https://doi.org/10.18593/r.v45i0.23790

Biografia da educadora Josete Sales: reflexos da formação de professoras no Ceará

Biography of educator Josete Sales: reflections of teacher training in Ceará

Biografía de la educadora Josete Sales: reflexiones sobre la formación docente en Ceará

Lia Machado Fiuza Fialho1

Universidade Estadual do Ceará, Programa de Pós-graduação em Educação, Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas, Professora permanente.

https://orcid.org/0000-0003-0393-9892

Francisca Genifer Andrade de Sousa2

Universidade Estadual do Ceará, Grupo de pesquisa Práticas Educativas Memórias e Oralidades, Pesquisadora.

http://orcid.org/0000-0001-8280-3250

Lorena Brenda Santos Nascimento3

Universidade Federal do Ceará, mestranda em Sociologia.

https://orcid.org/0000-0003-4293-7494

Resumo: O estudo trata da educação formal e formação de professoras no Ceará a partir da biografia de uma educadora. Objetiva compreender a formação educativa e as contribuições tecidas pela professora Josete de Oliveira Castelo Branco Sales na constituição do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará. Para alcançar esse escopo, desenvolveu-se um estudo do tipo biográfico por meio da metodologia da História Oral, que viabilizou a realização de entrevistas livres para a coleta de narrativas orais – gravadas, transcritas, textualizadas e validadas. Constatou-se que Josete Sales obteve uma formação educacional diferenciada, possibilitada por ter condições financeiras que lhe proporcionaram prosseguimento nos estudos e pelo apoio familiar – da mãe, desde o ensino das primeiras letras, e do marido, que assumiu o revezamento no cuidado da casa e dos filhos –, rompendo padrões patriarcais e machistas. Sua educação formal perpassou por grupo escolar, telensino, escola normal e universidade; a educadora destacou-se como docente da referida Universidade cearense, em que coordenou a elaboração do projeto político-pedagógico do Curso de Pedagogia e foi idealizadora do Centro de Educação, fortalecendo a formação de professores cearenses. Sua biografia permitiu ampliar a compreensão acerca da História da Educação Feminina no Ceará e a constituição do Centro de Educação na Universidade Estadual do Ceará.

Palavras-chave: Josete Sales. Universidade Estadual do Ceará. Biografia. Educação de mulheres. Centro de Educação.

Abstract: The study deals with formal education and teacher training in Ceará from the biography of an educator. It aims to understand the educational background and the contributions made by professor Josete de Oliveira Castelo Branco Sales in the constitution of the Education Center of the State University of Ceará. To achieve this scope, a biographical study was developed using the Oral History methodology, which made it possible to conduct free interviews for the collection of oral narratives – recorded, transcribed, textualized and validated. It was found that Josete Sales obtained a differentiated educational formation, made possible by having financial conditions that allowed her to continue her studies and by family support – from her mother, since teaching the first letters, and from her husband, who took over the care of the house and children –, breaking patriarchal and sexist patterns. His formal education went through a school group, telesino, normal school and university; the educator stood out as a teacher at the aforementioned university in Ceará, where she coordinated the preparation of the political-pedagogical project for the Pedagogy course and was the creator of the Education Center, strengthening the training of teachers from Ceará. His biography allowed to broaden the understanding about the History of Female Education in Ceará and the constitution of the Education Center at the State University of Ceará.

Keywords: Josete Sales. Universidade Estadual do Ceará. Biography. Education of women. Education Center.

Resumen: El estudio aborda la educación formal y la formación docente en Ceará a partir de la biografía de una educadora. Su objetivo es comprender los antecedentes educativos y las contribuciones realizadas por la profesora Josete de Oliveira Castelo Branco Sales en la constitución del Centro de Educación de la Universidade Estadual do Ceará. Para lograr este alcance, se desarrolló un estudio biográfico utilizando la metodología de Historia Oral, que permitió realizar entrevistas gratuitas para la recopilación de narraciones orales: grabadas, transcritas, textualizadas y validadas. Se descubrió que Josete Sales obtuvo una formación educativa diferenciada, posible gracias a condiciones financieras que le permitieron continuar sus estudios y el apoyo familiar, de su madre, desde que le enseñó las primeras cartas, y de su esposo, quien se hizo cargo del cuidado de la casa y de los niños, rompiendo patrones patriarcales y sexistas. Su educación formal fue a través de un grupo escolar, telesino, escuela normal y universidad. La educadora destacó como maestra en la mencionada universidad de Ceará, donde coordinó la preparación del proyecto político-pedagógico para el curso de Pedagogía y fue la creadora del Centro de Educación, fortaleciendo la capacitación de los docentes de Ceará. Su biografía permitió ampliar la comprensión sobre la Historia de la Educación Femenina en Ceará y la constitución del Centro de Educación de la Universidade Estadual do Ceará.

Palabras clave: Josete Sales. Universidade Estadual do Ceará. Biografía. Educación de mujeres. Centro de Educación.

Recebido em 8 de fevereiro de 2020

Aceito em 12 de fevereiro de 2020

Publicado em 27 de julho de 2020

1 INTRODUÇÃO

A pesquisa toma como objeto de pesquisa as narrativas de Josete de Oliveira Castelo Branco Sales, doravante apenas Josete Sales, docente vinculada à Universidade Estadual do Ceará (UECE) desde 1986, ano em que foi aprovada em concurso para professor efetivo dessa Instituição. O estudo da trajetória escolar dessa educadora permite compreender como se dava a educação feminina para as moças de elite em Fortaleza, bem como a análise de sua atuação profissional possibilita perceber como a UECE se consolida como instituição de referência na formação de professores da educação básica no Estado do Ceará, especialmente após a criação do Centro de Educação (CED).

