https://doi.org/10.18593/r.v44i3.19966
Bourdieu y lo político
Gabriela Albanás Couto1
Universidade Federal de Santa Catarina, Doutoranda em Educação
Schirlei Russi Von Dentz2
Universidade Federal de Santa Catarina, Doutoranda em Educação
Ione Ribeiro Valle3
Universidade Federal de Santa Catarina, Professora, bolsista de produtividade em pesquisa CNPq nível 1D
GAMBAROTTA, Emiliano. Bourdieu y lo político. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2016. 310 p.
Bourdieu y lo político,4 livro de 2016 publicado na Argentina por Emiliano Gambarotta,5 tem como principal argumento a centralidade da questão do “político” na teoria social produzida por Pierre Bourdieu (1930-2002). A dominação social, seus mecanismos e como estes produzem e reproduzem as (e nas) práticas sociais é seu foco principal de análise. A opção por centrar-se no “político”, afirma o autor, deve-se ao fato de considerá-lo chave de leitura para toda a teoria bourdieusiana, argumento que ele explora de maneira instigante ao longo da obra. Para Gambarotta, pensando com Bourdieu, a dominação ocorre nas práticas sociais por uma espécie de “alquimia simbólica”; nela a educação ocupa um papel fundamental. É com o objetivo de apontar a centralidade da questão da dominação na sociologia bourdieusiana que o autor retoma suas categorias fundamentais, a saber, o nomos, que diz respeito às práticas sociais, e a doxa, que estaria na dimensão do simbólico, buscando mostrar ao leitor o movimento dialético entre as instâncias nomos/objetivo/práticas e doxa/subjetivo/simbólico, a partir do e atravessado pelo modo de pensar relacional característico de Pierre Bourdieu. Gambarotta, todavia, não se limita a mostrar os desvelamentos da realidade social que a teoria de Bourdieu produz, mas nos leva a pensar em possibilidades de rompimento da dominação, o que chama de “o disruptivo” da sociologia bourdieusiana.
Colocando Bourdieu em diálogo com diversos pensadores de correntes atuais, especialmente aquelas que o autor denomina “teorias pós” – pós-modernismo, pós-estruturalismo, etc. –, Gambarotta localiza a sociologia bourdieusiana no cenário do pensamento social atual, analisando e respondendo a críticas que Bourdieu recebe dessas variadas correntes de pensamento. Seguindo a construção de uma dinâmica dialética, Bourdieu desenvolve seus argumentos em torno de um questionamento que acompanha toda a obra: “como acontece a política?”. Compreendendo política como sendo “(des)ordenamento social”, ou seja, as estratégias de reprodução ou de ruptura do status quo, Gambarotta nos convida a refletir, a partir dos conceitos centrais da teoria bourdieusiana postos em relação, como a sociedade produz sua própria desordem e como é possível que se ordene a si mesma.
A obra é composta por cinco capítulos, mais um excursus – capítulo central que marca a transição entre os conceitos fundamentais postos em debate com teorias sociais contemporâneas de abordagem “pós” e os capítulos finais, nos quais o autor constrói sua argumentação principal, a da dominação social em face ao político –, além de um capítulo de conclusão. Assim, de acordo com o próprio autor, o livro foi organizado em torno de três eixos, a saber: 1) um esboço das características principais da perspectiva elaborada por Bourdieu, abordando os diferentes núcleos investigativos com os quais ele se ocupou ao longo de sua obra; 2) um enfoque mais específico em sua teoria da dominação social reconstruindo os vários elementos que lhe dão especificidade, uma vez demonstrada ser esta a preocupação central em sua sociologia; e 3) o esforço por esboçar uma teoria crítica reflexiva do político, em discussão com o pensamento “pós”.
No capítulo inicial, Introdução: conceitos e estilo, Gambarotta visita o que chama de “princípios fundamentais da perspectiva bourdieusiana”: campo e capital, agente, habitus e prática, illusio, nomos e doxa, nesta sequência agrupados. Esse capítulo serve tanto ao leitor iniciante na teoria bourdieusiana, que encontrará ali, de maneira relacional, as principais categorias teóricas de Bourdieu, quanto aos leitores mais familiarizados e conhecedores de sua obra, tratando-se, portanto, de uma inovadora leitura dessas categorias já consagradas na sociologia contemporânea. Para Gambarotta, tais categorias estão enraizadas em uma lógica pautada pela dialética reflexiva, em um movimento entre subjetivismo e objetivismo. Assim, ele procura nos mostrar de que forma Bourdieu rejeitou a divisão (artificial) entre os modos de conhecimento subjetivista e objetivista, propondo, em contrapartida, a “prática de um estilo de movimento dialético-reflexivo”; concepção presente no cerne de sua teoria social. Esse movimento dialético-reflexivo (o modus operandi de Bourdieu, segundo o autor) é apontado por Emiliano Gambarotta como herança da influência do filósofo Maurice Merleau-Ponty na teoria bourdieusiana.
