https://doi.org/10.18593/r.v47.23832

A gestão democrática e suas novas feições no transcurso histórico brasileiro

Democratic management and its new fections in the Brazilian historical tour

Gestión democrática y sus nuevas fecciones en el tour histórico brasileño

Viviane Barbosa Perez Aguiar1

Secretaria Municipal de Educação de Londrina, Gerente de Formação Continuada.

https://orcid.org/0000-0002-4767-8324

Maria José Ferreira Ruiz2

Universidade Estadual de Londrina, Curso de Pedagogia e Programa de Pós-graduação em Educação, Professor.

http://orcid.org/0000-0002-1904-8878

Edwylson de Lima Marinheiro3

Secretaria Municipal de Educação de Londrina, Gerente de Gestão Financeira.

https://orcid.org/0000-0002-0070-5305

Resumo: Este artigo versa sobre as mudanças provocadas pelos ordenamentos legais, no que tange ao princípio da gestão democrática, ao longo do processo histórico brasileiro. Discute como a legislação educacional, neste país, acomodou novos ideais, influenciada pelas políticas neoliberais de internacionalização do capital. O texto apresenta uma análise de como os dispositivos legais da educação se adequaram à conjuntura política e social, demonstrando-se vulneráveis aos interesses de grupos econômicos. O objetivo geral é apresentar os retrocessos da gestão democrática ao associar-se aos fundamentos neoliberais, desconstruindo o sentido atribuído ao princípio constitucional. Pretende, especificamente, (i) demonstrar como a legislação educacional brasileira incorporou elementos neoliberais, e (ii) analisar a orientação política que direcionou as novas inserções na lei. O estudo pautou-se no desenvolvimento de pesquisa bibliográfica e análise documental. Conclui que os municípios, estados e o Distrito Federal como unidades autônomas da federação (ainda que necessitem de articulação para a efetivação do sistema nacional de educação) reproduzem os ideais neoliberais aparentes no modelo de gestão gerencial da escola, obscurecendo as práticas participativas e de controle social como expressão da gestão democrática, enquanto princípio constitucional.

Palavras-chave: gestão democrática; legislação educacional; gerencialismo; neoliberalismo.

Abstract: This article deals with the changes brought about by the legal systems, with regard to the principle of democratic management, throughout the Brazilian historical process. It discusses how educational legislation in this country accommodated new ideals, influenced by neoliberal policies for the internationalization of capital. The text presents an analysis of how the legal provisions of education have adapted to the political and social situation, proving to be vulnerable to the interests of economic groups. The general objective is to present the setbacks of democratic management by associating itself with neoliberal foundations, deconstructing the meaning attributed to the constitutional principle. It specifically intends to (i) demonstrate how Brazilian educational legislation incorporated neoliberal elements, and (ii) analyze the political orientation that directed the new insertions in the law. The study was based on the development of bibliographic research and document analysis. It concludes that the municipalities, states and the Federal District as autonomous units of the federation (although they need articulation for the effectiveness of the national education system) reproduce the neo-liberal ideals apparent in the school’s management management model, obscuring participatory and control practices as an expression of democratic management, as a constitutional principle.

Keywords: democratic management; educational legislation; managerialism; neoliberalism.

Resumen: Este artículo aborda los cambios provocados por los sistemas legales, con respecto al principio de gestión democrática, a lo largo del proceso histórico brasileño. Discute cómo la legislación educativa en este país acomodaba nuevos ideales, influenciados por las políticas neoliberales para la internacionalización del capital. El texto presenta un análisis de cómo las disposiciones legales de la educación se adaptaron a la coyuntura política y social, demostrando ser vulnerables a los intereses de los grupos económicos. El objetivo general es presentar los reveses de la gestión democrática al asociarse con fundamentos neoliberales, deconstruyendo el significado atribuido al principio constitucional. Pretende específicamente (i) demostrar cómo la legislación educativa brasileña incorporó elementos neoliberales y (ii) analizar la orientación política que dirigió las nuevas inserciones en la ley. El estudio se basó en el desarrollo de investigación bibliográfica y análisis de documentos. Concluye que las municipalidades, los estados y el Distrito Federal como unidades autónomas de la federación (aunque necesitan articulación para la efectividad del sistema educativo nacional) reproducen los ideales neoliberales aparentes en el modelo de gestión administrativa de la escuela, ocultando las prácticas participativas y de control. como expresión de gestión democrática, como principio constitucional.

Palabras clave: gestión democrática; legislación educativa; el gerencialismo; neoliberalismo.

Recebido em 27 de fevereiro de 2020

Aceito em 19 de julho de 2021

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 – CF (BRASIL, 1988) constitui-se como marco da democratização da sociedade e, por conseguinte, da escola pública brasileira. Foi denominada de Constituição Cidadã por ter sido concebida no processo de redemocratização do país, período em que movimentos sociais se organizaram em prol de um novo projeto societário, visando findar com os 21 longos anos de ditadura militar (1964-1985). A CF não só restabelece a democracia brasileira, em forma da lei, como serve de parâmetro para todas as demais espécies normativas que se seguiram no decorrer histórico.

Por apresentar um conjunto de direitos e garantias fundamentais a cada cidadão brasileiro, a CF se constitui como a carta magna da nação, a lei suprema que orienta todas as demais. Nesse contexto, optamos por analisar o princípio da gestão democrática do ensino público apresentado pela CF e as novas feições que assumem nas demais legislações normatizadas, no decorrer do processo histórico.