Josete Sales foi alfabetizada em casa pela mãe, nos anos de 1967 e 1968, em período no qual a educação infantil era praticamente inexistente na rede pública (GONDRA; SCHUELER, 2008). Entrou na escola para cursar o primeiro ano escolar, em 1969, nos recém-criados grupos escolares, que reuniam escolas primárias de uma determinada região em um único prédio (BENCOSTTA, 2001). Vivenciou a implantação do telensino no Ceará em meados da década de 1970, com educação fomentada por intermédio do sistema de televisão com suporte de um monitor (MOURA, 2009). Ela também cursou a Escola Normal, instituição relativamente elitista no Ceará do início de 1980, destinada a educar as moças abastadas financeiramente, com o objetivo de proporcionar conhecimentos necessários para ser uma boa esposa, mãe, dona de casa e atuar como professora de crianças – profissão bem vista por ser considerada uma espécie de extensão das atividades do lar (ARAÚJO, 2015).

Josete Sales vivenciou experiências precárias como professora de crianças e ingressou profissionalmente no campo acadêmico em 1986, período marcado essencialmente pelo enfraquecimento da Ditadura Militar no País, momento em que se alargava o ideal de redemocratização, especialmente no campo educacional, concretizado a partir da Constituição (BRASIL, 1988) e, mais especificamente, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei n. 9.394 (BRASIL, 1996). Mesmo vivenciando uma escolarização alienante e doutrinária, que silenciava movimentos estudantis e cerceava a criticidade e o empreendedorismo, Josete Sales tornou-se uma educadora ativa e engajada na melhoria da formação de professores e da oferta de educação superior no Ceará, protagonista na fundação do CED.

A vida de Josete Sales – mulher, professora, mãe e esposa – traz à tona vivências estudantis que perpassam pela aquisição das primeiras letras em casa, pelo estudo em grupo escolar, pelo telensino, pela formação pedagógica em Escola Normal e pelo ensino superior em universidade, assim como por experiências profissionais na docência na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino superior, exercendo, neste último, também as funções de chefe de departamento, coordenadora de curso, chefe de gabinete e diretora de centro acadêmico. Essa trajetória educacional e profissional lança lume a aspectos importantes da História da Educação do Ceará, pois permite refletir sobre as condições da educação feminina no final do século XX, o que é relevante, e sobre a consolidação do CED da UECE, instituição de referência na formação de professores cearenses.

Emergiu, contudo, uma problemática norteadora para a pesquisa em tela: “Qual formação educacional foi fomentada à educadora Josete de Oliveira Castelo Branco Sales para que pudesse se tornar professora universitária, idealizadora e protagonista na constituição do CED da UECE?”. O estudo objetivou, em congruência ao problema, compreender a formação educativa e as contribuições tecidas pela professora Josete Sales na constituição do CED da UECE.

Importa destacar que, ao pesquisar a possibilidade de haver algum estudo previamente realizado sobre Josete Sales, nada foi encontrado. Na Scientific Electronic Library Online (SciELO) e no Portal de Periódicos da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com o descritor “Josete Sales”, não foi encontrada nenhuma produção sobre a educadora, o que também ocorreu no Banco de Teses e Dissertações (BDTD) da Capes. Importa destacar que, neste último, foi possível localizar duas produções relacionadas de autoria de Josete Sales: a sua dissertação de mestrado, intitulada A proposta de gestão colegiada no cotidiano da escola pública (1993), e a sua tese de doutorado, denominada Formação docente no CED/UECE: os caminhos percorridos na construção do projeto político-pedagógico (2006), desenvolvidas pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará (UFC). Situação semelhante foi identificada ao pesquisar sobre a história do Curso de Pedagogia e do CED da UECE: nenhum trabalho prévio de caráter histórico foi publicado na BDTD, na SciELO ou no Portal de Periódicos da Capes.

A ausência de estudos sobre Josete Sales e acerca de um dos principais centros de referência de formação de professores pedagogos do Estado do Ceará ensejou relevância e originalidade à pesquisa. O empreendimento biográfico, na constituição de uma narrativa histórica acerca da vida dessa educadora, partiu de sua oralidade para a compreensão das ações educativas referentes ao seu trabalho na UECE no imbricamento indissociável com o contexto sócio-histórico, já que o período de sua atuação é marcado por progressos e retrocessos na área da educação, bem como por desafios que permearam a configuração do ensino no Ceará. Por conseguinte, a pesquisa possui valor social ao lançar luz à trajetória de pessoas com parca visibilidade social, possibilitando problematizar o cenário educacional (FIALHO; LIMA; QUEIROZ, 2019) na perspectiva micro-histórica (LORIGA, 2011), que permite, a partir das narrativas da educadora, problematizar a História da Educação, bem como o modelo pedagógico adotado pelo Estado do Ceará e vivenciado pelos cearenses nas últimas décadas do século XX (FIALHO; FREIRE, 2018).

Situadas na história do presente, as experiências vivenciadas pela biografada em um determinado contexto refletem a conjuntura social, cultural, econômica e política do meio em que ela se inseriu; do mesmo modo, tais personagens colaboram com a constituição da história social (BURKE, 1992). Por isso, todo sujeito, seja ele “anônimo” ou não, é importante para a narrativa da historiografia (THOMPSON, 2002). Nessa perspectiva, a relevância de abordar a vida de Josete Sales, na interface com a constituição do CED, efetiva-se pela possibilidade de discussão acerca das suas contribuições educativas empreendidas na UECE na inter-relação indissociável com o contexto histórico cearense, no qual esteve inserida.

2 PERCURSO METODOLÓGICO

Partindo da compreensão de que o intuito é a escrita da história de vida da educadora Josete Sales, ou seja, uma biografia na área da História da Educação, compete esclarecer o sentido atribuído ao construto biografia que se utilizou neste estudo. A escrita biográfica, durante a primeira metade do século XX, foi descreditada, sendo fortemente criticada por se voltar para a preservação da memória dos “grandes homens” – heróis, reis e eclesiásticos – com caráter heroico (RODRIGUES, 2015). Somente a partir da terceira geração dos Annales foi que a biografia passou a ser percebida com um novo olhar, tornando-se valioso instrumento de investigação do homem e das suas relações, situando o indivíduo no tempo e no espaço, ao lançar luz às particularidades que permeiam a vida individual indissociada da sua relação com a coletividade e com seu contexto sócio-histórico e cultural (DOSSE, 2009).

