https://doi.org/10.18593/r.v45i0.23378

Programa Escola Viva no Estado do Espírito Santo: reflexões acerca da gestão educacional

Escola Viva Program in the State of the Espírito Santo: reflections on educational management

Programa Escola Viva en el Estado del Espírito Santo: reflexiones sobre la gestión educativa

Alzira Batalha Alcântara1

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Docente; Universidade Estácio de Sá, Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE), Docente e Coordenadora

https://orcid.org/0000-0001-9597-282X

Luciane Matos2

Rede Estadual de Educação do Espírito Santo, Docente; Faculdade de Ensino Superior de Linhares, Docente

https://orcid.org/0000-0003-0828-6536

Roseli Costa3

Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Professora aposentada; Universidade Estácio de Sá, Grupo de pesquisa de Políticas e Gestão, Pesquisadora

https://orcid.org/0000-0003-4110-313X

Resumo: Este artigo objetiva debater a gestão educacional no Estado do Espírito Santo a partir de 2015 com a implementação do Programa Escola Viva no âmbito da rede pública de ensino capixaba, estruturado pelo Instituto de Corresponsabilidade Educacional (ICE), entidade privada sem fins lucrativos. Firmou-se uma parceria público-privada na educação do Estado do Espírito Santo patrocinada pela Organização não governamental Espírito Santo em Ação. Por meio dessa parceria, ações vêm sendo implementadas com a pretensão de promover a qualidade do ensino e da aprendizagem na escola pública. Do ponto de vista metodológico, a pesquisa amparou-se na revisão de literatura e na análise de fontes primárias e secundárias atinentes ao Programa Escola Viva. Concluiu que o modelo de gestão proposto pelo Programa dialoga com o ideário do neoliberalismo e da Terceira Via. Assim, a gestão democrática, ainda que prescrita legalmente para a rede pública, vem sendo reconfigurada. Naturaliza-se, a um só tempo, a ideia de que a escola pública é ineficiente, e, por isso, sua gestão deve ser pautada em princípios norteadores do mundo empresarial, como o utilitarismo, a competição e a meritocracia, sob o mantra de que esse novo modelo assegurará a eficácia na gestão pública. Assim, tanto a gestão democrática quanto os direitos sociais e políticos conquistados vêm sendo ameaçados ou subordinados às bases da racionalidade econômica.

Palavras-chave: Programa Escola Viva. Gestão educacional. Instituto de Corresponsabilidade Educacional. Parceria público-privada. Espírito Santo.

Abstract: This article aims to discuss educational management in the State of Espírito Santo, starting in 2015 with the implementation of the Escola Viva Program within the public education network of Espírito Santo, structured by the Institute of Educational Co-responsibility (ICE), a private non-profit entity. A public-private partnership was established in the State of Espírito Santo, sponsored by the Non-Governmental Organization Espírito Santo em Ação. Through this partnership, actions have been implemented with the intention of promoting the quality of teaching and learning in the public school. From the methodological point of view, the research was based on literature review and analysis of primary and secondary sources related to the Escola Viva Program. It concluded that the management model proposed by the Program dialogues with the ideals of neoliberalism and the Third Way. Thus, democratic management, although legally prescribed for the public network, has been reconfigured. At the same time, the idea that the public school is inefficient is naturalized and, therefore, its management should be based on guiding principles of the business world, such as utilitarianism, competition and meritocracy, under the mantra that this new model will ensure effectiveness in public management. Therefore, both democratic management and conquered social and political rights have been threatened or subordinated to the foundations of economic rationality.

Keywords: Escola Viva Program. Educational management. Institute of Educational Co-responsibility. Public-private partnership. Espírito Santo.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo discutir la gestión educativa en el Estado de Espírito Santo, comenzando en 2015 con la implementación del Programa Escola Viva dentro de la red de educación pública de Espírito Santo, estructurado por el Instituto de Corresponsabilidad Educativa (ICE), una entidad privada sin fines de lucro. Se estableció una asociación público-privada en el Estado de Espírito Santo, patrocinada por la Organización No Gubernamental Empresarial Espírito Santo em Ação. A través de esta asociación, se han implementado acciones con la intención de promover la calidad de la enseñanza y el aprendizaje en la escuela pública. Desde el punto de vista metodológico, la investigación se basó en la revisión de literatura y análisis de fuentes primarias y secundarias relacionadas con el Programa Escola Viva. Concluyó que el modelo de gestión propuesto por el Programa dialoga con los ideales del neoliberalismo y la Tercera Vía. Por lo tanto, la gestión democrática, aunque legalmente prescrita para la red pública, se ha reconfigurado. Al mismo tiempo, la idea de que la escuela pública es ineficiente se naturaliza y, por lo tanto, su gestión debe basarse en principios rectores del mundo empresarial, como el utilitarismo, la competencia y la meritocracia, bajo el mantra de que este nuevo modelo garantizará la efectividad en la gestión pública. Asi, tanto la gestión democrática como la conquista de los derechos sociales y políticos han sido amenazados o subordinados a los fundamentos de la racionalidad económica.

