https://doi.org/10.18593/r.v47.26478

Educação das relações étnico-raciais na sociedade brasileira: concepções, princípios e determinações

La educación de las relaciones étnico-raciales en la sociedad brasileña: concepciones, principios y determinaciones

Education of ethnic-racial relations in brazilian society: conceptions, principles and determinations

Candida Soares da Costa1

Universidade Federal de Mato Grosso, Professora Adjunta II

https://orcid.org/0000-0002-2371-6605

http://lattes.cnpq.br/4333588038026474

Sérgio Pereira dos Santos2

Universidade Federal de Mato Grosso, Professor Adjunto

https://orcid.org/0000-0003-1218-214X

http://lattes.cnpq.br/9044437804351118

Resumo: O presente artigo trata sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana enquanto base para a educação das relações étnico-raciais, tendo por objetivo analisar suas concepções, princípios e determinações, com vistas a subsidiar melhor compreensão sobre a importância e necessidade de se manter a efetivação dessas Diretrizes na agenda política e social brasileira, frente às contínuas demandas pelo combate ao racismo. Adotou-se como orientação metodológica, a análise documental segundo Lüdke e André (1986) e utilizou-se como fonte o Parecer CNE/CP 3/2004, aprovado em 10/3/2004, e a Resolução CNE/CP n. 1, de 17 de junho 2004, que, juntos, compõem as Diretrizes. Espera-se contribuir para o debate no sentido de manter na agenda política e social a efetivação da política curricular de Educação das Relações Étnico-Raciais na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Relações étnico-raciais. Educação escolar. Diretrizes curriculares nacionais.

Resumen: Este artículo trata de las Directrices Curriculares Nacionales para la Educación de las Relaciones Étnico-Raciales y para la Enseñanza de la Historia y la Cultura Afro-Brasileña y Africana como base para la educación de las relaciones étnico-raciales, con el objetivo de analizar sus concepciones, principios y determinaciones, para subsidiar una mejor comprensión sobre la importancia y la necesidad de la implementación de estas directrices frente a las demandas sociales de combate al racismo. Se adoptó como orientación metodológica, el análisis documental según Lüdke e André (1986) y se utilizó como fuente el Dictamen CNE/CP 3/2004, aprobado en 10/3/2004, y la Resolución CNE/CP n. 1, de 17 de junio de 2004, que, en conjunto, componen las Directrices. Se espera que contribuya al debate para mantener en la agenda política y social la eficacia de la política curricular de Educación de las Relaciones Étnico-Raciales en la sociedad brasileña.

Palabras clave: Relaciones étnico-raciales. Educación escolar. Lineamientos curriculares nacionales.

Abstract: This article deals with the National Curricular Guidelines for the Education of Ethnic-Racial Relations and for the Teaching of Afro-Brazilian and African History and Culture as a basis for the education of ethnic-racial relations, aiming to analyze their conceptions, principles and determinations, in order to subsidize better understanding about the importance and need for the implementation of these guidelines facing the social demands to combat racism. It was adopted as methodological orientation, the documental analysis according Lüdke e André (1986) and it was used as source the Opinion CNE/CP 3/2004, approved in 10/3/2004, and the Resolution CNE/CP n. 1, of 17 June 2004, that, together, compose the Guidelines. It is expected to contribute to the debate in order to maintain in the political and social agenda the effectiveness of the curricular policy of Education of Ethnic-Racial Relations in Brazilian society.

Keywords: Ethnic-Racial Relations. School Education. National Curricular Guidelines.

Recebido em 28 de setembro de 2020

Aceito em 21 de dezembro de 2021

1 INTRODUÇÃO

O racismo tem se constituído, historicamente, uma das armas mais perversas de controle social, tendo por foco pessoas negras e grupos populacionais negros. Um vídeo gravado durante uma abordagem policial ocorrida na cidade de Minneapolis/USA no dia 25 de maio de 2020, que repercutiu pela internet, exemplifica uma das formas de materialização do racismo: um tipo de abordagem policial, da qual a pessoa abordada sabe que dificilmente sairá viva: no caso do vídeo, George Floyd, tinha certeza de que seria morto e, realmente, o foi. Esse vídeo documenta o processo de sufocamento de Floyd, até a morte, por um policial branco, ajoelhado sobre seu pescoço; registra até as últimas palavras, pronunciadas diversas vezes por Floyd, até ser silenciado: “I can’t Breathe”.3 A publicação da morte, testemunhada pelo vídeo, fez explodir indignações e protestos nos Estados Unidos e em vários países do mundo, nos quais se ressoaram gritos que há muito são emitidos pela população negra, sob diferentes maneiras na luta pelo pleno exercício do direito à vida: “Black lives matter”, traduzidos em diversos idiomas, evidentemente também para o português no Brasil: “Vidas negras importam”. O modo como se deu a morte de Floyd materializou, ao vivo e a cores, o brutal tributo que sociedades parametrizadas pelo racismo impõem às pessoas negras, a ser pago não a peso de ouro, mas pela própria vida, em suas dimensões material e imaterial.

