http://dx.doi.org/10.18593/r.v44i1.17529

Docência na educação superior: a constituição de uma docência que opera pelo agenciamento

Teaching in higher education: the constitution of a teaching that operates by agency

Docencia en educación superior: la constitución de una docencia que opera por el agenciamiento

Daniela Pederiva Pensin1

Universidade do Oeste de Santa Catarina, Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Educação

Resumo: O artigo explora a constituição da docência na educação superior considerando a complexidade do presente. Objetiva sua problematização e o faz inspirado nos estudos de orientação foucaultiana, utilizando o discurso como conceito teórico-metodológico. O exercício investigativo realizado, caracterizado como pesquisa de caráter documental, buscou pelas recorrências discursivas na materialidade analisada. Como superfície analítica estão os Projetos Pedagógicos Institucionais (PPIs) de universidades do Rio Grande do Sul. As análises apresentadas se articulam em torno de argumentações que fazem ver a constituição singular de uma docência que opera pelo agenciamento. Como conclusão, o texto apresenta que os discursos de uma racionalidade neoliberal trazem a lógica da empresa como referência às Instituições de Ensino Superior (IES); mobilizam verdades sobre uma forma de docência que reforçam seu caráter interventivo, sistemático, intervalar e intencional, com esforços justificados pela produção, como efeito, de sujeitos capazes de produzir efeitos porque potencializados pela educação; um agenciamento que torna os sujeitos aptos a responder ao jogo econômico.

Palavras-chave: Agenciamento. Docência. Educação superior.

Abstract: The article explores the formation of teaching in higher education considering the complexity of the present. It materializes its questioning and does that inspired by Foucaultian studies, using the discourse as a theoretical-methodological concept. The investigative exercise carried out, characterized as a documentary research, looked for the discursive recurrences at the analyzed materiality. As analytical area, there are the Institutional Pedagogical Projects of universities of Rio Grande do Sul. The presented analysis articulate articulated around arguments that show the singular constitution of a teaching that operates through the agency. As a conclusion, the text presents that discourses of a neoliberal rationality bring the logic of the company as a reference to IESs. They mobilize truths about a way of teaching which reinforces its interventional, systematic, interval and intentional character, with justified efforts by the production of individuals capable of producing effects just because enhanced by education; an agency that makes the individuals capable of responding to the economic game.

Keywords: Agency. Teaching. Higher education.

Resumen: El artículo explora la constitución de la docencia en la educación superior considerando la complexidad del presente. Objetiva su problematización y lo hace inspirado en los estudios de orientación foucaultiana, utilizando el discurso como concepto teórico-metodológico. El ejercicio investigativo realizado, caracterizado como investigación de carácter documental, ha buscado las recurrencias discursivas en la materialidad analizada. Como superficie analítica están los Proyectos Pedagógicos Institucionales de universidades de Rio Grande do Sul. Los análisis presentados se articulan alrededor de argumentaciones que hacen ver la constitución singular de una docencia que opera por el agenciamiento. Como conclusión, el texto presenta que los discursos de una racionalidad neoliberal traen la lógica de la empresa como referencia a las IES. Movilizan verdades sobre una forma de docencia que refuerza su carácter de intervención, sistemático, de intervalos e intencional, con esfuerzos justificados por la producción, como efecto de sujetos capaces de producir efectos porque potencializados por la educación. Un agenciamiento que torna a los sujetos aptos a responder al juego económico.

Palabras clave: Agenciamiento. Docencia. Educación superior.

Recebido em 17 de junho de 2018

Aceito em 10 de julho de 2018

Publicado em 19 de fevereiro de 2019

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, proponho desenvolver a noção de docência como agenciamento. Para tanto, utilizo dados e parte das análises que desenvolvi no percurso de construção de minha tese de doutoramento em educação, defendida em 2017. Ao longo do texto mobilizei argumentos que me permitem o emprego do termo agenciamento como adjetivação de uma docência singular. Fiz isso com a finalidade de mostrar que a docência na educação superior tem se constituído em meio a discursos que fazem dela uma ação intervalar de potencialização do outro, uma ação capaz de produzir algo que possa produzir efeitos.