Palabras clave: Programa Escola Viva. Gestión educativa. Instituto de Corresponsabilidad Educativa. Asociación público-privada. Espírito Santo.

Recebido em 31 de outubro de 2019

Aceito em 13 de abril de 2020

Publicado em18 de agosto de 2020

1 INTRODUÇÃO

Este artigo, elaborado a partir de análise bibliográfica e pesquisa documental, objetiva fazer refletir sobre o modelo de gestão proposto pelo Programa Escola Viva implantado no Estado do Espírito Santo, a partir de 2015. Para tanto, o texto está estruturado em quatro seções, além desta parte introdutória e das considerações finais. A primeira seção contextualiza as transformações decorrentes do fenômeno da mundialização do capital e a emergência de políticas neoliberais e da Terceira Via, a partir de Anderson (2017), Mészáros (2009), Peroni (2003, 2018), Frigotto e Ciavatta (2003), entre outros autores. A segunda seção apresenta características do Programa Escola Viva e problematiza suas concepções lastreadoras, com base em Lima (2018), Ozga (2000), Schneider e Nardi (2019) e textos legais. Na terceira, discute-se o modelo de gestão do Programa Escola Viva, que é pautado em princípios empresariais, a partir de Hobsbawn (1992), Peroni e Adrião (2008) e Wood (2011), e, na última seção, o artigo discorre sobre a relação do Programa com a comunidade escolar, dialogando com Macedo e Lamosa (2015), Peterle (2016), Oliveira e Lirio (2017), entre outros.

Importa notar que a discussão acerca do modelo de gestão do Programa em tela ganha ainda maior sentido, na medida em que se espraia, de forma crescente, o discurso de que o modelo de gestão empresarial promove uma educação de qualidade no mundo público, escamoteando que se encontram em disputa distintos projetos societários e de educação.

2 A MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL E REPERCUSSÕES NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS

Após uma fase de prosperidade do pós-Guerra, chamada por Hobsbawn (1992) “era dourada”, o mundo capitalista entrou em uma profunda recessão na década de 1970, chamada “do desmoronamento”, combinando baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação. Nesse cenário, as ideias liberais, sob a alcunha de neoliberalismo, passaram a ganhar espaço. Grosso modo, na redefinição do papel do Estado com a crise do modelo keynesiano, emergiram políticas públicas que advogavam a não intervenção do Estado na economia. Para tanto, promoveu-se uma agenda constitucional com propostas que vão ao encontro dos ideais neoliberais (MARTINS, 2010). Nesse contexto, fetichiza-se o mercado enquanto mecanismo de superação das falhas do Estado, considerado ineficiente. Emergem bandeiras em prol da privatização, da reforma da previdência, flexibilização da legislação trabalhista, entre outras. Tais medidas são apresentadas como imprescindíveis para equilibrar as finanças públicas.

Em contraposição a esse diagnóstico, Mészáros (apud AMORIM, 2011, p. 3) compreende que o capitalismo vive uma “crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que necessita da adoção de medidas estruturais abrangentes, a fim de alcançar uma solução sustentável.” Além disso, o autor ressalta que o Welfare State se restringiu aos “países capitalistas avançados.” Ou seja, somente os países centrais puderam desfrutar dos benefícios da “expansão do desenvolvimento durante o intervencionismo estatal keynesiano.” (MÉSZÁROS, 2009, p. 12).

Os países periféricos continuaram à margem dos direitos sociais, econômicos e culturais, haja vista que foi um Estado máximo para o capital, mas continuou mínimo para o social, no dizer de Peroni (2003). No Brasil, embora tenha havido avanços na garantia de direitos, a nação não desfrutou de um estado de bem-estar social similar aos países centrais. A experiência de desenvolvimentismo tutelada pelo Estado durante o Regime Civil-militar conseguiu, a um só tempo, colocar o Brasil entre as 10 maiores economias do mundo, como também entre os 10 países mais desiguais (PINTO et al., 1994).

Parcela dos movimentos sociais foi importante na superação do Regime Autoritário para uma democracia representativa. Os anos 1980 significaram para os movimentos sociais um momento de “disputa de projeto societário na intenção da criação de uma sociabilidade de caráter público, universalizante, democrática e que garanta o ‘direito a ter direitos’.” (GOULART, 2009, p. 22). Caracterizaram-se tanto pela negação do Regime Autoritário quanto pela propositura de uma democracia alicerçada no reconhecimento dos direitos de cidadania e participação. Assim, os movimentos grevistas, a organização partidária, a eleição para governadores, as “Diretas Já” propiciaram a mobilização crescente da sociedade. Tais demandas sociais e políticas vividas na década de 1980 culminaram na emergência de princípios democráticos que foram consagrados na Carta Constitucional de 1988, tendo a gestão democrática, de forma inédita, sido consignada como princípio da educação nacional (ADRIÃO; CAMARGO, 2001). As conquistas dos anos 1980 precisam ser rememoradas, visto que correspondem à afirmação de valores democráticos como norteadores da vida social e política. Ignorá-las é abdicar de um passado de lutas, como sinaliza Silveira (2000).