Le Goff (2003), ao historiar a vida de São Luís e de São Francisco, por exemplo, foi um dos pioneiros a fazer uso da nova modalidade de biografia, que passou a assumir caráter hermenêutico, tal como se buscou efetivar na biografia de Josete Sales. Nessa perspectiva, a “Nova História” alargou o panorama de fontes de pesquisa e propiciou estudos na área das Ciências Humanas com foco no homem e nas suas relações (BURKE, 1992), viabilizando o estudo do tempo presente por meio da Micro-história, que viabiliza conhecer o coletivo desde o estudo do singular ao compreender essa relação como indissociável (LORIGA, 2011).

Conhecer a vida experienciada por professoras, mediante estudos biográficos, possibilita apreciar o contexto docente das educadoras em suas especificidades, trazendo à tona as vivências educativas de sua época embebidas de subjetividades que constituem o cotidiano citadino e fomentam a história da educação (FIALHO; CARVALHO, 2017). A história dos empreendimentos educativos singulares, devidamente contextualizados, permite questionar outros aspectos, como o cultural, o econômico e o político, por exemplo, tornando a biografia interdisciplinar, de modo que “[...] a perspectiva de trabalhar com biografias e/ou histórias de vida fornece subsídios para se entender o indivíduo em várias dimensões, bem como vislumbramos, também, os aspectos constituintes da sociedade de outrora [...]” (RODRIGUES, 2015, p. 61).

Assim, a biografia de Josete Sales, desenvolvida por intermédio da fonte oral entrecruzada com outros aportes documentais, viabiliza analisar a historiografia dos eventos que aconteceram no ínterim das suas experiências, seja como estudante seja como docente, culminando em um estudo que vem preservar, além da memória individual, a memória social, em especial no que concerne ao contexto de formação de professores pedagogos (MACHADO, 2006).

Acredita-se na “[...] fertilidade dessa opção metodológica, que possibilita outros olhares sobre um conhecimento de uma época, de uma sociedade, a partir de um sujeito e sua história de vida” (NUNES; CAVALCANTE; VILAR, 2014, p. 13); logo, elegeu-se a História Oral Biográfica como a metodologia apropriada, pois importou tomar conhecimento acerca das experiências educativas de Josete Sales para desvelar a história do Curso de Pedagogia e da constituição do CED da UECE. Para Alberti (2005, p. 155), a História Oral é valiosa para estudar a história contemporânea, mais precisamente a história a partir do século XX, e “[...] consiste na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente.”

Compreendeu-se, então, que a memória é o objeto da História Oral, visto que esta se serve daquela (THOMPSON, 2002); em congruência, a memória de Josete Sales é valiosa para a constituição da narrativa histórica, podendo ser considerada o celeiro do tempo que auxilia na compreensão do passado a partir do presente, pois é “[...] onde cresce a história, que, por sua vez, dela se alimenta, procura salvar o passado para o presente e o futuro.” (LE GOFF, 2003, p. 17). Uma vez que a memória é seletiva e passa por filtros culturais (NUNES, 2008), o trabalho com esta envolve lembranças, esquecimentos, significações e ressignificações (NORA, 1993), que foram consideradas nesta pesquisa. Por isso, não se objetivou a apropriação de uma história verdadeira, única ou inquestionável, mas a ampliação do entendimento da memória coletiva, desde o individual, com a biografia de Josete Sales.

Biografar por meio da História Oral implicou uma narrativa de vida de um sujeito singular, Josete Sales, que selecionou fatos e acontecimentos julgados importantes. Estes, oralizados sob o olhar e a interpretação da biografada, possibilitaram uma (re)interpretação e análise a partir das lentes das pesquisadoras, para (re)constituir a sua história em narrativa científica (ALBERTI, 2005). Por conseguinte, a biografia, como gênero da História Oral, ensejou visibilidade a Josete Sales, personalidade até então pouco explorada, tornando apreciável a sua trajetória, experiências e saberes.

Como instrumento de coleta de dados, adotou-se a entrevista livre em História Oral (MEIHY; HOLANDA, 2007), dada a imprescindibilidade de valorizar as reverberações de Josete Sales acerca de sua vida pessoal nos aspectos familiar, educativo e profissional. As narrativas orais foram registradas mediante gravação eletrônica, transcritas e validadas pela biografada (FLICK, 2009), tornando-se documento fundamental para a análise. A narrativa biográfica de Josete Sales perpassou por sua história desde o nascimento, transcorrendo sobre as relações familiares e os percursos de formação (educação básica e superior), mas o foco foi a sua atuação profissional na UECE a partir de 1986, acentuando a atuação profissional e as contribuições na área educativa nessa instituição.

Interessa esclarecer que as entrevistas com Josete Sales foram realizadas depois da aprovação da pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob parecer favorável de número 2.585.705/2018. Mediante tal assentimento, a biografada foi contatada pessoalmente, na sala da direção do CED/UECE, momento em que houve a leitura do termo de consentimento livre e esclarecido, que informava sobre o objetivo da pesquisa, a ausência de benefícios, os riscos, a não preservação da identidade, a forma de participação, a possibilidade de desistência a qualquer momento, etc. Somente após sua concordância em participar da pesquisa, realizou-se o agendamento para a realização das entrevistas, ocorridas no mesmo local do contato inicial, no mês de setembro de 2018, com duração média total de quatro horas. Para a validação das transcrições, utilizou-se a técnica geradora da estrutura do discurso (FLICK, 2009), que permitiu a Josete Sales a leitura das transcrições literais para a realização de acréscimos, retiradas e demais ajustes no texto, visando qualificar a interpretação leitora das informações concedidas.

3 PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DE ESCOLARIZAÇÃO

Josete Sales, filha primogênita de Suzete Barbosa de Oliveira e de José Gomes de Oliveira, nasceu em 27 de fevereiro de 1961 na Cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará. Nos anos posteriores ao seu nascimento, vieram as irmãs: Rosalba de Oliveira, em 1962, Lúcia de Oliveira, em 1964 e Isabel de Oliveira, em 1982.

