https://doi.org/10.18593/r.v47.27258
RESENHA
PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA, QUADRAGÉSIMO ANO: NOVAS APROXIMAÇÕES
Historical-critical pedagogy, fortieth year: new approaches
Pedagogía histórico-crítica, cuadragésimo año: nuevas aproximaciones
Anna Maria Lunardi Padilha1
Instituto de Pesquisas Heloísa Marinho, Pesquisadora
https://orcid.org/0000-0001-6624-660X
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-crítica, quadragésimo ano: novas aproximações. Campinas: Autores Associados, 2019, 346 p.
A Pedagogia Histórico-Crítica, enquanto construção coletiva de uma teoria pedagógica revolucionária, acumula experiências de quatro décadas de estudos e práticas em favor de uma educação de qualidade para todos. Este livro - Pedagogia Histórico-Crítica, quadragésimo ano: novas aproximações – é a reunião das conferências realizadas pelo autor – Dermeval Saviani – entre dezembro de 2006 e março de 2019. A obra em questão dá continuidade ao Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações, publicado pela primeira vez em 1991.
Abordando diversos aspectos do trabalho educativo, esta obra constitui um caminho de compreensão e aprofundamento para professores e pesquisadores que desejam conhecer e assumir a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) em seus estudos e em sua prática.
Trata-se de 20 capítulos reunindo estudos que, de acordo com o autor, “se apresentam como novas aproximações na elaboração dessa teoria pedagógica”. A Pedagogia Histórico-Crítica é, portanto, o fio condutor teórico e metodológico desta obra.
Percebe-se a articulação entre os capítulos porque são, todos eles, a afirmação da posição epistemológica do autor. Trazem a contextualização da educação brasileira, destacam elementos históricos da elaboração da PHC e analisam questões pontuais que compõem a totalidade, o que nos leva a uma maior compreensão das categorias do método dialético: universal, particular e singular.
Saviani é um dos mais importantes teóricos da educação brasileira e um dos maiores especialistas em História e Filosofia da Educação no Brasil. Além de estar intimamente ligado aos movimentos afeitos à educação universal, pública, estatal, gratuita e laica, é responsável pela formação de muitos intelectuais brasileiros. Dermeval Saviani é autor de leitura obrigatória para os que desejam se apropriar da elaboração teórica deste pesquisador, professor, educador e escritor.
Sobre a pesquisa na pós-graduação e seu compromisso social com a produção do conhecimento, os capítulos 1, 10 e 19 abordam, respectivamente, o dilema da produtividade e da qualidade na formação dos pesquisadores na pós-graduação stricto senso; a pós-graduação, a pedagogia e os movimentos sociais na luta pela educação popular e a pós-graduação, a faculdade de educação e a pedagogia a favor da educação pública. Sempre coerente com o materialismo histórico e dialético, Dermeval Saviani não se rende à escalada privatista da educação e vê, na mobilização e na resistência popular, a força em defesa da escola pública, estatal, universal, laica e gratuita.
Os capítulos 2 e 8 trazem o debate acerca das teorias pedagógicas hegemônicas e contra-hegemônicas na história da educação brasileira. Como historiador da educação brasileira, o autor explicita dois grandes grupos de teorias pedagógicas: as que pretendem a manutenção e a conservação da sociedade dividida em classes sociais antagônicas e as que se posicionam com vistas à transformação dessa sociedade. Se as primeiras correspondem aos interesses da classe dominante, as segundas correspondem aos interesses da classe que vive do trabalho. No capítulo 2, Saviani aponta a construção coletiva da PHC como teoria contra-hegemônica, ancorada nos fundamentos filosóficos, históricos, econômicos e político-sociais que seguem as trilhas abertas pelas investigações de Karl Marx “sobre as condições históricas de produção da existência humana que resultaram na forma da sociedade atual dominada pelo capital”. Já no capítulo ٨, encontramos uma reflexão crítica frente às pedagogias contemporâneas. Analisando as implicações da ordem social no papel da escola e dos professores, o autor mostra os limites das pedagogias contemporâneas e as possibilidades de sua superação pela PHC.