Iniciar esse artigo com essa referência é uma maneira de chamar atenção para um fato, situado, mas que se articula a problemas de dimensão universal, por afetar toda a humanidade, mas que atinge diretamente as pessoas negras, extorquindo-lhe, inclusive, o direito à própria existência. Sob essa perspectiva, que se entende a pertinência de enfatizar a necessidade de não se perder de vista que a morte de George Floyd não é um fato isolado. Simboliza o cotidiano vivido por negros e negras em diferentes lugares, países e continentes e, evidentemente, no Brasil, onde violência com letalidade contra a população negra é assustadora, embora, em grande medida, situada no plano da invisibilidade haja vista à ausência de políticas públicas suficientes e capazes de fazer frente a essa realidade conforme nos sugerem os dados do Atlas da Violência no Brasil (IPEA, 2021), que, anualmente, vem sendo publicado pelo Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O tipo de abordagem policial da qual resultou a morte de Floyd, também tem acontecido no Brasil onde várias ocorrências são denunciadas. Em 13 de julho de 2020, a mídia chamou a atenção sobre um caso de abordagem policial muito semelhante ao que abateu Floyd: um policial que se colocou em pé, depositando o peso do seu corpo sobre o pescoço de uma mulher negra. O que une esses dois episódios, apesar dos contextos geográfico, histórico e social aparentemente desconexos? O racismo.

A utilização ilustrativa desses dois fatos, impulsionam questões à reflexão: que caminhos se tornam urgentes percorrer no sentido de desconstruir as bases do entendimento de humanidade que exclui negros e negras e que possam contribuir para a desnaturalização da violência ao ponto de que tantas lutas sejam necessárias para afirmar, em diferentes contextos, que vidas negras importam? Constitui-se a educação das relações étnico-raciais um componente imprescindível à construção de novos entendimentos, nos quais os negros sejam compreendidos como copartícipes da humanidade e, consequentemente, do que temos entendido, a partir da segunda metade do século XX, como direitos humanos?

O presente artigo, decorre do projeto de pesquisa “Educação, relações raciais e instituições: territorialidades e fronteiras sociais”, que investiga objetos em interface com educação, relações raciais e instituições. As discussões aqui desenvolvidas se ancoram na compreensão sobre educação como parte de uma perspectiva mais ampla, isto é, todo o processo que envolve o compartilhamento da vida em sociedade e a educação escolar como um dos componentes importantes desse processo.

A elaboração do presente artigo se guia pelo objetivo de analisar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana com vistas a contribuir ao debate sobre a necessidade, pertinência e potência da educação das relações étnico-raciais em contraposição à persistência da visão racializada e da naturalização da violência racista nos dias atuais, cujas dinâmicas operacionais atravessam todas as dimensões da vida dos grupos humanos à medida que, conforme evidencia Bento (2002), os prejuízos causados pelo racismo a uns beneficiam outros.

Adota-se o entendimento de que “[...] o racismo é o problema mais persistente e perigoso dos dilemas enfrentados pelo mundo contemporâneo” (WEDDERBURN, 2015, p. 405) e que requer, portanto, busca por soluções que incidam nas bases de sustentação de sua complexidade e abrangência enquanto estruturante social (ALMEIDA, 2018). Sob essa perspectiva, que se compreende a análise das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, entendendo que, embora se trate de uma busca de solução local, dialoga com a necessidade de resposta a um problema de ampla abrangência, cujos efeitos ignoram fronteiras. Sem perder de vista essa relação que se busca proceder análise das Diretrizes, focando especial atenção às suas concepções, seus princípios e suas determinações no sentido de disponibilizar elementos reflexivos que possam contribuir à continuidade de sua efetivação.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO

A pesquisa da qual se origina o presente artigo se filia ao campo das ciências humanas, especificamente à área da Educação. Evidentemente que, em termos gerais, compreende-se a educação, como todo processo formativo que envolve configuração de modos de sociabilidades no compartilhamento da vida em sociedade, no qual a educação escolar se constitui um dos elementos de grande relevância.

Para efeito das discussões que se propõe fazer neste texto, considera-se pertinente eleger, como ponto de partida, uma breve reflexão sobre racismo, compreendendo-o enquanto concepções utilizadas à interpretação de humanidade cuja consequência resultou na difusão do entendimento sobre os povos e indivíduos em perspectivas racializadas que situam os negros, segundo Rahier (2001), como os últimos dos últimos, os mais inferiores dentre os inferiores. Wedderburn, (2015), defende a hipótese de que o racismo:

[...] não é uma simples tecedura de preconceitos aberrantes, nem uma confabulação ideológica descartável, tampouco uma realidade oportunista surgida há pouco. [...] que se trata de uma forma de consciência/estrutura de origem histórica, que desempenharia funções multiformes, totalmente benéficas para o grupo, que, por meio dela, constrói e mantém um poder hegemônico em relação ao restante da sociedade. Tal grupo instrumentaliza o racismo institucionalmente e por meio do imaginário social, para organizar uma teia de práticas de exclusão que lhe garante um acesso monopólico aos recursos da sociedade. Desse modo, preserva e amplia os privilégios sociais, o poder político e a supremacia total, adquiridos historicamente e transferidos de geração a geração. (WEDDERBURN, 2015, p. 405-406).