A elaboração deste texto está posicionada a partir da compreensão de que uma investigação é uma trama a ser narrada. Nesse sentido, a docência na educação superior é uma trama narrada por mim (e por tantos outros narradores), uma trama que escolhi narrar a partir de certas ferramentas e sob uma perspectiva. Na construção desta narrativa, assumo a posição de que “quem interpreta não descobre ‘a verdade’: quem interpreta a produz” (SILVA, 2008, p. 39); é este, pois, um exercício inventivo (SILVA, 2008).

Ao tomar como objeto a docência na educação superior e perguntar sobre como os discursos constituem e o que enunciam sobre ela, a pesquisa que dá sustentação a este artigo se propôs a problematizar essa docência e o fez inspirada nos estudos de orientação foucaultiana, servindo-se do discurso como conceito teórico-metodológico. O exercício investigativo realizado, caracterizado como pesquisa documental, buscou pelas recorrências discursivas na materialidade analisada. Como superfície analítica estão os Projetos Pedagógicos Institucionais de nove universidades do Rio Grande do Sul,2 cuja abrangência temporal compreende o período entre os anos 2000 e 2014.

Os discursos, na materialidade analisada, dão visibilidade a uma docência com características específicas, constituída em meio a um contexto em que as marcas de uma lógica neoliberal acentuam a mercantilização (BECHI, 2011) e o empresariamento da educação superior. Os documentos que compõem a materialidade estudada movimentam discursos que me permitiram destacar, como constituintes de uma forma (e não uma fôrma) de docência, dimensões que se articulam e se tramam entre si: dimensão do mercado; dimensão do conhecimento e tecnologia; e dimensão da humanização. A exploração dos elementos que, a partir das lentes utilizadas para o exercício analítico a que me propus, fazem ver uma docência singular articulada à noção de agenciamento é, pois, objeto do texto que segue.

2 DISCURSOS INSTITUCIONAIS E CONSTITUIÇÃO DA DOCÊNCIA

Ao trabalhar com o discurso como operador teórico-metodológico e buscar nos estudos foucaultianos referências para o desenvolvimento da pesquisa, minhas análises se aproximaram de outras que levam em consideração a capacidade da prática discursiva de formar objetos, enunciações, jogos conceituais e escolhas temáticas e teóricas, visando à construção de proposições (com ou sem coerência), descrições, verificações, teorias e verdades. O objeto docência na educação superior surge, nessa perspectiva, quando condições discursivas e não discursivas o produzem (GIACOMONI; VARGAS, 2010). O exercício analítico que desenvolvi, tomando como materialidade Projetos Pedagógicos Institucionais (PPIs) de instituições universitárias, buscou por discursos reais e não por aquilo que talvez o discurso quisesse dizer; buscou pelo discurso dito, pronunciado. Tornados oficiais, de caráter institucional, os discursos presentes nesses documentos estão autorizados a pronunciar verdades sobre a docência, uma vez que se encontram sustentados em um suporte histórico, institucional, em uma materialidade que permite ou proíbe sua realização (FOUCAULT, 2012).

A perspectiva de discurso utilizada para o desenvolvimento do estudo em questão tem inspiração em Foucault (2014, p. 131), que, em Arqueologia do Saber, define discurso como “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação” ou em uma mesma formação discursiva. Sob essa perspectiva, há uma ordem do discurso própria de um período particular, que possui “uma função normativa e reguladora e estabelece mecanismos de organização do real por meio da produção de saberes, de estratégias e de práticas.” (REVEL, 2011, p. 41). Desse modo, os discursos sobre a docência presentes na materialidade dos PPIs constituem-se em possibilidade de normatização, regulação e organização da docência, na medida em que discursam “verdades” ou “o verdadeiro” sobre ela com relação a esse período particular, o presente.

Os documentos institucionais que constituíram a superfície analítica do estudo demonstraram a materialidade de discursos e verdades sobre a docência na educação superior que implicam um modo de concebê-la e, assim, torná-la uma docência desejada institucionalmente. É importante destacar o caráter singular da docência que aqui apresento e sobre o qual desenvolvo meus argumentos. Um caráter singular que se dá em meio à pluralidade de formas de docência, às muitas possibilidades narrativas de diferentes exercícios inventivos. Consideradas as possibilidades narrativas, a materialidade analisada3 indica a movimentação da docência em um ambiente discursivo em que instituições de ensino superior (IES) a concebem, prevalentemente, a partir da racionalidade de mercado, das exigências de produção de conhecimento e tecnologia e da idealização de uma educação humanizadora e potencializadora.