Em 2018, no encerramento do III Congresso de Pedagogia Histórico-Crítica, em Presidente Prudente, Saviani proferiu sua conferência falando sobre a defesa da escola pública na perspectiva histórico-crítica em tempos de suicídio democrático. Eis do que trata o capítulo 17. Para abordar o tema, situa a questão da escola pública a partir do liberalismo clássico, do renovado, do neoliberalismo e do socialismo, contrapondo a defesa da escola pública feita pelo liberalismo ‒ baseado na propriedade privada ‒ com a posição do socialismo – que preconiza a extinção da propriedade privada e a socialização dos meios de produção. Saviani defende que nossa luta deve seguir em direção a uma escola pública em contradição “com as exigências inerentes à sociedade de classes do tipo capitalista”. Preconiza o acesso de todos às escolas públicas no melhor padrão de qualidade para que se dê a apropriação do saber pelos trabalhadores. Afirmando que a finalidade da PHC é a socialização do saber elaborado, enfatiza, ao final, que, na radicalidade da proposta, o desafio é superar a lógica capitalista. Duarte (2016, P. 28) discute a posição crítica de Saviani, argumentando a força que tem sua formulação para fazer avançar sua proposição da “essência da escola como instituição socialista em si, em direção a transformá-la em instituição socialista para si.”
No capítulo 6, respondendo à questão sobre o papel da supervisão educacional e a transformação social, Saviani questiona qual escola e qual sociedade seriam capazes de garantir uma educação humanizadora e uma supervisão educacional igualmente humanizadora e includente. Faz um alerta aos supervisores para que resistam ao “canto da sereia” das “novas pedagogias” que, no dizer do autor, são “pseudopedagogias”. Conclama os supervisores a se posicionarem na perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica de modo a valorizar o acesso à cultura, fugindo do utilitarismo e do imediatismo do cotidiano.
Os capítulos 3, 4 e 5 enfatizam o conhecimento e a educação. No capítulo 3, volta-se à filogênese e à produção humana pelo trabalho: cada novo ser deve aprender a ser um homem: “a origem da educação coincide com a origem do homem mesmo”. O papel da escola é possibilitar o acesso à cultura letrada e ao aprendizado da escrita, da leitura, da linguagem dos números, da natureza e da cultura. Acompanhar o autor em seus argumentos a favor da escola pública brinda o leitor com os fundamentos teóricos e metodológicos da PHC e sua viabilidade como pedagogia contra-hegemônica, humanista, crítica e revolucionária. A tarefa da escola é viabilizar o acesso de todos os trabalhadores ao saber sistematizado e à assimilação desse saber.
Já no capítulo 4, o foco é o desafio da PHC diante da ciência e da educação na sociedade contemporânea. Fazendo a crítica ao clima cultural do pós-modernismo, Saviani explicita que, para a PHC , a educação não é o determinante principal das transformações sociais porque não é autônoma frente à lógica do capital, mas pode “impulsionar as transformações, articulando-se aos movimentos sociais populares que lutam para superar a ordem social atual”. No capítulo 5, Saviani desenvolve argumentos da relação entre teoria e prática como elemento definidor da pedagogia. Apresentada como dilema, a relação entre teoria e prática é discutida sob a lógica dialética, ou seja, para apreender o concreto e dar conta da explicação do real, a prática é razão de ser da teoria e a “teoria depende, radicalmente, da prática”.
Outras questões foram escolhidas pelo autor para compor a obra. Entre elas: a Pedagogia Histórico-Crítica e a corporeidade; a Pedagogia Histórico-Crítica na educação do campo e política da educação profissional e tecnológica pós LDB. Essas três questões foram discutidas nos capítulos 7, 9 e 18.
Quanto à corporeidade, dirigida aos professores da área da educação física, o autor expõe suas reflexões apoiado em Gramsci. Traz excertos do autor italiano para mostrar que a ideia central diz respeito ao aprendizado do controle do próprio corpo e do psiquismo.
No capítulo 9, Saviani retoma seu conceito de educação: “ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Para que seja possível tal ato educativo, a PHC enfatiza e prioriza o domínio das objetivações humanas que configuram o contexto da atualidade, entendendo a educação como “atividade mediadora no interior da prática social global”. Delineando um quadro em que se desenvolve a prática social dos moradores do campo, o texto segue analisando os momentos do método da Pedagogia Histórico-Crítica, relacionando-os com a educação do campo: a prática social como ponto de partida, a problematização, a instrumentação, a catarse e a prática social como ponto de chegada.
