https://doi.org/10.18593/r.v47.27221
As contribuições da teoria histórico-cultural de Vigotski no âmbito da educação especial no Brasil
The contributions of Vygotsky Historical-Cultural Theory in the special education ambit in Brazil
Las contribuciones de la Teoría Histórico-Cultural de Vygotsky en el ámbito de la educación especial en Brasil
Ivone de Oliveira1
Universidade Federal do Espírito Santo. Professora titular.
https://orcid.org/0000-0002-5948-4797
Resumo: A entrevista com a professora Anna Maria Lunardi Padilha visa a discutir as contribuições da Teoria Histórico-Cultural de Vigotski e de seus seguidores no âmbito da educação especial no Brasil, enfocando temas como: contribuições da Teoria Histórico-Cultural para a educação escolar hoje; desenvolvimento humano em uma perspectiva histórica e cultural e suas implicações para os processos de ensino e de aprendizagem; desafios políticos e educacionais na escolarização de pessoas com deficiência e formação de professores para atuar com alunos público-alvo da educação especial na educação básica. Tendo em vista o percurso profissional e acadêmico-científico da professora Anna Padilha, bem como seu comprometimento com a educação pública, universal, gratuita e de qualidade social para todos, suas considerações sobre a temática em foco neste dossiê podem trazer grandes contribuições para o debate.
Palavras-chave: Políticas de educação especial. Desenvolvimento humano. Ensino e aprendizagem. Formação de professores.
Abstract: The interview with the Teacher Anna Maria Lunardi Padilha aims at discussing the contributions of Vygotsky’s Historical-Cultural Theory and their followers in the special education ambit in Brazil, focusing on themes such as: contributions of the Historical-Cultural Theory for today’s education; human development in a historical and cultural perspective and their implications for the learning and teaching processes; political and educational challenges regarding people with disabilities schooling and teachers’ training to work with target students of special education in elementary school. Bearing in mind the professional and academic-scientific path of the Teacher Anna Padilha, as well as her commitment with public, universal, free and with social quality to all education, their considerations about the theme in question in this portfolio may bring great contributions for the debate.
Keywords: Special education policies. Human development. Teaching and learning. Teachers’ training.
Resumen: La entrevista con la profesora Anna Maria Lunardi Padilha tiene por objeto discutir las contribuciones de la Teoría Histórico-Cultural de Vygotsky y de sus seguidores en el ámbito de la educación especial en Brasil, centrándose en temas como: contribuciones de la Teoría Histórico-Cultural para la educación escolar hoy; desarrollo humano en una perspectiva histórica y cultural y sus implicaciones para los procesos de procesos de enseñanza y de aprendizaje; desafíos políticos y educacionales en la escolarización de personas con discapacidad y formación de profesores para actuar con el público destinatario, alumnos de la educación especial en la educación básica. Tomando en cuenta la trayectoria profesional y académico-científica da profesora Anna Padilha, así como su comprometimiento con la educación pública, universal, gratuita y de calidad social para todos, sus consideraciones sobre la temática centrada en este dossier pueden aportar grandes contribuciones para el debate.
Palabras clave: Políticas de educación especial. Desarrollo humano. Enseñanza y aprendizaje. Formación de profesores.
Recebido em 29 de janeiro de 2021
Aceito em 22 de novembro de 2021
SOBRE A ENTREVISTADA
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Anna Maria Lunardi Padilha iniciou sua carreira como professora em escolas da educação básica e, mais recentemente, atuou no Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Metodista de Piracicaba. Realizou pesquisas e orientou trabalhos sobre os processos de ensino e de aprendizagem de pessoas com deficiência, acumulando uma extensa produção que inclui os desafios, as possibilidades e as condições necessárias à educação escolar dessas pessoas. Seus estudos também têm dado suporte a sua atuação em diversos projetos de formação inicial e continuada de professores em diferentes regiões do país. Atualmente é professora pesquisadora do Instituto de Pesquisas Heloísa Marinho, no Rio de Janeiro.
Entrevistadora: Professora Anna Maria, seu percurso acadêmico e profissional indica um longo período de contato e desenvolvimento de estudos a partir da Teoria Histórico-Cultural. A senhora poderia comentar um pouco sobre como ocorreu esse encontro com os estudos de Lev. S. Vigotski (1896-1934), pesquisador russo que teve uma produção expressiva, especialmente nas áreas da Psicologia e da Educação? Poderia ainda nos dizer de que maneira eles impactaram sua vida profissional e acadêmica?
