que os conhecimentos produzidos pela razão humana, no decorrer da história e nos últimos anos, têm efetivamente transformado a natureza humana de maneira radical seja no âmbito das dimensões cognitivas ou no âmbito das práticas, porém é prudente também reconhecer que essas evoluções foram frágeis e lentas, quanto às dimensões afetivas e éticas.

No contexto da objetividade científica, o ser humano, reduzido a objeto se resigna diante da realidade dita objetiva e, lhe resta obedecer. Não há como desenvolver sua potencialidade de identidade, de sujeito como autor que participa da organização e da construção de conhecimentos, pela via da participação. Diante das sutilezas dessa dominação e alienação se resigna à verdade objetiva com base na obediência. Submete-se a uma autoridade exterior. Sendo impossível constituir-se a partir de processos internos veta-se diante da negação, da contestação e do questionamento. E, essa lógica, semeada em escolas, instrumentaliza estudantes à obediência cega à regras inquestionáveis, não passíveis de dúvida ou de contestação. Sem a dinâmica do inconformismo não há desconfiança, não há debate, somente existe mando e obediência.

Por isso, em âmbito das relações de poder cabe a afirmação de Deleuze (2005, p. 37): “[...] o poder não tem essência, ele é operatório. Não é atributo, mas relação: a relação de poder é o conjunto das relações de forças, que passa tanto pelas forças dominadas quanto pelas dominantes, ambas constituindo singularidades.”

De onde vem, quem dá e onde está o poder, a força do tirano, do dominador? La Boétie (2019, p. 19) escreve “Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.” Ou seja, nós lhe damos nossos olhos e ouvidos, lhe damos as mãos e os pés, assim como nossas bocas, nossos bens e nossos filhos, lhe damos nossas almas, nossa honra, e porque não dizer nosso sangue e nossas vidas, o alimentamos para aumentar o poder, poder a ser usado para nos dessubjetivar.

Nesse contexto, os estudos de Foucault sobre as relações de poder nos são desveladores. Para o autor, apesar de processos disciplinares serem bastante antigos, foi nos séculos XVII e XVIII que se tornaram, nos conventos e nos exércitos, fórmulas gerais de domesticação e dominação (FOUCAULT, 1999). Isso significa reconhecer que existem particularidades nas práticas do poder institucionalizado, por sua vez peculiares aos contextos da modernidade.

Ao refletir sobre o corpo e sua docilização, Foucault (1999, p. 29) argumenta que “[...] sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição [...] o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso.” Para o autor, a sujeição desse corpo não é só física, trata-se muitas vezes de uma microfísica do poder, engendrada por instituições, que formam complexas engrenagens, num contexto em que poder e saber se inter-relacionam profundamente.

Para Foucault (1999) é evidente que duas instituições têm sido muito eficientes na tarefa de docilizar os corpos e ele nomina o exército e a escola. Em ambas as instituições os corpos são formatados e disciplinados por meio da vigilância e punições corretivas. Qualquer disciplina exige a especificação de um lugar, como internatos, quartéis e escolas. Esses espaços delimitados são complexos organizados de modo a controlar:

As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mais ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. (FOUCAULT, 1999, p. 174).

A descrição acima refere-se a um quartel ou a uma escola, seja ela militarizada ou não. Se, no critério do espaço físico e estrutural, não há nada que diferencie profundamente uma escola não militarizada de uma militarizada, é possível diferenciá-las a partir de outras características.

Pode-se reconhecer a disciplina do corpo pelo horário, como afirma Foucault (1999), ou seja, não se exige apenas o produto do corpo e, sim, as regras de sua operação. Como segurar um fuzil, como segurar o lápis, como sentar direito… E, obviamente, ocupar o tempo de forma que não haja tempo para ócio. Até esse ponto não se observam significativas diferenças entre uma escola e um quartel. Se o gerenciamento do tempo é essencialmente o mesmo, o é também a divisão em etapas, na escola: ensino fundamental 1, 2…, no quartel: soldado do efetivo variável, soldado do efetivo permanente, cabo, terceiro sargento…

Segue-se a importância de não somente treinar cada corpo separadamente, mas treiná-lo como parte de um grupo, como entendeu Foucault (1999, p. 191)

O treinamento dos escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais — sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre, ou ainda aquele pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam; era chamado por excelência o “Sinal” e devia significar em sua brevidade maquinal ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência.