Objetivando contribuir para a construção de uma visão crítica acerca da trajetória do princípio da gestão democrática no Brasil, o presente texto visa problematizar as múltiplas significações atribuídas ao princípio, no decorrer histórico, bem como indicar os fundamentos neoliberais presentes na implementação desse princípio.

Como ponto de partida, realizamos uma pesquisa bibliográfica, abarcando teóricos que abordam a gestão democrática da escola pública, tais como Peroni e Flores (2014), Araújo e Castro (2011), e Paro (1987, 1997, 2001). Esclarece-se que a pesquisa bibliográfica é um tipo de “estudo direto em fontes científicas, sem precisar recorrer diretamente aos fatos/fenômenos da realidade empírica.” (OLIVEIRA, 2007, p. 69). Utilizamos também a análise documental na legislação educacional, destacando, dentre os documentos analisados, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN de 1996, Lei nº 9394/1996 (BRASIL, 1996), o Plano Nacional de Educação – PNE de 2001-2010 – Lei nº 10.172/2001 (BRASIL, 2001) e o Plano Nacional de Educação – PNE de 2014-2024, Lei nº 13.005/2014 (BRASIL, 2014).

Nesta perspectiva, o texto apresenta uma análise de como os dispositivos legais da educação se adequaram à conjuntura política e social, demonstrando-se vulneráveis aos interesses de grupos econômicos, especificamente, abordando os aspectos que envolvem a implementação do princípio da gestão democrática na escola pública que se encontra permeada por contradições das mais variadas.

A implementação do princípio segue orientada, inicialmente, por uma nova forma de pensar a gestão no campo educacional, advinda de processo de lutas no período de reabertura política do país, pós-ditadura militar. Como resultado deste processo, a gestão democrática passa a constituir-se um importante princípio que se incorpora às legislações que regem a educação pública brasileira, na qual destacamos a CF, a LDBEN de 1996 e os Planos Nacionais de Educação de 2001 e de 2014.

Desta forma, a CF é o marco legal do princípio da gestão democrática, expressão das lutas e pressões sociais contestadoras do cenário político dos anos 1980. Não temos dúvidas da importância da lei para a construção de um novo paradigma de participação social, no entanto, por não apresentar indicadores de como pode se efetivar na prática, a lei apresenta-se superficial e não direciona para as vivências democráticas tão aspiradas socialmente.

Contudo, é tomada como ponto de partida para as demais legislações que são construídas no transcurso histórico, constituindo-se em referência importante na evolução do pensamento sobre o princípio da gestão democrática no Brasil. As legislações posteriores à CF se pautam no art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: “[...] VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; [...]” (BRASIL, 1988, p. 6).

Corroboramos com a ideia de que a gestão democrática deve ser

[...] entendida como espaço de deliberação coletiva (estudantes, profissionais da educação, mães, pais ou responsáveis), precisa ser assumida como fator de melhoria da qualidade da educação e de aprimoramento e continuidade das políticas educacionais, enquanto políticas de Estado articuladas com as diretrizes nacionais para todos os níveis e modalidades de educação. (BRASIL, 2010, p. 45).

A ideia apresentada demonstra que o exercício da gestão democrática está atrelado à implementação de mecanismos legais e institucionais de participação que favorecem a participação política da comunidade escolar na formulação das políticas educacionais, no seu planejamento e também na tomada de decisões.

Mais tarde, a LDBEN, Lei nº 9.394/96, reiterou o princípio da gestão democrática, no entanto atribuiu para os sistemas de ensino a incumbência de definir as normas para sua implementação, o que também acontece nos Planos Nacionais de Educação de 2001-2010 e 2014-2024 - PNEs.

Desta forma, salientamos que influenciadas pela conjuntura social e política de cada época, a CF de 1988, a LDBEN de 1996 e os PNEs, no que tange à gestão democrática, apresentam uma diretriz em comum: delegar aos sistemas de ensino as normas que definirão a gestão democrática no ensino público na Educação Básica. Sobre isso, importante ressaltar que novamente os normativos legais não se apresentam com definições claras de como os municípios, estados e Distrito Federal – DF farão a implementação da lei, o que os tornam vulneráveis às diferentes interpretações dos sujeitos sociais, nem sempre condizentes com o princípio de participação social. No que diz respeito à CF 1988, podemos afirmar que “[...] o texto constitucional não se refere ao entendimento que os legisladores imprimiram à ideia de democratização presente no princípio.” (ADRIÃO; CAMARGO, 2001, p. 76).

A LDBEN reitera o princípio da gestão democrática, conforme segue:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

[...]. VIII- gestão democrática do ensino público na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino [...].

Artigo 14 - Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

I- participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

II-participação da comunidade escolar e local em Conselhos Escolares ou equivalentes; [...] (BRASIL, 1996, p. 1).

A esse respeito, parece-nos que a LDBEN de 1996 trata com mais clareza e objetividade o princípio da gestão democrática, sinalizando para duas ações importantes: a participação dos profissionais da educação na elaboração do Projeto Político Pedagógico – PPP da escola e a participação da comunidade escolar e local em conselhos escolares e equivalentes, que mais tarde são reiterados pelas legislações subsequentes, porém imersas em um cenário de proposições neoliberais.