No final da década de 1980, no contexto de aumento da inflação, do endividamento público, lento crescimento da produção e aumento do desemprego, os intelectuais orgânicos do sistema capitalista produziram um documento, em 1989, denominado Consenso de Washington, alinhavando as ideias neoliberais que se espraiam no Brasil (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2003). As reformas consolidaram-se ao longo da década de 1990, por meio de um processo de desregulamentação, privatização, abertura de mercados, reformas em diferentes setores e descentralização sob o pretexto de otimização de recursos (YANAGUITA, 2011).

Em sintonia a essas mudanças, as reformas no setor educacional tiveram como referência os documentos produzidos a partir de encontros promovidos por organismos internacionais, em especial na Conferência Mundial de Educação para Todos, de 1990, ocorrida na Tailândia, e o relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), conhecido como Jacques Delors (2001). A partir desse conjunto, a educação e o conhecimento são considerados eixos de transformação da sociedade.

No Brasil, o Plano Decenal da Educação (BRASIL, 1993) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (BRASIL, 1996) expressam um alinhamento a essas recomendações internacionais. Em nome da pouca eficiência do sistema escolar público, pretendiam reverter os elevados índices de evasão, a repetência, o despreparo do professor e otimizar os recursos. Para tanto, indicavam-se descentralização, autonomia gerencial para as unidades escolares e incrementos para melhorar os índices de produtividade dos sistemas públicos, sob inspiração neoliberal.

Nesse contexto, bandeiras como participação, autonomia e descentralização foram metamorfoseadas indo ao encontro das prescrições de organismos internacionais, dos quais o Brasil é um país signatário. Nesse movimento, vale notar que a ação das organizações não governamentais (ONGs) passou a ter novos sentidos, obtendo, gradativamente, ao longo dos anos 1990, um protagonismo, por meio de parceria em que o público foi impelido a adotar como parâmetro a lógica privada, especialmente no campo da gestão (PERONI; ADRIÃO, 2008).

Diante das críticas e danos causados pelo neoliberalismo, a Terceira Via apresentou-se como alternativa econômica e social, com viés supostamente progressista, pois repassa as políticas sociais para a sociedade civil, esfera tida como capaz de superar a suposta ineficiência do Estado (PERONI, 2018). Segundo Mészáros (2009), o capital pode assumir um mosaico de formas, inclusive a roupagem de um “Novo Trabalhismo”, desde que perpetue sua dominação. Entretanto, essa reengenharia política e institucional, segundo o autor, não resolve a crise estrutural do sistema capitalista, tampouco a necessidade de superá-lo. Tanto os neoliberais quanto os defensores das políticas de Terceira Via têm a mesma percepção da crise, sugerindo, para superá-la, um Estado mínimo nas questões sociais e a racionalização dos recursos. Esse mesmo Estado, contudo, é máximo quando se trata de defender interesses do capital (PERONI; OLIVEIRA; FERNANDES, 2009).

Se o neoliberalismo defende a privatização como meio para superar a crise, enaltecendo o mercado, a Terceira Via opta por repassar as políticas sociais para a sociedade civil, pois compreende que a solução deve ser buscada fora da ação do Estado e do mercado. Assim, as associações comunitárias, instituições sem fins lucrativos, entre outras, ganham crescente protagonismo, pois, além da execução, passam a atuar na elaboração e avaliação das políticas públicas. Ou seja, houve uma ampliação expressiva do campo de atuação do chamado terceiro setor.

A introdução do Programa Escola Viva na rede pública de ensino no Estado do Espírito Santo, no ano de 2015, em parceria com o Instituto de Corresponsabilidade da Educação (ICE), entidade sem fins lucrativos, insere-se nesse contexto marcado pela influência crescente do chamado Terceiro Setor. A seguir, apresenta-se o Programa Escola Viva e discutem-se os efeitos desse Programa na gestão educacional a partir de suas bases e instrumentos pedagógicos e filosóficos.

3 SITUANDO O PROGRAMA ESCOLA VIVA

O Programa Escola Viva, aprovado pela Lei Complementar n. 799/2015, foi estruturado pelo Instituto de Corresponsabilidade Educacional (ICE), entidade privada sem fins lucrativos. Firmou-se uma parceria público-privada na educação do Estado do Espírito Santo patrocinada pela ONG Espírito Santo em Ação4 (ESPÍRITO SANTO, 2015a). Tal parceria pretende implementar ações que promovam a qualidade do ensino e da aprendizagem na escola pública.

O interesse pela parceria iniciou no ano de 2014, quando a ONG Espírito Santo em Ação apresentou ao ICE sua intenção de promover, com o Governo do Estado, uma educação alinhada à formação de competências e valores de mercado, isto é, uma proposta calcada na produtividade e no modelo de gestão da empresa privada no setor público. Com esse viés, a ONG Espírito Santo em Ação criou projetos de educação e inclusão social que visam promover ações para o desenvolvimento humano, contribuindo para a compreensão da corresponsabilidade do indivíduo na sociedade, a redução do índice de evasão escolar e o envolvimento dos parceiros (ESPÍRITO SANTO, 2018).