Na lista das disciplinas cabe a realização de exames exatamente porque faz distinguir os sujeitos. O exame expõe a individualidade do sujeito, e permite conceber a constituição do indivíduo como processo descritivo, como também a constituição de um sistema comparativo classificatório de indivíduos (FOUCAULT, 1999). O exame permite uma individualidade, mas não uma subjetividade, uma vez que essa individualidade está presa a critérios estabelecidos a priori (um estudante que já ousou discordar de um professor numa prova bem o sabe).

A estratégia utilizada, diante de comportamentos em que subordinados (sejam estudantes ou soldados) pervertem a ordem estabelecida, é assim descrita por Foucault (1999, p. 207)

Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto — que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal (a “classe vergonhosa” da Escola Militar). A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza. (grifo nosso).

Ainda de acordo com Foucault, não há significativas diferenças entre a escola tradicional e uma instituição militar. É possível, então, que a necessidade de militarizar as escolas tenha surgido a partir do momento em que a escola começou a romper com estruturas de poder e propor diferentes relações e interações, a princípio, menos controladoras.

São abundantes, no século XX, propostas de educação que tentam romper com essa lógica. Citamos, para ilustrar, a abordagem humanista, associada aos pensadores Carl Rogers e Alexander Neill, na qual, segundo Mizukami (1986, p. 38): “Dá-se igualmente ênfase à vida psicológica e emocional do indivíduo e a preocupação com sua orientação interna, com o autoconceito, com o desenvolvimento de uma visão autêntica de si.” No Brasil, a proposta de educação libertadora de Paulo Freire uma vez que, segundo Brandão e Fagundes (2016, p. 103-104):

O sistema Paulo Freire de educação recolocava a possibilidade de organizar uma outra proposta de educação democrática, para além da lógica dominante, em que a cultura popular passava a assumir o papel preponderante como elo de ligação e reconhecimento identitários e de libertação de seus sujeitos, como seres sociais e políticos, nas infindáveis possibilidades de diálogos entre o próprio grupo, com diferentes grupos e distintos lugares, reconhecendo a existência de conhecimentos e culturas.

De certa forma, essas diferentes concepções de educação promovem fraturas no sistema educacional, no sentido em que Carvalho (2016) chama de criação de descontinuidades. Essas descontinuidades levam uma parte da sociedade a conceber a “escola raiz”, aquela em que o professor mandava e o estudante obedecia, ou era severamente punido, aquela dos tempos de infância nos quais se tinha medo de olhar para o lado, como obsoletas. Mas, para uma fratura criada, aparecem sujeitos dispostos a remendá-las visando manter tudo exatamente como era.

Dessa forma, a educação militarizada ganha força exatamente quando contextos escolares questionam determinados valores institucionais iniciando afastamentos de “...um ambiente hierarquizado e disciplinado.” (COLÉGIO MILITAR DE BRASÍLIA, 2018). Nas palavras de Foucault (1999, p. 243), a manutenção da disciplina é importante porque:

Em uma palavra, as disciplinas são o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram fazer crescer a extensão útil das multiplicidades fazendo diminuir os inconvenientes do poder que, justamente para torná-las úteis, deve regê-las. Uma multiplicidade, seja uma oficina ou uma nação, um exército ou uma escola, atinge o limiar da disciplina quando a relação de uma para com a outra torna-se favorável.

A concepção de disciplina surge no sentido de aprendizado, e evolui até se tornar um mecanismo, e parte fundamental da escola, entendida como dispositivo de manutenção de poder. Em contextos hierárquicos e de obediência, a escola agrega estruturas físicas e discursos, nas quais a disciplina é fundamental para a constituição e manutenção de corpos dóceis, porque “a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo de ônus reduzida como força ‘política’, e maximalizada como força útil.” (FOUCAULT, 1999, p. 244).