Afirmar que a docência na educação superior opera pelo agenciamento implica explorar essa noção no contexto deste texto. Embora a palavra agenciamento, na língua portuguesa, seja classificada como substantivo, traz consigo a ideia de ação. Desse modo, agenciamento é aqui tomado como ação, processo, atuar, fazer ou realizar algo, produzir efeito, operar. O caráter intencional e sistemático que historicamente vem caracterizando o ensino e os processos educativos formais com os quais lida a docência traz à noção de agenciamento a compreensão de que esta seja uma ação projetada, estimada, mas nunca totalmente previsível, controlável.

A docência, organizada e projetada de modo a operar pelo agenciamento, não é monocromática, e sim constituída pela complexidade. Na interpretação de Escóssia (2010, p. 17) sobre o conceito de agenciamento em Deleuze, encontro sustentação para uma percepção policromática de docência uma vez que nela o agenciamento “é uma relação não de formatação, mas [...] de acoplamento ou composição.” Mesmo que o conhecimento pedagógico ou a Pedagogia como campo de saber exerçam sobre a docência grande força no sentido da sistematicidade, intencionalidade, planejamento e organicidade, essa compreensão da docência como agenciamento tensiona tal previsibilidade e a lógica convergente do pensamento pedagógico.

2.1 O DISCURSO DO EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Desde a perspectiva do discurso, a constituição dessa docência singular se dá no movimento das verdades que sobre ela e a partir dela circulam, sem que estejam desarticuladas, seja entre si, seja em relação ao tempo e ao espaço. O tempo hoje e o espaço aqui possuem contornos nem sempre definidos, nem sempre claros, raramente precisos; contornos com relação aos quais estão construídas visões meio turvas e fragmentadas, e em direção a elas movimentamos esforços para sua compreensão. As argumentações que desenvolvo ao longo deste texto demandam destacar a organização de um contexto no qual uma lógica de empresariamento da educação superior se coloca e se fortalece (muito possivelmente por conta das condições de possibilidade dadas pela presença da racionalidade neoliberal muito além do âmbito de mercado). É nesse e com esse movimento de empresariamento que os princípios do mercado, a produção de conhecimento e tecnologia e os ideais humanistas de formação se tramam, enredam-se, articulam-se, de modo a constituir uma forma singular de docência.

Este não é, evidentemente, o único movimento que opera sobre a educação superior no presente. Tampouco é a racionalidade neoliberal a única a orientar, a implicar, a constituir a educação superior e fazer dela o que é. É inegável, contudo, que implique fortemente a educação superior, muito possivelmente pela estreita relação que a formação superior desenvolve com o mercado de trabalho e pelo “mercado” da educação em si, que tem implicado posicionamentos concorrenciais, competitivos, performáticos, orientados pela busca de recursos e pelas dificuldades de sustentabilidade financeira de muitas IES. Esse quadro tem-se apresentado de modo a envolver, mesmo que com diferenças de intensidade e impactos, IES privadas e públicas.

O que aqui estou chamando de movimento de empresariamento da educação superior traz como característica estruturante a presença, nas IES, de uma racionalidade orientada por princípios econômicos, de mercado e organizacionais em que “elementos como eficiência administrativa, articulação entre ensino, pesquisa e extensão, valorização da interdisciplinaridade” são considerados “fundamentais para a condução racional da vida acadêmica.” (PPI IV) (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, 2000, p. 9). Ao problematizar as relações entre a educação superior e o mercado, não deixo de levar em conta a vinculação existente entre ambos, dado o caráter formativo da educação superior, orientado à formação dos quadros profissionais da sociedade (BRASIL, 1996). O que me move é a inquietação diante da naturalização do conhecimento como mercadoria e da educação como serviço.