Tomando como ponto de partida essa hipótese, é possível considerar que a concepção de humanidade, sistematizada no século XIX, que caracteriza os seres humanos brancos como referência a outros seres humanos se constituiu uma das formas de instrumentalização do racismo, que garantiu a conformação de imaginário social em que, ao longo de muito tempo, de continente a continente, brancos sejam considerados superiores a todos os outros humanos e, diametralmente, em relação aos negros. Wedderburn (2015) considera que “[...] o racismo constitui o arranjo estrutural e emocional mais complexo e destruidor que a humanidade criou contra si.” (WEDDERBURN, 2015, p. 406). Sob essa perspectiva, tornou-se elemento estruturante do imaginário social e da vida em sociedade.

Para Seyferth (1995) e Schwarcz (1993) a palavra racismo surgiu na década de 1930 como forma de identificação de um tipo de doutrina que, em essência, afirma que a raça determina a cultura. As crenças que levaram à afirmação da superioridade dos brancos e da determinação biológica da capacidade civilizadora, estão profundamente arraigadas no pensamento ocidental, por mais que a ciência do século XX tenha procurado destruí-las. Segundo essas autoras, como “doutrina orgânica da história”, o racismo chegou ao Brasil, na condição de ciência, nas últimas décadas do século XIX e o pressuposto determinista, contido na ideia de raça aqui divulgada, foi aceito pelos homens de ciência e incorporado ao discurso político e ao projeto de nação: um Brasil moderno, branqueado através do amplo incentivo à imigração europeia, conforme também aponta Domingues (2004) e Hofbauer (2006).

Da Matta (1987), ao discutir sobre “A fábula das três raças ou o problema do racismo a brasileira”, considera que, na história brasileira, a questão da relação entre as “raças” formadoras do povo brasileiro pode ser considerada como pré-condição para o entendimento da constituição do Brasil como nação. No contexto da produção do racismo brasileiro, analisa a dificuldade de se pensar socialmente o Brasil e especula sobre as razões que suscitam as “[...] relações profundas entre credos científicos supostamente eruditos e divorciados da realidade social e as ideologias vasadas na experiência concreta do dia-a-dia” (DA MATTA, 1987, p. 59).

O racismo, fundamentado pelo viés determinista do século XIX, metamorfoseia-se ainda com resquícios ou totalidade de sua configuração inicial na vida de muitos afro-brasileiros ainda que distantes no tempo e no espaço de sua elaboração nos institutos e laboratórios científicos de outrora. Azevedo (1987) em seu livro “Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX” aponta que, no contexto em que ocorreu o fim do sistema escravista, os emancipacionistas e os abolicionistas pensavam o negro distante de um sujeito autodeterminado ou com capacidade de se projetar na sociedade. Para eles, o negro era um cidadão que deveria ser controlado e “domesticado” tanto para mantê-lo à disposição dos donos dos meios de produção, quanto para impossibilitar que, no Brasil os negros se apoderassem dos poderes políticos, como já havia acontecido no Haiti por conta da Revolução.

No contexto social da implementação da educação antirracista, uma das assertivas fortes, do ponto de vista da manutenção do status quo étnico-racial, é advogar que somos miscigenados e que não há uma linha de cor no Brasil, já que há uma dificuldade de se saber quem é negro neste país. Essa assertiva encontra ancoradouro no imaginário social que tem na obra Casa grande e senzala, de Freyre, publicada em 1933, fundamentação teórica e política, cuja amplitude sai da erudição acadêmica e atinge as práticas e ideias em todos os espaços sociais, principalmente quando vem à tona um caso de racismo ou em momentos em que se tenta reparar ou garantir direitos para afro-brasileiros e indígenas na esfera do Estado brasileiro.

Freyre (1947) produz uma compreensão das relações raciais assentada em pretensa existência de processo amistoso entre as três raças brasileiras, articulada à hierarquia racial por meio de um “equilíbrio dos antagonismos” ou de uma “acomodação dos conflitos” (PAIXÃO, 2014). Assim, no aporte teórico de Freyre:

O modelo brasileiro de relações raciais combina diálogo e intimidade entre as pessoas diferentes, contudo, desde a constante preservação de abissais desigualdades entre os grupos portadores das distintas marcas raciais. Assim, desde que as assimetrias não sejam postas em questão, as relações entre as pessoas de raças diferentes podem ser dar de forma amigável, amistosa, íntima e, dentro de certos espaços e momentos, mesmo anárquica. No instante que estas assimetrias são postas em questão a aparente paz se esvai como plumas. Porém o próprio sistema teria uma espécie de no break interno que evitaria que estes conflitos se extremassem. (PAIXÃO, 2013, p. 132).