Então, quando se pensa em educação militarizada, é necessário considerar que se trata de um misto das duas instituições: uma escola que se comporta como quartel, ou, o que também não é absurdo pensar, um quartel que oferece serviços escolares. A título de exemplo, transcrevemos parte do regimento previsto para corte de cabelos dos alunos do Colégio Militar do Rio de Janeiro (2018):

1. Quanto ao comprimento do cabelo: (a) cortado à máquina nº 2 nas partes parietais e occipitais do crânio, isto é, na transição do couro cabeludo, mantendo-se bem nítidos os contornos junto às orelhas e o pescoço; (b) o corte deverá ser disfarçado, gradativamente, de baixo para cima, com tesoura, até a altura correspondente à borda da cobertura; (c) na parte superior da cabeça, o cabelo deverá ser desbastado o suficiente para harmonizar-se com o resto do corte e com o uso da cobertura; (d) o penteado não poderá cobrir a testa, ainda que parcialmente (franja); (e) a nuca não deverá acabar em linha reta ou arredondada, mas ser desbastada com máquina dois; (f) as costeletas poderão ter o comprimento até a altura correspondente à metade do pavilhão auricular; (g) é permitido o corte com máquinas de altura mais baixa, porém deve sempre estar harmonizado, sem topetes, “linhas” feitas à máquina ou cortes moicanos. 2. Peculiaridades da apresentação individual masculina: (a) não é permitido o uso de bigode, barba ou cavanhaque; (b) não são permitidos cortes raspados ou pinturas coloridas no cabelo e nas unhas; (c) haverá revistas de cabelo, cuja periodicidade mínima é de 15 (quinze) dias corridos; (d) não é permitido o uso de brincos, mesmo que seja colocado esparadrapo ou outro tipo de material para encobrir, assim como, o uso de piercing ou alargador em qualquer parte do corpo; (e) é permitido o uso de 01 (um) anel em apenas uma das mãos, assim como o uso de corrente fina e discreta, desde que fique escondida pelo uniforme.

Mas, já não é assim?” - Questionaria a maior parte dos estudantes a escola tem uniforme, horários, classificação dos alunos, punição por mau comportamento, e por aí segue uma lista quase infinita. Para ajudar a diferenciar a proposta de uma escola civil de uma militar, trazemos a proposta pedagógica do Colégio Militar de Brasília (CMB), que em seu primeiro parágrafo, destaca: “Os pais que optam pelo CMB para realizar a educação de seus filhos acreditam nos valores que orientam o Colégio e desejam que seus filhos absorvam a cultura, a tradição, o modo de fazer e de agir do Exército Brasileiro num ambiente hierarquizado e disciplinado.” (CMB, 2018).

A proposta do CMB é objetiva e clara: incluir como educação das crianças e adolescentes os valores do Exército Brasileiro: disciplina e hierarquia. Mais disciplina e mais hierarquia das já existentes em escolas ‘tradicionais’, certamente implicam mais conformidade com obediência, servidão e aceitação silenciosa, ao menor deslize, de reprimendas e humilhações. Some-se a isso a negação de si e do outro, uma vez que no reino do poder, todos são suspeitos, o inimigo é invisível, sorrateiro à espera do momento apropriado para controlar, enganar e oprimir. Mais uma vez, como podem pais criarem seus filhos a serem entregues a entidades que os tornam mais submissos, obedientes e resignados com a servidão? Por que negligenciar a liberdade e aceitar a perda da subjetividade? Mais uma vez Foucault (1999, p. 193) nos ajuda a esclarecer:

[...] mas há também um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado de natureza, mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral mas à docilidade automática.

A perda de subjetividade atinge multidões em praticamente todos os âmbitos da sociedade, não somente o escolar, como bem anuncia Agamben (2009, p. 48) “As sociedades contemporâneas são como corpos inertes atravessados pelo processo de dessubjetivação, que não corresponde a nenhum processo de subjetivação real.” Para o autor “estamos vivenciando o corpo social mais dócil de toda a história da humanidade.” (AGAMBEN, 2009, p. 49). A dessubjetivação é uma realidade na contemporaneidade, e nesse contexto, a escola é apenas mais um dispositivo.

Mas, podemos sair desse enlace de servidão? Desejamos sair? Qual(is) alternativa(s)? Entendemos que o ser humano não contém em sua condição humana a lógica da dessubjetivação e da servidão. Então, a violação da subjetividade é criação cultural, política, científica como também é criação cultural e ideológica a importância da necessidade da obediência e da servidão. As concebemos, construímos e reconstruímos no decorrer da história, sofisticando as estratégias e intensificando políticas e dispositivos de vigilância e controle de nossos mais íntimos desejos, seja de bem-estar, de felicidade ou de poder. Se a escola for um espaço para conhecer e refletir sobre as sutilezas da dominação e das alienações, de como agem silenciosamente e invadem a intimidade do ser pessoa individual, existe a possibilidade da criação de imaginários de resistência. Criar sensibilidades para reconhecer a violência dos esforços e dos interesses que conformam as pessoas e, por isso, sobrepõem-se aos esforços da subjetivação. Essa compreensão pode potencializar a resistência visando uma re-existência. Reflexão, a seguir, desenvolvida.

