https://doi.org/10.18593/r.v46i0.23829

Formação em deslocamentos: ficção e contrariedade em torno na BNCC1

Training in displacements: fiction and contrariety around the BNCC

Formación en desplazamientos: ficción y contrariedad en torno de la BNCC

Claudia Tomé2

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Professora e Diretora.

https://orcid.org/0000-0002-4508-2754

Maria Santos3

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Educação –doutoranda.

https://orcid.org/0000-0001-9297-4539

Resumo: No Estado do Rio Grande do Norte a formação de professores em torno da Base Nacional Comum Curricular para o ensino fundamental (BNCC) tem ganhado corpo através de agentes como as Diretorias Regionais de Educação e Cultura, em articulação com a Secretaria do Estado da Educação e da Cultura, e Secretarias Municipais de Educação. Neste texto, interessa-nos discutir, a partir de uma visão pós-fundacional, a ideia de implementação da base, considerando o Documento Curricular do Rio Grande do Norte (DCRN) e outros materiais utilizados por esses agentes no processo de formação de professores, cujo protagonismo é exercido pelos coordenadores pedagógicos como multiplicadores de uma formação alinhada à base. Além do conjunto de materiais, lançamos mão de narrativas dos agentes multiplicadores da formação, em um grupo de rede social, que chamamos de grupo focal à base. Nosso interesse é entender como os sujeitos formadores têm significado formação de professores, tomando como referência o DCRN, sem perder de vista o comum da BNCC. Argumentamos que a formação produz deslocamentos em que a escola é recolocada como campo de disputa que tenciona o sentido de educação de qualidade pela significação da formação como insuficiente, ainda que disruptiva. A nossa defesa é que, embora não se divorcie da norma, o processo de formação como implementação de currículos no Rio Grande do Norte pode ser potente para, entre fixações, ficções e tensões, produzir novos arquivos e, por vezes, novos sentidos.

Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular. Ensino Fundamental. Formação de Professores. Deslocamento. Rio Grande do Norte.

Abstract: In the State of Rio Grande do Norte, Brazil, the teacher training around the National Curriculum Common Core for elementary education (BNCC) has taken shape through the Regional Directorates of Education and Culture in conjunction with the State Secretariat for Education and Culture, and Municipal Education Secretariats. In this text, we are interested in discussing, from a post-foundational point of view, the idea of implementing the base, considering the Curricular Document of Rio Grande do Norte (DCRN) and other materials used by these agents in the process of teacher training whose role is exercised by pedagogical coordinators as multipliers of training aligned to the base. In addition to the set of materials, we use narratives of training multipliers, in a social network group, which we call the base focus group. Our interest is to understand how the training subjects have meant teacher training taking as reference the DCRN, without losing sight of the BNCC common. We believe that training produces dislocations in which the school is replaced as a field of dispute that aims at the meaning of quality education for the meaning of training as insufficient, albeit disruptive. Our defense is that although it does not divorce the norm, the formation process as an curricular implementation in Rio Grande do Norte, Brazil, it can be powerful for, among fixations, fictions and tensions, producing new archives and, sometimes, new meanings.

Keywords: National Curriculum Common Core. Elementar education. Rio Grande do Norte; dislocation. Teacher training.

Resumen: En el estado de Rio Grande do Norte, la formación de docentes en torno de la Base Nacional Común Curricular para la educación primaria (BNCC) se ha configurado a través de agentes como las Direcciones Regionales de Educación y Cultura, en colaboración con la Secretaría de Estado de Educación y Cultura, y Departamentos Municipales de Educación. En este texto, estamos interesados en discutir, desde un punto de vista posterior a la fundación, la idea de implementación de la base, considerando el Documento Curricular de Rio Grande do Norte (DCRN) y otros materiales utilizados por estos agentes en el proceso de formación docente, cuyo papel es ejercido por los coordinadores pedagógicos como multiplicadores de formaciones alineadas a la base. Además del conjunto de materiales, utilizamos narrativas de los agentes multiplicadores de formación, en un grupo de redes sociales, lo cuál llamamos grupo focal a la base. Nuestro interés es entender cómo los sujetos formadores han significado la capacitación de docentes, tomando como referencia el DCRN, sin perder de vista lo común de la BNCC. Argumentamos que la formación produce desplazamientos en los cuales la escuela es reemplazada como un campo de disputa que trae tensión para el sentido de educación de calidad por el significado de capacitación insuficiente, mismo que sea disruptivo. Nuestra defensa es que, aunque no sea divorciado de la norma, el proceso de formación, como la implementación de planes de estudio en Rio Grande do Norte, puede ser poderoso para, entre fijaciones, ficciones y tensiones, producir nuevos archivos y, a veces, nuevos significados.

Palabras clave: Base Nacional Común Curricular. Enseñanza fundamental. Formación de profesores. Desplazamiento. Rio Grande do Norte.

Recebido em 26 de fevereiro de 2020

Aceito em 30 de julho de 2020

Publicado em 24 de setembro de 2020

1 INTRODUÇÃO

A tentativa de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) iniciou-se nos anos de 1980, ou como nos chama a atenção Macedo (2014, p. 1532) “talvez antes, se assumirmos uma definição mais ampla do termo.” Ela pressupõe, como sugere Lopes (2019, p. 60-61), “apostar em um registro estabelecido como tendo um selo oficial de verdade, [...] esforços para tentar conter a tradução e impor uma leitura curricular como a única correta e obrigatória.” Por isso, em face do movimento de implementação da BNCC em 2019, buscamos interpretar, de setembro de 2019 a janeiro de 2020, como no Estado do Rio Grande do Norte (RN) a formação de professores (deslocada) em torno da BNCC vem ganhado significados nas Diretorias Regionais de Educação e Cultura (DIREC’s), em articulação com a Secretaria do Estado de Educação e da Cultura (SEEC) e Secretarias Municipais de Educação (SME). A discussão caminha para um entendimento de como o trabalho com a base vem produzindo sentidos através do documento formativo nomeado como “Documento Curricular do Rio Grande do Norte: ensino fundamental” (DCRN), no qual há referências para o trabalho docente na busca de consolidar aquilo que o estudante deve aprender para se desenvolver, bem como “possibilitar condições de igualdade e equidade quanto ao desenvolvimento humano integral de crianças, adolescentes e jovens de todas as redes de ensino do Estado.” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 7).

no DCRN a ideia de melhoria da aprendizagem dos alunos, como uma espécie de garantia advinda da BNCC que, por sua vez, estabelece direito de aprendizagem. Todavia, colocamos tal garantia sob suspeita, pois nenhum documento dá conta de responder ou apresentar expectativas formalizadas quanto à aprendizagem. Responder já seria um ato de violência de força pública (DERRIDA, 2010), que tenta autorizar mais aprendizagem, visto que o direito se aplica pela força de lei, pela capacidade da lei produzir atos normativos – efeitos jurídicos. Por inspiração derridiana, não resta dúvida de que a violência pertence à ordem do direito e de tudo o mais que tenha pretensão de autoridade e autorização para que a justifique (DERRIDA, 2010). Com efeito, a construção da DCRN chama à cena a autoridade da BNCC sobre os currículos de cada estado, ao tempo que põe em questão a ideia de um algo comum (a base) (LOPES, 2018) e nos faz pensar o que seria a produção e falta de aprendizagens, assim como a lógica de controle de qualidade. Em vista disso, o que colocamos como formação deslocada não se limita a um discurso, e sim a algo sem limites – um deslocamento movimentado e nunca fixo. Para nós, significar o deslocamento ou o (des)locar, trata-se de uma aposta para possibilidades que não são sobre uma verdade ou uma mentira. São suspeitas contaminadas por ficções que nunca são realidades aparentes, e por não serem, a formação se (des)loca na fronteira ou no entre-lugar (BHABHA, 2013) entre o documento de referência e as Diretorias Regionais de Educação e Cultura.

No Estado do Rio Grande do Norte, as diretorias somam-se quinze, sendo que nos concentraremos na 14ª DIREC, localizada na cidade de Umarizal, que abrange 15 municípios do estado e um número de 29 escolas da rede estadual. Dentre as funções das diretorias, está a de supervisionar o ensino nas unidades escolares estaduais, disseminar as políticas públicas da educação básica, e fazer coletas de dados relacionados aos índices avaliativos, realizados por instrumentos do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Em razão disso, nesse primeiro momento, iremos trazer uma leitura do documento formativo distribuído aos professores e, em seguida, narrativas dos agentes multiplicadores da formação, em um grupo de conversação no aplicativo whatsApp, denominado de Grupo Focal à Base. O nosso interesse é interpretar como os sujeitos formadores têm significado a formação, tomando como referência o documento curricular estadual que projeta melhoria e qualidade da educação como resposta a uma base nacional. Ao nosso ver, essas são ficções imaginadas pelo discurso de mais aprendizagem, educação integral e igualitária.