O capítulo dois, Para uma crítica corporal do político, enfoca a sociologia do corpo em Bourdieu e desenvolve uma discussão sobre o “pensamento pós”, especificamente acerca de duas de suas vertentes: os estudos culturalistas do corpo e o pós-estruturalismo, especialmente em Judith Butler. Seu objetivo é delinear a noção de “modo de corporalidade” como núcleo de uma proposta que busca avançar para uma crítica corporal do político. Gambarotta argumenta que a produção da corporalidade tem seu lugar na conformação dos grupos e em sua diferenciação em relação aos demais e considera, a partir da leitura que faz de Bourdieu, o uso dos corpos como fator produtor de distinção, o que estaria na base da dominação social.
O terceiro capítulo, Um materialismo cultural, é centrado na “sociologia da cultura” praticada por Bourdieu, fundamentada em uma lógica e em uma “economia das práticas”. Seu objetivo é problematizar a função da cultura no político a partir da construção de uma perspectiva de crítica cultural. O autor justifica a relevância e a atualidade desse debate com o “pensamento pós”, horizonte conceitual predominante neste início de século XXI, constituindo-se no Zeitgeist de nosso tempo, cuja consequência seria a dissolução da possibilidade da crítica. O autor, dessa forma, constrói sua própria crítica sobre as duas vertentes principais do pensamento pós, o culturalismo e o pós-estruturalismo.
Entre o terceiro e o quarto capítulo aparece o que Gambarotta denomina de excursus, ou seja, uma digressão pela sociologia da educação bourdieusiana, uma vez que esta é, segundo ele, fundamental tanto para a sociologia da cultura quanto para a sociologia política. O mérito herdado: a produção escolar de uma nobreza, título dado a este excursus, expõe alguns questionamentos que as chamadas teorias da resistência fazem à sociologia da educação bourdieusiana, especialmente a partir de Jacques Rancière. Gambarotta explica que, sendo a centralidade da obra de Bourdieu a realização de um pensamento dialético entre objetivismo e subjetivismo, efetuado por seu modo de pensar relacional, o sociólogo rejeita as concepções objetivistas que eliminam a autonomia do sistema de ensino – que funcionaria como mera engrenagem de um conjunto – e as subjetivistas, como se somente a origem social definisse o êxito escolar. Sob esse prisma, a contribuição da escola para a reprodução das desigualdades sociais se daria de forma dialética por meio de uma complexa trama de mediações, entre as quais Gambarotta destaca: a herança cultural, interpretada pela escola como elemento de distinção; a autoridade pedagógica, que legitima o arbitrário cultural; a taxonomia escolar, criadora de lógicas de classificação e de hierarquias entre os estudantes. Pierre Bourdieu desvelou a relação tida como natural que certos estudantes têm com o conhecimento e a rotina escolar, naturalizada como “aptidão” ou “dom” para os estudos, o que, na verdade, advém de uma herança familiar. A consequência disso, conforme destaca Gambarotta, é que “a herança (de capital cultural) põe grupos de estudantes em desiguais posições de partida no início de suas trajetórias educacionais. Lógica que, por sua vez, faz desses saberes e usos da cultura um capital.” (GAMBAROTTA, 2016, p. 171, grifo do autor). Esse argumento vai ao encontro da tese central da obra Os herdeiros, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1964), a de que “o sistema de educação, deve, entre outras funções, produzir sujeitos selecionados e hierarquizados de uma vez por todas e para toda a vida.”
Gambarotta chama a atenção para a dialética entre o universal e o particular presente no que seria uma “pedagogia racional”, ideia esboçada no último capítulo de Os herdeiros. O autor considera a dialética entre o universal e o particular na educação como eixo central dessa proposta e busca a partir daí desvelar a dominação presente no arbitrário cultural imposto pela escola; dominação esta que (re)produz desigualdades escolares e, por conseguinte, sociais. Para tanto, seguindo o pensamento de Bourdieu, propõe conhecer as leis de reprodução e de dominação social, a fim de que se tenha alguma possibilidade de minimizar a ação reprodutora da instituição escolar, entre elas a ideologia do dom, negação do processo social “da herança de um capital cultural e sua relação com o trabalho pedagógico familiar produtor de um habitus mais ou menos afim com o sistema de ensino” (GAMBAROTTA, 2016, p. 195). Tal processo conduz, na prática, a uma resignação e à legitimação da lógica da dominação, contribuindo, assim, para “a reprodução do político, ao fixar cada um em seu lugar através da despolitização que a naturalização inculca.” (GAMBAROTTA, 2016, p. 196).