4 ALTERNATIVAS E SONHOS DE RESISTÊNCIA PARA RE-EXISTIR

Discorremos, anteriormente, sobre o quão complexo é o desafio de desenvolver subjetividades num ser humano que segue sendo um estranho indiscernível e indescritível. O enigma humano segue em estruturas sólidas e opacas, como segue firme o enigma do porquê uma pessoa aceitar ser escrava de outra pessoa. E, diante da problemática: Por que parte da população brasileira tende a matricular seus filhos em escolas cívico militares, argumentamos sobre a presença de inúmeras variáveis envolvidas e que direcionam esse acreditar. Certamente, o respaldo da objetividade científica, a violência impositiva dos dispositivos de poder, a ambiguidade entre ser livre e servir, a lógica da ordem como indutora à passividade, entre outros, respaldam essa tendência numa perspectiva que leva à obediência silenciosa. Vimos que, segundo La Boiétie (2019, p. 6) “Onde há poder, há tirania. A pergunta é: por que alguém se submete? Ou melhor: por que muitos se submetem a tão poucos? [...] parece que criamos o hábito de nos submeter, é simplesmente mais fácil, gera menos transtornos.” Estamos imersos numa estranha ambiguidade: seres humanos feitos livres por natureza negam sua liberdade. Mas, como e porque seres humanos livres se dispõe livremente a servir e como pode uma servidão ser voluntária?

Nesse complexo contexto, nosso objetivo foi sensibilizar para reflexões do porquê muitas famílias escolherem matricular seus filhos e filhas em escolas cívico-militares. Escolas que encontram sua base de sustentação em pressupostos que privilegiam negar o livre pensar, negar a livre construção de subjetividades por aderirem às práticas pedagógicas de mando e obediência. Afirmávamos acreditar ser a reflexão, como experiência do pensar, em e como subjetividade, capaz de contribuir para a superação da lógica do mando e da obediência.

Assim, trazemos contribuições e proposições de autores que sonham alternativas, como saídas possíveis ao processo de dessubjetivação. Iniciemos com Deleuze (2005, p. 113) que nos brinda com convite importante:

A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra que insiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas.

Os dois contextos, postos em questão por Deleuze, se encaixam no contexto da biopolítica neoliberal que, em ambientes de educação cívico-militar, tendem a ser levadas ao extremo. São fortemente visíveis nos mecanismos de avaliações, genéricas e homogêneas, como em punições de humilhação, nas exigências de uniformização, de cortes de cabelo, entre outros. Também comparecem quando convencem e convertem crianças, adolescentes e jovens, que toda essa trama de rigidez faz parte de uma nova identidade, deslocada para um amanhã no qual serão servidos, servindo. São contaminados e convertidos a reconhecerem que numa sociedade capitalista neoliberalizada “...toda singularidade deveria ou ser evitada, ou passar pelo crivo de aparelhos e quadros de referência especializados.” (GUATTARI, 2012, p. 34). Em outras palavras, cabe destruir a infância, o amar e a estética para criar sentires de conformações aos viveres de angústia, de dor, sofrimentos e solidão ao lado de uma interminável esperança em promessas que não se cumprem. Entenda-se que, firmar-se como subjetividade torna-se prescindível tal qual é prescindível o reconhecimento da diferença, da singularidade e da diversidade.

Na contramão, resistir significa acreditar e construir uma dinâmica escolar, na qual, ao invés de resolver diferenças e pregar que todos são iguais, assumem-se as diferenças respeitando-as, sem mascarar subjetividades com rótulos e uniformes. Nessa diferente dinâmica escolar as crianças se expressem livremente, desenvolvem ações colaborativas com objetivos comuns, sem abrir mão de sua subjetividade.

La Boétie (2019, p. 39) ao propor uma alternativa à lógica da obediência e da servidão sugere a amizade. Em suas palavras:

A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade. O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância. Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça.