É significativo dizer das diretorias, agentes importantes na articulação à base, que professores, coordenadores e secretários estiveram mobilizados em debates a respeito da construção do currículo Rio Grande do Norte. A luta por significação girava em torno da qualidade da educação e justiça social, fato esse que não se encerra após a aprovação e agora implementação. Em razão disso, vale perguntar: De que qualidade de educação se fala? Sabemos que essa questão já foi feita e se repete entre muitos pesquisadores, mas trazê-la nesse instante é lançar nossa defesa de que a qualidade de educação se difere de qualidade do ensino, ainda mais quando há um documento normativo dizendo o que ensinar aos alunos.

Se por um lado a base se apresenta como orientadora dos currículos e não como currículo, por outro lado, a disputa em torno dela, não deixa de inscrevê-la como disciplinadora dos currículos. Além disso, ao mesmo tempo que intenta retirar das escolas e do professorado o “controle” sobre o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado, empenha-se em convencê-lo sobre uma nova forma de ser professor. Para Macedo (2019, p. 41), a base representa, “a hegemonia de certa concepção de educação e de escolarização”, e julgamos necessário acrescentar, que ela fratura a possibilidade de pensar a educação como diferença. Se ela já está aí produzindo algum sentido, então, seguimos produzindo novos. Isto significa dizer que entendemos currículo como prática de significação, produção de sentidos, o que refuta determinismos ou um lastro em que se assenta o ensinar e o aprender. Para nós, independentemente de como a base se apresente, o campo político que dela emerge, continua sendo disputado, o que implica negociações e desconstruções dos determinismos questionados como essencialidade pelo pós-fundacionismo. Este, segundo Lopes (2014), concebe a necessidade de trabalharmos com fundamentos contingentes que suponham algum nível de fixação provisória de fundamentos instáveis. Para a autora, “trabalhar em uma perspectiva pós-fundacional nos leva a pensar nas decisões políticas como contingentes (LOPES, 2014, p. 48).

É por essa lógica pós-fundacional que problematizamos o modo de funcionamento dos cursos de formação que contemplem a BNCC, pois a defesa em torno da base é de que há um documento legal a ser seguido e, por isso, a formação objetiva preparar o professor no que tange a sua efetivação por meio da atuação docente. Ver tal documento como uma coisa dada, a qual pode-se levar de um contexto para outro, sob o nome implementação, parece-nos problemático. A palavra implementação remete ao apagamento da produção que não se dá apenas na formulação escrita do documento, mas também nos contextos locais justamente pela impossibilidade de repetição. E, se a lógica é o comum da BNCC, tal noção é perturbada na ideia de currículo do RN alinhada à BNCC, posto que, entendemos que o próprio deslocamento da base para um documento de referência do Estado do Rio Grande do Norte já carrega em si diferimentos.

2 DE UM COMUM INCOMUM NO DOCUMENTO CURRICULAR DO RN

Em um vídeo que antecede a divulgação do Documento Curricular do RN (DCRN), no segundo bimestre do ano de 2018, o secretário de educação do RN, em fala, afirma que os indicadores do RN precisam ser revertidos, e, para isso, Consed e Undime, implementam a agenda da aprendizagem. Na efetivação dessa agenda, os coordenadores pedagógicos passam a ser os impulsionadores da agenda e os multiplicadores para vencer os desafios da educação no estado. Junto a essa fala, o presidente da Undime do RN chama a atenção para a implementação da BNCC e a formação dos professores, em que o DCRN passa a ser distribuído. Na tentativa de mobilizar essa formação nas escolas, a secretária adjunta de educação do estado convocou todos a participarem e contribuírem para elaboração dos projetos pedagógicos. Todos eles trazendo a ideia de qualidade da educação, o que não quer dizer mais aprendizagem.

Colocamos isto de início, não porque somos contra a qualidade da educação ou porque não acreditamos nela, e sim porque essas expectativas tentam hegemonizar o significante aprendizagem, e de alguma forma, mudanças ao sentido de educação. Se por um lado, colocamos a educação como um direito público, defendido pela constituição brasileira de 1988, em vigor, por outro, consideramos que é impossível nomeá-la, mesmo enquadrando significados a ela, como: o ato de educar, processos de ensinar e aprender, processo no qual uma pessoa adquire conhecimento, etc. Nesses significados vamos percebendo que esses enquadramentos nos trazem questões importantes usando os próprios enquadramentos: O que é educar? Como se ensina e o que se aprende? O que é o conhecimento? Essas perguntas em si não são novidades, só que a tentativa de respostas a elas não corresponde a um único modelo de currículo, de aprendizagem e de sujeito. Se pensarmos os significados a elas atribuídos, nunca serão considerados suficientes por questões normativas. Se somos produzidos pelas normas, na medida em que as produzimos (BUTLER, 2018), o que se reivindica pode mudar qualquer concepção de aprendizagem produzida por um documento, sobretudo no discurso do comum.

No DCRN, três objetivos são apresentados: 1) “sugerir estratégias didáticas que inspirem os projetos pedagógicos, os planejamentos e as práticas escolares”; 2) “provocar reflexões nos professores, no espaço da escola, que contribuam para o aprimoramento do currículo em movimento”; e 3) “contribuir para que os profissionais de todas as redes de ensino compreendam a organização do trabalho pedagógico a partir do currículo por competências e o torne efetivo no planejamento escolar que resulte [...] na aprendizagem dos estudantes e na melhoria da qualidade do ensino.” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 10-11). Neles, o que queremos chamar a atenção é o caráter normativo para elaboração de um currículo, que o estado coloca como “em movimento”. Na nossa leitura, por estar em movimento, não pode se prender a ideia fixa de uma base orientadora de currículos, considerando que compreendemos o currículo como produção cultural (MACEDO, 2006), sendo que ele não se sustenta por apriorismos estabelecidos em um documento do estado, nem qualquer outro que tenta normatizar o currículo, a exemplo da BNCC, pois qualquer tentativa de fazê-lo “é capaz de bloquear efeitos críticos e democráticos.” (LOPES, 2015, p. 131).

Pelo caráter normativo que coisifica o currículo, a base parece funcionar como um arquivo para discipliná-lo; e, ainda, como o ensino será realizado. Em Derrida (2001), o arquivo é a pulsão de morte como algo destruidor, por entender que trabalha sempre em silêncio, sendo que a sua condição, enquanto tal, constitui múltiplas condições de leitura, e por isso age “com vistas a apagar seus ‘próprios’ traços – que já não podem desde então serem chamados de próprios.” (DERRIDA, 2001, p. 21, grifo do autor). É assim, um lugar de gestão da memória e esquecimento, em que algo do seu traço será apagado, criando uma outra condição para renovação, tradução. O tradutor/intérprete, como arquivista, não se trata apenas daquele que apenas acolhe a repetição que insiste em instituir o arquivo. Trata-se também daquele que a relança em direção ao futuro, operando pelo que Derrida chama mal de arquivo. Todavia, vale dizer que arquivo tem sido quase sempre associado a documentos e informações classificadas, armazenadas em diversos suportes, repositórios fechados que guardam, esclarecem e revelam. Implica na ação de um agente específico, que seria, ao mesmo tempo, um guardião e um intérprete. Então, por isso perguntamos: Que documento é esse chamado de Documento Curricular do RN, cuja interpretação conta com formadores ligados à secretaria de educação como espécie de guardiões do arquivo, escolhidos para replicar uma interpretação do documento através da oferta de uma formação para formadores (coordenadores pedagógicos de cada escola) de professores? Que tradução se faz desse documento, já que cabe a tais guardiões interpretá-los?

Parece haver aí a exigência de receber um documento traduzido por alguém que vai dizer aos coordenadores como formar os professores para realizar o encontro entre o currículo e a didática. Opera então um processo de arquivamento, de repetição do arquivo, que insiste na ideia de um vir a ser, onde sair do domicílio dos guardiões – aqueles que elaboraram e participaram da elaboração do documento –, através de uma formação, é marcar a passagem do privado ao público, do secreto ao exposto, da secretaria à escola, do currículo à didática, do professor ao aluno, do ensino à aprendizagem. Remete, pois, a um lugar de autoridade designado pela secretaria e com “conhecimento” para tal, apto a desarquivar e construir um outro arquivo. Todavia, se considerarmos o mal de arquivo, a ambivalência do dizer/ocultar, movimenta o documento num jogo desconstrucionista produzido por rastros, pois impõe a presença do arquivo como presença, só que ao invés de algo fixo, é permeado de traços. Não cabe considerar o documento estático, mas supõe-se novas formas de arquivamentos, pois o arquivo “capitaliza tudo, incluindo aquilo que o arruína ou contesta radicalmente seu poder.” (DERRIDA, 2001, p. 24). Essas ruínas produzem novas interpretações, ao mesmo tempo que também registram o evento, o que desmantela a ideia de escritura apenas como conservação do conteúdo passado. Na verdade, “o arquivo trabalha a priori contra si mesmo.” (DERRIDA, 2001, p. 23).