Anna Maria: Muito antes de conhecer Lev Vigotski, sua teoria, sua obra e a de seus seguidores, fiz a escolha por ser professora, profissão que exerci em diversos setores da educação: educação infantil; classes de alfabetização; ensino fundamental (anos iniciais); escola normal para formar professores e professoras; alfabetização de adultos a partir dos estudos e propostas de Paulo Freire; formação de professores indígenas e de professores leigos do Alto Araguaia e ensino superior. Depois me tornei pesquisadora e atuei na pós-graduação, orientando dissertações e teses.
Por muitos anos me dediquei às crianças e aos adolescentes com as chamadas dificuldades de aprendizagem, trabalhando em um centro de orientação onde também realizava atividades formativas com pais e escolas dessas mesmas crianças e adolescentes.
No final dos anos 80 do século passado, interessei-me em cursar o mestrado. Ingressei no Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp e iniciei os estudos da Teoria Histórico-Cultural no Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem (GPPL), com os professores Angel Pino, Maria Cecília Rafael de Góes e Ana Luiza Bustamante Smolka – pesquisadores que muito contribuíram para o desenvolvimento de pesquisas nessa perspectiva teórica. Eles trouxeram para o Brasil o que haviam conhecido fora do país sobre as obras referentes a essa teoria. Esses professores/pesquisadores orientaram leituras e pesquisas de muitos pós-graduandos, contribuindo para o desenvolvimento de uma produção significativa sobre o desenvolvimento humano e as práticas educativas em espaços escolares e não escolares, além de outros aspectos. Tenho uma profunda gratidão por ter sido formada no compromisso de levar os estudos teóricos a sério e uma saudosa lembrança dos colegas que fizeram parte desse processo formativo. Desde então, Lev Vigotski e seus seguidores, principalmente Alexandr Luria e Alexis Leontiev – os mais conhecidos à época – começaram e fazer parte de minhas leituras e pesquisas, tanto individuais como coletivas.
Encontrei na obra desses autores a resposta para muitas de minhas dúvidas a respeito do desenvolvimento humano nas mais diferentes condições de vida e, especificamente, do desenvolvimento das pessoas com deficiência. Se encontrei respostas, me deparei com muitas interrogações e dificuldades diante dos problemas que enfrentamos para a inclusão social e escolar como direito de todos. A vida acadêmica ganhou novo sentido, porque Lev Vigotski e seus seguidores, ancorados no aporte filosófico materialista histórico e dialético, evidenciam a natureza cultural do humano e, dessa forma, o desenvolvimento do psiquismo como produto da apropriação de signos culturais. A vida profissional demandou reflexões e buscas por melhor compreensão do funcionamento do sistema psíquico e do papel da educação.
Os estudos que empreendi para a construção da dissertação e da tese2 foram marcos fundantes para o caminho que passei a seguir na luta pelo desenvolvimento das crianças e adolescentes com deficiência, dedicando-me mais profundamente à deficiência intelectual.
A psicologia concreta de Vigotski, enquanto materialista e marxista, seu método coerente com o materialismo histórico e dialético e que o sustenta no desenvolvimento de sua teoria – que ele mesmo diz ser a “dialética do homem como objeto da psicologia” – vieram preencher a lacuna que eu sentia em relação à unidade entre teoria e prática. O enfoque histórico-cultural supera a naturalização dos processos de desenvolvimento humano, própria de outras vertentes da psicologia, porque evidencia a necessidade de acesso de todos ao patrimônio cultural da humanidade.
Entrevistadora: Os estudos de Lev. S. Vigotski foram desenvolvidos em um contexto social, histórico e político muito particular, em que havia o anseio de se construir, coletivamente, uma nova sociedade, um novo homem e, em meio a isso, uma nova psicologia que colaborasse na compreensão do desenvolvimento desse homem e das formas sociais e históricas – e também educacionais – em jogo em sua constituição. É possível estabelecer algum tipo de relação entre os propósitos do autor à época e os rumos da educação no contexto atual? A teoria pode trazer alguma contribuição em relação a essa temática?
Anna Maria: Justamente, esse anseio pela construção de uma nova sociedade e, então, de um novo homem é o coração da psicologia histórico-cultural. Vamos lembrar que Vigotski concebia a cultura como o conjunto das obras humanas e, coerente com Marx e Engels, defendia que é a vida que determina a consciência ‒ e consciência é um conceito caro a Vigotski. Ele pensava nas condições de existência que originam a consciência e, daí, então, seu objetivo de criação de uma nova psicologia. Em sua obra O significado histórico da crise na Psicologia, escrita em 1927, não deixa dúvidas quanto à edificação de sua Teoria Histórico-Cultural do desenvolvimento humano, e seu desejo de que, na futura sociedade – a socialista –, a psicologia fosse, então, a ciência do homem novo.