A lógica da igualdade adstrita às hierarquias raciais se adentra as ideologias raciais no contexto escolar e da universidade na medida em que os critérios de “valorização da cultura negra” pelo viés da perspectiva da mestiçagem, ou da conquista de “um sangue negro” no contexto escolar não elimina a estrutura racializada definidora de privilégios raciais em termos simbólicos, psicológicos e econômicos para o grupo branco em detrimento do grupo negro.

As concepções de Freyre (1947) trazem a figura do mulato como um “isolante” que esfriaria os conflitos raciais entre brancos e negros produzidos no sistema escravista brasileiro, cujas consequências “positivas” adentrariam o pós-abolição de maneira que a operacionalidade da raça via racismo seria nula ou sem preocupações e prejuízos sociais. Essa ideia, em nosso entendimento, reproduz as desigualdades raciais permanentemente, impede a compreensão social de que interpessoal e institucionalmente o racismo é promotor de relações raciais assimétricas, e inviabiliza a importância das políticas de Ações Afirmativas como a política curricular de educação das relações étnico-raciais enquanto instrumentos legítimos de superação das hierarquias raciais nos espaços sociais.

Em função da dimensão estrutural do racismo, ineficiente se torna qualquer tentativa de enfrentamento dos problemas dele decorrentes, se não visar o atingimento de seus ancoradouros. Indiscutivelmente, como já sinalizado, a educação escolar tem sido um desses ancoradouros à medida que, conforme explicita Costa (2011) ainda se orienta por currículos e epistemologias eurocentradas, contribuindo, para a manutenção do imaginário social racista.

Costa (2007), ao analisar percepções de docentes e estudantes do ensino fundamental sobre conteúdos depreciativos e de inferiorização da população negra em livros didáticos de língua portuguesa, destinados às escolas públicas por intermédio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), constata a imagem de pessoas negras associada a estereótipos que alimentam estigmas e preconceitos raciais. A autora observa, também, posicionamentos de docentes e de estudantes usuários dos livros analisados sobre os conteúdos analisados. Destaca que 66,66% do universo de docentes manifestaram incompreensão sobre o livro didático “[...] como portador de conteúdos ideológicos que, de alguma maneira, possam interferir no modo como as relações sociais se constroem” (COSTA, 2007, p. 67); os estudantes participantes da pesquisa, por sua vez, não somente identificaram esses conteúdos, como explicitaram os usos dos mesmos no intuito de inferiorizar colegas negras e negros no espaço escolar, cientes de poderem contar com o silêncio conivente da escola sobre práticas racistas. Essa pesquisa de Costa (2007) se filia a outras pesquisas que, já no século XX, denunciavam conteúdos racistas em livros didáticos brasileiros, tais como Santos (1987); Silva (1995, 2001, 2002); Rosemberg, Bazilli, Silva (2003), Oliva (2003). Observa-se que após as alterações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9394/1996), pela Lei n. 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e, posteriormente, pela Lei n. 11.645/2008 (BRASIL, 2008), tornando obrigatória a inclusão curricular do ensino de História e cultura africana, afro-brasileira e indígenas, destacamos importantes estudos, tais como: Oliva (2012), apontando como abordagem de conteúdos sobre a história africana no ensino brasileiro sob perspectiva da educação das relações étnico-raciais podem contribuir para o fortalecimento de identidades negras; Cunha Júnior (2020) pautando a importância dos africanos e de seus descendentes negros na produção da cultura brasileira em suas dimensões material e imaterial; Costa (2011) evidenciando quão necessária se faz a implementação da educação das relações étnico-raciais na sociedade brasileira, problematizando os fatores que favorecem ou dificultam a inclusão curricular de conteúdos de história e cultura afro-brasileira no currículo da Educação Básica. Estudos como esses contribuem para o debate e entendimento de que a educação escolar, enquanto resultado de ações humanas, do mesmo modo que foi conduzida a servir aos interesses racistas, pode ser conduzida em benefício da construção de caminhos para a superação do racismo e de suas consequências sociais à medida que se efetiva a educação das relações étnico-raciais, compreendendo suas concepções, princípios e finalidades.

3 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

A opção pela análise documental se assentou na decisão pelo tratamento do objeto a partir de informações obtidas por manuseio dos documentos normativos que definem a configuração das diretrizes que orientam a educação das relações étnico-raciais por intermédio do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, tendo em vista o alcance do objetivo de analisar as concepções, princípios e finalidades das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Desse modo, adotou-se como fonte os seguintes documentos: o Parecer CNE/CP 3/2004, aprovado em 10/3/2004, e a Resolução CNE/CP n. 1, de 17 de junho 2004, que, juntos, compõem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Observa-se, que em pesquisa em educação, todos os materiais escritos podem se constituir fonte de pesquisa, dentre os quais “[...] leis e regulamentos, normas, pareceres, cartas, memorandos, diários pessoais, autobiografias, jornais, revistas, discursos, roteiros de programação de rádio e televisão até livros, estatísticas e arquivos escolares.” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 38). A escolha desses dois documentos se deveu ao fato de que são complementares visto que a Resolução CNE/CP n. 1/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, torna o Parecer CNE/CP n. 3/2004, sua parte integrante. Além disso, são documentos que podem suscitar inúmeras problematizações apontando necessidade de análise e ampliação de possibilidades de escuta a respeito do que dizem tais documentos de modo implícito ou subliminarmente, que se revertam em contribuições ao debate sobre educação e relações étnico-raciais como alternativa de enfrentamento do racismo na sociedade brasileira.