Ainda a despeito dos objetivos do DCRN construir orientações, e nele as sugestões de estratégias para o trabalho pedagógico, nos faz insistir no processo da tradução do documento. Derrida (2006) em Torre Babel, sugere que a tentativa de uma tradução seja impossível, porque nela sempre haverá limites para os fechamentos. Se é impossível, não há como retornar ao texto primeiro, quer seja o documento de referência do RN, quer seja as impressões lançadas on-line em torno da formação. Pois os giros, os retornos em torno da formação e o que ela carrega, remetem a “Deus o pai e o pai da cidade que se chama confusão”, visto que no relato bíblico tratado por Derrida (2006), quando ele questiona o que é Babel é colocado em evidência o nome próprio. Há aí o nome próprio e o nome comum, e isto se torna relevante porque nomes próprios não pertencem propriamente à língua e, portanto, não possuem tradução. Além disso, o nome confusão – comum – tem mais de um sentido, o que traz consigo um ruído, um dissenso, os múltiplos desvios da passagem de um sentido a outro e, portanto, impossível da tradução. Assim, no DCRN, a sugestão de ideia de orientação se configura na impossibilidade de intenção das estratégias, pois o ato de sugerir não assume um lugar original, se não uma ficção de trabalho pedagógico. No que se refere a um currículo por competência, sustenta a elaboração técnica de aprendizagem e qualidade, que é o “lugar” onde se espera chegar, mas que só existe como deslocamento.

Dos fundamentos e concepções do Documento Curricular do RN elaborados a partir do que dispõe a BNCC, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica e o Plano Estadual de Educação do Rio Grande do Norte (2015-2025), coloca-se ações de práticas pedagógicas “que assegurem os direitos de aprendizagem dos estudantes, rompendo com estruturas fragmentadas do conhecimento.” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 16). O que se apresenta como fragmentadas no documento é a ideia disciplinar de conteúdo, ao mesmo tempo em que se contradiz ao fazer a afirmativa de que em todas as etapas, “envolve a escolha da abordagem didática – disciplinar, pluridisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar – definida no projeto pedagógico de cada unidade escolar.” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 17). No entanto, reprime robustamente o imprevisível do fazer docente, isto porque não se trata de unificar essas abordagens como diferentes, e sim abordar o fundamento de que a diferença opera em cada uma das abordagens. É em nome de um normativo que “fragmentos do conhecimento” aparecem como algo, um dizer alguma coisa, ao invés da possibilidade de reconhecer o diferencial de categorias.

Não se trata de ajustar esses conceitos ou categorias que estão aí imersos ao movimento histórico da educação, porque romper com os fragmentos disciplinares também não possui garantias, já que só seria capaz de romper pela urgência do afirmativo para outras políticas. Na verdade, perguntar se esses fragmentos de fato existem é uma questão para esse documento, que opera na ideia do comum. Isto porque, pelo enquadramento é moldado a aparecer, só que, sem tentativas de decidir e significar categorias. Essas etapas que aparecem no documento como disciplinar, interdisciplinar, etc., restituem a tentativa de cenário educacional semelhante, e de possíveis comparações. Na medida em que quer fazer aparecer as categorias, as desaparece, silencia, enluta a imprevisibilidade, ainda que nossa crença atravesse a ideia de que não se produz qualidade de educação sem o imprevisível (SILVA; XAVIER FILHA, 2019), porque é pela imprevisibilidade que os sujeitos aparecem como sujeitos que não apostam na chancela do discurso do igual. Se em razão da seletividade, sugestões de orientações, fundamento e concepções, os currículos são enquadrados numa proposta normativa que pode levar a muitos impasses; pensamos que tal enquadramento aponta para uma espécie de moldura de fotografia, que “nos oferece a ‘impressão’ parcial da realidade” (BUTLER, 2018, p. 104), sendo nunca mais que uma interpretação do registro.

A perspectiva adotada pelo documento curricular é sempre o lance que enquadra e enluta ao dizer quais conhecimentos são possíveis de serem ensinados ou não (BUTLER, 2018); e que o processo de aprendizagens desses conhecimentos, “depende da abordagem filosófica e psicológica” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 17). Só que essas abordagens implicam redirecionar o ensino para superar “dificuldades de aprendizagem verificadas tanto pelos próprios estudantes, quanto pelo professor, em uma íntima relação com os princípios da autoavaliação e da aprendizagem significativa” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 17-18), o que encaminha para as competências (estéticas) do documento, articuladas à BNCC. Abordando como um conjunto orgânico, o documento define habilidades, atitudes e valores que acabam expressando a ideia de competência, sendo que essa competência assume diversos lugares: o lugar de qualidade, o lugar de currículo, o lugar de conhecimento, o lugar de articulação, o lugar de comunicação, o lugar de tecnologia, o lugar de qualificação de trabalho, etc., que acaba, apenas, no registro instrumental.

Essas competências, segundo o documento, “remetem aos campos do saber, saber fazer, ser e conviver” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 22), que podem parecer como a principal maneira de significar o currículo e as aprendizagens. “Já os objetos de conhecimento se configuram como o meio pelo qual se materializam os processos de ensino e aprendizagem orientados para o desenvolvimento de habilidades e competências.” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 22). De todo modo, é uma ação descontextualizada, por ser mecanismo que não se sustenta a um campo, ou campos, pois exige critérios sociais diferentes. Diferentes porque naquilo que defendemos isto opera em um outro campo, o da diferença (différance) – noção que Derrida (2004) designa como différance (com a) e diferenças (com e) –, onde “permite pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de limites culturais, nacionais, linguísticos ou mesmo humanos.” (DERRIDA, 2004, p. 33). Com essa condição ilimitada, voltamos à questão do arquivo e aos campos desses saberes definidos pelo documento.

Se esses saberes remetem aos campos, o arquivo não é apenas um lugar de armazenagem, de retenção ou de perda, haja vista que a “estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento” (DERRIDA, 2001, p. 29), mas por inspiração derridiana, para se constituir como arquivo necessita de um (des)arquivamento, pois o arquivo é inventado/criado a partir de um ato performático. Ou seja, ele se faz a partir do momento em que passa a ser revirado, interpretado e aberto. Por isso, ao se tornar acessível, o saber, o fazer e o conviver fazem referências às ações diferentes e não únicas, embora possam ser acopladas, além da impossibilidade de listar uma organização em campos disciplinares. Talvez por isso, nos pressupostos pedagógicos se apresentem alinhados a outros arquivos, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96), nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica e nos Planos Nacional e Estadual de Educação.

Ainda nos pressupostos pedagógicos são listados princípios para o desenvolvimento básico do documento, que vai da compreensão da globalidade do educando, equidade nas condições de acesso, redução da evasão e repetência, à proposta curricular de acordo com interesses e necessidades dos educandos. Esses princípios determinam que as práticas adotadas pelos professores devam ser provedoras de pensamento “crítico e autônomo”, “sensibilidade voltada para o ato criador e para a construção de respostas singulares pelos estudantes”, e “uma postura ética de solidariedade e justiça, que possibilite aos estudantes interagirem e trabalharem com a diversidade de pessoas.” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 24). Além disso, objetiva que o foco central em situações cotidianas amplie a possibilidade dos estudantes para as seguintes funções: 1) “conviver e desenvolver em grupo projetos científicos, literários, esportivos e artísticos, entre outros; 2) “expressar-se, comunicar-se, reconhecer e criar linguagens;” 3) “ter iniciativa para investigar e buscar soluções para problemas e conflitos”; e 4) “compreender como seus valores e sentimentos, que integram sua forma de conhecer o mundo e responder aos problemas, afetam a construção de sua identidade.” (RIO GRANDE DO NORTE, 2018, p. 24).