Note-se que a LDBEN dá ênfase à participação dos profissionais na construção do PPP das instituições de ensino, bem como destaca a importância atribuída à comunidade escolar na construção do projeto educacional da instituição e nos processos decisórios, por meio dos conselhos escolares ou organizações semelhantes, porém, há estudos que nos chamam a atenção para as particularidades que não foram contempladas na LDBEN, a exemplo de Paro (2001), que expõe sobre o art. 14:

Na verdade, era mesmo de se esperar que uma lei que pretendesse estabelecer as diretrizes e bases da educação no país contivesse normas bem definidas [...]. Ao estabelecer os princípios que nortearão “as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica”, esse Art. 14 é de uma pobreza sem par. O primeiro princípio é o que há de mais óbvio, já que seria mesmo um total absurdo imaginar que a “elaboração do projeto pedagógico da escola pudesse dar-se sem a participação dos profissionais da educação”. O segundo (e último!) princípio apenas reitera o que já vem acontecendo na maioria das escolas públicas do país. Além disso, ao prever a “participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes”, sequer estabelece o caráter deliberativo que deve orientar a ação desses conselhos, outra conquista da população que vem sendo implantado nos diversos sistemas de ensino. (PARO, 2001, p. 54-55).

A gestão democrática foi superficialmente contemplada na legislação, considerando a obviedade da participação dos profissionais da educação na elaboração do PPP. É notória a ausência de pressupostos básicos para a sua concretização por meio de regulamentação de ações que direcionassem para uma maior efetivação da gestão democrática no país.

O estudo de Oliveira e Lopes (2010) propõe um levantamento, em artigos publicados em periódicos, sobre processos de gestão, autonomia escolar e órgãos colegiados no período de 2000 a 2008, nos 107 títulos pesquisados,

[...] destaca-se a convocação à democratização da gestão em oposição à fragilidade na criação de canais e mecanismos de participação para as comunidades escolares. A democracia na escola aparece como mecanismo potente de melhoria da qualidade, em tese. Poucos são os registros de experiências bem sucedidas nesse campo [...] (OLIVEIRA; LOPES, 2010, p. 475).

Ao mesmo passo em que são implementados os mecanismos para a democratização da gestão escolar, que em sua maioria são pouco expressivos, vemos a materialização das influências neoliberais no movimento de participação social, que colocam a comunidade como consumidora e fiscalizadora da escola, diferentemente daquilo que caracteriza uma participação política, que empodera o cidadão para exigir do estado políticas públicas que visam a garantia de uma educação de qualidade. O discurso de participação social tem sido utilizado, na perspectiva neoliberal, com o objetivo de desresponsabilizar o Estado com relação à manutenção da escola pública, colocando nas mãos da comunidade escolar a tarefa de subsidiar as necessidades desta por meio de contribuições voluntárias, ações entre amigos, dentre outros.

As práticas de desresponsabilização do Estado vem sendo justificadas com base na LDBEN 9394/1996, que incube os sistemas de ensino de assegurar, gradativamente, autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira, conforme segue, “Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público.” (BRASIL, 1996, p. 15).

A esse respeito, salientamos que a forma como a autonomia prevista na lei é interpretada tem contribuído para a naturalização de práticas de desconcentração de responsabilidades em detrimento do sentido de descentralização de uma participação política que o princípio prevê.

No decurso histórico, em atenção ao disposto no art ٩º da LDBEN ٩٣٩٤/1996, conforme segue, a União incumbir-se-ia de “I – Elaborar o Plano Nacional de Educação em colaboração com estados, distrito federal e municípios” (BRASIL, 1996, p. 2). Diante disso, foi iniciado um amplo debate para a construção de um PNE que iria vigorar entre os anos 2001 e 2010.

Valente e Romano (2002) explicitam que o PNE de 2001-2010 foi elaborado a partir da pressão popular produzida pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública – FNDEP, assim como ocorreu com a LDBEN 9394/1996.

O texto final, que deu origem à Lei nº 10.172/2001 (BRASIL, 2001), resultou em uma proposta diferente da elaborada pelo FNDEP, pois a versão aprovada representou os interesses do governo, não contemplando as propostas e reivindicações dos setores democráticos e populares da sociedade, “o projeto originário da sociedade, reduzindo-o a uma carta de intenções [...].” (VALENTE; ROMANO, 2002, p. 96).

O PNE de 2001-2010 (Lei nº 10.172/2001) apresenta alguns objetivos/metas relacionados ao/a:

19. Aperfeiçoar o regime de colaboração entre os sistemas de ensino com vistas a uma ação coordenada entre entes federativos, compartilhando responsabilidades.

20. Estimular a colaboração entre as redes e sistemas de ensino municipais, através de apoio técnico a consórcios intermunicipais4 e colegiados regionais consultivos, quando necessários.

21. Estimular a criação de Conselhos Municipais de Educação e apoio aos Municípios que optarem por constituir sistemas municipais de ensino.

22. Definir em cada sistema de ensino, as normas de gestão democrática do ensino público, com a participação da comunidade.

23. Editar pelos sistemas de ensino, normas e diretrizes gerais desburocratizantes e flexíveis, que estimulem a iniciativa e a ação inovadora das instituições escolares.