Contra a lógica da desconfiança e servidão humilhante, La Boétie (2019) propõe encontros com e como pessoas. Conviver, compartilhar experiências, reaprendendo a estar próximos uns dos outros. Óbvio que estar próximo não é nada simples, pois requer desapegar-se, abdicar do constranger e do ser constrangido, abdicar do ser servido. O estar juntos qualifica, potencializa a subjetividade, suprime carências, anula a desconfiança. Por isso mesmo, na lógica do poder que requer domínio, obediência e servidão, a amizade é simplesmente impossível.

Parece utópico imaginar que a escola seja capaz de deixar de ser um dispositivo de dominação e tornar-se uma dinamizadora de fazeres em liberdade. Para além das grandes revoluções sociais, Guattari (2012) propõe uma ecosofia social, ou seja, a junção de uma ecologia do meio ambiente, uma ecologia das relações sociais e uma ecologia da subjetividade humana, que pressupõe: “...uma ressingularização individual e/ou coletiva.” (GUATTARI 2012, p. 15). O autor propõe práticas de experienciação, seja no contexto microssocial, seja em escalas maiores como forma de recompor práticas individuais e sociais por meio da ecologia social, da ecologia mental e da ecologia ambiental. Acreditamos ser o ambiente escolar um dos espaços possíveis para reconhecer e promover essas diferentes experiências do viver convivendo.

Pensar a subjetividade como dimensão ecológica integrando relações sociais e ambientais, possibilita ressignificar as relações sociais a partir do sujeito, e não o sujeito a partir das relações sociais, como geralmente ocorre. Ao considerar que não há uma hierarquia entre essas dimensões, pode-se vislumbrar os humanos como integrantes da natureza e não como seus detentores.

Maturana e Varela (1997) ao proporem a teoria da autopoiese entendem como fundamental considerar cada ser vivo como singular e completo, capaz e necessitado de interações com os demais seres vivos, com o entorno ambiente, via acoplamento estrutural. Essa interação pressupõe o respeito a cada indivíduo e à sua singularidade. Nesse contexto, educar é convivência, que transforma os fazeres a partir do respeito a si e ao outro (MATURANA, 1998).

Como começar essa mudança na escola? Guattari (2012) argumenta que a reconstrução de dinâmicas sociais não passa por leis, por decretos ou dispositivos de controle, mas por práticas e experiências enquanto em convívio. Experiências de convívio em confiança e amizade podem ser uma alternativa ao educador visando desativar os mecanismos da tirania. Nas palavras de Carvalho (2016, p. 15) “Do ponto de vista da função educador, a subjetividade ativa encontrar-se-á na esfera de todo processo de criação que representa a dessujeição do educador dos mecanismos que aprisionam e normalizam suas ações, gestos e práticas que o finalizam como sujeito.”

O caminhar do educador que se assume como resistente, não só pensa, pois sabe que, ao pensar compreende-se melhor e compreende melhor seu domínio existencial. Desafio que o prepara para atuar na micropolítica e promover “...pequenas descontinuidades, no oportunismo de uma experiência que forja um novo acontecimento.” (CARVALHO, 2016, p. 19).

Também Agamben (2014) contribui com indicação de alternativa frente às lógicas da obediência, da servidão e da tirania. Para o autor, todo o operar de dispositivo de poder, toda biopolítica visa separar os seres humanos daquilo que podem fazer, ou seja, de sua potência. O poder, ao separar os seres humanos de sua potência os torna impotentes. O poder, mais do que agir sobre o que se pode fazer – sua potência – age “antes sobre a sua impotência, isto é, sobre o que não podem fazer, ou, melhor, podem não fazer [...] ‘impotência’ não significa aqui somente ausência de potência, não poder fazer, mas também e sobretudo ‘poder não fazer’, poder não executar a potência própria.” (AGAMBEM, 2014, p. 57). Ou seja, realizar uma escolha, exercitar a liberdade de dizer ‘não’, de resistir e resistir responsavelmente.

Resistir assumindo a própria impotência e, como educadores, mais do conhecer o que se pode (potência) e aquilo que não se pode fazer, firmar o poder de não fazer. Educadores e educadoras, podem, se o desejarem, criar ambientes pedagógicos e formativos para diferentes experiências - proposição de Carvalho – resistindo para criar descontinuidades.