Trazemos os pressupostos porque são eles que orientam o trabalho/atividade nos campos das disciplinas, listando orientações para os seguintes segmentos e modalidades: Educação em direitos humanos; educação das relações étnico-raciais; educação de jovens e adultos; educação especial; educação do campo; educação escolar indígena e quilombola; e toda a modalidade do ensino fundamental. Catalisa-se assim, diferentes demandas, controle e monitoramento do documento por vias de avaliação (ação política), fazendo-os voltar ao discurso do secretário de educação do RN no início dessa discussão. Se a falta de números avaliativos para dar qualidade acusa a má qualidade, a estratégia de um documento curricular articulado assenta uma norma de repetição da BNCC, de que é quase o mesmo, mas não exatamente (BHABHA, 2013), e por isso, performatiza e torna uma ficção, um ato de violência na tentativa de uma mesmidade. Assim, “a tão qualidade que se busca se alinha a uma ideia de qualidade mensurável, dada a ênfase nos índices de avaliação que marcarão a qualidade avançada.” (OLIVEIRA; FRANGELLA, 2019, p. 27).

No entanto, a qualidade avançada calcula áreas, componentes e organizadores curriculares disposto em cinco campos do conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso; além de estruturado de acordo com as competências, habilidades e unidades temáticas. Essas unidades definem os “conhecimentos” a serem ensinados, que em momentos aparecem contrariamente como sugestões didáticas para anos iniciais e finais do ensino fundamental. Descritores como planejar, produzir, promover, exercitar, construir, entre outros, não são originários do DCRN, antes, aparecem como uma cópia da BNCC. Ao nosso ver, trata-se, pois, de uma ficção, visto que a realidade dos municípios do estado do RN é diferente e, por isso, contraria o comum de qualquer discurso nacional. E “se a universalidade ainda que impossível é necessária, é nessa tensão que a condição democrática como indecibilidade se instaura.” (OLIVEIRA; FRANGELLA, 2019, p. 29). É ela que no campo do indecidível significa o discurso de qualidade e de aprendizagem como um projeto de reconhecimento que não busca homogeneizar as diferenças. No documento curricular do RN esse projeto de reconhecimento desaparece, antes mesmo da proposta, quando é enunciado o documento de referência da BNCC.

Aqui se inscreve a ingenuidade de um documento curricular atrelado a uma base que não decorre do ato/ação de ensinar, de aprendizagem e de qualidade. A necessidade de definição do que se espera do professor e da escola assume a distribuição do conhecimento que tenta promover igualdade, mas que na verdade é mais um ato de desigualdade na forma como o discurso é definido pela oportunidade educacional. É nessa lógica que o documento é distribuído e a razão para fazê-lo acontecer desconsidera os possíveis interpretativos daqueles que estão dentro e fora da escola. O reforço da inclusão e de participação não cria condições adequadas para dar certo, e dizemos isso não porque somos pessimistas, e sim porque julgamos que esse documento curricular do RN não integra os projetos de vida dos sujeitos da escola, pois o roteiro é sempre no campo do imprevisível, apresenta quebra, cortes, repetição de cenas, só que nunca de uma mesma forma. Ele é um cenário ficcional sempre em deslocamento e sem finais.

3 A FICÇÃO DO DOCUMENTO EM NARRATIVAS DE PROFESSORES

Até aqui, em alguns momentos, trabalhamos com a ideia de arquivo, por compreendê-lo como central no processo de formação em torno do DCRN e da BNCC. A nossa ideia nesta seção é abrir o arquivo produzido pelos multiplicadores acerca dos processos formativos no âmbito da 14ª DIREC. Tal arquivo não deixa de contemplar, apoiadas em Derrida (2001, p. 41), três impressões: 1) a impressão como uma marca no suporte que nomeia a primeira impressão como escritural ou tipográfica; 2) a impressão como uma noção de determinado conceito, que diz respeito às impressões associadas a uma palavra que rever o já dito, reformulando-o, rediscutindo-o indefinidamente; e 3) a impressão como construto sobre algo, que nada mais é que escolhas pessoais, visto que a impressão é a tradução que se faz como construção de algo, oriundas de outras impressões registradas no corpo de quem constrói a impressão do arquivo. É então, considerando essas impressões, que os professores que narram suas experiências podem ser vistos como tradutores, aqueles que dão vida ao arquivo, por isso ele não se fecha jamais, é sempre uma construção do porvir. E sendo as narrativas traduções, o processo de desarquivamento da formação é recriação do texto, quer seja o DCRN, a BNCC ou a própria formação.

A partir dessas recriações, narradas pelos professores, é possível dizer que, no fluxo de trabalho das formações, elas nos dão mostras de que há deferimentos e diferimentos, que acontecem entre o documento e as formações de multiplicadores e posteriormente dos professores, o que faz do arquivo um possuidor de problemas de tradução. Vale dizer que deferimento aqui é no sentido de atender o pedido, responder à solicitação do sentido, que comumente se tem atribuido à BNCC e ao DCRN, a saber, como lastro para o pedagógico. Este lastro para nós se faz problemático, posto que no próprio movimento do deferir, difere-se questionando a própria solicitação, divergindo, adiando, postergando. No diferirmento nada pode ser presente ou idêntico a si mesmo. Em outras palavras, diz respeito a um movimento duplo, ou seja, defere e difere, ao memso tempo, um movimento escorregadio do par significado-significante (DERRIDA, 1991). Até porque “um arquivo deve ser idiomático, e ao mesmo tempo ofertada e furtada à tradução, aberta e subtraída à iteração e à reprodutibilidade técnica.” (DERRIDA, 2001, p. 118). De tal modo, o arquivo possibilita infinitas escolhas e infinitas combinações, que somente a tradução de cada um poderá “definir”.

Colocamos aqui que o nosso acesso ao arquivo da formação ocorreu de duas formas: a) participação no grupo de aplicativo WhatsApp, intitulado DCRN14ªDIREC/MUNICIPIOS, cujos participantes são todos os envolvidos com a formação de multiplicadores no âmbito da 14ª DIREC; b) mediação no grupo de WhatsApp, denominado Grupo focal à base. O primeiro grupo já existia e fomos adicionadas. A partir dessa participação, convidamos os seus membros para participarem do segundo grupo. Dos cinquenta e sete participantes (sem contar com nossa participação), sete coordenadores se dispuseram a participar e desses sete, cinco participaram; alguns timidamente, outros efetivamente. Ainda acrescentamos que a ênfase das narrativas se concentra em dois participantes, haja vista se reportarem de forma mais detalhada, o que não significa negligenciar tensões por falta de outras narrativas. Ao contrário, as tensões estão entre os documentos – BNCC-DCRN e entre os documentos e as formações recontadas pelos participantes, independente do quantitativo de narrativas. E como já colocado, o nosso interesse com esse grupo é abrir o arquivo da formação a partir da criação de um outro arquivo que traz como conteúdo as narrativas dos coordenadores (multiplicadores), os quais são chamados a este texto por nomes fictícios e cujas escolhas que fizemos de suas narrativas – apresentadas em itálico e/ou em recuo neste texto – consideram as três impressões derridianas aqui aclaradas anteriormente (DERRIDA, 2001).

No grupo focal, algumas interpelações foram feitas a saber: O que se passou entre um encontro e outro, entre o documento e a formação? Entre a formação dos multiplicadores e a formação dos professores pelos multiplicadores? Que ideias ou críticas surgiram entre uma formação e outra? Essas interpelações foram pensadas sob a lógica da segunda impressão, a saber, o dizer sobre a formação que rever o já dito, assim como da terceira impressão, ou seja, como construto sobre algo. Isto pois, significa traduzir, desarquivar o documento, e assim, criar arquivos. Pensamos que, se a força de lei obriga violentando (DERRIDA, 2010), e se é de dentro do sistema de ensino que se convoca à formação para inscrever o reconhecível (BUTLER, 2009), implica pensar no jogo da pulsão, na pulsão do arquivo. Diz respeito a um arquivo com informação de indicadores, princípios que não deixam de ser tensionados por negociações, diferenciações, adiamentos, dentro de uma economia geral que não tem princípio orientador, que é puro dispêndio sem cálculo. E esse jogo nos diz sobre o documento, sobre rediscuti-lo indefinidamente como tarefa para o pensamento, como uma tarefa tradutora que implica também escolhas pessoais que movimentam heranças.

As formações em torno do DCRN, contam com uma equipe regional de gestão e uma equipe regional de formação, sendo que a primeira é formada por articuladores de regime de colaboração, coordenadores pedagógicos das DIREC’s e assessor pedagógico das DIREC’s; a segunda conta com formadores regionais estaduais (coordenadores pedagógicos das escolas estaduais) e formações regionais municipais (três coordenadores pedagógicos para cada município). E esta última é a que mais nos interessa. As formações acontecem por módulos – Módulo I: Fundamentos teórico-práticos; Módulo II: o Currículo por competências e habilidades; Módulo III: Efetivação do Currículo na prática pedagógica; e Módulo IV: Socialização dos valores e práticas do currículo escolar – que envolvem encontros presenciais com os coordenadores e formadores da SEEC/RN sobre implementação curricular com foco na sala de aula.