Não é demais retomar que uma teoria social da sociedade, sob essa perspectiva, requer análise teórica da produção das condições materiais e simbólicas da vida social. Ora, as relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas e, adquirindo novas forças produtivas, os homens transformam todas as relações sociais. Tal proposição trabalha com a ideia de uma natureza transformada pela/na cultura. Quando Vigotski cita Karl Marx, em 1930, escreve que a divisão social do trabalho em intelectual e físico, a separação entre a cidade e o campo, a exploração cruel das crianças e das mulheres e a pobreza impossibilitam o desenvolvimento livre e completo do potencial humano, além de distorcer a personalidade humana. A sociedade capitalista na qual vivemos e da qual somos produto nos mutila, nos destrói, mas Vigotski é prospectivo e, como bom marxista que era, acreditava na criação de condições para substituir a velha ordem social por uma nova, baseada na ausência da exploração do homem pelo homem.
A esse respeito, Vigotski aponta três raízes básicas para a transformação social e a conquista da emancipação humana, o que entendemos que sejam as possibilidades para a constituição do homem novo: a destruição do capitalismo, a combinação do trabalho físico e intelectual e as mudanças nas relações interpessoais.
O que estamos vivendo hoje? Quais são as tarefas que se nos apresentam se quisermos, como Marx e Vigotski, saltar do reino da necessidade para o reino da liberdade, com o pleno domínio de nós mesmos? E qual seria o papel da educação na formação dessa nova sociedade e desse novo homem? Encontramos na Teoria Histórico-Cultural de Vigotski uma proposta bastante corajosa, de humanizar as relações entre os indivíduos, enriquecendo material e espiritualmente o conteúdo da vida coletiva e de cada um. Eis aí o papel da educação.
Entrevistadora: Alguns autores que comentam a obra de Vigotski fazem referência ao caráter otimista de seus escritos, sobretudo em relação à educação especial.
Anna Maria: O termo otimista pode trazer a ideia de uma visão parcial da realidade ou até de certa ingenuidade. Não é esse o caso de Vigotski.
Lembro-me de um dos textos primorosos de Vigotski, escrito em 1930, A transformação socialista do homem, em que ele diz que a educação deve desempenhar o papel central na transformação humana; que as novas gerações tenham, na educação, a base para a construção da nova sociedade e do novo homem. A educação é a rota principal para se compreender a exploração do homem pelo homem e a divisão social do trabalho, produto do capitalismo, e, desse modo, formar a consciência e os modos de luta coletiva a favor de outra organização social, mais humana e mais justa.
Importante lembrar o esforço teórico e prático de Vigotski para a educação das crianças com deficiência. Ele dedica muitos escritos a essa temática, desenvolve teorias e propõe ações efetivas. Muitas de suas questões acerca do desenvolvimento das pessoas com deficiência ainda estão por ser respondidas, dada a sua morte precoce. Em sua visão prospectiva sobre o desenvolvimento, as deficiências não deveriam decidir o destino das pessoas. Vejo essa perspectiva como nosso horizonte.
Impossível não ver a atualidade da obra de Lev Vigotski, em tempos sombrios como estes em que vivemos. Impossível não trazer para nossos dias, no campo da educação, o que Vigotski chamava de “ensino fecundo”, aquele que eleva os modos de pensar e, portanto, que se torna capaz de preparar as novas gerações para a luta contra a opressão. A educação pode ser um dos modos mais eficazes de formação da consciência crítica e comprometida com a transformação social; tanto para Vigotski do século passado como para nós, no século XXI. As condições tecnológicas podem avançar, mas os princípios se mantêm atuais.
Entrevistadora: Um primeiro olhar sobre pesquisas desenvolvidas na atualidade a partir de estudos realizados por Lev S. Vigotski indica a abordagem de temas diferenciados e modos até certo ponto distintos de compreensão de suas ideias. No que diz respeito especificamente aos postulados sobre o desenvolvimento humano em uma perspectiva histórica e cultural e suas implicações para os processos de ensino e de aprendizagem, o que a senhora pode destacar das contribuições do autor?
Anna Maria: Você traz questões importantes para a nossa conversa, por, pelo menos, dois motivos a serem discutidos. Primeiro, quanto à obra de Vigotski e o nosso conhecimento sobre ela. Segundo, pela importância da leitura original, da própria obra, para começarmos a compreender seus objetivos e sua teoria acerca do desenvolvimento humano.