24. Desenvolver padrão de gestão que tenha como elementos a destinação de recursos para as atividades-fim, a descentralização, a autonomia da escola, a equidade, o foco na aprendizagem dos alunos e a participação da comunidade.

25. Elaborar e executar planos estaduais e municipais de educação, em consonância com o PNE.

28. Assegurar a autonomia administrativa e pedagógica das escolas e ampliar sua autonomia financeira, através do repasse de recursos diretamente às escolas para pequenas despesas de manutenção e cumprimento de sua proposta pedagógica.

41. Definir padrões mínimos de qualidade da aprendizagem na Educação Básica numa Conferência Nacional de Educação, que envolva a comunidade educacional. (BRASIL, 2001, p. 53-54).

Neste primeiro PNE de 2001-2010, é possível identificar um certo hibridismo da lei, que associa premissas do modelo neoliberal e progressista, cujas matrizes teóricas antagônicas revelam as forças sociais presentes na construção da legislação educacional brasileira. A ênfase ao ideário neoliberal como forma de inovar a gestão pública, provoca um direcionamento das políticas públicas para um modelo de gestão gerencial.

O novo PNE 2014-2024 (Lei nº 13.005/2014) não fugiu a essa regra. Sancionado pela Presidente Dilma Rousseff (BRASIL, 2014), não mantém originalmente as propostas discutidas democraticamente pela sociedade na Conferência Nacional de Educação – CONAE, ocorrida no ano de 2010 e convocada e organizada pelo Ministério da Educação –MEC. O texto é substancialmente modificado pelo Poder Executivo, alinhando-se aos interesses de grupos hegemônicos. É evidente que os contrários em luta se apresentam, mas prevalece a força de um projeto econômico cujo domínio se estende mundialmente.

O PNE atual apresenta metas e estratégias para a educação no período de 2014 a 2024, dentre elas, destacamos as que tratam da democratização da gestão do ensino público,

Meta 19: assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto. [Estratégia]

19.1) priorizar o repasse de transferências voluntárias da União na área da educação para os entes federados que tenham aprovado legislação específica que regulamente a matéria na área de sua abrangência, respeitando-se a legislação nacional, e que considere, conjuntamente, para a nomeação dos diretores e diretoras de escola, critérios técnicos de mérito e desempenho, bem como a participação da comunidade escolar.

19.2) ampliar os programas de apoio e formação aos (às) conselheiros (as) dos conselhos de acompanhamento e controle social do Fundeb, dos conselhos de alimentação escolar, dos conselhos regionais e de outros e aos (às) representantes educacionais em demais conselhos de acompanhamento de políticas públicas, garantindo a esses colegiados recursos financeiros, espaço físico adequado, equipamentos e meios de transporte para visitas à rede escolar, com vistas ao bom desempenho de suas funções;

19.3) incentivar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a constituírem Fóruns Permanentes de Educação, com o intuito de coordenar as conferências municipais, estaduais e distrital bem como efetuar o acompanhamento da execução deste PNE e dos seus planos de educação;

19.4) estimular, em todas as redes de educação básica, a constituição e o fortalecimento de grêmios estudantis e associações de pais, assegurando-se-lhes, inclusive, espaços adequados e condições de funcionamento nas escolas e fomentando a sua articulação orgânica com os conselhos escolares, por meio das respectivas representações;

19.5) estimular a constituição e o fortalecimento de conselhos escolares e conselhos municipais de educação, como instrumentos de participação e fiscalização na gestão escolar e educacional, inclusive por meio de programas de formação de conselheiros, assegurando-se condições de funcionamento autônomo;

19.6) estimular a participação e a consulta de profissionais da educação, alunos (as) e seus familiares na formulação dos projetos político-pedagógicos, currículos escolares, planos de gestão escolar e regimentos escolares, assegurando a participação dos pais na avaliação de docentes e gestores escolares;

19.7) favorecer processos de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira nos estabelecimentos de ensino;

19.8) desenvolver programas de formação de diretores e gestores escolares, bem como aplicar prova nacional específica, a fim de subsidiar a definição de critérios objetivos para o provimento dos cargos, cujos resultados possam ser utilizados por adesão. (BRASIL, 2014, p. 14).

Em comparação aos PNEs de 2001-2010 e 2014–2024, percebemos avanços e retrocessos quanto à implementação dos princípios democratizantes na gestão da escola. Apesar dos avanços notados na implementação de estratégias que visam fortalecer os mecanismos para a efetivação de uma gestão democrática, reforçamos que com o PNE de 2014–2024 apresenta reflexos de uma política educacional conservadora e privatista da educação ao atrelar critérios técnicos e de desempenho ao repasse de recursos financeiro e a utilização do discurso de participação popular na gestão da escola pública, a fim de desresponsabilizar o Estado como principal provedor.

Ademais, a educação incorpora novos conceitos gerenciais, que se manifestam na legislação educacional, especificamente na meta 19 do PNE de 2014–2024. Esta meta revela o retrocesso na trajetória histórica de construção do princípio, pois ao associar a gestão democrática ao critério técnico de mérito e desempenho, modificou drasticamente o sentido da gestão democrática inicialmente concebida. A meritocracia e o desempenho são elementos antagônicos ao princípio da gestão democrática, como já dito, incompatíveis.