A gestão empresarial da educação não é novidade. Conforme Lima (2018), as teorias da gestão empresarial exercidas pelo taylorismo e fayolismo influenciaram historicamente as teorias e práticas da gestão escolar. No entanto, o autor faz duas advertências acerca desse momento: 1) a transposição das práticas empresariais para a educação ocorre de forma avassaladora, com intensidade ímpar, e 2) há, de forma recorrente, generalizações “simplificadoras e descontextualizadas”, visto que tudo é considerado uma questão de gerencialismo. Para tanto, salienta a importância da análise de fontes primárias para compreensão de discursos, medidas, conceitos e programas governamentais (LIMA, 2018).

Nesse sentido, vale notar o discurso do presidente do ICE, Marcos Magalhães, que iniciou o projeto piloto “Escola da Escolha” no Ginásio Pernambucano, tornando-se, em Pernambuco, um paradigma para a rede pública, modelo de gestão de uma nova educação. Para Magalhães (2008, p. 3), a gestão da escola pouco difere da gestão de uma empresa. “Assim sendo, nada mais lógico do que partir da experiência gerencial empresarial acumulada para desenvolver ferramentas de gestão escolar.” Esse modelo de gestão se multiplica por vários estados do Brasil, como Ceará, Piauí, Sergipe, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e, em 2015, foi introduzido no Espírito Santo.

O ICE parte do princípio de que cada estudante deve ter um projeto de vida que consiste na elaboração de metas acadêmicas e no desenvolvimento de habilidades socioemocionais (resiliência, resolução de problemas, estímulo à curiosidade), que, por sua vez, estão alinhadas às competências e recomendações dos organismos internacionais. Para os idealizadores, o projeto de vida é condição propulsora para que o estudante tenha êxito na vida acadêmica e no mundo do trabalho. O próprio termo Programa Escola Viva traz consigo a ideia de que as escolas credenciadas no Programa são “vivas”. E as demais escolas não credenciadas? Como são percebidas? O Jornal Online ES Hoje registrou a fala de uma professora da rede estadual que mostra a percepção acerca das escolas que não aderiram ao Programa ao afirmar: “eu quero ver é fazer a escola morta funcionar, tirar alunos e professores dos escombros da escola morta.” (GOUVÊA, 2015). A valorização das escolas credenciadas no Escola Viva em detrimento das demais provocou certa indignação e rejeição ao Programa.

A nova gestão de escolas públicas no Estado do Espírito Santo, por meio de parceria público-privada, está ancorada na filosofia empresarial. Prescreve mudança na atuação do gestor a fim de fomentar um modelo de gestão eficaz, pautado em resultados pactuados com o fito de obter melhorias nas avaliações externas. Esse referencial lastreia-se em autores como Castro (2009) e Magalhães (2008), disseminando uma visão unitária, utilitária e homogênea de mundo. O Programa Escola Viva, ao transpor a gestão empresarial para a educação, associa, de forma simplista, escola e empresa. Afinal, para Magalhaes (2012), a gestão de uma escola é similar a de uma empresa, pois gerir uma “escola é como gerir uma pequena empresa, e gerir uma rede escolar é gerir uma grande empresa. São os mesmos desafios, empreendimento, objetivos e metas, métricas.” Esse novo modelo de gestão para a educação pública se efetiva com o apoio de parcela da sociedade civil representada sobretudo pelos empresários.

A educação deve pautar o cidadão produtivo para atender às necessidades do sistema. O cidadão de ontem metamorfoseia-se no cliente, no consumidor. Segundo Ozga (2000, p. 28), conceitos essenciais para a organização da vida pública, como “cidadania, justiça social, igualdade e política, são substituídos por termos do mercado como cliente, consumidor, qualidade, meritocracia, liderança e desempenho.” A denominação “cliente” atribui à prestação do serviço público um caráter comercial, tornando-se uma atividade econômica própria da iniciativa privada.

Práticas típicas de mercado são introduzidas na administração pública com a promessa de eficácia e maior controle por parte da sociedade. Constrói-se, portanto, um novo consenso em torno da gestão das políticas públicas, pautados na lógica de resultados, como deve ocorrer no âmbito empresarial. Assim, tanto a gestão democrática quanto os direitos sociais e políticos conquistados na Constituição Federal (BRASIL, 1988) vêm sendo ameaçados ou subordinados às bases da racionalidade econômica (PERONI; ADRIÃO, 2008; SCHNEIDER, NARDI, 2019).