Desde meados do século XX, o conhecimento vem assumindo posição de mercadoria altamente comercializável, com alto valor de mercado, e as IES passaram a orientar-se mais e mais por uma proposta de gestão empresarial; além disso, em busca de sua sustentabilidade econômica e financeira, acentuaram a orientação de sua produção à flexibilidade das exigências do mercado (BECHI, 2011). Assistimos à “disseminação da forma de mercado ou empresarial como narrativa-mestra” (BALL, 2010, p. 50); trata-se não apenas da compreensão das instituições escolares como empresas, mas, fundamentalmente, da consideração de que se orientar por uma racionalidade empresarial é a melhor (quando não a única) forma de essas instituições alcançarem desempenho de qualidade e, assim, cumprirem seu papel na sociedade (PENSIN, 2018).

Atendendo a essa lógica, o desempenho das IES passa a ser caracterizado por seus elementos quantitativos, medidos por indicadores performáticos capazes de demonstrar a eficiência e a eficácia dos processos “produtivos” ali desenvolvidos. Mesmo que muitas vezes a “clientela” a que se destina a formação superior desconheça termos técnicos referentes às avaliações externas que regulam a educação superior no País, existem esforços no sentido da apresentação de dados presentes em um tipo de discurso que dá a entender a existência de qualidade institucional. Para ilustrar, é nessa direção que uma das instituições pesquisadas apresenta em destaque em seu site a informação de que “obteve pontuação de 3,817 no IGC contínuo, classificando-se na faixa 4 (sendo 5 a máxima possível). Entre as universidades gaúchas, está na 3ª colocação.”4 A universidade assume para si a lógica da competitividade, da concorrência, da inserção em um mercado ávido por consumir conhecimento, tecnologia, inovação. A quase “vocação” das IES ao atendimento às demandas da sociedade, que são acima de tudo as demandas do mercado, manifesta-se no entendimento de que “alunos e professores são ambos responsáveis pelos resultados. Ambos devem estar atentos à realidade externa, sendo hábeis para observar as demandas por ela colocadas.” (PPI IV) (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, 2000, p. 10).

As tensões e conflitos que coabitam o território da docência na educação superior também se apresentam nos PPIs, indicando a prevalência de discursos na lógica do empresariamento, mas não sua unanimidade. Por um lado vemos a valorização de parcerias e convênios de cooperação que “contribuem para a qualificação profissional na perspectiva da educação continuada, captam novas demandas a serem contempladas nos currículos para garantia de uma formação inovadora, atenta às transformações contemporâneas.” (PPI III) (PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL, 2011, p. 20). De outro, destacam-se manifestações institucionais que parecem se colocar como rota de fuga em relação à lógica que aqui procuro discutir. Em uma delas, temos o entendimento de que, “se é verdade que, em larga medida, o mercado de trabalho depende do fluxo de egressos do ensino superior, disso não resulta, no entanto, que a Universidade seja apenas uma prestadora de serviços para a cobertura de vagas.” (PPI IV) (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, 2000, p. 7). As IES também reconhecem que “é preciso, portanto, equacionar a tensão que se estabelece entre as exigências da prática e o distanciamento crítico necessário ao exercício de sua função social, superando a concepção tradicional sem sucumbir à lógica mercantil.” (PPI V) (UNIVERSIDADE FEEVALE, 2012, p. 38).

2.2 AGENCIAMENTO, AGÊNCIA E AGENTE NO CONTEXTO DA DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA

As vinculações crescentes entre a educação superior, a organização e o funcionamento das IES e o contexto de mercantilização do ensino superior (BECHI, 2011), ou o que aqui estou tratando como o contexto de empresariamento da educação, levam-me a organizar meus argumentos sobre a docência aproximando-os de uma lógica empresarial. A escolha do termo agenciamento tem, declaradamente, relação com a disseminação dessa lógica empresarial e mercantil no âmbito das IES e da educação superior. Agência e agente são termos que também mobilizo na explicitação de meus argumentos e que têm, ambos, relação com o universo discursivo empresarial. Não foram, portanto, escolhas isentas ou desinteressadas.