Em síntese, na Meta 19 do PNE de 2014–2024 observamos o antagonismo na proposta de implementação do princípio de gestão democrática. Nesse sentido, Peroni e Flores (2014) discorrem que,

[...] a proposta de gestão democrática aparece, dando lugar, em nosso entendimento, a um modelo de gestão gerencial, que aponta de forma genérica a participação da comunidade escolar, ao mesmo tempo em que apresenta princípios gerenciais como critérios técnicos de mérito e desempenho. (PERONI; FLORES, 2014, p. 186).

O caráter procedimentalista da lei revela a valorização das performances (desempenho, rendimentos, resultados) no contexto educacional, em detrimento da dimensão política representada pela participação e controle social da comunidade escolar. Contraditoriamente, o documento final da CONAE (BRASIL, 2010) que não foi referência para a construção da lei, deu ênfase à gestão democrática sob a ótica de participação, dando especial importância a fóruns e conselhos como espaços de interlocução com a sociedade na proposição e acompanhamento das políticas públicas (LINO; MORGAN, 2018).

Na atual conjuntura política e social em que o Estado de Direito se apresenta hoje, identificamos possíveis riscos ao princípio da gestão democrática, tendo em vista um direcionamento do governo às práticas mais conservadoras e autoritárias, conforme diretrizes presentes nas políticas públicas atuais.

2 A SUPERFICIALIDADE DO PRINCÍPIO LEGAL DA GESTÃO DEMOCRÁTICA E A INFLUÊNCIA DO MODELO GERENCIALISTA

Tendo em vista a natureza tridimensional da federação brasileira, em que União, estados e municípios são instâncias autônomas, o que ocorre é a proliferação de definições distintas quanto aos procedimentos referentes à gestão democrática do ensino público.

Em análise à trajetória da legislação educacional brasileira, identificamos as mudanças dos sentidos atribuídos à gestão democrática do ensino público no decorrer histórico, considerando que assumem feições “disformes”, ao apresentarem ideias antagônicas aos sentidos progressistas do texto constitucional. A evolução dos documentos legais permite observar a introdução de uma orientação política neoliberal, que influencia e direciona as políticas educacionais brasileiras.

Nessa esteira, as novas feições assumidas pelo princípio da gestão democrática não são arbitrárias e neutras, mas refletem os preceitos do modelo de gestão gerencial, amplamente disseminado no Brasil nos anos 1990, por meio da reforma do aparato público, que buscava, sobretudo, a modernização administrativa.

No Brasil, o modelo de gestão gerencial é resultado das reformas de 1990, e foi com a elaboração do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE, por meio do Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado – MARE, que verificamos as iniciativas de redefinição do papel Estado na gestão da coisa pública.

De acordo com o PDRAE, a administração pública gerencial

Emerge na segunda metade do século XX, como resposta, de um lado, à expansão das funções econômicas e sociais do Estado, e, de outro, ao desenvolvimento tecnológico e à globalização da economia mundial, uma vez que ambos deixaram à mostra os problemas associados à adoção do modelo anterior. A eficiência da administração pública - a necessidade de reduzir custos e aumentar a qualidade dos serviços, tendo o cidadão como beneficiário – torna-se então essencial. A reforma do aparelho do Estado passa a ser orientada predominantemente pelos valores da eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos e pelo desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações. (BRASIL, 1995, p. 15-16).

A Reforma do Aparelho do Estado recebeu influência do neoliberalismo que diagnosticou que a crise econômica, política e social estava no papel do Estado em razão do seu modelo ineficiente de gestão. Para os reformadores, a forma como as empresas eram geridas deveria ser o modelo a ser adotado pela gestão pública, sendo esta mais eficiente. É a partir deste modelo que a gestão das escolas públicas foi se estruturando, utilizando-se de conceitos trazidos das teorias administrativas empresariais para compor o processo de gestão da escola pública, sendo alguns destes:

Eficiência, participação, autonomia, competência, qualidade total, planejamento estratégico, accountability, flexibilidade, liderança, controle, inovação, descentralização, gerencia, eficácia, produtividade, entre outros, são termos transportados das teorias da administração para a gestão da educação e das escolas públicas. (SILVA, 2011, p. 39).

Os conceitos supracitados são transportados para a gestão da escola pública, assumindo outros contornos a favor da lógica gerencial, obscurecendo as práticas de participação social originalmente concebidas e responsabilizando a escola pelos resultados obtidos.

Desta forma, chamamos a atenção para a mutação sofrida pelo princípio da gestão democrática da promulgação da CF de 1988 ao PNE de 2014-2024 sancionado, na qual os “contornos e feições” assumidas tomam as formas dos valores economicamente defendidos em nível mundial: eficiência, eficácia, produtividade e qualidade, divulgados como comuns na iniciativa privada. Sob a égide da modernização da administração pública, ocorre a inserção de valores de mercado no princípio que, em sua essência, tem natureza progressista.