4 MODELO DE GESTÃO NO PROGRAMA ESCOLA VIVA

O Programa de Escolas Estaduais de Ensino Fundamental e Médio em Turno Único, conhecido como Programa Escola Viva, prevê uma jornada escolar de até 9h30min de permanência na escola, sendo 7h30min em atividades pedagogicamente orientadas. “Os jovens serão protagonistas e as escolas contam com salas temáticas, muita tecnologia, esporte, cultura, lazer, bem como refeições adequadas para ficarem num horário ampliado.” (GOVERNO ES, 2019). Além da infraestrutura física diferenciada, o Programa prevê disponibilizar recursos, equipamentos tecnológicos necessários à proficiência pedagógica e à eficiência da gestão, como também um regime de contratação e remuneração dos profissionais diferenciado. Assim, o Programa propõe uma extensão de carga horária especial em período diurno com dedicação exclusiva, totalmente cumprida no interior da escola. Há, também, um acréscimo de 40% sobre o valor na tabela de vencimentos do magistério estadual. Vale notar que a permanência dos servidores na escola está condicionada à avaliação do seu desempenho (ESPÍRITO SANTO, 2015a).

Segundo o então Secretário de Educação do Estado do Espírito Santo, Haroldo Rocha (2017, p. 4), os resultados do Programa estão acima da expectativa, pois a “escola de Ensino Fundamental e Médio na Escola Viva é diferente da escola que todos conhecem, da escola de meio expediente, que é super-rígida e não se comunica, não valoriza os projetos de vida dos estudantes.”

Tal discurso representa um descaso com parte do setor público, pois desvaloriza as escolas que não aderiram ao Programa Escola Viva, ignorando que nem todas poderiam ser credenciadas, pois, entre os pré-requisitos, exigia-se uma infraestrutura mínima, como quadra de esportes, auditório, laboratório de Ciências, biblioteca, sala de recursos, salas para setores administrativos (ESPÍRITO SANTO, 2015b). Salta aos olhos que as escolas mais frágeis, do ponto de vista da infraestrutura, não podem sequer pleitear o credenciamento. Ademais, cabe ressaltar que o discurso do Secretário de Educação reforça uma visão que se espraia no senso comum. Ou seja, ganha visibilidade uma percepção negativa sobre a escola pública que não adote uma gestão pautada na lógica empresarial. Tal movimento naturaliza a adoção do modelo privado, considerado mais eficiente e eficaz no espaço público.

No contexto dinâmico de mundialização, prenhe de incertezas, as organizações vêm buscando novos modelos de gestão como forma de conferir maior flexibilidade aos negócios, como, por exemplo, a configuração em rede, em contraposição à hierarquia burocrática, representada pela escola pública. Anderson (2017) destaca que existem evidências de que essas novas configurações flexíveis não reduzem a racionalidade instrumental, pelo contrário, acabam por intensificá-la. Ou seja, nesse modelo neoliberal de negócios, a flexibilidade obtida atende exclusivamente às demandas dos mercados, não correspondendo às necessidades humanas dos trabalhadores. O autor destaca que o capital inaugurou uma nova forma de ganhos com o término das taxas fixas de câmbio, ampliou a especulação financeira e alterou significativamente as instituições e a vida dos trabalhadores. A partir dessa nova ordem, relacionamentos de longo prazo, de modo geral, são preteridos em favor de trocas mais imediatas e lucrativas. A noção de estabilidade no emprego, por exemplo, passa a ser anunciada como um entrave para a dinâmica do capital, pois este requer trabalhadores flexíveis, que possam se adaptar às necessidades temporais e espaciais da economia global em constante crise.

Os teóricos da gestão neoliberal, da década de 1990, preparam empreendedores e trabalhadores para uma nova cultura empresarial, marcada pela instabilidade no emprego, sobrecarga de trabalho e aumento da ansiedade e do estresse profissional. Tais fatores impedem ou dificultam o fortalecimento de “laços autênticos humanos” nos ambientes de trabalho. Na educação, os impactos do capitalismo não têm sido diferentes do que ocorre no mundo corporativo. As transferências constantes de diretores e as trocas de turnos dos professores nas escolas desfavorecem os relacionamentos humanos. Assim como nas organizações ditas flexíveis, uma instituição escolar, nesse cenário, requer que seus gestores, docentes e alunos também sejam flexíveis, “tornando a aprendizagem organizacional instável e enfraquecida.” (ANDERSON, 2017, p. 599).

Essa cultura baseada nas relações empresariais prepara para esse capitalismo que, sob novas formas, embrutece o ser humano. Se na “era do ouro”, pela luta dos trabalhadores, materializaram-se melhorias sociais nos países centrais, dando ao capitalismo uma face mais civilizada, após os anos de 1970, tudo desmoronou. A sociedade passou a conviver com o crescente desemprego, população de rua e marginalização (HOBSBAWN, 1992).

Para Magalhães (2008, p. 20), o intuito do novo modelo de escola é planejar, executar e avaliar um conjunto de ações inovadoras em conteúdo, método e gestão, direcionadas para a melhoria da oferta e da qualidade do ensino fundamental e médio. Em contraposição, Melo (2009, p. 246) destaca as marcas da desprofissionalização dos educadores, “na medida em que qualquer voluntariado ou filantropia pode elaborar, executar e avaliar a tarefa para a qual ele se preparou e se titulou.”