O autor reconhece que, embora sejam questões próprias do âmbito educativo, por serem também sociais e, sobretudo, políticas, demandam saídas também políticas, que se desdobram em um desafio mais amplo: politizar a cultura política despolitizada e despolitizante. A partir desses pressupostos bourdieusianos, Gambarotta lança, então, os seguintes questionamentos: “como propor que o sistema de ensino não seja uma instância que contribui para a reprodução da desigual distribuição do capital cultural, mas, sim, de concretização da igualdade”? e “como a escola pode ser uma instância democratizadora?” (GAMBAROTTA, 2016, p. 196).
No quarto capítulo, Um estilo ilustrado: o lugar da ciência no político, o autor problematiza a relação entre o conhecimento sociológico e o político, com investimento maior nas obras de Bourdieu dedicadas à política, especialmente aquelas que fazem do Estado seu problema, de forma a complementar o estudo acerca da dominação, qualificada como “dominação simbólica”. A reflexão questiona como a prática de produção de conhecimento sociológico, ou das ciências sociais em geral, “pode ser ela mesma uma prática disruptiva no político.” (GAMBAROTTA, 2016, p. 201). A caracterização dos traços gerais da sociologia política de Bourdieu nos permitirá analisar o lugar que a sociologia se dá a si mesma nas lutas pelo político e aqui, novamente, faz-se possível realizar um diálogo com os questionamentos que Rancière dirige a Bourdieu e o desafio que eles nos lançam para pensar a crítica hoje. Lidar com esse desafio é o que nos conduzirá a propor um giro estético na concepção do simbólico, de acordo com o autor.
O capítulo cinco, (Des)politização e democracia: sobre a prática disruptiva do político, ocupa-se em discutir uma prática disruptiva do político, indagando, especialmente, aquela disrupção do estabelecido que será chamada de “democratização”. Novamente, o pensamento de Rancière é posto em tensão com o de Bourdieu, tensão crucial para a problematização do conceito de democracia. Esse capítulo é concluído com a ideia de que cabe denominar as questões técnicas e estéticas da democracia na maneira como a sociedade se ordena e desordena a si mesma. A democracia, afirma Gambarotta, é, nesse sentido, esse “estilo” de (des)ordenamento do social que acolhe a incerteza em seus próprios fundamentos.
Fechando a obra, Esboço de uma teoria crítica reflexiva do político, é dedicado à retomada das ideias principais debatidas nos capítulos anteriores, especialmente a defesa de uma leitura da obra bourdieusiana como sendo “uma vasta teoria da dominação, das práticas que a instituem e a alquimia simbólica em cuja mediação esta se produz.” A partir dessa alquimia, o autor problematiza as lógicas simbólicas e as práticas sociais que podem levar a sua disrupção.
Ao mostrar que Bourdieu realiza um movimento dialético entre as duas instâncias – o subjetivo e o objetivo – não como simples “superação” ou supressão da relação subjetivo-objetivo, mas mantendo a diferença entre elas sem cindi-las em instâncias abstratas ou isoladas entre si, Gambarotta nos faz refletir acerca de como seria possível romper com práticas sociais de dominação a partir do plano simbólico, lembrando-nos que nele a educação tem total participação e relevância.
Recebida em 28 de fevereiro de 2019
Aceita em 1 de março de 2019
Publicada em 25 de abril de 2019
Endereços para correspondência: Rua da Capela, 219, Campeche, 88063-400, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil; gabrielaacouto@gmail.com
Roteiro, Joaçaba, v. 44, n. 3, p. 1-6, set./dez. 2019 | e19966 |E-ISSN 2177-6059
1 Doutoranda na linha de Sociologia e História da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina; Mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo; https://orcid.org/0000-0002-6000-5634; http://lattes.cnpq.br/9918967454987628.
2 Doutoranda na linha de Sociologia e História da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina; Mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina; https://orcid.org/0000-0002-0332-8517; http://lattes.cnpq.br/9797662752702698.
3 Pós-Doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris; Doutora em Ciências da Educação pela Université René Descartes – Paris V Sorbonne; https://orcid.org/0000-0001-7496-3959; http://lattes.cnpq.br/4490226468776272.
4 Bourdieu e o político, obra não traduzida para o português, portanto, ainda inédita no Brasil.
5 Sociólogo argentino, tem se dedicado a trabalhar com “os fundamentos de uma teoria crítica da cultura política”. A partir de uma perspectiva dialética, sob o mesmo prisma da Escola de Frankfurt, vem desenvolvendo pesquisas relacionadas à influência da obra de Merleau Ponty em Pierre Bourdieu. Em 2014 publicou Hacia una teoría crítica reflexiva: Max Horkheimer, Theodor W. Adorno y Pierre Bourdieu e em 2016, Bourdieu y lo político.