Importante destacar que a defesa destes valores econômicos aplicados na área da educação está em consonância com a agenda global para a educação pública emanada dos organismos multilaterais, mais especificamente organizada pelo Banco Mundial – BM. Com isso, estamos afirmando que, embora as políticas e programas para a educação sejam constituídas e efetivas, na maioria das vezes, em espaços territoriais/regionais bem definidos, isso não significa que as interferências globais e internacionais estejam ausentes (ROBERTSON; DALE, 2015), haja vista o avanço do neoliberalismo como projeto político hegemônico, após a década de 1970, que de diferentes formas torna-se um projeto mundializado em diversos estados/nações, o que se alastra até dias atuais. Assim, observa-se que a forma e o conteúdo da gestão da educação tendem a ser cada vez mais globais. Isso gera desafios para os pesquisadores de políticas, que precisam se atentar para o fato destas sofrerem influências internacionais e estarem abertas ao mercado privado. Assim,

[...] no campo educativo, mais grave do que a expansão do mercado privado, é a direção no conteúdo, método e forma da educação pública dentro de uma concepção mercantil. Aqui, um duplo e mais duro desafio. No campo teórico desafia-nos o esforço de apreender, para além da aparência, o sentido do movimento da realidade. (FRIGOTTO, 2015, p. 227).

Segundo Martins (2009), desde as décadas de 1960-1970, o empresariado vem influenciando o desenvolvimento político, econômico e cultural dos países, incluindo o Brasil e a elaboração de suas políticas para a educação. Além disso, influenciaram, e ainda influenciam, de forma significativa a construção das bases do capitalismo e da nova sociabilidade que esse tipo de sociedade demanda. O autor afirma também que, nesse período, os empresários permanecem expandindo o espaço de atuação na sociedade, ampliando significativamente a produção e reprodução do capital, em busca de lucros e acúmulo de riquezas, na mão de uma minoria elitizada, explorando os trabalhadores, que por sua vez, engendram suas lutas sociais. Para isso, o empresariado se utiliza de aliados diversos (aparelhos culturais), tais como mídia televisiva, rádio, redes sociais, entre outros.

Além disso, nos períodos de crise do capitalismo, o empresariado mesmo tendo dificuldades de manter sua hegemonia e consolidar seus projetos, interfere com a justificativa de ajudar a findar tal crise, porém, os interesses reais caminham no sentido de interferir na economia estatal, nas ações sociais e orientar o ritmo de crescimento da economia, todos a seu favor. Nesse contexto, pautam-se na lógica do mercado, que visa promover práticas educativas que estimulem a competição e concorrência no interior das escolas, pois, dentro dessa lógica, o segredo do sucesso está na competitividade (FREITAS, 2018).

Essa lógica mercantil é reforçada na sociedade de classes, por meio do neoliberalismo, que é implementado no Brasil inicialmente pelo governo de Fernando Collor, no início da década de 1990. No entanto, o neoliberalismo ganha mais força no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), governo que assumiu declaradamente as linhas neoliberais, no final da década de 1990. Esse governo incorpora o neoliberalismo da Terceira Via5, busca redefinir o padrão de sociabilidade dominante e dá espaço para a classe empresarial se fortalecer e intervir na sociedade, conseguindo adesão desta nessa dinâmica capitalista. Nesse sentido, o estado foi se constituindo como gerencial (RUIZ; MARINHEIRO, 2015) para o neoliberalismo, ou seja, ele se torna máximo para as questões de disseminação e fortalecimento do neoliberalismo e de uma sociabilidade, de acordo com os ideais neoliberais, torna-se assim um estado educador, por meio de uma nova pedagogia da hegemonia, que visa educar para o consenso do capital (MARTINS, 2009).

Assim, a Reforma do Aparelho de Estado da década de 1990, no Brasil, se dá sob a justificativa de se tornar a gestão pública mais eficiente e moderna. O modelo de gestão decorrente dessa nova ideologia funda-se na descentralização administrativa, na autonomia financeira, no planejamento flexível e na introjeção de valores de eficiência, produtividade e qualidade, inerentes à lógica capitalista.

A autonomia, nesse enfoque, passa a ser entendida como consentimento para construir, na escola, uma cultura de organização de origem empresarial; a descentralização passa a ser caracterizada como desconcentração de responsabilidade e não redistribuição de poder, congruente com a “ordem espontânea” do mercado, respeitadora da liberdade individual e da garantia da eficiência; a participação, por fim, é encarada essencialmente como uma técnica de gestão e, portanto, um fator de coesão de consenso. Não há na instituição escolar, espaço para o conflito, para o debate e para o confronto de ideias. (CABRAL NETO; CASTRO, 2007, p. 43).

No que diz respeito à autonomia nos estabelecimentos de ensino, percebemos que este discurso vem sendo utilizado como forma de desresponsabilizar o Estado com relação à manutenção das escolas. Paro (1987) chama atenção destacando que a autonomia na escola não deve ser concedida com abandono e privatização, a escola deve ter autonomia no sentido de ser detentora de um mínimo de poder nos momentos de decisão, juntamente com a comunidade escolar (PARO, 1987).

O Estado, ao disseminar um modelo de gestão escolar alinhado a valores e princípios aplicados a empresas (produtividade, eficiência, qualidade, resultados), reproduz a hegemonia mundialmente definida como parâmetro para as políticas principalmente dos países pobres. Orientado pelo ideário neoliberal, esse modelo se alinha às exigências de competências e habilidades, e orienta para a valorização do sucesso individual e de resultados, tendo em vista atender as exigências do mercado mundial.

Diante disso, em tempos atuais a ênfase à gestão democrática tem sido sinônimo da defesa de um modelo de gestão com foco gerencial, semelhante aos modelos empregados nas grandes empresas; contudo, no contexto escolar, não é possível assumir os mesmos parâmetros.