As ideias de Vigotski, seus propósitos, suas investigações, seus escritos, suas aulas, suas ações políticas e culturais, discursos, cartas, matérias de jornal e até a história da perseguição que sofreu por ser judeu e, depois, à época de Stalin, por ser quem era – um estudioso da pedologia, participante de um grupo de intelectuais que foi considerado inimigo do stalinismo – não chegaram até nós de modo tranquilo e totalmente fidedigno. A obra de Vigotski ficou proibida praticamente de 1936 a 1956, em seu país.
Zoia Prestes (2014) tem feito um excelente trabalho de garimpar e traduzir os escritos de Vigotski, estando, na Rússia, perto da filha, da neta, dos parentes, dos alunos dos seus seguidores e dos parentes dos seus companheiros. No texto 80 anos sem Lev Semionovich Vigotski e a arqueologia de sua obra, por exemplo, ela nos ajuda a compreender que ainda não conhecemos toda a obra e que ainda acontecem correções nas traduções que chegaram ou chegam até nós. Se sua obra está entre as que interessam à psicologia e à pedagogia, é necessário dizer que ela é fundamental também para estudos da filosofia, sociologia, antropologia, linguística. Tudo isso ainda precisa ser conhecido e reconhecido entre nós, nas academias brasileiras, nas escolas. Ainda bem que já temos várias traduções mais fidedignas.
Além dessas dificuldades, ainda temos outra, que me parece grave: a leitura deturpada da Teoria Histórico-Cultural de Vigotski e de seus seguidores. Leituras que revelam desconhecimento acerca de sua matriz materialista histórica e dialética. O materialismo histórico e dialético está na base de seus estudos e de seu método de investigação. Isso não pode ser retirado de seus escritos.
Entrevistadora: Com essa fala, a senhora nos diz que não se pode compreender a obra do autor sem considerar suas condições de produção e os fundamentos históricos e políticos que estão subjacentes a ela.
Anna Maria: Com certeza. Essa higienização do Vigotski marxista deturpa a compreensão de sua teoria sobre o desenvolvimento humano, que você questiona.
A lei genética geral do desenvolvimento humano, para Vigotski, diz que qualquer desenvolvimento do sistema funcional psíquico acontece em dois planos: primeiro no social, entre as pessoas, para que possa ser interpsíquico, no interior das pessoas. Como é que o psicólogo russo justifica sua lei? Destacando o verdadeiro nexo entre o que ele denomina de inter e intrapsíquico. As funções psíquicas propriamente humanas (a atenção voluntária, a memória lógica, a formação de conceitos, a imaginação, a vontade, a linguagem, os sentimentos, entre outras) não são produto da biologia ou da história pura da espécie. São sociais, são relações que são interiorizadas, são da ordem do social, são os fundamentos da personalidade humana.
Sua lei geral do desenvolvimento explica a importância do coletivo na vida das crianças com ou sem deficiência. O que se converte em pessoal são as relações entre pessoas e os significados dessas relações, portanto, o desenvolvimento caminha da socialização para a individualização. Do que é social para o que é individual. E não o inverso, como teorizou, por exemplo, Jean Piaget.
As funções humanas, no ambiente coletivo, se estruturam por meio da linguagem, pela mediação dos signos, pela mediação semiótica. Ora, conceber o desenvolvimento humano desse ponto de vista leva-nos a outra premissa: o que somos e o que podemos chegar a ser vão além de simples condicionamentos ou respostas a técnicas de um ou outro processo educativo. Precisamos saber quais condições são dadas no meio social e em que circunstâncias a coletividade é vivida no processo de desenvolvimento humano e no trabalho educativo com as novas gerações. Vigotski ressalta a relação da criança com o meio que a circunda. No processo educativo das crianças com e sem deficiência, são os adultos que significam o mundo para elas. Eis nosso papel como educadores e professores: identificar quais as relações existentes entre a criança e o meio, como acontecem as vivências e de que forma a criança toma consciência delas e as concebe. Claro está que isso só será possível com a presença sistemática e intencional do processo de educação sob essa perspectiva. Não se trata de influências externas, mas de constituição cultural de cada indivíduo, nas relações interpessoais.
Vigotski disse que sua teoria é revolucionária, com vistas ao futuro, e que a instrução precisa ser “fecunda”. O bom ensino, diz ele, é aquele que se adianta ao desenvolvimento e não fica caminhando a reboque dele. E, quando há impedimentos, como no caso das deficiências, Vigotski se afasta dos estigmas e dos determinismos biológicos e sociais e nos alerta que a organização didática não pode se adaptar aos limites das pessoas, mas, ao contrário, a organização do ensino pode desenhar caminhos alternativos, novas vias, para que todos aprendam e se desenvolvam – caminho diametralmente oposto ao das pedagogias relativistas, muito difundidas no campo educacional, hoje.