4 EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: CONCEPÇÃO, PRINCÍPIOS E DETERMINAÇÕES

No Brasil, as denúncias do racismo como um propulsor da produção de desigualdades raciais e sociais situam a educação escolar como um dos instrumentos utilizados pelo Estado brasileiro, à propagação de concepções racistas, alimentando um ideário de hierarquização que estruturou toda a dimensão da vida brasileira, tanto no que se refere aos comportamentos individuais quanto no que diz respeito às práticas institucionalizadas. Observa-se, conforme Stepan (2005) que, historicamente, o Estado brasileiro assumiu como verdade as teorias raciais europeias do século XIX. Desse modo: adotou essas teorias como base para se interpretar os problemas da nação e, complementarmente, a eugenia como suporte científico à solução desses problemas; produzindo as condições para que, na compreensão sobre o Brasil, não somente os sistemas colonial e escravista não fossem suficientemente problematizados e confrontados, como favoreceu a difusão de concepções voltadas à desqualificação da importância do continente africano e, igualmente, de seus povos.

Stepan (2005) argumenta, ainda, que por intermédio da atuação do Estado brasileiro, a partir da segunda metade do século XIX e, enfaticamente na primeira metade do século XX, criaram-se as bases para a consolidação de um imaginário que mantém estreita relação do continente africano e, consequentemente, de seus descendentes como indesejáveis. A educação escolar, como outras instituições sociais, foi colocada na linha de frente como um dos recursos primordiais à consolidação do imaginário nacional na qual se incluía uma imagem de negro como naturalmente inferior.

Na área da Educação, registrou-se avanço com a alteração da Lei n. 9.394/1996, que define as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei n. 10.639/2003. No âmbito da inclusão do artigo 26A, tornou-se obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todos o sistema de ensino, público e privado, e, por intermédio do artigo 79B, determinou a inclusão do dia 20 de novembro, no calendário escolar, como “Dia Nacional da Consciência Negra”, escopo esse ampliado para “história e cultura afro-brasileira e indígena” pela Lei n. 11.645/2008.

Filice (2010) em sua tese de doutorado intitulada “Raça e classe na gestão da educação básica brasileira” produz uma análise sobre os impactos que o artigo 26-A da LDB n. 9394/96 trouxe para as rotinas pedagógicas das escolas em vários municípios brasileiros. Segundo ela, conforme apontado pela maioria dos relatos, a falta de tempo, a rotina administrativa e burocrática, a escassez de multimeios (livros, textos, CDs, etc.), além da ausência de uma boa formação continuada na temática, são fatores determinantes para que a implantação de uma educação antirracista não ocorra.

Vale observar que o primeiro posicionamento do Estado Brasileiro em relação a uma educação que reconheça as diferentes matrizes da formação do povo brasileiro somente ocorreu na Constituição Federal de 1988 como consequência das demandas sociais, especialmente dos movimentos negros. Essa Constituição passou a determinar a inclusão no ensino escolar da História do Brasil “[...] as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro” (BRASIL, 1988). A luta pelo cumprimento dessa determinação constitucional resultou na Lei nº 10.639/03 que alterou a LDB n. 9394/1996, tendo por consequência a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana pelo Conselho Nacional de Educação, cujas concepções, princípios e determinações passam a ser analisadas.

4.1 CONCEPÇÕES

A necessidade de Educação das relações étnico-raciais foi assumida pelo Estado brasileiro somente quinze anos depois do Brasil, por intermédio da Constituição Federal de 1988, adotar como princípio nas relações internacionais o repúdio ao terrorismo e ao racismo e ter definido, no âmbito nacional, o racismo como “[...] crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (BRASIL, 1988). Nesse contexto que, em 2003, o presidente da república sancionou, com vetos, a Lei n. 10.639/2003, decretada pelo Congresso Nacional, tendo por foco alterar a, Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo a obrigatoriedade de inclusão de conteúdos de “História e Cultura Afro-Brasileira”. Em decorrência dessa alteração na LDB n. 9394/1996, o Conselho Nacional de Educação, no cumprimento de suas “[...] atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Educação e do Desporto, de forma a assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional” (BRASIL, 1995), emitiu, por intermédio do Conselho Pleno, o Parecer CNE/CP n. 3/2004, propondo a instituição de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Esse parecer foi aprovado pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação em 10 de março de 2004, contabilizando unanimidade dos votos favoráveis de todos os conselheiros. Em consonância à aprovação do Parecer, o CNE instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana por meio da Resolução CNE/CP n. 1, de 17 de junho de 2004, orientando o sistema nacional de educação escolar quanto à garantia de “[...] igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos os Brasileiros” (BRASIL, 2004a, p. 1).