No campo da educação, o modelo de gestão gerencial, pautado na descentralização administrativa dos macros e micro-sistemas, se apresenta como fórmula prática para resolver os problemas crônicos da educação pública da América Latina. Esse modelo de gestão passa a ser incluído na agenda política como proposta inovadora e modernizadora da gestão educativa dos governos latino-americanos para garantia do sucesso escolar, tendo influência direta nos projetos políticos dos governos da região. (ARAÚJO; CASTRO, 2011, p. 90).

O modelo de gestão gerencial foi amplamente defendido pelos organismos internacionais como o Banco Mundial e idealizado em grandes eventos, como no Consenso de Washington (1989), na Conferência Mundial de Educação para Todos (1990) e na Cúpula Mundial de Educação (2000), que em um contexto de reforma de reestruturação produtiva pelo ideário neoliberal, promoveram a inserção de políticas e programas governamentais.

3 PARTICIPAÇÃO SOCIAL: NECESSIDADE OU OBRIGAÇÃO LEGAL?

O cumprimento do preceito constitucional que trata da gestão democrática configura-se, a nosso ver, como um dos mais difíceis de serem alcançados, por dois motivos. Primeiro, porque a lei não mostra caminhos concretos para sua efetivação, apenas delega aos municípios e estados autonomia para a construção de suas próprias regulamentações legais, o que favorece a entrada de políticas pautadas em concepções que divergem do sentido da gestão democrática, apresentado constitucionalmente. Segundo, porque entendemos que a formação da consciência de participação dos indivíduos não se dá por medidas legais, mas se constrói nas relações que o sujeito estabelece com o mundo e com outros homens, mediatizados pelas ideias, concepções e convicções que dão sentido à sua participação no contexto histórico e social, e isso também o satisfaz internamente, portanto, cumpre uma necessidade externa que dá sentido a uma necessidade do seu eu. Entendemos que a “participação da comunidade na escola, como todo processo democrático, é um caminho que se faz ao caminhar [...]” (PARO, 1997, p. 17).

Ressaltamos assim que a formação da consciência de participação não se dá arbitrariamente, em ações esporádicas, mas sim pelas possibilidades de participação e, também, pela qualidade dos espaços organizados para este fim. Ainda, consideremos também o sentido pessoal que a participação traduz para o sujeito, ou seja, somente fará sentido para o indivíduo se corresponder a uma necessidade, por exemplo, quando uma mãe participa de assembleias do conselho escolar para deliberar sobre determinados aspectos da rotina escolar, visando melhorar a qualidade do ensino ofertado na instituição de seu filho. Deste modo, a participação ocorre pela necessidade e sentido que o sujeito atribui àquele contexto em específico, e em decorrência disso, aprende-se a participar no próprio exercício cotidiano da participação. Para sintetizar, enfatizamos que, “a participação da coletividade na elaboração e na formulação de propostas, assim como na sua execução”, só se efetiva se houver, também, “a possibilidade de participação na tomada de decisão (RUIZ, 2008, p. 225).

Nesse sentido, importante se pensar sobre as condições externas, que podem se constituir como promotoras ou barreiras das vivências democráticas nos diferentes espaços de participação social.

A trajetória da legislação educacional brasileira mantém-se superficial quanto às formas de participação. A LDBEN e o PNE de 2014–2024 esclarecem um pouco mais como a participação pode acontecer, ainda que se apresentem contraditórios pelo hibridismo assumido, quando na defesa de aspectos progressistas e liberais. Apresenta defesa à meritocracia e ao desempenho técnico, mas dá ênfase também à participação social por meio dos conselhos (aqui ressalto os escolares), grêmios estudantis, conselhos municipais, estaduais e nacionais de educação, conferências (antiga CONEB e atual CONAE/CONEP) e fóruns, pois nesses espaços se estabelece a possibilidade de construção de novas consciências, pautadas no compromisso do exercício da cidadania e do papel no controle social.

Observamos ainda que os mecanismos de participação social, conselhos e órgãos equivalentes, tem se desenvolvido de forma centralizada, submetidos a procedimentos burocráticos, atendendo aos interesses do mercado e aos propósitos de qualidade estabelecidos pelos organismos internacionais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ideário neoliberal toma força mundialmente a partir dos anos 1970, e torna-se parâmetro ideológico que influencia todas as esferas da vida econômica e social. No Brasil, sua ascensão se deu na década 1990, apresentando-se como uma verdadeira avalanche introduzindo conceitos e ideias de ordem econômica, que influenciaram as políticas educacionais brasileiras.

O conjunto de ideias e princípios neoliberais afeta toda ordem social e econômica, visto que o país para se incluir na política mundial não se isenta de se pôr a serviço dela, e de sorrateio, a educação que não está anexa, mas faz parte do meio social e histórico, coaduna com os imperativos econômicos mundiais. A legislação educacional brasileira é fortemente influenciada por esse ideário e arrastada pelos novos paradigmas econômicos, absorve conceitos e ideias que vão na contramão dos princípios que pautam a formação omnilateral dos sujeitos.

As leis constituem-se como orientações fundamentais para a definição das possibilidades de construção dos espaços oportunos à formação das consciências de participação dos indivíduos, no entanto, tememos que sob o delineamento de novas feições se tornem riscos às condições democráticas já existentes para a formação delas.