Entrevistadora: Nas últimas décadas, o movimento em favor da inclusão escolar de pessoas com deficiência propiciou, em um curto período de tempo, a matrícula da grande maioria de crianças e jovens com deficiência do país na escola regular. Nesse contexto, a escolarização desses estudantes foi apontando muitos desafios em termos políticos e educacionais. Considerando as contribuições da Teoria Histórico-Cultural de Vigotski para a construção de uma educação que “humanize as relações entre os indivíduos, enriquecendo material e espiritualmente o conteúdo da vida coletiva e de cada um”, como a senhora analisa essa situação?
Anna Maria: Você fala em escolarização de pessoas com deficiência em um contexto de desafio diante das condições de acesso de todos à educação escolar, como política pública de inclusão, e aponta as contribuições da Teoria Histórico-Cultural. Como já comentei, a obra de Vigotski indica um percurso de luta pela criação de uma nova sociedade, em que todos possam ter acesso aos bens materiais e simbólicos produzidos coletivamente e desenvolver o máximo de suas potencialidades como seres humanos, conforme seu período histórico. O interesse de Vigotski pelos problemas de desenvolvimento e aprendizagem fez com que ele não só se dedicasse aos estudos teóricos, mas também que participasse intensamente de programas educativos especiais com crianças deficientes.
Em 1925, Vigotski fundou um laboratório de psicologia para crianças com deficiência. Foi desse laboratório que se originou o Instituto Experimental de Defectologia – ciência que tem como objeto especial de estudo os processos de desenvolvimento infantil com uma quantidade quase ilimitada dos seus diferentes tipos. Dedicou-se à pesquisa, ensino e programação educativa de crianças com necessidades especiais na então União Soviética. Suas contribuições foram teóricas, metodológicas, institucionais e clínicas no campo da deficiência. Entre suas metas estava o desejo de capturar a organização peculiar das funções psíquicas e das condutas do deficiente.
As linhas gerais de seu pensamento sobre o desenvolvimento e a aprendizagem dos deficientes são, na verdade, propostas inovadoras, tanto para o campo das pesquisas quanto para a atuação educacional. A partir das ideias do autor russo, compreendemos que pessoas com deficiência necessitam de um meio social enriquecido para o seu desenvolvimento cultural; necessitam de uma interação permanente com outros membros da cultura e de uma ação educativa cuidadosamente planejada. Mas essas demandas ainda são um grande desafio!
Atualmente, na perspectiva dos direitos humanos, delineiam-se vários conceitos e diferentes práticas para se alcançar a finalidade da educação como direito de todas as pessoas: sejam elas deficientes, imigrantes, ciganos, indígenas, de diferentes religiões, diferentes gêneros e etnias ou classe social, não importando a idade ou a origem sociocultural. Precisaríamos ser um país comprometido com os direitos humanos em toda a sua extensão e com toda a exigência e vigilância para esse alcance. Não somos.
Ainda lutamos por investimentos destinados ao público-alvo da educação especial na perspectiva inclusiva. Com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, mudam os responsáveis da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e, hoje, nem temos mais essa Secretaria. Estamos cada vez mais diante do afastamento de instituições científicas dos órgãos de elaboração de políticas educacionais, poder e deliberação. A universidade tem sido desconsiderada pelo governo que assumiu em 2019. O diálogo com os movimentos sociais é escasso. Somente em uma sociedade democrática são esperados direcionamentos de ações verdadeiramente inclusivas – para a sociedade em geral e para a educação, em particular.
Vejo com preocupação a estagnação das ações advindas das políticas públicas já conquistadas e temo não termos a quem recorrer quanto às iniciativas de elaboração de ajustes e/ou de novas políticas, pelo menos nos próximos tempos. Isso é um entrave na nossa luta por uma educação que tenha o alcance desejado no caminho da inclusão escolar de todas as crianças e jovens. Isso sem nos esquecermos de que, na escola regular, todas as necessidades dos estudantes devem ser contempladas e atendidas. Estar matriculado na escola não garante nem a permanência nem o aprendizado com um ensino fecundo, como eu disse antes.
Entrevistadora: Mas a senhora tem apontado avanços nessa luta pelo direito à educação escolar para pessoas com deficiência?