Josete Sales iniciou os estudos na educação formal aos oito anos de idade, já alfabetizada pela mãe que, embora tenha estudado somente até a 4ª série do ensino fundamental, então ensino primário, fez questão de se responsabilizar pelos primeiros ensinamentos de leitura e de escrita das filhas. O contato com as primeiras letras em casa, realizado por intermédio da mãe ou de um preceptor contratado pelos pais, era comum nessa época em decorrência das dificuldades de inserção nos espaços institucionalizados de ensino, que, além de não contemplar a todos, ofertava educação com baixa qualidade e longe das residências dos estudantes (GONDRA; SCHUELER, 2008).

Somente no ano de 1969, Josete Sales começou a frequentar a educação formal, no grupo escolar Professor Joaquim Nogueira, situado em Fortaleza, capital do Ceará. Importa esclarecer que a disposição da instrução pública por meio dos grupos escolares teve início com a Proclamação da República, em 1889, com o objetivo de adequar o sistema educacional brasileiro aos moldes das escolas dos países mais desenvolvidos, a exemplo de Portugal, que já eram graduadas. Dessa maneira, “[...] a organização dos grupos escolares estabelecia a reunião de várias escolas primárias de uma determinada área em um único prédio” (BENCOSTTA, 2001, p. 106), o que viabilizou o agrupamento de estudantes com idades e níveis de aprendizagem semelhantes em uma mesma turma.

Josete Sales não deu continuidade a sua escolarização no grupo escolar Professor Joaquim Nogueira, pois, quando concluiu o 4º ano do ensino primário, passou a frequentar a Escola Júlia Giffoni. Nesse período, essa instituição foi uma das primeiras selecionadas pelo governo para integrar as turmas de telensino no Ceará, investimento considerado, à época, de ponta na área educativa do Estado, consistindo em uma “[...] modalidade de ensino fundamental regular via televisão.” (FARIAS, 2000, p. 42).

A Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa foi pioneira no Brasil a investir na organização da Televisão Educativa (TVE) em âmbito nacional (CAMPOS, 1983). De acordo com a Lei n. 5.198 (BRASIL, 1967), a TVE foi responsabilizada por adquirir, produzir e distribuir ferramentas audiovisuais com vistas a difundir a educação via televisão. O sistema de TVE teve início em São Paulo, em 1967, e, a partir de então, foi expandido para todo o País. No Ceará, foi a TV Ceará, popularmente conhecida por TVC, inaugurada em 1974, a emissora de televisão responsável por transmitir as aulas para todas as escolas devidamente equipadas para integrar o sistema de telensino (MOURA, 2009). A sede da emissora de caráter educativo ficava localizada em Fortaleza e operava no canal número 5, associada à TV Cultura e à TV Brasil.

No caso do Ceará, o telensino foi apontado como solução do problema da escassez de professores prioritariamente nas zonas rurais e cidades do interior. Assim, conforme Farias (2000, p. 46), as aulas via televisão, que uniam aspectos da educação a distância e da educação presencial, foram a alternativa adotada para “[...] atender às solicitações de ensino no 1º grau maior (5ª a 8ª séries) onde a implementação do ensino convencional era dificultada pela carência de professores habilitados.” As aulas no modelo do telensino eram transmitidas nas salas de aula, e os alunos assistiam às aulas com o suporte de um monitor presencial e do livro didático. Para Farias, Nunes e Cavalcante (2001), o telensino culminou na oferta de uma educação sem qualidade, já que não houve o investimento público necessário em equipamentos, instalação de torres, distribuição de material didático e treinamento de profissionais.

Inicialmente, as aulas de telensino foram implantadas nas escolas das Cidades de Cascavel, Paracuru e Fortaleza e, na sequência, estenderam-se para as demais regiões do interior do Ceará (OLIVEIRA, 2014). Josete Sales, como já mencionado, teve a experiência de estudar pelo sistema de telensino na Escola Júlia Giffoni, onde começou estudar a partir da 5ª série; sobre essa vivência, ela rememorou:

Nós tínhamos uma professora que era polivalente, então ela era apenas a professora mediadora, a orientadora de aprendizagem – era esse o termo que as professoras da época tinham. E as aulas mesmo, dos professores especialistas em cada área, eram gravadas e televisionadas. Então, nós estávamos em uma sala de aula sempre assistindo à aula através de uma televisão, que eram aulas gravadas. Nós tínhamos livros, manuais de apoio e um orientador de aprendizagem, que, no caso, também era polivalente, para ajudar na resolução das tarefas, tirar dúvidas, mas ele não era professor de nenhuma área específica. (Josete Sales, informação verbal).

O professor polivalente mencionado era o monitor presencial, aquele que acompanhava as aulas com os alunos e deveria possuir conhecimento em todas as áreas para sanar as dúvidas dos alunos; como era difícil um monitor possuir conhecimentos específicos das diversas disciplinas, tal modelo de ensino era deficitário e não prosperou (FARIAS; NUNES; CAVALCANTE, 2001).

Josete Sales concluiu o ensino fundamental com o telensino e seguiu para o 2º grau, hoje denominado ensino médio. Sobre esse momento de transição educativa, Josete Sales diz ter sido marcado por conflitos, uma vez que o seu interesse era estudar Edificações no Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet), hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), mas a sua mãe se posicionava contra, por acreditar que a formação técnica almejada não era uma carreira adequada para o público feminino. Além disso, dona Suzete Barbosa pensava que a filha fracassaria profissionalmente se seguisse aquele rumo, pois não conseguiria entrar no mercado de trabalho por ser mulher, por isso a recomendação era que a filha estudasse para ser professora. Josete Sales relembrou as palavras da mãe: “E você acha que vão empregar uma mulher numa área de construção? Não vão empregar! [...] E eu não quero filha minha balconista! Entre ser balconista ou ficar desempregada, você vai ser professora.” (informação verbal).