Compreendendo-se agência (do latim agentia) como a capacidade de agir, de desincumbir-se de uma tarefa, a universidade é, pois, aquela que atua no sentido de realizar sua tarefa — uma tarefa demandada por outro. A agência é o lugar, a organização, “o estabelecimento que, mediante retribuição, se destina a prestar serviços, como intermediário, em negócios alheios” (HOUAISS, 2009, p. 67), presta-se, desse modo, a realizar uma tarefa, a prestar um serviço especializado (FERREIRA, 1999). Sendo os propósitos da escolaridade definidos em termos cada vez mais instrumentais, “como um meio para outros fins”, nas palavras de Young (2007, p. 1291), a educação em si acaba se transformando em um mercado, e as escolas são “tratadas como um tipo de agência de entregas, que deve se concentrar em resultados.” (YOUNG, 2007, p. 1291). Nessa lógica, a prestação de serviços da “agência” materializa-se “na oferta de serviços educacionais com alta aplicabilidade em seus distintos cenários.” (PPI II) (UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL, 2013, p. 33).

A presença das IES, nessa lógica, implica assumir referenciais que orientem sua atuação nessa direção, que subsidiem pedagogicamente suas ações e que lhes permitam criar diferenciais para se inserirem de maneira qualificada e competitiva em uma realidade caracterizada pelo acesso de classes econômicas de menor poder aquisitivo ao ensino superior (PPI I) (UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO, 2006) — o que, entendem as IES, impacta diretamente no valor das mensalidades, no caso das instituições não públicas. Além desse fator, a criação de diferenciais competitivos seria justificada “pela proliferação indiscriminada de cursos superiores, pelo desemprego crescente, pela instabilidade da economia nacional e internacional.” (PPI I) (UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO, 2006, p. 14). As IES veem-se envolvidas na busca por alternativas de sustentabilidade e garantia de mercado e reconhecem “a necessidade de investir em parcerias e convênios com empresas e instituições diversas.” (PPI I) (UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO, 2006, p. 14).

Na prestação de seus serviços, a agência demonstra preocupações com “a eficiência de seus processos acadêmicos e de apoio [...] qualificando o atendimento [...] compreendendo e atendendo as necessidades e expectativas dos alunos.” (PPI II) (UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL, 2013, p. 74). A presença da educação superior e das IES no contexto já apontado faz com que estas indiquem à docência suas escolhas e posicionamentos, com que a orientem segundo nuances e ênfases que, por um lado, não se mantêm estáticas e, por outro, lhe trazem uma institucionalidade.

Na perspectiva da IES como agência, faz-se necessário aquele que atua, que opera, que age, aquela pessoa especializada que cuida de negócios por conta alheia (FERREIRA, 1999): o agente. Como pessoa especializada, é considerado agente não aquele que atua de qualquer modo, e sim aquele capaz da atuação adequada, precisa, especializada (PENSIN, 2018). Um profissional “capaz de dar respostas concretas e imediatas aos problemas que surgem em sua atividade diária, quando engajado no mercado de trabalho.” (PPI II) (UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL, 2013, p. 38). No contexto da educação superior, são os professores e os alunos aqueles que, fundamentalmente, são considerados agentes. São eles que, potencializados pelos processos produtivos da agência, tornam-se aptos e, em outra perspectiva de olhar, úteis ao jogo econômico e prontos para serem incluídos.

Capazes de agir na sociedade porque tornados melhores, os agentes/alunos egressos atuariam sobre o meio de modo a transformá-lo, a dominá-lo em razão dos interesses da sociedade. Tornados, pela educação, “sujeitos conscientes das exigências éticas e da relevância pública e social dos conhecimentos, habilidades e valores adquiridos na vida universitária”, a inserção dos agentes/alunos egressos nos “respectivos contextos profissionais de forma autônoma, solidária, crítica, reflexiva e comprometida com o desenvolvimento [...] objetiva a construção de uma sociedade justa e democrática.” (PPI VIII) (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA, 2014, p. 40).