Anna Maria: Sim! Com a pressão de segmentos sociais e com a luta de grupos “minoritários” (entre aspas), movimentos sociais populares e reivindicações de associações, chegamos a conquistar alguns patamares importantes nessa empreitada da chamada inclusão escolar. Precisamos lembrar que o que denominamos “minoritários” não diz respeito ao número de pessoas. Na verdade, são os grupos humanos com menos direitos garantidos de forma integral e integrada. Isso é importante de ser dito.
Vamos lembrar que, no final da década de 1980, houve mobilizações que buscavam a redemocratização do país e, entre as reivindicações, estavam as que se relacionam com a educação escolar. A nova Constituição Federal, de 1988, avançou nesse sentido, assegurando os direitos de todos à educação, como um bem individual e coletivo. Foram formuladas, entre tensões, políticas públicas para a educação universal, gratuita e laica.
Na década de 1990, acontecem acordos internacionais com a meta da educação para todos ‒ como exemplos, a Declaração de Jomtien em 1990, a de Nova Delhi, em 1993, e a Declaração de Salamanca, em 1994. Cresceram, desse modo, as vozes que clamaram – e ainda clamam – pela educação de crianças e jovens com deficiência em salas de aulas regulares.
Também tem início, no segundo mandato de Luiz Inácio da Silva (2008-2011), um olhar mais apurado para projetos educacionais inclusivos. Claro que, ao mesmo tempo, conviveram diferentes concepções de educação inclusiva. Até 2008, e mesmo depois, tínhamos instituições especializadas para a educação de pessoas com deficiência e nelas estavam matriculadas muitas crianças e muitos jovens que não frequentavam a escola comum ou regular.
Os movimentos a favor da educação para todos não acontecem de modo tão tranquilo e progressivo. Até hoje, a discussão se dá em diversos âmbitos políticos e educacionais: escolas regulares ou escolas especializadas? Como organizar a escola de modo a atender com boa qualidade quem precisa de atendimento que respeite suas peculiaridades? Como formar professores especialistas que estejam junto dos professores não especializados e assim conseguir que as crianças com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação possam evoluir no aprendizado? Como formar professores na perspectiva da inclusão, nas licenciaturas? Os alunos da educação especial devem ser atendidos em suas necessidades, prioritariamente nas salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE)? Como essas salas devem estar organizadas e com quais finalidades? São muitas questões ainda não respondidas em todos os rincões deste nosso país.
Não obstante esses questionamentos, muito do que conquistamos em anos anteriores, e que já foi oficializado e normatizado, pode ter sido apropriado e, desse modo, fazer parte dos projetos político-pedagógicos de grande número de escolas, em diferentes municípios e estados brasileiros. Nossas conquistas precisam ser lembradas e efetivadas em práticas, mas com a clareza de que muito ainda temos a realizar e, mesmo, a superar, uma vez que vamos aprendendo ao longo desses anos.
O que mais importa é que as crianças e jovens querem dizer: “presente! Estamos aqui, não queremos ser segregados, à espera de alguma filantropia! Queremos uma escola que leve em consideração nossas necessidades e que não nos exclua, e queremos, sobretudo, aprender; ter acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade!”.
Eis aí um enorme desafio: ensinar os conteúdos escolares a todas as crianças e jovens com ou sem deficiência, mas principalmente as com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. Claro que isso exige um compromisso consciente, organizado e resistente a toda tentativa de nos fazer sucumbir da luta pela educação especial na perspectiva da inclusão.
Entrevistadora: Aqui a senhora se refere, também, ao Decreto n. 10.502, de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida?
Anna Maria: Sim, creio que todo o movimento organizado por vários setores da sociedade em prol da revogação desse decreto antidemocrático, inconstitucional e segregador é um exemplo de caminhos potentes a serem seguidos pela sociedade civil na luta pelo direito à educação escolar para pessoas com deficiência.
Entrevistadora: Na busca pela construção de uma educação escolar para todas as pessoas, alicerçada no ensino fecundo, que contribua para a formação da consciência crítica e comprometida com a transformação social, a senhora menciona a formação de professores. Poderia falar mais sobre esse desafio?
Anna Maria: Para falar da formação de professores na perspectiva do direito de todas as pessoas à educação escolar, é necessário situar essa temática em meio aos desafios que a escola enfrenta atualmente. Mesmo tendo aumentado as matrículas das crianças com deficiência nas escolas regulares, vimos acompanhando, a partir de 2016, o peso da redução dos financiamentos para a educação e a tendência de privatização e de terceirização dos serviços de atendimento ao público-alvo da educação especial. Enfrentamos as ideologias da meritocracia e do individualismo com a consequente contradição que minimiza a luta de classes. A escola pública é uma contradição deste tempo. Nesse contexto, que possibilidades se delineiam para o ensino fecundo para pessoas com deficiência, defendido por Vigotski?