Posterior à fase presencial acontece a formação a distância que visa a continuidade/complementariedade do módulo iniciado presencialmente. Essa formação a distância se dá por meio de acessos aos vídeos da plataforma conviva, com orientações de como inserir dados, além de arquivamentos on-line. No entanto, há uma distinção de uso na plataforma. Para os municípios, utiliza-se a plataforma CONVIVA (um tutorial) e para o estado são utilizados formulários no MOODLE. Esses campos virtuais incorporam arquivamentos pelos professores após a formação, tais como: Preenchimentos de formulários de monitoramentos, questionários, tarefas referentes à formação, avaliação da formação e arquivamento de material em PDF, o que dá origem a novos arquivos. Após a formação a distância, segue a formação por escola a partir do trabalho de articuladores e multiplicadores, o que envolve também a rede privada. O fluxo de trabalho da equipe regional acontece da seguinte forma: Formação Presencial Equipe Regional; Formação/Tutoria EAD; Formação de Coordenadores e Professores das Redes; Monitoramento.

De acordo com a narrativa da coordenadora Celina, entre um lugar e outro estão: a) os módulos de formação, que são divididos em dois momentos: o teórico e o prático para realizar nas escolas; b) os professores, “não são leitores”; c) a formação com “práticas positivistas”; d) os professores, que “na maioria das vezes repetem as práticas pedagógicas concebidas em sua vida estudantil”; e) os formadores/relatores que não transmitiam segurança em suas colocações, resumindo as formações à leitura de slides e cumprimento de pauta; f) as dúvidas, que ficavam na maioria das vezes sem respostas; g) as dúvidas e inquietação de como fazer a transposição didática desses conteúdos para os professores, que em sua maioria não são leitores. Somado a isso, a mesma coordenadora recorre à memória de um arquivo já existente ao dizer: “trabalhando com formação de professores há quase quinze anos, sempre me pergunto por que as políticas educacionais formativas aqui no Brasil não conseguem romper com as práticas positivistas de conhecimentos prontos e acabados, de receitas prontas [...]” (Coord. Celina) (informação verbal).

A narrativa de Celina põe em cena um espectro que a incomoda, vindo das fixações, ficções e que continuam perturbando. Ela faz uma narrativa da formação trazendo à cena uma ordem normativa do ensinar e do aprender como processo pelo qual uma pessoa adquire conhecimento e que esse processo carece de preparação por parte, tanto dos professores, para os quais essa norma é repetida, quanto dos relatores que preparam os multiplicadores. A falta de leitura, a repetição de práticas de uma vida de estudante – que não foi modificada – e não de professora, as dúvidas que ficam do processo de formação e a insegurança apresentada nos relatores – formadores dos multiplicadores –, seguida por quem recebe a formação, instalam um quadro de ruínas que ao tempo que produzem novas interpretações, registram o evento (DERRIDA, 2001) como uma fixação, uma mesmidade e uma ficção. Tal quadro põe em cena o desmantelamento da ideia de inovação, de atualização, de implementação e cria um quadro de guerra entre os que se encontram em ruínas e os que se dão conta dela, ao alegarem que a formação deixou dúvida.

Considerando a narrativa de Celina, a formação acaba sendo significada como insuficiente. E essa insuficiência parece ser atribuída ao formador que resume as formações à leitura de slides e cumprimento de pauta. De tal modo, se os relatores são vistos como inseguros e os professores não possuem leitura, e isso é referente ao documento, é porque o documento é desconhecido. É “necessário muito estudo por parte de nós professores formadores e dos professores para se apropriar do planejamento com documento do RN.” (Coord. Celina) (informação verbal).

A narrativa da coordenadora Marta ratifica esse sentido de insuficiência: ao dizer que “as dúvidas só serão sanadas plenamente com o conhecimento do documento, ou seja, lendo, anotando, estudando.” (informação verbal). Marta chega a categorizar os formadores dos multiplicadores a partir do conhecimento que eles têm ou não do documento e da experiência de sala de aula que, para ela, parece se constituir como requisito central para a formação, dizendo que:

[...] há os que conhecem o documento e vivenciam a realidade de sala de aula, os que conhecem o documento, mas estão distantes das salas de aula e ainda os que não conhecem o documento, nem tampouco a realidade de sala de aula. Tem sido a parte mais difícil no repasse aos professores é a resistência em ler, em conhecer o documento de fato. (Coord. Marta) (informação verbal).

A dificuldade na formação, que faz com que Marta localize nas suas narrativas a experiência da sala de aula, inscreve a matriz de inteligibilidade que possibilita aos sujeitos se reconhecerem em referência às suas práticas de sala de aula, quer seja como formador, quer seja como formando. Indica, assim, a abertura do arquivo que instaura uma relação de violência e poder que não se esquiva de questionar todas as estruturas do que tradicionalmente se entende como hospitalidade e acolhimento (DERRIDA, 2001). Isto nos diz que o documento não nasceu dos que fazem a educação no chamado chão da sala de aula, da experiência dos professores, nem das demandas da escola. Não nasceu, nem foram por eles gestados, nem por eles apropriados, no sentido mesmo de autoria. Isto talvez explique o fato de a coordenadora Marta dizer que a parte que tem sido mais difícil na formação dos professores “é a resistência em ler, em conhecer o documento de fato.” (informação verbal). E por que essa recusa?

Lançamos a mesma interpelação de Macedo (2016) ao discutir a base e, em outro lugar, a educação de qualidade (MACEDO, 2015). A partir dos seus construtos, julgamos que a recusa é razoável. Tal recusa nos diz sobre regulação, restrição, determinação, apagamento do imprevisível, expulsão da diferença e de toda singularidade que jamais serão antecipadas (MACEDO, 2016). Diz de um render-se à mesmidade que o documento “produz ao abstrair a diferença que não pode, assim, ser reconhecida como tal” (MACEDO, 2015, p. 898). E isso não diz respeito “apenas aos ‘diferentes’, que são privados de suas vidas para se enquadrarem na mesmidade universal, todos perdem o seu direito à diferença ao serem integrados na promessa do todos com um.” (MACEDO, 2015, p. 898). De um outro modo de dizer, ocupa-se da recusa à violência do com(UM) como (in)comUM, é se negar ao UM como CENTRO, “uma vez que há o UM, há o assassinato, a ferida, o traumatismo. [...] O Um se faz violência. Viola-se e violenta-se, mas se institui também em violência. Transforma-se no que é, a própria violência – que se faz si mesmo.” (DERRIDA, 2001, p. 100).

As narrativas denunciam a lógica de um documento como um arquivo que violenta, um arquivo pronto e guardado, interpretado pelos seus guardiões, cuja autoridade autoral lhes dá o poder de interpretá-lo e cujo repasse serve para disciplinar a prática docente. Acusa um não pertencimento que aparece também nas narrativas das coordenadoras Felícia, Gabriela e Neide quando dizem:

Nossos educadores precisam ler muito pra buscar um melhor entendimento e apropriação do que traz o DCRN e a BNCC. Daí até chegar no processo pedagógico de sala de aula ainda é um longo caminho a percorrer. (Coord. Felícia).

Me parece, que em alguns momentos, os formadores dos coordenadores estão mais preocupados em cumprir a pauta. Mesmo tendo acontecido algumas formações tanto para os formadores e para os professores em escolas, considero que a teoria e a prática ainda estão distantes. As formações para os coordenadores acabam se distanciando das atividades propostas na plataforma e do que necessitamos na realidade. (Coord. Gabriela).

Na realidade vejo essa teoria e prática meio que distante porque acabamos mesmo que ficando só no papel. (Coord. Neide) (informações verbais).

Sobre o que seria teórico e prático, é Celina que busca esclarecer dizendo que: “teórico atribuímos as instruções e estudos nas formações com os relatores do DCRN e prático realinhamento do PPP e construção do Plano de Ação com os professores.” (informação verbal). Essa narrativa, assim como as de Felícia, Gabriela e Neide, nos falam da escola como um lugar de chegada e não como um lugar de partida. E se não parte da escola, por ela também não é conhecido. Essa falta de conhecimento de documento de cunho oficial ou legal, não é de hoje. Isto fica notável nessas narrativas, quando falam das práticas positivistas como se fossem fantasmas (e são), uma herança assombrada por práticas repetitivas e instrumentais a serem seguidas. Entrementes, no dizer de Celina e Gabriela, o lugar de chegada se faz partida quando alcança professores e escola.

[...] a metodologia de utilizar o estudo do documento do RN e o realinhamento dos PPP foi significativo”, pois atingiu um público considerável de professores, através dos elementos de pontuação do espaço escolar na construção do Plano de Ação e das ferramentas de elaboração sistemática do PPP. (Coord. Celina).