No capítulo 18, relativo à política de educação profissional, expõe sobre a regulamentação da educação profissional após a LDB de 1996 e as transformações que foram ocorrendo. Ao abordar o que se passou nos governos Lula e Dilma, chega ao que ele denomina de golpe jurídico-mediático-parlamentar de 2016, apontando os retrocessos na educação. Defende que devemos nos preparar para uma luta de longo prazo, abrindo espaços de resistência com conhecimentos que subsidiem a luta dos educadores a fim de restaurar, de início, o Estado de Direito Democrático.
Os textos que compõem os capítulos 11 e 12 dizem respeito a dois conceitos caros ao autor: conceito dialético de mediação na Pedagogia Histórico-Crítica em intermediação com a Psicologia Histórico-Cultural e a formação da consciência social. Concebendo a mediação como categoria central da dialética, o texto analisa a categoria de mediação a partir do conceito de trabalho em Marx. A educação é entendida como atividade mediadora no interior da prática social. No capítulo 12, Saviani explicita as bases objetivas da formação da consciência. Para isso, volta-se para Karl Marx e o processo de desenvolvimento histórico da humanidade. Distingue consciência real de consciência possível e chega à discussão sobre ideologias e luta de classes.
Os capítulos 15 e 16 trazem dois campos de estudos do autor e afinidades com os propósitos da PHC. No capítulo 15, Saviani diz sobre as lições de Antônio Gramsci e as influências delas em sua vida e na sua obra. Conta-nos que os escritos de Gramsci permitiram a ele a fundamentação consistente e segura das concepções de mundo, de sociedade e de educação. Mostra a presença de Gramsci na construção teórica da PHC: o trabalho como princípio educativo, a ideia de escola unitária e a concepção de politecnia. No capítulo 16 refere-se a uma conferência de 2017 na Jornada do GT-HISTEDBR de Rondônia, em Porto Velho. Nessa ocasião, Saviani apresenta a contribuição da revolução russa para a educação e a PHC na atualidade. Para isso traz um tanto de história da revolução e caminha em direção às contribuições nos campos da psicologia e da educação. No campo da psicologia, fala da teoria histórico-cultural da escola de Vigotski (1995, p. 34) para quem a “cultura origina formas especiais de conduta”.
Os capítulos 13, 14 e 20 são dedicados às ações prospectivas. No capítulo 13, pergunta-se como avançar em vista dos desafios teóricos e políticos da Pedagogia Histórico-Crítica trazendo aspectos da educação atual, apontando estratégias para respostas diante de tais desafios. No capítulo 14, relata a história de sua inspiração para a proposta da Pedagogia Histórico-Crítica, destacando momentos dessa história com um olhar para o futuro.
No capítulo 20, Aula Magna de 2019, com o título “Desafios da Educação na Atualidade”, Saviani contextualiza historicamente a educação em relação à Terceira Revolução Industrial, Revolução da Informática, Revolução Microeletrônica, ou da Automação, e a transferência das funções manuais para as máquinas. Chega em seguida à política educacional que vem sendo implementada no Brasil, caracterizando-a “pela flexibilização, pela descentralização das responsabilidades de manutenção das escolas”, apontando o que significa a municipalização das escolas e comentando o papel das organizações não governamentais, das empresas, do voluntariado e da filantropia. Faz uma severa crítica à situação na qual nos encontramos no Brasil, quando nem sequer chegamos à universalização da escola elementar. Propõe que, para enfrentarmos os inúmeros desafios – e ele aponta muitos deles – “será necessário assumir de vez a educação como prioridade de fato e não apenas nos discursos como ocorre recorrentemente.”
Esse livro possui enorme relevância para estudiosos e pesquisadores, especialmente no campo da Educação. A leitura da obra pode contribuir como subsídio para os que desejarem participar da construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica, por indicar uma visão crítico-transformadora da formação do homem novo: aquele que viverá em uma nova sociedade não corrompida pela lógica do capital. A escola tem papel fundamental nessa profunda transformação.
Recebido em 04 de fevereiro de 2021
Aceito em 22 de novembro de 2021
REFERÊNCIAS
DUARTE, N. Os conteúdos escolares e a ressurreição dos mortos: contribuição à teoria histórico-crítica do currículo. Campinas: Autores Associados, 2016.
VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995.
Endereço para correspondência: Rua Ernesto Portante, 300, ap. 53. CEP: 13 420-530; Piracicaba, São Paulo; annamlpadilha@gmail.com
1 Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); annamlpadilha@gmail.com