Como o ICE pode, ao mesmo tempo, ser o executor e o avaliador da política? Tal prática compromete uma participação e o controle social, como também os elementos democratizantes do Estado. Nessa reconfiguração, há um “esvaziamento do conteúdo da democracia, já que a separação entre o econômico e o político é evidente, e perdem-se do horizonte as políticas sociais como a materialização de direitos sociais.” (PERONI; ADRIÃO, 2008, p. 114).

Wood (2011) questiona a possibilidade de se ter uma cidadania democrática sob o domínio do capitalismo moderno. Os desafios para os trabalhadores são imensos diante do ataque aos seus direitos e conquistas. No atual cenário, criou-se a ilusão de que não há alternativas fora da democracia liberal, mascarou-se o conflito de classe, limitando-se aos preceitos da agenda neoliberal, da Terceira Via e do neoconservadorismo. É justamente, nessa conjuntura, que se sedimenta uma narrativa de ações que apresentam faces conciliatórias e autoritárias sob a ilusão de um novo contrato social no qual a extrema direita cresce e os direitos sociais, trabalhistas, previdenciários encolhem (GURGEL; JUSTEN, 2011).

5 ESCOLA VIVA: RELAÇÃO GOVERNO E COMUNIDADE ESCOLAR

O projeto de Lei Complementar n. 04/2015 foi encaminhado pelo Executivo para a Assembleia Legislativa do Espírito Santo em regime de urgência. A ausência de uma ampla discussão com os professores, estudantes e responsáveis diretamente afetados pelo Programa gerou manifestações de repúdio, principalmente nas redes sociais, culminando com atos públicos contrários à forma verticalizada como a política da educação de tempo integral foi implantada (ESPÍRITO SANTO, 2015c).

A União dos Estudantes Secundaristas do Espírito Santo (UESES) questionou a falta de diálogo com os estudantes e professores, mas não a possibilidade de se ter educação em tempo integral. As escolas selecionadas para se implantar o Programa Escola Viva manifestaram inquietude diante das mudanças que ocorreriam tanto na rotina dos estudantes quanto na vida funcional dos professores da rede estadual de ensino. Os estudantes que trabalham ou fazem cursos no contraturno seriam obrigados a se matricular em outras instituições. Os professores e demais servidores públicos lotados nas escolas transformadas em “Escolas Estaduais de Ensino Médio em Turno Único e que não forem selecionados para participar do Programa serão removidos, de forma definitiva, para escola de sua escolha, desde que exista vaga devidamente comprovada.” (ESPÍRITO SANTO, 2015a, p. 2).

Os estudantes, professores e o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Espírito Santo (Sindiupes) manifestaram-se contra a votação do projeto de lei. A audiência pública, marcada duas horas antes da votação do projeto, configurou para o Sindiupes “uma afronta ao processo democrático educacional” (ESPÍRITO SANTO, 2018), haja vista que o projeto foi encaminhado à Assembleia Estadual para votação sem discussão prévia com a categoria e comunidade escolar. O Sindicato explicou que a categoria não estava contra a implantação da proposta de educação de tempo integral, mas à forma como estava sendo conduzida no Estado. “Uma das características do governo Paulo Hartung é a cúpula pensar, elaborar medidas e não dialogar com os movimentos.” (NUNES, 2015, p. 20).

As comunidades escolares, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), a União dos Estudantes Secundaristas do Espírito Santo (UESES) e o Sindiupes, por meio de manifestações e pressões sociais, levaram o governador do Estado a retirar o caráter de urgência de votação do projeto, sob a justificativa de que o governo valorizava o diálogo com a comunidade escolar. No entanto, foram as resistências que forçaram o recuo do Governo capixaba. O Sindiupes promoveu uma campanha, em 2015, por Escola Integral democrática, plural e inclusiva, cujo tema foi “Escola Viva sem diálogo e participação já nasce morta”.

Vale observar que as lutas contrárias foram ignoradas tanto pela grande mídia quanto pelo Governo do ES. Construiu-se um consenso de que o Programa Escola Viva é a inovação da educação, minimizando o fato de que ele atende a uma pequena fração de escolas da rede pública capixaba. Assim, apesar dos protestos, o Programa permaneceu em execução, mas o pedido dos estudantes de não transformar suas escolas em turno único foi acatado, pelo menos inicialmente. Para tanto, foi alugado um prédio em condições excepcionais em que funcionava a antiga instituição nomeada Faculdades Integradas Espírito-Santense (Faesa). Destaca-se que o grupo Faesa é um integrante da ONG Espírito Santo em Ação.

Em 27 de julho de 2015, os estudantes iniciaram o semestre na primeira “Escola Viva” do Estado, batizada de Centro Estadual Ensino Médio de Tempo Integral de São Pedro (CEEMTI São Pedro), em Vitória. No ano de 2016, foram incorporadas mais quatro escolas ao Programa em outros municípios capixabas: Centro Estadual de Ensino Fundamental e Médio de Tempo Integral (CEFMTI) Daniel Comboni, em Ecoporanga; CEFMTI Bráulio Franco, em Muniz Freire; CEFMTI Francisco Coelho Ávila, em Cachoeiro de Itapemirim e CEFMTI Joaquim Beato, em Serra. As escolas foram implantadas em prédios alugados ou prédios escolares recentemente reformados ou construídos com boa infraestrutura.