Acabamos adequando a realidade de cada espaço educacional e elaborando outras atividades para darmos conta do estudo do documento e da adequação dos PPPs. Os momentos nas escolas têm contribuído para conhecimento dos documentos e de reflexão da realidade e da necessidade. (Coord. Gabriela) (informações verbais).

Embora a coordenadora Celina tenha remexido no arquivo trazendo à memória a história de um passado traumático pelas práticas positivistas, ela e Gabriela rediscutem as diferentes artimanhas no processo de formação que permitem perguntar: Em que medida podemos determinar que uma formação serve ou não serve para nada? Realinhar o PPP (Projeto Político Pedagógico) aponta para a escola como espaço de produção que nos diz não só de rever o já dito, mas também do construto sobre algo, e isso faz a diferença para Celina e Gabriela. Quando elas falam da formação distante da escola, as suas narrativas apresentam ruinas, mas quando tal formação conta com a produção dos que fazem a escola, ainda que seja um realinhamento; a formação, de insuficiente, passa a ser significativa (autoral). Esse significado é associado ao estudo do documento e a produção de um outro documento: o PPP, ou seja, um novo arquivo. O estudo aponta uma certa apropriação, como autoria, discussão, trocas entre os que fazem a escola e, que só se torna produtivo, porque tal estudo está implicado com as demandas da escola. Dito isto, não nos furtamos a dizer que sinaliza para significar “a centralidade da escola como lócus privilegiado do fazer curricular – um lugar ‘sujo’ pelo imprevisível.” (MACEDO, 2016, p. 49).

Da escolha do que serve e do que não serve, o espaço escolar, na narrativa de formação das coordenadoras Celina e Gabriela, parece ser o mecanismo em operação para produzir novos sentidos à formação. Talvez alguns até façam a mesma pergunta lançada por Macedo (2017, p. 540), “mas a escola não tem que ensinar?”. Relançamos essa interpelação na tentativa de perturbar o que se tem concebido como função da escola, e talvez por isso, haja tanta dificuldade de “deslocar a equação que iguala currículo e normatividade.” (MACEDO, 2015, p. 904). As normas, a tentativa de fixação, a defesa de um documento que vai orientar, despertar ou mudar o currículo, a didática, o ensino e a escola pela implementação de algo pronto, pensado pelos guardiões do arquivo, não passa de ficção e por fim, enlutamento.

Na narrativa de Celina de quando realizava a formação o que ela percebia entre os professores, era que eles eram “sem interesse pelo conteúdo com a mente longe, que a meu ver eles precisam de muito tempo para realinhar com a prática pedagógica. Nossos professores não são leitores críticos interpretativos.” (informação verbal). O desejo que as professoras apresentam em deixar-se ir embora, na frase “com a mente longe”, diz de um modo de continuar sendo instigados pelo mesmo desejo. Ora, se a “morte” da experiência pedagógica como invenção os mantém longe, é porque eles desejam guardá-la dentro de si, guardar o outro que se foi “porque é essa ausência [como conhecimento] que nos permite estar com o outro.” (MACEDO, 2017, p. 541). De tal modo, é o luto que denuncia e desconstrói. A falta de interesse se instaura como a perda daquilo que para nós é tão caro quando se fala em ensino: a invenção produzida pela experiência pedagógica, não como pragmatismo, mas como produção relacional.

Diferentemente das formulações políticas que intentam construir uma unidade, um quê de poder sobre os sujeitos e sobre as escolas, a formação em si já nos diz de um exercício, diz que currículo é um campo de disputa discursiva permeado de visões e vivências. Não sem conflito, movimenta o que nos faz pensar essa guerra na qual “é também uma necessidade, um imperativo do qual bem ou mal, direta ou indiretamente, ninguém poderia subtrair-se. Doravante mais do que nunca.” (DERRIDA, 2002, p. 57). Um pensar que nos faz recorrer novamente a Macedo (2015, p. 903) quando pergunta: “o que tem no chão da escola que tanto atrai (no desejo de controle) como incomoda?” A ocorrência dessa guerra produzida por uma conversa complicada (PINAR, 2014), a saber pelo próprio currículo, perturba o “comum” defendido pela BNCC e desmantela a lógica de uma diferença congelada em um documento curricular do estado, chamado por alguns de Currículo Potiguar. Essa perturbação vem sendo todo o tempo produzida pelas demandas diferenciais da escola, as quais desautoriza a unidade e reitera a recusa que Macedo faz a uma base comum, por não acreditar “que se possa cumprir essa promessa por meio da redução do singular ao um da nação.” (MACEDO, 2015, p. 904).

Não é por acaso que as narrativas fazem relação do PPP com a sala de aula e apontam para os arquivos perdidos, para um mal de arquivo que ameaça o desejo de arquivo, um arquivo cuja estrutura espectral é feita na contramão de discursos de continuidade (DERRIDA, 2001). Não é à toa que Marta coloca a escola como ponto de partida da formação ao dizer que: “quando as formações passaram para o âmbito das discussões e reformulação dos PPPs das escolas ficou mais viável cada escola organizar sua formação, já que os PPPs são específicos de cada escola.” (Coord. Marta) (informação verbal).

A escola, na narrativa da coordenadora Marta, vai se configurando como desejo de retorno ao lugar arcaico do começo absoluto, na saudade de casa. Uma saudade constituída no apagamento e no esquecimento de seus traços, condição necessária para sua própria renovação (DERRIDA, 2001). Situar a escola na narrativa, ecoa como um certo desejo de conhecer o que ainda não foi inventado, de desmantelar a relação de controle – pela agressão do arquivo e pelo desejo de destruição –, ainda que seja através do que Celina diz ser possível fazer: “um recorte adaptado para o entendimento das leituras e slides, trabalhados na formação dos multiplicadores, sempre fazendo o professor pensar em sua prática cotidiana por meio de situações vivenciadas.” (Coord. Celina) (informação verbal).

Ao tempo que a narrativa de Celina aviva a produção curricular como produção/apropriação, como experiência docente ao trazer as vivências, diz da formação implicada em um luto. A recolocação das dificuldades suspende o apagamento das relações que produzem currículo, desestabilizando, pelo efeito da criação, a lógica da reprodução de um documento que torna possível o dizer de Celina: “temos esperança de que esses estudos possam contribuir com o trabalho de sala de aula. Os momentos nas escolas têm contribuído para conhecimento dos documentos e de reflexão da realidade e da necessidade.” (informação verbal). Nesses momentos a narrativa reativa a tessitura das relações, dizendo ser necessário uma forma de linguagem mais acessível, de modo que, ela traga “elementos interpretados do cotidiano escolar, buscando introduzir os professores nos relatos de experiência, [não vistos] como lógica de criticidade o material [da formação], apenas artifícios de comunicação didática” (Coord. Celina) (informação verbal).

As narrativas de Celina e Marta denunciam o que Derrida chama de consignação, pois é esta que “tende a coordenar um único corpus em um sistema ou em uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal.” (DERRIDA, 2001, p. 14, grifo do autor). Ao tempo que as narrativas das coordenadoras denunciam o arquivo da formação – ao tocarem na falta de conhecimento em relação ao documento e de artifícios de comunicação didática –, apontam para o documento como um arquivo da ordem do espectral – não é presente nem ausente, nem visível, nem invisível, é um traço que remete sempre a outro – que não reúne apenas signos, decodificações por arcontes autorizados para tal; antes, reúne também signos re-decodificados de uma ordem institucional, de um sistema que se diz unificado.

Na verdade, os encontros de formação não deixam de produzir re-decodificação e, portanto, outros arquivos, que julgamos nascer de outras leituras do institucional. Isto ao nosso ver, opera o imprevisível, impensado como necessidade, ao mesmo tempo em que sinaliza uma abertura para o futuro e responsabilidade ao que está por vir como espera, como promessa, como o conceito em formação e como mal de arquivo. O imprevisível nada mais é que o desejo da pulsão de morte (DERRIDA, 2010). É a inscrição de uma suspensão do enquadramento do DCRN como escopo da implementação dos currículos. Essa suspensão do documento como modelo a ser seguido, questiona a formação como moldura, como limite, como possibilidade de conter, de fato, a cena a que se propunha ilustrar. As narrativas dizem que já havia algo de fora que tornava o próprio sentido de dentro possível, reconhecível (BUTLER, 2018). Colocam em questão o que a narrativa de Celina assinala como reconhecível na formação recebida pelos multiplicadores, a saber, “o eixo central da formação é a transição do Ensino conteudista para o ensino por competências e habilidades.” E ainda “a priori os formadores fizeram uma introdução ao percurso histórico das políticas educacionais que antecederam a chegada da BNCC, sempre utilizando em suas falas e discursos a relevância e necessidade de trabalhar com a BNCC.” (informações verbais). Nesse sentido, “se a educação tem a ver com o outro singular, [...], talvez já não seja possível falar de educação quando o currículo pretende reinstalar um sujeito reconhecível que unifica as diferenças.” (MACEDO, 2017, p. 548).