As Diretrizes se ancoram na concepção de que a consolidação de um Estado democrático de direito somente é possível com o enfrentamento do racismo que sustenta os desiquilíbrios sociais. Nesse sentido, está concebida como uma política afirmativa curricular na área da educação, que busca responder às demandas da população negra brasileira por políticas afirmativas de reparação, reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identidade.

Trata [...] de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe à divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada. (BRASIL, 2004a, p. 2).

Destina-se aos órgãos que atuam na normatização da educação escolar, operadores de políticas públicas, gestores educacionais dos sistemas públicos e privados em todas as suas instâncias, a docentes, estudantes, a cidadãs e aos cidadãos comprometidos com a educação dos brasileiros, assim como aos operadores do direito, no sentido de garantia de que as normas estabelecidas pela legislação em prol da educação das relações étnico-raciais sejam cumpridas.

Políticas de ações afirmativas está sendo compreendida nas Diretrizes sob três dimensões: reparação, compreendendo atuação do Estado brasileiro no sentido de promover condições para o rompimento do sistema meritocrático de produção de exclusão e desigualdades educacionais, garantindo, desse modo, a estudantes do segmento populacional negro, condições para o pleno exercício do direito à educação de qualidade, realizando, com sucesso, seu percurso de escolarização em todos os níveis de ensino, assim como o desenvolvimento de ações de combate a práticas e comportamentos racistas; reconhecimento, implicando visibilidade aos africanos e seus descendentes negros brasileiros enquanto agentes históricos e sociais, problematização dos processos escravistas, da dominação do continente africano, de desumanização e desqualificação dos negros, bem como divulgação da histórica resistência negra aos processos de subalternização até os dias atuais; valorização, significando adoção de políticas que possibilitem superação das desigualdades raciais na educação.

Assim sendo, sistemas de ensino e estabelecimentos de diferentes níveis converterão as demandas dos afro-brasileiros em políticas públicas de Estado ou institucionais, ao tomarem decisões e iniciativas com vistas a reparações, reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à constituição de programas de ações afirmativas, medidas estas coerentes com um projeto de escola, de educação, de formação de cidadãos que explicitamente se esbocem nas relações pedagógicas cotidianas. Medidas que, convém, sejam compartilhadas pelos sistemas de ensino, estabelecimentos, processos de formação de professores, comunidade, professores, alunos e seus pais. (BRASIL, 2004a, p. 4).

Compreende-se que educação escolar sob perspectiva de educação das relações étnico-raciais, tendo por base o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, dialoga com a concepção de afrocentricidade, defendida por Asante (2009, p. 93), isto é, “[...] um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos”. Sob essa perspectiva, consideram-se africanos os situados na África e na diáspora, bem como sua capacidade de agência. “Um agente, em nossos termos, é um ser humano capaz de agir de forma independente em função de seus interesses. Já a agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana.” (ASANTE, 2009, p. 94).

Em diálogo com essa perspectiva epistemológica, a educação das relações étnico-raciais opõe-se ao que Asante denomina de “desagência”, isto é, qualquer situação de destituição e de descarte do negro como protagonista. “[...] Não se trata apenas de marginalização, mas de obliteração de sua presença, seu significado, suas atividades e sua imagem. É uma realidade negada, a destruição da personalidade espiritual e material da pessoa africana” (ASANTE, 2009, p. 95). Implica, portanto, o desenvolvimento de um processo educativo centrado no reconhecimento dos africanos e de seus descendentes como agentes em todo o processo histórico, mesmo em condições desfavoráveis, limitadas por regimes escravocratas ou na atualidade, pelas desigualdades raciais e sociais que vivenciam.

As referências à África e aos africanos na educação ocidental – com exceção de um número limitado de pensadores progressistas – reduziram os africanos à condição de seres indefesos, inferiores, não humanos, de segunda classe, como se não fizessem parte da história humana e fossem, em algumas situações, selvagens. (ASANTE, 2009, p. 99).

Uma educação concebida para a destituição dessa configuração contribui para a construção de uma compreensão dos e/ou sobre os negros, como realmente são: agentes em termos políticos, culturais, econômicos e sociais em todas as esferas do processo histórico-social que envolve os seres humanos. O reconhecimento dos negros africanos e seus descendentes como agentes, amplia as possibilidades interpretativas no que se refere ao processo formativo da cultura brasileira em suas dimensões material e imaterial, assim como a compreensão sobre sua relevância social, apesar da diferença no processo de sua instalação no território brasileiro em relação aos europeus e seus descendentes. Desse modo, a educação das relações étnico-raciais é concebida como medida necessária à reparação, ao reconhecimento e à valorização da população negra, almejando que se impacte sobre o acúmulo de prejuízos de todas as ordens que recaem sobre essa população em decorrência da ausência de políticas públicas que possam corrigir as distorções causadas pelo racismo estrutural.