A carreira do magistério era a mais comum para as moças fortalezenses e, nesse caso, o ingresso na Escola Normal se tornava o caminho a ser seguido para aquelas que queriam exercer uma profissão fora do ambiente doméstico. Posto que a formação feminina dessa época ainda estava relacionada à noção de educar a moça para o lar e o casamento, de forma que se acreditava que, concluídos os estudos na Escola Normal, ela estaria pronta para casar bem, sendo escassas as “[...] oportunidades para a mulher que não queria se dedicar ao trabalho doméstico e buscava uma profissão e inserção no mercado de trabalho.” (ARAÚJO, 2015, p. 312). Inclusive,

[...] para muitos homens, oriundos de famílias patriarcais, esta situação da profissão de professora ser respeitável e muito favorável para a mulher aliada à preparação para se trabalhar com crianças [...] tornavam-se fatores importantes e que contribuíam para um prolongamento dos bons costumes e comportamento que a mulher deveria ter diante da sociedade. E, por muitas vezes, justificando até terminar o curso e estar pronta para se casar, ou seja, cuidar da família, do marido e do lar. (ARAÚJO, 2015, p. 334-335).

Em consenso com Nagle (1985), somente as moças mais abastadas, com condições financeiras mais estabilizadas, conseguiam ser escolarizadas pelas Escolas Normais, pois as oriundas de famílias mais empobrecidas não podiam se dedicar aos estudos, já que, desde cedo, tinham que desempenhar algum ofício para auxiliar no sustento familiar, exercendo atividades prioritariamente no comércio e na agricultura. À vista disso, percebe-se que a trajetória educativa de Josete Sales não era regra, já que ela teve a oportunidade de concluir a Escola Normal, situação impossível para muitas moças de seu tempo.

4 CURSO NORMAL E ENSINO SUPERIOR

A Escola Normal, instituição de prestígio para a formação feminina no Ceará, “[...] era procurada por um número de candidatas que excedia os limites da matrícula ofertada” (NOGUEIRA, 2011, p. 30), e as vagas não atendiam sequer à quantidade de interessadas aprovadas nos testes de admissão. Por isso, estudar o Curso Normal no Instituto de Educação do Ceará era motivo de privilégio e distinção social (ARAÚJO, 2015). No entanto, no início, Josete Sales não demonstrou satisfação por estudar ali, já que não tinha interesse em ser professora, mas, aos poucos, foi se adaptando e gostando daquele ambiente. Ela contou que o relacionamento que manteve com algumas professoras foi crucial nesse processo:

Lá no Normal, eu encontrei professoras cheias de entusiasmo, competência. Entre elas, a Regina Elizabete Jaborandi, que foi nossa professora aqui na UECE de Didática; Helena Silva, que também foi professora daqui, e muitas outras. De repente, eu me vi gostando do curso, gostando da profissão, do conteúdo, de tudo. Aquela tristeza passou [...] (informação verbal).

Josete Sales nutriu admiração especial por algumas de suas professoras, o que culminou por influenciar a sua decisão de seguir a carreira docente, já que a admiração pelas mestras suscitou entusiasmo pela profissão, de tal modo que decidiu cursar o ensino superior. Se em sua época nem todas as mulheres tinham acesso às primeiras letras e ao ensino secundário, era praticamente irrelevante o quantitativo daquelas que continuavam a estudar e chegavam ao ensino superior no Ceará. De acordo com Araújo (2015, p. 284), “[...] ter conhecimento, saber intelectual a partir de uma formação superior era uma situação vantajosa de muita importância” e que, acima de tudo, era privilégio de poucos, e o público feminino, salvo alguns casos, ficava à margem desse nível de instrução.

A conjuntura política brasileira do momento em que Josete Sales estudou o ensino secundário foi marcada pela repressão do regime autoritário da Ditadura Militar (1964-1985). A partir do Golpe de 1964, a democracia brasileira foi entorpecida, ficando em seu lugar um governo que fez uso da coerção, da força e da repressão para se sustentar no poder, de forma que “[...] a tutela militar acompanhou a ditadura do berço à cova: foram os altos mandatos militares que estiveram à frente do regime e que sustentaram, mediante a coerção, por vinte anos [...]” (PAULO NETTO, 2014, p. 83). Apesar das rígidas punições para aqueles que não acatavam as ordens decretadas pelo regime, que iam da perseguição à morte, Josete Sales afirmou não recordar de ter ciência, durante o Curso Normal, acerca desse momento de efervescência política:

Na época, eu não conseguia ver. Fiz o ensino médio em plena ditadura militar, nos anos 1970, mas eu não conseguia perceber qual momento histórico era aquele, até porque da escola você nunca ouvia nada, muito pelo contrário, era tudo muito ‘lindo’ e ‘maravilhoso’, não havia conflito, nem disputa, era uma obediência cega e irrestrita. Tanto é que eu, por ser uma aluna muito bem comportada, aluna de destaque em sala de aula, fui escolhida para ir com outras estudantes de outros colégios buscar nada mais nada menos que o Ernesto Geisel no aeroporto em visita a Fortaleza. E fui receber essa figura sem saber o que ele representava. (Josete Sales, informação verbal).

Apesar de Josete Sales dizer que não percebia ebulição em decorrência da Ditadura, existiam grupos de estudantes que se manifestavam contra a repressão desse governo, como é o caso do movimento da Juventude Estudantil Católica (JEC), que era composto principalmente por estudantes do sexo masculino. O JEC foi criado em 1935 com o escopo de formar uma juventude militante e disciplinada, a priori vinculado à igreja católica, que objetivava “[...] formar para a competência, para a ação e para a perfeição através de uma concepção diferenciada de perceber o homem e a igreja católica.” (FREIRE, 2017, p. 68). Como resultado dessa concepção, os jovens passaram a se inserir nos movimentos de esquerda, o que fez com que eles se afastassem da igreja católica; uma vez sem a proteção do clero, os “jecistas”, como eram chamados os integrantes do JEC, tornaram-se alvos de perseguição política a partir de 1964, já que a atuação desses jovens não era consoante o governo da Ditadura Militar.

O desconhecimento de Josete Sales acerca desse movimento, bem como dos efeitos da Ditadura, pode ser explicado pelo fato de a educação da normalista estar associada à formação do público feminino embasado nos princípios da pureza cristã e da retidão (ARAÚJO, 2015), o que não se coadunava com a figura de uma mulher que ia às ruas reivindicar e protestar contra o governo. Por isso, no período da Ditadura Militar, os movimentos de ebulição se concentravam especialmente no interior do Liceu do Ceará, instituição de destaque em Fortaleza que era voltada, nessa época, exclusivamente para a educação masculina.