Em Agamben (2009) encontramos ainda outro conceito especialmente útil para educadores: trata-se da profanação (AGAMBEN, 2009), ou seja, liberar das propriedades sagradas para possibilitar o uso aos humanos. Se consagrar é tornar divino, ou seja, tirar do uso comum dos humanos, então o sagrado não pode estar disponível a todos e, qualquer ameaça para perverter essa ordem é considerada sacrilégio (AGAMBEN, 2007). O autor é unívoco ao afirmar que os dispositivos existem para garantir que o sagrado permaneça intocado. Podemos assumir com Agamben que a dinamização da ou pela subjetividade exige a profanação dos dispositivos, ou seja, promover a restituição de diferentes usos que lhes foram tirados. Para Agamben (2009, p. 46):

De fato, todo dispositivo implica um processo de subjetivação, sem o qual o dispositivo não pode funcionar como dispositivo de governo, mas se reduz a um mero exercício de violência. Foucault mostrou assim como, numa sociedade disciplinar, os dispositivos visam, através de uma série de práticas e de discursos, de saberes e de exercícios, à criação de corpos dóceis, mas livres, que assumem sua identidade e a sua “liberdade” de sujeitos no próprio processo do seu assujeitamento. Isto é, o dispositivo é, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações e somente enquanto tal é também uma máquina de governo.

Sustentamos, ser o contexto da biopolítica um dos impeditivos da afirmação e construção de subjetividades, por ser entendido como uma espécie de sagrado, onde alguns poucos têm acesso em detrimento das maiorias submetidas ou cooptadas a se servirem da subjetividade imposta por dispositivos, que preservam privilégios utilizados como instrumentos de repressão e opressão.

A comunidade escolar, enquanto dispositivo de poder, pode tanto impor subjetividades de forma massificada, pregando a igualdade entre todos os alunos, fazendo da homogeneização o objetivo a alcançar, como pode desejar profanar os dispositivos e incentivar o desenvolvimento de subjetividades, reconhecendo e respeitando as diferenças.

Concluímos que a educação militarizada pressupõe uma apropriação do indivíduo, atuando como dispositivo de controle e dessubjetivação, intensificado no contexto da biopolítica neoliberal.

Que, mesmo em uma escola com regras rígidas, como por exemplo uma escola cívico-militar, há fissuras como oportunidades e espaços de manobra, espaço de resistência. Nas bordas, nas dobras e endobras das descontinuidades emergem espaços para amizades na contramão da desconfiança, emerge a profanação para destronar o sagrado onipotente, emergem oportunidades para reconhecer a auto-organização autopoiética, na contramão da padronização e negação das singularidades, emerge a oportunidade para, constantemente, constituir-se subjetividade.

Que, educar pessoas que não somente obedecem, mas que aceitam resignar-se, requer conscientização e sensibilização reconhecendo que, ser governado é governar-se a não ser tiranizado.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Nudez. São Paulo: Autêntica, 2014.

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

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Endereço para correspondência: R. Taquarí, 831 - Santo Antonio, Campo Grande - MS, 79100-510; andrerika.silva@ifms.edu.br


1 Doutoranda junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc).

2 Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep- Piracicaba/SP); Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

3 Este artigo discute o contexto do Pecim (Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares), política pública implementada no ano de 2019 que, de acordo com o próprio programa, deixa claro em seu art. 11, afirmando o projeto consistir em “...conjunto de ações promovidas com vistas à gestão de excelência nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa, baseada nos padrões de ensino adotados pelos colégios militares do Comando do Exército, das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares (BRASIL, 2019b). Ao longo do texto, nos referimos aos documentos oficiais dos Colégios Militares, pois no que diz respeito a questões ideológicas, são representativos da proposta das escolas cívico-militares.

4 Referência ao livro: LA BOÉTIE, Etiene de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Martin Claret, 2019.

5 Significa que boa parte dos relacionamentos tomam a forma do favor, a ponto de organizarmos protestos em locais anteriormente delimitados pela polícia, e com o seu apoio para garantir a segurança; incentivarmos a instalação de câmeras de ‘segurança’/vigilância dentro das escolas e até dentro das salas de aula e, em alguns casos com compartilhamento em tempo real pela internet por parte dos pais.