4.2 PRINCÍPIOS

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana orienta que as ações dos sistemas de ensino, dos estabelecimentos e de docentes em geral devem ter por referência três princípios, além dos de base filosófica e pedagógica. São eles: consciência política e histórica da diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos; ações educativas de combate ao racismo e as discriminações. Vale observar, que nenhum desses princípios se conflitam com princípios e valores coerentes com os que orientam práticas sociais em uma sociedade democrática. Portanto, os possíveis resultados obtidos por ações orientadas por esses princípios, se convergirão, em perspectiva mais ampla, em benefício da qualidade da educação para toda a sociedade. Assim,

[...] tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. (BRASIL, 2004b).

Desse modo, ampliam-se as possibilidades para que as ações no campo da educação, assentadas nesses princípios se conjuguem aos anseios por educação de qualidade a todos e todas, contribuindo para a redução das desigualdades raciais flagrantes na educação brasileira, conforme dados publicados IBGE (2019).

Todos esses princípios apontam, em linhas gerais, para: compreensão da diversidade humana em perspectiva positiva e, com isso, o reconhecimento do continente africano, dos povos negros e seus descendentes na construção da cultura brasileira em suas dimensões material e imaterial; “desencadeamento de processos de afirmação de identidades” (BRASIL, 2004a, p. 10), ancorado em conhecimento emancipador que possibilite problematização e superação dos preconceitos, estereótipos e estigmas raciais que produzem duplo prejuízo: ultrajes e subtração à população negra do direito à inviolabilidade da imagem e ao acesso aos bens socialmente produzidos; dificuldade às pessoas negras à afirmação de sua identidade e aos não negros de se identificarem com as pessoas negras.

O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, européias, asiáticas. (BRASIL, 2004b).

Políticas de educação das relações étnico-raciais propiciam à educação escolar contribuir para configurações de relações étnico-raciais positivas, de modo que os fenótipos, isto é “[...] os marcadores visíveis e tangíveis por meio dos quais os seres humanos hierarquizam-se, valorizam-se ou estigmatizam-se racialmente” (WEDDERBURN, 2015, p. 408), não sejam utilizados como balizadores dos conflitos ou de condução da vida em sociedade.

Esses princípios encaminham à compreensão de que o Brasil é o resultado de encontro de diferentes povos e continentes: ameríndios, europeus e africanos. Considerar os europeus como únicos protagonistas é desconsiderar dois terços de toda riqueza que nos constitui enquanto povo e enquanto nação.

4.3 DETERMINAÇÕES

Diretrizes educacionais, são dimensões normativas e orientativas, cuja principal função é regular procedimentos e ações à formulação e execução de políticas educacionais e de currículo, bem como de práticas pedagógicas, não como uma camisa de força que imobiliza, mas no sentido de, preservado o princípio democrático de autonomia entre os envolvidos no processo, orientar rumo ao alcance do objetivo nacional comum: garantia da qualidade na formação educacional escolar, ofertada no Brasil a toda a população.

A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população negra, ao contrário, dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática. (BRASIL, 2004a, p. 8).

Evidentemente que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, assume essa mesma configuração, sintonizada aos princípios e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, especialmente no que se refere à “dignidade da pessoa humana” e à promoção “[...] do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Portanto, não se encerra em si mesma, nem se direciona a determinado setor ou grupo isolado. Trata-se de base à configuração de política de Estado para a área da educação em dimensão de alcance a toda esfera nacional.

Estas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na medida em que procedem de ditames constitucionais e de marcos legais nacionais, na medida em que se referem ao resgate de uma comunidade que povoou e construiu a nação brasileira, atingem o âmago do pacto federativo. Nessa medida, cabe aos conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios aclimatar tais diretrizes, dentro do regime de colaboração e da autonomia de entes federativos, a seus respectivos sistemas, dando ênfase à importância de os planejamentos valorizarem, sem omitir outras regiões, a participação dos afrodescendentes, do período escravista aos nossos dias, na sociedade, economia, política, cultura da região e da localidade; definindo medidas urgentes para formação de professores; incentivando o desenvolvimento de pesquisas bem como envolvimento comunitário. (BRASIL, 2004a, p. 16).

Seguramente, o estabelecimento dessas Diretrizes significa um passo importante no trato de uma complexa problemática cujas raízes se firmam historicamente. A busca de solução, portanto, exige a atuação sintonizada entre os entes federativos no cumprimento da responsabilidade pela educação das relações étnico-racial no território nacional.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação das relações étnico-raciais é o resultado do enfrentamento de muitos desafios, especialmente, pelos movimentos negros, no sentido de que o Estado brasileiro assuma a responsabilidade pela formulação de políticas educacionais fundadas no reconhecimento da diversidade étnico-racial brasileira em perspectiva positiva. A obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, com todas as limitações que possa ter ou críticas que suscite, configura-se, indiscutivelmente, um avanço. Todavia, não significa por si mesma, evidentemente, imediata transformação da educação brasileira no sentido de superação do enquadramento racial que a tem parametrizado desde os primórdios da constituição do Estado brasileiro.