Próximo à conclusão dos estudos na Escola Normal, Josete Sales casou-se. Em seguida, engravidou e teve seu primeiro filho, ainda quando se preparava para prestar vestibular para Pedagogia na UFC, como explicou:

Eu entro na Pedagogia da UFC já casada. Na prova de vestibular, eu estava de resguardo. Saí da prova toda molhada de leite. O bebê pequeno tinha ficado em casa, e meu marido nunca teve problema com isso – meus estudos, trabalho –, pelo contrário, ele sempre me apoiou. [...] Então, quando eu entrei na UFC, eu já era mãe e já tinha experiência como professora; tinha 19 anos. (Josete Sales, informação verbal).

Casar-se muito jovem era comum naquela época, especialmente para as moças da Escola Normal, e elas muitas vezes não chegavam a assumir o magistério, tendo em vista que a sociedade patriarcal considerava o homem como único provedor da família, e a mulher acabava voltando-se às atividades do lar (ARAÚJO, 2015). Esse não foi o caso de Josete Sales, que começou a trabalhar desde muito cedo e contou com o apoio do marido, tanto no âmbito profissional quanto no educativo, para prosseguimento mesmo depois de casada. O auxílio do esposo certamente configura um modelo de conduta que fugia à regra da época, em que o homem era considerado propulsor da família, tendo direito sobre as decisões da mulher, restringindo-a ao espaço doméstico (NARVAZ; KOLLER, 2006).

Somente mais tarde, em 1981, ao entrar na universidade, foi que Josete Sales teve conhecimento sobre a força da Ditadura Militar e dos seus efeitos sobre a educação e a sociedade brasileira, como relatou: “Eu só fui saber que nós vivemos uma Ditadura Militar praticamente depois dela já quase concluída. Quando eu entro na universidade [...] é que eu começo a ver que existia outro mundo que até então ninguém havia dito nada sobre.” (informação verbal). Nesse momento, a passividade, até então conservada pelas vivências no Curso Normal, foi posta em reflexão crítica, e Josete Sales passou a conceber a educação como palco de luta política.

5 ATUAÇÃO NA EDUCAÇÃO BÁSICA E NA UNIVERSIDADE

Antes mesmo de ingressar na universidade, Josete Sales já atuava na educação básica como professora do estado. A ocupação nesse cargo aconteceu mediante seleção realizada pelo Instituto de Educação do Ceará em parceria com a Secretaria de Educação do Ceará sob a finalidade de eleger 10 jovens para atuar como professoras nas séries iniciais em comunidades periféricas da capital cearense. A vigência da seleção era de um ano, e, caso a professora cumprisse com êxito as atividades confiadas, ao final desse período, teria a possibilidade de ser contratada como professora efetiva do estado. Josete Sales (2018) contou detalhes dessa experiência:

Eu era professora da pré-escola, vim para a comunidade da Serrinha, perto de onde morava, e eu trabalhava com 50/60 crianças entre cinco e sete anos. Eram turmas enormes. Na época, não tinha educação infantil, uma organização como hoje. Ainda era vinculada à Secretaria de Assistência Social. Da Secretaria de Educação vinham as professoras e da Assistência Social vinham a merenda escolar e os materiais. Então, eu fui para um salão paroquial da Igreja Nossa Senhora das Vitórias que ficava na avenida Silas Munguba. (informação verbal).

De fato, nesse período, ainda não havia percepção da importância da educação infantil e, inclusive, o primeiro documento legal a abordar a educação das crianças, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei n. 4.024 (BRASIL, 1961), versou apenas que esse nível de escolaridade deveria ser ofertado para as crianças com idade inferior a sete anos em escolas maternais ou jardim de infância, não denotando obrigatoriedade ao poder público na concretização dessa tarefa. Por isso, na maioria das vezes, as crianças só começavam a frequentar a escola a partir dos sete anos, indo direto para o ensino primário.

Josete Sales foi contratada pelo estado, passando a atuar nos centros de atendimento à educação pré-escolar, após lecionar na pré-escola em situação muito precária:

[...] Então, esse foi o teste para conseguir, no final do ano, o contrato do estado. E eu fiquei com esse contrato até terminar Pedagogia e depois fazer concurso para a UECE. No primeiro ano, eu fiquei na educação infantil e depois, passado esse tempo, nos centros de atendimento à educação pré-escolar, que, no caso, era ambulante. Por exemplo, eu podia sair do salão paroquial da igreja e ir para um galpão que a comunidade oferecia, em condições bem complicadas, mas o estado em teste. Tínhamos que buscar as alternativas de solução. (informação verbal).

Como se percebe, já no início da década de 1980, não havia o fomento da escolarização com vistas ao desenvolvimento infantil com qualidade no Ceará. Não se investia adequadamente em infraestrutura ou na formação de professores; os primeiros eram, na maioria, espaços improvisados pela comunidade, e os profissionais para educar crianças, sem formação para atuar naquele contexto, desempenhavam variadas tarefas, como cuidar da limpeza do ambiente, do preparo do lanche, da higiene das crianças, etc. (VIEIRA, 2002). Foi nesse ambiente que Josete Sales permaneceu durante toda a graduação, conciliando os estudos, o trabalho, o cuidado com a casa e com os filhos, sempre com o apoio do marido e provida de condições financeiras para assegurar apoio doméstico.

Josete Sales formou-se em 1985 e logo começou a cursar o Mestrado em Educação, também pela UFC, não tardando a prestar o concurso por meio do qual se tornaria docente da UECE. O emprego era para assumir a vaga de professora efetiva na área de Didática e Práticas de Ensino, mas, de acordo com as regras do processo, primeiro era necessário que, ao ser aprovado, o candidato passasse cinco anos trabalhando no interior para depois ser transferido para a capital. Dessa maneira, Josete Sales lecionou no campus de Quixadá, em seguida retornando para Fortaleza. De acordo com Gondra e Schueler (2008), essa mesma dinâmica era adotada nos concursos para professores do ensino primário, pois a normalista teria que ir para as cidades do interior somar uma determinada quantidade de pontos, que eram acumulados com base no tempo de ensino e no êxito da educação desenvolvida, para depois ser transferida para a capital.