As narrativas nos têm dito que o currículo é relacional e, portanto, da natureza do vivível. Apresentar um documento estadual sob o discurso de valorizar as diferenças, ao mesmo tempo em que se pauta numa prescrição geral de uma base, não garante o retorno a um lugar original de onde emana a ficção de um currículo por competências, de uma elaboração técnica de aprendizagem e qualidade, que é o ‘lugar’, como dissemos, que se espera chegar. Antes, expõe o fracasso de quaisquer pretensões de sistematização sujeitas a uma plataforma on-line, já anunciada na narrativa de Celina: a) textos complementares bem resumidos, tipo resumo citando de forma superficial alguns pensadores de currículo e políticas educacionais; b) a ênfase do que realmente interessa ser internalizado por todos sem fazer interpretar se realmente é o que a educação necessita; c) os cinco princípios norteadores do documento curricular do RN, que na verdade é um resumo das competências da BNCC; d) o material tipo planilha de planejamento, como encontrar os códigos de organização da parte curricular dizendo o que ensinar.

A conciliação currículo e normatividade fala da elaboração de uma política, que insiste em significar a formação a nível estadual, como implementação de um (in)com(UM) ao intentar significar currículo e aprendizagem pelo cálculo das competências e habilidades, por um MO(vi)MENTO sintetizado, por um limite à criação da diferença. Limita-se pelos componentes e organizadores curriculares, pelo exercício linear apresentado na narrativa de Marta, o qual “consiste em abrir, visualizar as informações, datas, prazos, participar dos fóruns de discussão, alimentar o sistema com os dados do monitoramento das formações que realizamos.” E ainda “anexar a folha de frequência dos participantes, uma foto do encontro e um relato de experiência escrito por um dos participantes.” (informações verbais).

Trata-se de um retorno da instrumentalização como existência de algo que significa a formação como instrumental e o currículo como coisa. É possível que isso explique a significação da formação como insuficiente. Currículo por competência parece funcionar como sutura para a insuficiência. Esta tem operado pelo que é explicitado na narrativa de Celina: “entre BNCC e Documento Curricular do RN houve um estudo voltado ao ensino por competências, onde estudamos as dez competências que a BNCC traz e a inserção de mais duas competências que o RN acrescentou”, a saber: “a sustentabilidade e a educação inclusiva”. Além disso, “os formadores trabalharam suas falas sempre fazendo refletir sobre novas concepções de educação integral para os estudantes de hoje” (Coord. Celina, informação verbal). Dito isto, julgamos, pois, que entre o comum (educação integral disposta na BNCC) e o incomum (currículo do RN), há a tentativa de “controlar os excessos e definir o que deve ser jogado para o lugar da invisibilidade. [...] admitindo que as experiências escolares, das muitas que lá ocorrem, podem ser legitimadas como educativas.” (MACEDO, 2017, p. 540).

Neste processo, reside o questionamento das estruturas e o desejo de produzir deslocamentos que derivam um mal de arquivo. Este consiste em “incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva.” (DERRIDA, 2001, p. 118). Talvez por isso preocupe as coordenadoras o fato de os professores que estão lá nas salas de aula não fazerem a leitura do documento, não o conhecerem. Ressoa como uma perturbação que parece inscrever a perda da possibilidade de deslocá-lo da sua “origem”, visto que as adequações do documento pelos coordenadores são concebidas como necessárias. Essa falta de leitura de alguns formadores de multiplicadores e dos professores que recebem a formação, através dos multiplicadores, não deixa de perturbar aqueles que se enxergam na obrigação de fazer o repasse da formação. Além disso, há o desejo de ser reconhecido como professor formador por um ato, uma prática, empreendida por, pelo menos, dois sujeitos os quais constituiriam uma ação recíproca (BUTLER, 2009, 2018) ou, como diz Macedo (2017), pelo domínio privado do conhecimento como conteúdo, tornando-o reconhecível como finalidade da educação (e do currículo). Todavia, pela sua própria vulnerabilidade, “não se pode não querer.” (MACEDO, 2017, p. 549, grifo do autor).

Dessa maneira, conhecer o documento parece funcionar não só como uma possibilidade de acalmar a insegurança e apagar a ideia de fracasso, mas também para sequestrar os sujeitos, dos enquadramentos que enovela a vida-morte dos envolvidos na formação, pelo próprio ato de enquadrar no sentido de demarcar, pelo ato de emoldurar no sentido de fixar, pelo ato de incriminar no sentido de atribuir a culpa. Seja qual for o sentido, a lógica do enquadramento molda o ser vivo em um ser reconhecível. É talvez por isso, não sem razão, Celina tentou pontuar que o tempo dedicado à formação foi corrido tanto para os formadores (coordenadores) como para a formação dos professores, de modo que acabavam utilizando “o tempo do planejamento semanal, que acontece depois do expediente, dificultando o rendimento das trocas de saberes e fazeres pedagógicos.” (informação verbal). O que pode parecer uma implementação não se sustenta, visto converter relações em algo objetivável, em que a proliferação de ideias, a partilha de mundos podem ser minadas por um currículo entendido por uma materialidade que orienta processos de ensino e aprendizagem.

Contextos e demandas locais – não somente quando se fala em Estado do Rio Grande do Norte, mas também quando se fala em vinte e nove escolas da rede estadual e seus professores, além das escolas municipais – desmantelam a lógica do enquadramento comum em qualquer lugar e “dentro da plataforma conviva [...] atualizando o PPP e construindo o plano de ação que tem a metodologia do PDE escola.” (Coord. Celina) (informação verbal). Sobretudo quando se defende alinhar DCRN e BNCC, conforme narra Celina em outro momento. E desmantela, porque os próprios deslocamentos operados pela autonomia dos professores e pelas diferenças culturais, produzem currículo. Isso porque “currículo é forjado numa multiplicidade espacial de trajetórias diferenciais, esse entrelaçamento acaba colocando por terra – literalmente! – qualquer possibilidade que reivindique a sistematização prévia [...]” (MEDEIROS; RANNIERY, 2018, p. 107). Tal sistematização nos faz colocar sob suspeita os arquivos disponibilizados para à formação, faz-nos pensar que é possível chafurdá-los, colocá-los sob tensão, ainda que guardados por aqueles que Derrida (2001) se refere como seus guardiões, magistrados superiores do poder político.

Pensamos que convocar professores para elaboração de PPP’s, ainda que não descartemos os enquadramentos dessa elaboração, pode ser potente para pensarmos o campo do reconhecível e do apreensível, até porque um age sobre o outro, desestabilizando as normas de inteligibilidade que organizam a experiência visual e uma certa ontologia do sujeito. A estranheza e a irredutibilidade dos professores em relação a leitura do documento, não deixa de marcar a desestabilização da norma. Pensamos que essa estranheza, esse não querer conhecer ou simplesmente não se importar em conhecer o documento, trata-se de uma assimilação e de um luto impossível, o que faz, ainda que sutilmente, questionar a institucionalização da lei. “[...] isto é, ao mesmo tempo, [que ocorre a institucionalização] da lei que aí se inscreve e do direito que a autoriza.” (DERRIDA, 2001, p. 14).

É a partir de uma postura ética que Butler (2009) diz ser possível produzir questionamentos sobre as molduras e os enquadramentos ao reconhecer que há algo do exterior que faz com que seu conteúdo seja reconhecível e direcionado: algo ultrapassa a moldura. Para ela, “seria um erro afirmar que estamos completamente limitados pelas normas de reconhecimento em curso quando apreendemos uma vida.” (BUTLER, 2009, p. 18). Algo escapa, algo perturba. “Na realidade, essa apreensão pode se tornar a base de uma crítica das normas de reconhecimento [...]” (BUTLER, 2009, p. 18). A crítica à norma de reconhecimento, da qual nos aclara Butler (2009) e sobre a qual Macedo (2017) diz que reconhecer a sua violência serve, não para a ela se contrapor de fora, mas para seguir perguntando sobre as formas de ação do poder regulatório; remete ao que Derrida (2001) nos ajuda a pensar como perda da ilusão de que tudo está “presente”, da pretensão de um único discurso. A multiplicidade de interpretações traz a perda da ideia de originalidade, a perda de algo de onde emana o conhecimento a ser repetido e a ser seguido. Macedo (2017) pergunta: “[...] de que conhecimento a teoria curricular pode falar se o re-conhecimento, como projeto, é tanto impossível quanto indesejável?”. Para a autora, interessa o conhecimento como ausência, o que não significa escola sem conteúdo, e sim, a experiência de estar com o outro (MACEDO, 2017). Nesta perspectiva, entendemos que a impressão derridiana (2001) associada às palavras BNCC e o DCRN suporta “o quê do impensado que assim se imprime não pesa somente como uma carga negativa. Envolve a história do conceito, articula o desejo ou o mal de arquivo, sua abertura para o futuro, sua dependência em relação ao que está por vir [...]” (DERRIDA, 2001 p. 44-45). E se consideramos o mal de arquivo na ambivalência do dizer/ocultar, do conhecer/desconhecer, do ler e do resistir à leitura do documento; há aí um jogo desconstrucionista produzido por rastros que movimentam o documento supondo novas formas de arquivamentos. À medida que a narrativa denuncia a existência do documento ao ditar o que ensinar, o corpo de ensino produz significantes que ligam a prática de ensino a um sistema de representação. Neste sentido, podemos dizer que o ensino se inscreve como indecidível, ainda que o trabalho que antecedeu o documento intente funcionar como um mecanismo de inscrição da BNCC como substância fundante em si.