Penso que um ponto importante a destacar nessa discussão é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Vários pesquisadores têm estudado e analisado o que significa a BNCC para a educação especial na perspectiva da inclusão, em sua versão final de 2017 – para a educação infantil e ensino fundamental – e na versão de 2018 – para o ensino médio. Claramente vinculado à lógica do mercado, o discurso hegemônico da BNCC (BRASIL, 2018) é o de preparar as pessoas para o mercado de trabalho e, para tanto, busca desenvolver competências e formula seus objetivos no sentido de aliá-los aos objetivos das provas e avaliações em larga escala. Seria possível um verdadeiro “compromisso em reverter a situação de exclusão”, como escrito na versão da BNCC de 2018, se nem sequer se volta a analisar as causas dessa exclusão e das desigualdades? Se o documento nem menciona com clareza qual seria o público-alvo da educação especial? Esse silêncio está bem de acordo com os fundamentos das agências privadas. Nas palavras de Luiz Carlos Freitas, escritas no livro A reforma empresarial na educação: nova direita, velhas ideias (FREITAS, 2018), a educação está sendo sequestrada pelos empresários que mantêm uma “agenda oculta” quando discursam sobre “qualidade da educação para todos”, pois, na verdade, a meta é a privatização.
Não adianta só democratizar a escola e torná-la acessível a todos, se ela estiver esvaziada de seu conteúdo específico, qual seja, o saber sistematizado e de qualidade socialmente referenciada. Diante disso, não encontro, nesse documento, possibilidades para tratarmos de um ensino fecundo para os estudantes com deficiência. Mesmo que nossa luta seja por isso.
Entrevistadora: Nessa perspectiva, essa situação ficará mais delicada, tendo em vista de que há uma nítida intenção do governo de alinhar a BNCC à formação de professores.
Anna Maria: Com certeza. A Resolução n. 2/2019, do Conselho Nacional de Educação, que atualiza as diretrizes curriculares para a formação inicial de professores, segue o mesmo viés de formação de competências da BNCC, priorizando o “saber fazer” em detrimento de uma formação sólida.
Se o bom ensino – de acordo com Vigotski – é aquele que promove novas formações neuropsíquicas, quem é que planeja e organiza este bom ensino? Importante pensar na formação inicial e contínua de professores. E na formação dos formadores. Quem forma os formadores?
O desenvolvimento das capacidades cognitivas das crianças e jovens depende inteiramente da instrução e o ensino tem que anteceder ao desenvolvimento. Se o desenvolvimento orgânico/biológico tem e/ou impõe limites, o desenvolvimento cultural, que supõe a escola e a instrução por caminhos alternativos, é ilimitado. Para tanto, é preciso consciência desse processo por parte da equipe pedagógica da escola. E, nesse processo, a formação do professor é aspecto crucial para a socialização dos mais avançados conhecimentos e uma postura comprometida com o aprofundamento dos estudos teóricos e metodológicos acerca do desenvolvimento humano e das práticas educativas humanizadoras e desenvolventes.
Diante disso, é urgente uma discussão sobre a Resolução n. 2/2019, e, juntamente com isso, uma intensificação da reflexão a respeito das demandas formativas que a matrícula de estudantes público-alvo da educação especial na escola comum coloca aos profissionais da educação e aos cursos de licenciatura. Além de uma formação sólida na área de conhecimento em que atuam, quais são os conhecimentos específicos que esses profissionais necessitam ter para atuar com esses estudantes? E como viabilizar a apropriação desses conhecimentos na formação inicial e continuada?
Vimos discutindo com grupos de professores e pesquisadores na área da Educação Especial que a escola regular tem a função de ensinar e de potencializar a ação educativa na sala de aula, além de repensar a atuação dos professores especializados nas diferentes deficiências, no que se tem denominado ensino colaborativo: professores das escolas regulares e professores especializados, planejando e atuando junto à escola, na elaboração de ações pedagógicas para todos os estudantes que necessitarem. Esse me parece ser um caminho potente para pensar a formação dos profissionais.
Entrevistadora: Para concluir nossa conversa, eu trago um pequeno trecho de uma carta de Lev Semionovich Vigotski, citada na página 26 do livro “Vygotsky: uma síntese”, de René Van der Veer e Jann Valsiner (1996, p. 26). Na carta, destinada a alguns de seus alunos, em 1929, o autor faz uma fala emocionada sobre como vê sua participação, como pesquisador, na tarefa de construção da “nova psicologia”: “A sensação da imensidão e enormidade do trabalho psicológico contemporâneo é minha principal emoção. [...] Mil vezes, temos que nos colocar em teste, avaliar[nos], enfrentar a prova antes de nos decidirmos, pois esta é uma estrada muito difícil que exige a pessoa inteira.” A partir disso, como a senhora vê a participação na construção de uma educação especial que contemple a todas as pessoas com deficiência, tendo como referência os postulados da Teoria Histórico-Cultural?