Muitas professoras, ao se depararem com as dificuldades que implicava sair de casa e ir para uma cidade distante lecionar em locais mal-equipados, desistiam do ofício (NOGUEIRA, 2011). Esse, conquanto, não foi o caso de Josete Sales, que mais uma vez contou com o apoio do marido; ele, juntamente com a secretária da família, cuidava dos dois filhos, em Fortaleza, durante parte da semana, de 1986 a 1992, enquanto a esposa lecionava em Quixadá. Sobre essa experiência, ela relatou: “As faculdades no interior – não só em Quixadá – ainda hoje costumam concentrar os horários dos professores ou mais ao início da semana ou mais ao final. Num semestre, eu ficava segunda, terça e quarta; no outro, eu ia quinta e sexta, e sábado voltava.” (informação verbal).

Depois de anos lecionando na educação básica, agora, como professora universitária, ela pôde alargar o panorama de atuação e, somando os conhecimentos adquiridos outrora, propôs mudanças nos variados espaços por onde passou. Ocupou o cargo de chefe de departamento e também impulsionou o processo de constituição identitária do currículo do Curso de Pedagogia em Quixadá, que até então era equiparado ao da sede de Fortaleza, não abarcando as especificidades da região.

Uma vez retornando ao seu departamento de origem,4 em Fortaleza, a partir de 1992, a docente Josete Sales exerceu diversos cargos: chefe de departamento, chefe de gabinete, coordenadora do CED da UECE e diretora do referido CED:

Uma característica do professor universitário é que ele nunca é só professor. Ele sempre exerce outras funções. Então, ele é professor, está lá na sala de aula dele; de repente, ele coordena um projeto de extensão; ele está num grupo de pesquisa; ele está na graduação e na pós-graduação, ou assume uma função de gestão e vira coordenador de curso, de departamento (que nem existe mais), ou pode ser diretor de um centro da faculdade, pode ser reitor, um pró-reitor. Então, tem esse trânsito. (informação verbal).

Conforme se certifica, para Josete Sales, o professor universitário tem um leque de possibilidades de atuação, não se restringindo apenas à docência em sala de aula. Em congruência com Veiga (2006, p. 2), “[...] a docência universitária exige a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” e, por assumir tal característica, cabe ao professor, uma vez inserido nesse ambiente, estar disposto a vivenciar múltiplas experiências – gestão, ensino, pesquisa e extensão.

Josete Sales acredita que uma das suas experiências mais relevantes aconteceu no tempo em que foi coordenadora do Curso de Pedagogia, quando reformulou o projeto político-pedagógico desse Curso e não mediu esforços para criar o CED, o que veio a se efetivar em 2000. Acerca dessas duas experiências, ela narrou:

Na coordenação do Curso de Pedagogia, nós passamos um marco, que foi a feitura de um novo projeto pedagógico do Curso e também a criação do Centro de Educação. Isso foi um marco porque nós éramos um curso vinculado a outro centro, o Cesa – Centro de Estruturas Sociais Aplicadas –, junto do Serviço Social, das Ciências Contábeis e Administração. Éramos quatro cursos. [...] Então, nós tivemos todo um trabalho de formulação de um projeto de criação de um centro próprio, que era o Centro de Educação. Com sua criação em 5 de junho de 2000. Primeiro era preciso entender a necessidade de um centro. Por que um centro se nós estamos tão bem vinculados a outros cursos? Mas, assim, fazer com que a universidade visse que a área de Educação tem especificidades e que a gente poderia atender muito mais à formação dos professores da educação básica assim como da própria UECE. (informação verbal).

Josete Sales compreendeu que o Curso de Pedagogia tem peculiaridades distintas dos demais que se vinculavam ao Centro de Estruturas Sociais Aplicadas, necessitando de um centro próprio. Em sua tese, cujo objeto de estudo é o projeto político-pedagógico da UECE, Sales (2006, p. 98) defende a necessidade da criação do CED afirmando que a discussão sobre a educação, que acontecia em outro centro, estava desarticulada das peculiaridades da formação de professores, conforme exposto:

A área de educação, como responsável maior pela formação profissional dos educadores para a Educação Básica, precisava ter definidos, de modo mais nítido, a posição e o espaço necessários para liderar e articular as ações indispensáveis ao seu papel. Já que, até então, o cumprimento desse papel vinha se realizando de modo fragmentado e desarticulado, dada a forma como se constituíram os departamentos de educação na UECE, a exemplo de outros modelos estruturais de universidades brasileiras. (Josete Sales, informação verbal).

Note-se que a preocupação dessa professora se voltou para a qualidade da formação dos professores da educação básica, já que a UECE, juntamente com a UFC, eram as principais instituições responsáveis por essa tarefa no Estado do Ceará. Josete Sales, percebendo as fragilidades da formação superior dos pedagogos, compreendia que a formação dos professores deveria atender às particularidades da prática docente (VEIGA, 2006), necessitando de um centro específico para pensar tais questões. Assim, ela argumentou que a constituição do CED5 seria crucial para que os profissionais dessa área tivessem o espaço necessário para travar discussões afins à área de Educação, em especial no que tange à formação de professores. Tais debates propiciariam autonomia para traçar as especificidades do Curso de Pedagogia com vistas a uma educação crítica, libertária, democrática e qualificada (VASCONCELOS; FIALHO; LOPES, 2018).

O CED significou não apenas maior autonomia ao Curso de Pedagogia, mas possibilidade de articulação entre professores e gestores da UECE, fomentando impulso às ações de formação de professores no Estado do Ceará e ampliando e qualificando as atividades de ensino, pesquisa e extensão. Com o desafio de formação para “[...] o magistério no ensino fundamental (anos finais) e médio, impulsionado sob os auspícios da LDB e do Fundef, motivou a instituição a criar o Centro de Educação – CED (Resolução Uece/Consu n. 189/1998), espaço aglutinador de reflexões e ações no âmbito das licenciaturas.” (FARIAS et al., 2011, p. 7).