Se o significado está em relação com o significante, o professor age significando o conteúdo que é chamado a representar. Isto significa dizer que a formação não termina nos encontros presenciais nem na consulta do documento ou no lançamento de dados na plataforma. E, menos ainda, numa política educacional ou implementação de um documento. Isto porque, uma outra história pode ser contada, um outro arquivo pode ser produzido pelas múltiplas possibilidades de uma outra ordem institucional, até porque “o arquivo é um penhor e, como todo penhor, um penhor do futuro.” (DERRIDA, 2001, p. 31). E, se o arquivo não perde a relação com o que estar por vir, “as suas condições de arquivamento implicam todas as tensões contradições e aporias [...] especialmente aquelas que esboçam um movimento de promessa ou de futuro não menos que de registro do passado.” (DERRIDA, 2001, p 44). Seja qual for o princípio, a orientação, a obrigatoriedade relacionada à formação, ela jamais estará estéril da tarefa tradutora como promessa. E isso não significa projetar o futuro, mas produzir o agora pela invenção, pelo construto sobre algo, visto que a impressão é a tradução que se faz de outras impressões registradas no corpo de quem constrói a impressão (o arquivo), e que são escrituradas em si por toda a vida. Significa dizer, que ao mexer no arquivo, o professor cria as suas próprias condições de invenção.

4 SEM FINAIS: ANARQUIVAR AS RUÍNAS, APOSTAR NO IMPREVISÍVEL

As narrativas dos coordenadores sobre o seu processo de formação e da formação por eles realizada, expõem as ruínas do processo de formação que os fazem significá-la como insuficiente e ao mesmo tempo como possível de autoria. Quando falamos em ruínas estamos tratando de reescritas, de rever o já dito, mas também da construção sobre algo, escolhas que se faz no decorrer da vida. Mostrar as ruínas é se dar conta de que acessar o arquivo – BNCC, DCRN – é uma tarefa tradutora em que não há uma total submissão. E quando dizemos isso não estamos negando que a própria formação enquadra os sujeitos em uma norma, até porque todo arquivo se constitui no poder de guardar e de reservar, assim como de instituir, tornar lei e demandar que seja respeitada. O que queremos dizer é que de dentro das normas, podemos nos fazer a pergunta lançada por Macedo (2016): “[...] como nós, que temos o espaço da escola em nossos corações, também temos produzido discursos que ajudam a hegemonizar o vínculo (inexorável) entre base nacional curricular comum e uma educação de qualidade?” (MACEDO, 2016, p. 49).

Para embaralharmos essa ideia de um documento orientador como arquivo, que vai nos dizer como fazer uma educação de qualidade, retomamos nossa discussão inicial para dizer que não é sem importância a fala do presidente da Undime do RN, chamando à atenção para a implementação da BNCC e a formação dos professores através de um curso, no qual o Documento Curricular do RN passou a ser distribuído, ao tempo que a secretária adjunta de educação do estado, convocou a todos a participarem e contribuírem para elaboração dos projetos pedagógicos. A formação tem funcionado como mecanismo para a abertura dos arquivos e, para o risco de suas ruinas. A BNCC e o DCRN têm chegado aos coordenadores e professores como uma encomenda enviada pelos arcontes autorizados para tal.

O que temos acompanhado é que esse envio através da formação, uma espécie de correio, faz um movimento de deslocamento da BNCC ao DCRN e da formação de multiplicadores à formação de professores. Entre um deslocamento e outro os arquivos são abertos, remetendo a um “lugar do grande negócio” e à semelhança do correio, que faz o seu negócio, os riscos deste lugar estão disponíveis, haja vista que o correio faz o seu negócio “[salvo evidentemente, se você quer ser pago sem recibo, e não pagar impostos, e correr o risco do dinheiro falso, sem banco, sem correio, sem selo, sem garantia, escondido, um outro negócio]” (DERRIDA, 2007, p. 81, grifo do autor). Os arquivos dos correios são secretos, e de ordem pública, tanto podem ser remetidos para uma pessoa (privado), como para uma instituição, a exemplo da escola (pública) ou para inúmeros lugares quando se fala de disponibilização digital. Mas quem abrirá? Quem está autorizado a abrir? Deriva daí a perturbação daqueles que estão engendrados na trama arquivística.

Essa trama aparece borrando as fronteiras entre quem disponibiliza e quem acessa, entre a BNCC – geral/comum – e o DCRN – local/incomum –, ente as diretorias e as secretarias, entre as secretarias e as escolas, haja vista que não há deslocamento de um sem o outro. De tal modo, não é produtivo ignorar que a formação vem se constituindo como a fronteira de passagem para o lugar do grande negócio. Na fronteira, secretários, diretores, gestores, articuladores, coordenadores e professores têm se confrontado em um jogo, cuja aposta é solucionar os problemas da educação, o qual tem mobilizado uma luta para significar a educação básica como de qualidade pela defesa de mais ensino e aprendizagem. Essa luta tem borrado o lugar comum dos negócios. Ainda que por consignação às regras do negócio, a construção dos projetos políticos pedagógicos tem sublinhado a escola como local de negociações, cujos lances dispensam proprietários, como um campo de disputas dependente de uma rede de relações. É nela e dela que as questões de ensino e aprendizagem são negociadas. E, quando falamos de escola, não significa dizer que ela está limitada ao enquadramento que a delimita a um espaço preparado para tal. Esse lugar, que tanto é objeto de desejo, quanto de incômodo (MACEDO, 2015), borra fronteiras ao produzir currículos que não se prendem a um lugar.

A BNCC e o DCRN não têm forças em si mesmas, dependem de relações que as tornem possíveis, precisam de desarquivamentos. Embora a formação de professores seja uma tentativa de suturar a cisão produção-implementação, ao dizer o que ensinar e como ensinar para se aprender e, por conseguinte, exorcizar o fantasma da má qualidade da educação; ela solapa a lógica de que a base autoriza a mudança ao convocar professores à formação. As leituras estão sujeitas às contingências tradutórias, tanto quanto a capacidade de rechaçar significados ali arquivados e a produção de novos significados.

Dito isto, não queremos dispensar aqui a figura do anarquivador, ainda que não obliteremos a inter-relacionalidade da qual ele é dependente e, talvez, ele seja aquele que irrompa os bloqueios intrínsecos à interpelação feita por Macedo (2016) e citada no início dessa seção. Talvez possamos imaginá-lo como um trapeiro, à semelhança daquele descrito por Baudelaire, ao qual Walter Benjamin faz referência. Ele “separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis.” (BENJAMIN, 1989, p. 78). Ainda que sob a batuta da indústria, o trapeiro junta entulhos para renovar o mundo pela aposta na imprevisibilidade do seu ajuntamento. Há aí um gesto do colecionador (tradutor) em sua relação com as ruinas. O seu embaralhar, chafurdar, revirar entulhos, geralmente desprezado devido a subversão ao mundo das coisas como ordem; torna possível a aparição do outro como alteridade. Não esqueçamos que são as ficções normativas que inscrevem a ordem; revira-la é anarquivá-la. É no gesto de anarquivar que se faz possível anarquizar e isso pode ser a possibilidade de recolocar os fragmentos do nosso mundo como reinvenção. E nisso, reiteramos, não há finais!

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência: Avenida Lauro Maia, s/n, Centro, Patu, Rio Grande do Norte, Brasil; claudiapatu@hotmail.com


1 Esta pesquisa tem o apoio financeiro da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.

2 Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Mestre e Especialista em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

3 Mestre em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.