Figura 1 – Primeiras escolas estaduais de Tempo Integral no Espírito Santo

Fonte: Peterle (2016, p. 155).

Durante os anos de 2015 a 2018, o Programa Escola Viva foi implantado em 36 unidades escolares, ultrapassando a meta estabelecida de 32 unidades, propagada pelo Governo capixaba e pela ONG Espírito Santo em Ação (TEIXEIRA, 2017).

Quadro 1 – Unidades de escolas estaduais de Turno Único no Espírito Santo

Município

Unidade

Séries ofertadas

Total de vagas

1

Afonso Cláudio

CEEMTI Afonso Cláudio

Ensino Médio

640

2

Alegre

Escola Estadual Aristeu Aguiar

9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

655

3

Anchieta

SESI-SENAI

Ensino Médio

480

4

Aracruz

Escola Estadual Monsenhor Guilherme Schmitz

Ensino Médio

600

5

Baixo Guandú

Escola Estadual Baixo Guandú

Ensino Médio

600

6

Barra de São Francisco

Escola Estadual João XXIII

Ensino Médio

640

7

Cachoeiro de Itapemirim

CEEFTI Francisco Coelho Avila Jr

6º ao 9º ano do Ens. Fundamental

640

8

Cachoeiro de Itapemirim

Escola Estadual Liceu Muniz Freire

Ensino Médio

700

9

Cariacica

CEEFTI Presidente Castelo Branco

6º ao 9º ano do Ens. Fundamental

490

10

Cariacica

Escola Estadual Itagiba Escobar

6º ao 9º ano do Ens. Fundamental

600

11

Cariacica

Escola Estadual José Leão Nunes

7º ao 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

600

12

Cariacica

Escola Estadual Prof.ª Maria Penedo

Ensino Médio

600

13

Colatina

CEEMTI Conde de Linhares

Ensino Médio

520

14

Conceição do Castelo

Escola Municipal Elisa Paiva

6º ao 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

450

15

Ecoporanga

CEEFMTI Daniel Comboni

9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

640

16

Fundão

Escola Estadual Nair Miranda

9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

470

17

Guaçuí

CEEMTI Monsenhor Miguel de Sanctis I

Ensino Médio

560

18

Itapemirim

Escola Estadual Washington Pinheiro Meirelles

8º e 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

640

19

Iúna

CEEFMTI Henrique Coutinho

9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

600

20

Linhares

CEEFMTI Bartouvino Costa

9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

625

21

Mimoso do Sul

Escola Estadual Antônio Acha

8º e 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

655

22

Montanha

CEEFMTI Elpídio Campos de Oliveira

8º e 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

570

23

Muqui

Escola Estadual Senador Dirceu Cardoso

6º ao 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

480

24

Muniz Freire

CEEFMTI Bráulio Franco

9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

570

25

Pedro Canário

CEEMTI Manoel Duarte da Cunha

Ensino Médio

480

26

São Gabriel da Palha

Escola Estadual São Gabriel da Palha

Ensino Médio

700

27

São Mateus

CEEFMTI Marita Motta Santos

9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

650

28

Serra

CEEFMTI Joaquim Beato

7º ao 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

720

29

Serra

Escola Estadual Novo Horizonte

Ensino Médio

640

30

Vila Velha

CEEFMTI Pastor Oliveira de Araújo

9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

640

31

Vila Velha

CEEFMTI Assisolina Assis de Andrade

8º e 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

640

32

Vila Velha

CEEMTI Prof. Maura Abaurre

Ensino Médio

480

33

Vila Velha

Escola Estadual Galdino Antônio Vieira

6º ao 9º ano do Ens. Fundamental

550

34

Vitória

CEEMTI São Pedro

Ensino Médio

800

35

Vitória

Escola Estadual Prof. Fernando Duarte Rabelo

Ensino Médio

800

36

Viana

Escola Estadual Ewerton M. Guimarães

8º e 9º ano do Ens. Fundamental e Ens. Médio

340

Fonte: elaborado a partir de documentos do Programa Escola Viva.

Tanto a aparência física das escolas quanto o modelo foram motivos de deslumbramentos. Enquanto ocorriam manifestações contrárias, a grande mídia divulgava o Programa e supervalorizava o modelo de gestão empresarial, considerado eficaz.

Paralelamente à implementação do Programa, ocorreu o fechamento de escolas do (no) campo, como também do turno noturno nas áreas urbanas. O fechamento de escolas tem sido uma prática adotada por governos de estados brasileiros, como São Paulo, Goiás e Paraná, em nome de uma política pautada na redução de gastos públicos.