Isso enseja a necessidade da continuidade da educação das relações étnico-raciais na agenda dos debates de modo que sua efetividade se materialize, amplamente, nos processos educativos escolares, de modo que possa repercutir na vida cotidiana brasileira, considerando a potência da educação em relação ao estabelecimento de diálogo com o imaginário social. Isso aponta, de certo modo, à demanda por atenção especial à necessidade de reflexões que assegurem a permanência da educação das relações étnico-raciais na agenda de discussão que tenham como foco questões referentes à educação, posto que se torna infrutífero, qualquer debate que busque focar a educação escolar de modo desconexo das questões raciais que afetam toda a sociedade.

Estamos há pouco menos de vinte anos desde a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Um tempo muito curto, especialmente se considerarmos os mais de trezentos anos em que o Brasil se fez sobre a produção do trabalho escravizado e os mais de cem anos que, após extinção do sistema escravista, ficou sem estabelecer qualquer política de reparação, de reconhecimento ou de valorização focada na população negra.

As orientações das Diretrizes são abrangentes, abarcando, órgãos normativos, formuladores e gestores de políticas educacionais e curriculares, docentes, estudantes e, consequentemente, a sociedade em geral sobre a matéria da qual se ocupa, em decorrência dos propósitos constitucionais brasileiros, de consolidar uma sociedade democrática e solidaria, assentada não somente no princípio de repúdio ao racismo, como orientada pelo objetivo de que a promoção do bem de todos se realize, também pelo cultivo de condutas antirracistas.

Enquanto política curricular, a educação das relações étnico-raciais se impõe, também, às instituições de ensino superior, no sentido de que cumpram com o seu papel de relevância social, inclusive no que tange às finalidades dos cursos de licenciatura, particularmente no que se refere à introdução de conteúdos, métodos de ensino e práticas que contemplem valores e concepções não racializadas sobre o povo brasileiro. Concepções raciais vigentes na educação têm feito da escola partícipe da produção das desigualdades raciais, particularmente pela produção do fracasso escolar com maior prevalência sobre estudantes negros e negras.

A elaboração do presente artigo propiciou retomada de reflexões sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, particularmente, no que se refere ao Estado brasileiro e a todos os entes federativos quanto ao que está sendo feito para o efetivo cumprimento da Lei n.9394/96, no que concerne aos artigos: 3º, II, no que se refere à determinação de que o ensino seja ministrado, tendo como um de seus princípios a “consideração com a diversidade étnico-racial”; 26A, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira; e 79 B, que determina a inclusão, no calendário escolar, do dia 20 de novembro como o “Dia Nacional da Consciência Negra.

Uma questão se coloca no centro das inquietações: as instituições de ensino superior têm realizado a formação de docentes baseada em um currículo que oriente a atuação na Educação Básica de modo que, naquilo que lhes compete, tornar efetiva a educação das relações étnico-raciais? Que programas e ações estão sendo desenvolvidas pelos entes federados no sentido de acompanhar, avaliar e propor correções às distorções que impactam no cumprimento das determinações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana?

São questões contextualizadas na realidade brasileira, sem perder de vista, porém, que, essa realidade não está desconexa de contextos mais amplos, posto que as origens dessa problemática não se circunscreve ao território brasileiro, ainda que aqui ela tenha sido potencializada. Tem como foco a necessidade imprescindível da efetividade da educação das relações étnico-raciais, posto que ao impactar sobre problemas locais, seguramente, contribuirá para a redução da escala de alcance do racismo no mundo. Não se trata de mera coincidência que contextos racistas apresentem similaridades nos fatos e acontecimentos conforme os exemplos citados no início deste artigo. Tal similaridade se deve ao fato de que o racismo se configura pedra angular na construção do mundo ocidental. Ao tornar efetiva a educação antirracista, o Brasil atende às necessidades internas e, igualmente, corresponde às orientações internacionais das quais é signatário, que dispõem sobre a necessidade de combater o racismo existente na sociedade, também pelo viés da educação escolar.

Entendemos que pautar as concepções, princípios e diretrizes da educação das relações étnico-raciais pode se constituir importante contribuição frente às necessidade de efetivação da educação das relações étnico-raciais na agenda das políticas educacionais e curriculares brasileiras especialmente considerando a Resolução 02/2019 que orienta a reformulação dos cursos de licenciatura, desconsiderando a Educação das Relações étnico-raciais.

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Endereço para correspondência: Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Instituto de Educação – sala 319, Av. Fernando Corrêa da Costa, s/n., Cuiabá, MT, 78.060-900


1 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense; Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; candidasoarescosta@gmail.com

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo; Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo; santosdialogos@gmail.com

3 “Eu não posso respirar”!