Com a missão social de formar professores com qualidade por meio do CED, foram desenvolvidos programas especiais de formação inicial com vistas a atender a demandas específicas dos sistemas públicos estaduais e municipais de ensino, tais como: Programa de Licenciaturas Breves; Programa Magister;6 Programa Formação Docente em Nível Superior;7 Programa Especial de Formação Pedagógica,8 etc. (FARIAS et al., 2011). Além de fomentar formação continuada por intermédio de cursos de pós-graduação em nível de especialização, mestrado e doutorado.

Elaborado o projeto político-pedagógico do Curso de Pedagogia e constituído o CED, Josete Sales assumiu a função de chefe de gabinete, experiência que lhe possibilitou compreender um pouco mais sobre o caráter administrativo da UECE. Ela narrou que esse momento foi oportuno para conhecer duas forças importantes da Instituição: a reitoria e o sindicato. Após a finalização da vigência de sua chefia de gabinete, Josete Sales passou a atuar como diretora do CED, centro por ela idealizado. Sobre a sua incumbência nesse cargo, ela contou que os maiores desafios foram dois: buscar proporcionar a noção de unidade do CED, articulando todos os setores, bem como expandir cada vez mais esse departamento.

Já nesse cargo atual, a expectativa é de dar ao Centro de Educação um caráter de mais unidade, tanto é que o discurso ainda hoje é assim: se você estiver lá no corredor de cima, do programa do PPGE [Programa de Pós-Graduação em Educação], você diz assim: “Eu vou lá no CED”, mas lá em cima também é CED. Então, as pessoas imaginam que CED é essa porta aqui, esta sala onde nós estamos. PPGE é CED, Necad [Núcleo de Educação a Distância] é CED, Pedagogia é CED. Então, nós temos uma visão fragmentada. Isso tudo é CED. Se o CED é tudo isso, hoje ele pode ser muito mais. Então, o objetivo não é só articular, aproximar todos esses setores, como ampliar. (informação verbal).

A preocupação em unificar o CED se explica pelo receio de ver os espaços desse núcleo de ensino se tornarem espaços isolados, desmembrando ensino, pesquisa e extensão. Essa associação, para Josete Sales, é de extrema relevância para a formação de professores na universidade, especialmente para não fragmentar o diálogo e o vínculo entre educação básica e universidade. Tal entendimento se coaduna com os ensinamentos de Veiga (2006), que destaca a relevância de haver articulação entre a formação de professores e a realidade da educação básica, sendo crucial que toda a universidade se mobilize em benefício da qualidade dos docentes formados.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo objetivou investigar a formação educativa e a trajetória profissional de Josete de Oliveira Castelo Branco Sales, docente vinculada à Universidade Estadual do Ceará (UECE) há mais de 30 anos, por defender-se que essa educadora é um sujeito relevante para a compreensão da História da Educação local, prioritariamente ao se considerar as suas mais variadas formas de atuação na UECE. Para atender a esse escopo, realizou-se uma pesquisa qualitativa amparada metodologicamente na História Oral Biográfica, percurso que viabilizou reconstituir a história de vida de Josete Sales a partir de suas narrativas, coletadas mediante entrevista livre.

Os resultados inferem que Josete Sales é uma mulher que, desde a sua escolarização, trilhou um percurso demasiadamente distinto daquele destinado às moças de sua época, já que nem todas tinham acesso à educação formal. A referida educadora, mais tarde, embora casada e com filhos, contando com o apoio do esposo, continuou a estudar e a trabalhar, destacando-se profissionalmente. O curso de sua vida, considerando que ela teve vasta experiência em distintos ambientes, seja como estudante nos grupos escolares, no ensino normal ou no ensino superior, bem como no decorrer da docência na educação básica e na universidade, esclarece particularidades referentes ao contexto de sua época, tornando Josete Sales sujeito valioso para a laboração da História, seja ela individual ou coletiva.

A sua trajetória profissional, como docente da UECE, revela que essa educadora foi se constituindo com base nas experiências vivenciadas nos mais variados cargos que ocupou na citada instituição. Nesse ambiente, Josete Sales impulsionou mudanças significativas em múltiplos departamentos, seja quando foi chefe de departamento na sede de Quixadá, seja mais tarde, em Fortaleza, onde esteve à frente da criação do Centro de Educação (CED) e também da reformulação do projeto político-pedagógico do Curso de Pedagogia.

Considerando que a escrita biográfica lançou luz ao estudo da História da Educação em seus múltiplos aspectos, esta pesquisa possibilitou, ao refletir a história de vida de uma educadora com trajetória singular, ampliar a compreensão acerca da História da Educação Feminina elitizada no Ceará e a constituição do CED, o que faculta melhor compreensão quanto à importância da figura feminina para a educação do Ceará, bem como da emergência de um centro de educação para fortalecer a formação de professores no referido Estado.

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Endereço para correspondência: Avenida Doutor Silas Munguba, 1700, Itaperi, Fortaleza, Ceará, Brasil; lia_fialho@yahoo.com.br

Roteiro, Joaçaba, v. 45, p. 1-22, jan./dez. 2020 | e23790 |E-ISSN 2177-6059


1 Pós-doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba; Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.

2 Mestre e doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará.

3 Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará; mestranda em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará.

4 Departamento de Métodos e Técnicas da Educação, vinculado ao Centro de Estudos Aplicados (Cesa).

5 Para a concretização de um centro novo e autônomo, o CED, Josete contou com o apoio de outros professores do Curso, a exemplo de Maria Marina Dias Cavalcante, Maria de Jesus Oliveira, dentre outras, que a sua memória não permitiu lembrar.

6 Objetivou habilitar professores da rede pública que atuavam no ensino fundamental (1ª a 4ª séries) para exercerem a docência nas séries terminais nesse nível e no ensino médio (licenciatura plena).

7 Programa financiado pelo Fundo Estadual de Combate à Pobreza (Fecop), que atendeu a professores da rede pública de ensino sem formação de nível superior nas áreas de Letras e Matemática.

8 Realizado na modalidade Educação a Distância (EaD), licenciou professores para a docência em disciplinas do currículo dos ensinos fundamental e médio e da educação profissional, assegurando formação pedagógica nas áreas de Matemática, Física, Química e Biologia.