Priorizou-se um alto investimento no Programa em detrimento das demais escolas da rede regular de ensino. É possível evidenciar tal fato quando se compara o investimento realizado em três escolas que aderiram ao Programa com três da rede regular. Três escolas do Programa Escola Viva, com 1.194 alunos matriculados, receberam R$ 383.900,00, tendo um custo de R$ 321,52 por aluno, enquanto nas escolas regulares, com 3.468 alunos matriculados, o repasse total foi de R$ 210.200,00, tendo um custo por aluno de R$ 60,61 (ESPÍRITO SANTO, 2016a, 2016b, 2016c). Este valor evidencia que educação de qualidade requer recursos, e quanto maior o investimento, maior é a possibilidade de se garantir boas condições de ensino e de aprendizagem. A escola pública que não aderiu ao Programa, menosprezada no discurso oficial e no recebimento de recursos, é justamente a que acolhe os setores mais vulneráveis da sociedade, sobretudo as noturnas.

A princípio, tal fato parece ser um paradoxo. Entretanto, é compreensível na lógica que preconiza a ineficiência da escola pública vigente. O novo modelo de gestão, incorporado pelo Programa Escola Viva, é apresentado como estratégia salvadora da própria escola pública. Afinal, alinha-se à ideia de que a educação do século XXI, ao necessitar de um desenvolvimento do espírito humano, precisa promover um espírito criativo e flexível para se adequar aos desafios desse novo capitalismo (MACEDO; LAMOSA, 2015).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos anos 1990, no contexto de uma grande discussão sobre a eficiência do setor público, materializou-se uma agenda constitucional sob o ideário neoliberal. As reformas de então questionavam as políticas do Estado Providência e os direitos sociais, considerados responsáveis pela crise econômica. Diante desse quadro, impôs-se como imprescindível retomar os “mecanismos de mercado aceitando e tendo como base a tese de Hayek de que as políticas sociais conduzem à escravidão e a liberdade de mercado à prosperidade.” (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2003, p. 95).

Nessa perspectiva, o Estado tem apostado em um novo arranjo de gestão, tendo a participação de segmentos da sociedade civil nas políticas educacionais, cujo foco recai em práticas/valores capitalistas sob o pretexto de melhores resultados. Assim, enaltecem a competição, a meritocracia e o controle por meio de avaliação externa.

Projetos da natureza do Programa Escola Viva estão inseridos nessa lógica e, por mais que encontrem resistência de distintos setores, multiplicam-se, pois interessam ao grande capital. Há um movimento crescente do Estado brasileiro favorecendo organizações como ICE e a ONG Espírito Santo em Ação. O discurso do então Secretário de Educação, Haroldo Corrêa Rocha, denigre o próprio sistema educacional público do Estado do Espírito Santo. O Programa Escola Viva é apresentado como estratégia para reverter a situação de fracasso da educação pública. Entretanto, segundo Oliveira e Lirio (2017), o Governo capixaba privilegia sua antiga parceria com a ONG ES em Ação em detrimento à rede pública como um todo. Ou seja, ancorado em ideias neoliberais, o Programa introduz novos elementos para a gestão educacional, como monitoramento por resultados, parcerias e corresponsabilidade social numa perspectiva salvacionista. O setor privado, ao obter o protagonismo, reduz a autonomia dos professores e aumenta o controle, pretendendo, a um só tempo, melhorar os resultados nas avaliações em larga escala e nortear a gestão sob uma matriz gerencialista, a partir de modelos padronizados em valores empresariais, pautados na produtividade, eficiência e eficácia.

O desafio, assim, não é apenas questionar o que está posto, mas buscar alternativas que democratizem as práticas internas, contrapondo-se às práticas de um profissionalismo verticalizado, que cindem o pensar do fazer e impõem trabalhos padronizados, regulados e controlados a distância (ANDERSON, 2017). No espaço público da escola, é possível construir maneiras democráticas de pensar, sentir, liderar e gestar em contraposição à coisificação humana. Apesar da força do mercado, que redefiniu e reduziu o conceito da democracia ao liberalismo (WOOD, 2011), faz-se necessário apostar numa política alicerçada em valores democráticos.

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Endereços para correspondência: Luciane M. de O. Matos. Av. Gov. Afonso Claudio, 14, Bairro Juparanã, 29900-633, Linhares, Espírito Santo, Brasil; lucianemartins.matos@gmail.com

Roteiro, Joaçaba, v. 45, p. 1-20, jan./dez. 2020 | e23378 |E-ISSN 2177-6059


1 Doutora e Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.

2 Doutora em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá; Mestra em Ciências da Educação Superior pelo Programa Centro de Estudio y Desarrollo Educacional da Universidade de Matanzas Camilo Cienfuegos, Cuba.

3 Doutora e Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá.

4 ONG Espírito Santo em Ação é uma organização empresarial criada em 2003 com o objetivo de pensar organizar e articular propostas de desenvolvimento para o Estado do Espírito Santo com agentes públicos e privados. Pretende edificar uma gestão pública eficiente e institucional com a formação de liderança (ESAÇÃO, 2019).