A esse respeito, na abertura política no final dos anos 1970 e no processo de democratização da sociedade brasileira nos anos 1980, a nação avança qualitativamente normatizando os preceitos legais que garantem os direitos fundamentais de todo cidadão brasileiro, rompendo com as práticas autoritárias da ditadura militar. Assim, a CF não é apenas mais uma das constituições brasileiras, mas representa o principal marco legal que define o começo de novos tempos: o da democratização da sociedade e da própria escola pública no Brasil.

Todavia, o princípio da gestão democrática não se mantém com o mesmo sentido apresentado na constituição. As normatizações legais que são construídas nos anos subsequentes são influenciadas pelo contexto de mundialização da economia, e assim incorporam elementos de matriz neoliberal, provocando o delineamento de novas feições, distanciando-se de sentidos progressistas.

Ao distanciar-se desses ideais, o princípio da gestão democrática revela sua condição vulnerável de sujeição aos interesses globais e internacionais de mercado, pois ainda que se refira a um princípio da educação brasileira, não se encontra delimitado aos interesses de seu espaço territorial (ROBERTSON; DALE, 2015). Assim, ao prevalecer os interesses econômicos na definição das políticas educacionais, fica evidente o perigoso direcionamento no conteúdo, método e na forma da educação pública assumida no país, cujo germe está em uma concepção mercantil de educação, possível de ser compreendida pela superação da aparência e apreensão do movimento da realidade (FRIGOTTO, 2015). As influências do empresariado no campo educacional conduzem para o gerencialismo na escola, modelo de gestão amplamente utilizado nas organizações privadas e difundido como referência para a gestão escolar. Ao atender as necessidades de mercado, o modelo gerencial orienta a organização escolar influenciando a opção epistemológica (Tendência à Pedagogia das Competências), a definição do currículo escolar que volta-se ao aprendizado da Matemática e Língua Portuguesa, visando dar respostas às avaliações em larga escala, os programas de formação de gestores e professores que passam a ser elaborados sob a égide do pragmatismo (habilidades e competências), a valorização das performances e resultados educacionais, em detrimento da formação omnilateral dos sujeitos.

Além disso, ao atender as necessidades econômicas, a forma da educação pública se altera, assumindo feições que se contrapõem ao princípio da gestão democrática. O ideal da descentralização, de redistribuição de poder presente nos dispositivos legais, se desloca para a desconcentração de responsabilidades, isentando o Estado do seu papel de promotor das políticas. Nesse contexto, a participação torna-se técnica de gestão, mecanismo de promoção de espaço de coesão do consenso e não como possibilidade de conflito e debate de ideias, conforme aponta Cabral Neto e Castro (2017). Predomina uma concepção de participação para o silêncio e não para o diálogo!

Assim, é fundamental o esforço de todos os que lutam pela democratização da sociedade e da escola, em especial, dos educadores que diariamente são sucumbidos pelas avalanches de políticas neoliberais. A luta precisa transcender a busca pela construção de uma estrutura jurídico-legal coerente ao princípio da gestão democrática, e para isso, torna-se basilar assegurar condições promotoras de vivências de participação democrática e de cidadania na sociedade como um todo, e em especial, nos espaços escolares. Não há outro caminho, só se aprende a participação e a democracia pela prática participativa e democrática. Segundo Paro (1997, p. 17) “é um caminho que se faz ao caminhar.”

Deste modo, entendemos que o alargamento dos espaços de participação pode conduzir ao desenvolvimento de uma cultura de exercício democrático, contribuindo para a criação do sentido e da necessidade de participar.

Esperamos que no enfrentamento às concepções que desfiguram o sentido da gestão democrática na legislação brasileira, a resistência se manifeste de forma mais ampla, no interior da própria sociedade, como alternativa e possibilidade para se romper com as tendências políticas que colocam em prática, diariamente, um projeto de destruição da democracia brasileira.

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência: Universidade Estadual de Londrina, CECA, Cidade Universitária, 80060-500, Londrina, Paraná, Brasil; vi.perez@yahoo.com.br


1 Mestre e doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Londrina.

2 Pós-doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Doutora em Educação pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho.

3 Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina; Licenciado em Pedagogia pela Universidade Estadual de Londrina.

4 No Paraná, houve uma experiência de consórcios intermunicipais, o “Consórcio de Desenvolvimento e Inovação do Norte do Paraná – CODINORP”, que reuniu dez municípios, sendo eles: Cafeara, Centenário do Sul, Florestópolis, Guaraci, Jaguapitã, Lupionópolis, Miraselva, Primeiro de Maio, Porecatu e Prado Ferreira. Juntos, esses municípios escolheram um secretário regional de Educação (a partir de um processo seletivo técnico coordenado pela Vetor Brasil e realizado em 2018 que envolveu cerca de 367 candidatos), que coordenou todas as ações, inclusive a unificação do sistema pedagógico. Este Consórcio contou com a ajuda de uma equipe técnica do Instituto Ayrton Senna, em 2020 foi suspenso por Recomendação Administrativa do Ministério Público Estadual.

5 Conforme um de seus mentores, Giddens (2001), seria, por um lado, uma forma de superar a socialdemocracia que entende o Estado como responsável pelo bem-estar social. Por outro lado, seria também uma forma de superar a ortodoxia do neoliberalismo, que defende o mercado como espaço de oferta dos bens sociais, onde os indivíduos podem adquiri-los a partir de seu poder aquisitivo e posses privadas.