O agente é o ser animado que, segundo seu livre arbítrio, gera ou pratica uma ação (HOUAISS, 2009). O agente é aquele capaz de ações especializadas, adequadas, valorosas, sobre o meio/outro e sobre si, porque foi tornado apto para tal. O agente é resultado de um processo articulado de subjetivação, de constituição dos sujeitos; de um processo de educação e, por isso, de condução da conduta. Fazendo uso de Biesta (2013, p. 16), o agente é o sujeito que resulta de “uma intervenção motivada pela ideia de que tornará essa vida, de certo modo, melhor: mais completa, mais harmoniosa, mais perfeita — e talvez até mais humana.” O presente, que se apresenta como um tempo em que a lógica do empresariamento se coloca às IES, sinaliza para um “melhor” caracterizado como inovador, empreendedor, competente, capaz de trabalhar em equipe, flexível, disposto a aprender continuadamente, racional, autônomo, crítico, solidário, cidadão, responsável socialmente, tolerante e apto a produzir, o que no capitalismo cognitivo implica ser capaz de produzir ativos cognitivos, imateriais (PENSIN, 2017).

Empreender-se é uma característica muito forte no agente na atualidade. Ser empreendedor é uma forma de ser “melhor”, de estar apto, potente. O egresso da educação superior, nessa ótica, é o indivíduo “pró-ativo na resolução de desafios, respondendo-os com conhecimento e empreendedorismo.” (PPI II) (UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL, 2013, p. 40). Com “capacidade para trabalhar em grupo, gerenciar processos para atingir metas, trabalhar com prioridades, avaliar, lidar com as diferenças, enfrentar os desafios das mudanças permanentes, resistir a pressões [...] e assim por diante” (PPI VI) (FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DE PORTO ALEGRE, 2012, p. 50), é ele o agente que constrói a si próprio, que age também sobre si, dando à sua vida a coerência de uma narrativa (ROSE, 2011); o indivíduo, afirma Rose (2011, p. 220), “deve tornar-se, por assim dizer, um empresário dele mesmo.”

A literatura educacional tem, entre suas muitas elaborações e perspectivas, a presença marcante da ideia do “professor como agente transformador”, especialmente a partir das construções do que se reconhece na área como Pedagogia Crítica. Com isso, compreende-se a atuação profissional do professor como orientada à transformação da sociedade, tendo, então, um forte componente político.

Diferentemente da concepção de agente presente na lógica do empresariamento da educação que venho apresentando, o professor, na concepção da Pedagogia Crítica, é transformador e dotado de pensamento crítico, ou seja, de um pensamento “que se movimenta numa direção emancipatória com um senso onipresente de autoconsciência.” (KINCHELOE, 1997, p. 36). Essa consciência do professor é orientadora de sua atividade profissional e faz com que sua prática educativa seja “uma forma de intervir na realidade social” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2008, p. 178); uma intervenção consciente e politicamente comprometida. A perspectiva do professor como um agente de transformação social “se opõe à do enfoque tecnológico e pseudocientífico” e traz sustentação às metáforas do professor como “pesquisador, intelectual crítico, à importância da pesquisa na ação, do ensino reflexivo e da autonomia dos professores.” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2008, p. 187).

O compromisso do professor com a transformação social, que faz dele um agente de transformação, traz consigo a compreensão freireana de que o ato educativo é um ato político e a exigência de que, na atuação educativo-política do professor, haja consciência, uma vez que sua ação não terá condições de ser transformadora se ele não tiver clareza em face de e a favor de quem pratica sua ação de educar (TORRES, 2003). O professor agente transformador é, assim considera Giroux (1997, p. 163), um intelectual transformador que necessita “tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico.” O principal papel do professor intelectual transformador é desenvolver, em suas práticas pedagógicas cotidianas, “pedagogias contra-hegemônicas” que proporcionam aos estudantes conhecimentos e habilidades sociais para “poderem funcionar na sociedade mais ampla como agentes críticos, mas também educam-nos para a ação transformadora.” (GIROUX, 1997, p. 29).

Penso que essa concepção de professor e de sua potencialidade transformadora reverbera nos discursos que movimentam verdades sobre uma docência e um professor “poderosos”. Mídias (sociais, impressas, televisivas) fazem circular discursos sobre uma docência e um professor de relevância social, uma vez que em suas mãos estaria o futuro da sociedade, cabendo-lhe a formação dos cidadãos e um papel fundamental no desenvolvimento de uma sociedade mais justa e democrática. Mesmo que o entendimento da ação docente como uma ação transformadora, crítica, geradora de autonomia e construtora de cidadania que se pode ler na proliferação discursiva do presente esteja vinculado a outros propósitos ou ancorado em outras percepções político-ideológicas que não aquelas defendidas pela Pedagogia Crítica, ainda assim as verdades que circulam e organizam a ideia do que seja o professor reforçam a sua concepção como agente transformador.