Anna Maria: Para esse nosso encontro, você apresentou questões importantes que deram oportunidade para pensarmos sobre múltiplos aspectos do trabalho educativo, além de ser um convite para estudos sobre a realidade que estamos vivendo em relação à educação de crianças e jovens, com e sem deficiência. Assumir a Teoria Histórico-Cultural como perspectiva de vida e como modo de compreensão das relações humanas nos impõe compromissos e responsabilidades. Trazendo as palavras emocionadas de Vigotski para perto de nós e de nossa realidade, sinto o quanto ainda temos de luta pela frente para a construção de uma sociedade mais justa para todos. O conceito de justiça também vai sendo construído e transformado em um movimento dialético de contradições. O direito de todos à educação ainda é uma construção que deve ser coletiva. Para tanto, é preciso fazer um esforço de compreender, por exemplo, as singularidades da inclusão social e escolar das crianças e jovens, identificando as condições estruturais que revelam o que é universal, que está além do aparente, visível, tangível, mas que é determinante.
A relação entre educação e sociedade e a construção de uma práxis educativa não estão apartadas da práxis social. A defesa da escola pública de qualidade socialmente referendada tem que ser ativa e corajosa, planejada e organizada, dirigida e avaliada coletivamente.
A inserção das pessoas com deficiência, desde muito cedo, nos diferentes grupos humanos favorece o movimento contra uma visão discriminadora e segregadora dessas pessoas e a escola é um dos lócus privilegiados para isso. Eis um importante ensinamento de Vigotski e de sua escola: é na atividade coletiva que se encontram as possibilidades de uma “frutífera e promissora” luta contra a deficiência. Privar as pessoas com e sem deficiência da vida em coletividade da escola e do trabalho é privá-las da fonte de desenvolvimento cultural. Essa privação, Vigotski classifica de “abandono pedagógico”, no livro Defectologia, volume V das Obras Escogidas.
No livro Pedagogia Histórico-Crítica quadragésimo ano: novas aproximações, Dermeval Saviani (2019) nos lembra que a existência humana não é uma dádiva natural, por isso tem que ser produzida por nós, o que implica um processo educativo. Vigotski deixou-nos uma grande contribuição ao nos apresentar e explicar a sua psicologia concreta: somos a encarnação das relações sociais que nos constituem. A situação real da educação brasileira nos coloca face a face com o aluno real, concreto, síntese de múltiplas determinações sociais. É este aluno que devemos considerar para o desenvolvimento de um “ensino fecundo”!
Agradeço a oportunidade de estarmos juntas, refletindo sobre questões que nos afetam – que nos moveram e nos movem em direção à humanização das relações sociais – lembrando Bertold Brecht (2000, p. 186) ao se dirigir aos que vacilam diante das dificuldades: “Com quem ainda podemos contar? Seremos nós os restantes a ninguém mais entendendo e não sendo entendidos por ninguém? Precisamos de sorte? Assim perguntas. Não contes com nenhuma resposta além da tua!”
REFERÊNCIAS
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. BrasíliaMinistério da Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/#introducao. Acesso em: 7 jan. 2021.
BRECHT, B. Aos vacilantes. In: BRECHT, B. Poemas: 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2000.
FREITAS, L. C. A reforma empresarial na educação: nova direita, velhas ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
PRESTES, Z. R. 80 anos sem Lev Semionovich Vigotski e a arqueologia de sua obra. Revista Eletrônica de Educação, São Carlos, v. 8, n. 3, p. 5-14, 2014. Disponível em: http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/1055/352. Acesso em: 7 jan. 2021.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica quadragésimo ano: novas aproximações. Campinas: Autores Associados, 2019.
VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. Vygotsky: uma síntese. São Paulo: Loyola, 1996.
Endereço para correspondência: Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória, ES, 29075-910.
1 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; ivone.mo@terra.com.br
2 A dissertação e a tese produzidas pela professora Anna Maria deram origem, respectivamente, aos livros: Possibilidades de histórias ao contrário ou como desencaminhar o aluno da classe especial, com a 1ª edição publicada em 1997 pela editora Plexus, 1997; Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental, com a 1ª edição publicada em 2001, pela editora Autores Associados, em conjunto com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).