2.3 AÇÃO INTERVALAR E DE POTENCIALIZAÇÃO: A DOCÊNCIA QUE OPERA PELO AGENCIAMENTO

A docência movimenta-se historicamente e assume diferentes matizes de condução, mas segue sendo uma condução orientada a fazer o outro melhor porque transformado pela educação. O exercício de análise desenvolvido a partir da materialidade pesquisada fez ver que o agenciamento pelo qual opera a docência no presente se sustenta no entrecruzamento de três dimensões: a dimensão do mercado, a dimensão do conhecimento e tecnologia e a dimensão da humanização, possuindo fortes vinculações com um mundo que se organiza a partir de uma racionalidade neoliberal que alimenta a lógica segundo a qual devem, as instituições e os indivíduos, assumir para si um funcionamento que toma a empresa como referência.

Implicada nos processos de educar e de, pela educação, fazer de homens e mulheres indivíduos em melhores condições de operar no jogo econômico, a docência que opera pelo agenciamento não é uma docência qualquer. Trata-se de uma docência específica cujos investimentos em termos de conhecimento pedagógico, de área do conhecimento com que atua o professor ou de produção de conhecimentos pela pesquisa são considerados investimentos permanentes, investimentos que “pretende[m] maximizar a ação docente, qualificando seu desempenho e tornando-o economicamente produtivo.” (SILVA, 2011, p. 120). Uma docência capaz de promover um ensino que, em termos de formação profissional inicial, tenha na qualidade “condição sine qua non para a aprendizagem e para o ingresso num mercado de trabalho competitivo e exigente.” (PPI I) (UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO, 2006, p. 17). É uma docência potencializadora que atua de modo a “constituir a formação de egressos com conhecimentos transponíveis de forma empreendedora a serviço da comunidade.” (PPI II) (UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL, 2013, p. 51). Isso faz do aluno “um cidadão capaz de um envolvimento importante no quadro das mudanças sociais” (PPI IV) (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, 2000, p. 8), além de alguém “reconhecido em sua potencialidade transformadora.” (PPI IX) (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE, 2011, p. 27).

O material analisado indica a compreensão de que a educação superior assume como compromisso a edificação do homem, a formação do agente — no sentido do sujeito potencializado, tornado melhor. Pela educação, propõe-se a fazê-lo pelo esclarecimento, no sentido humanista do termo, ainda presente nos discursos institucionais analisados.

A materialidade com que trabalhei traz a compreensão dessa docência que opera pelo agenciamento como “uma ação intervalar, que ocorre no intervalo constituído entre o que está posto, o indivíduo tal qual é no presente e aquilo/aquele que deva tornar-se.” (PENSIN, 2017, p. 188). Este “aquele que deva ser” é o sujeito educado, potencializado segundo um projeto de sociedade que tem na racionalidade neoliberal sua fundamentação. As recorrências discursivas presentes na materialidade analisada indicam a invenção de uma docência a partir da circulação de verdades que a compreendem como aquela que faz a mediação, que opera como ponte, que atua intencionalmente na direção da formação do outro segundo aquilo que ele deva ser; opera pelo agenciamento “com vistas à formação de subjetividades capazes de intervir no trabalho e na sociedade a partir da compreensão da dimensão de totalidade da prática social.” (PPI V) (UNIVERSIDADE FEEVALE, 2012, p. 65).

A noção de agenciamento com a qual venho adjetivando a docência encontra ancoragem em Maia (2010), para quem o agenciamento é um esforço, uma ação capaz de construir algo que, por sua vez, é igualmente capaz de fazer algo, de produzir um efeito. Em se tratando de processo educativo, a formação com que se compromete a universidade demanda a mobilização de recursos, conhecimentos e técnicas organizados e sistemática e intencionalmente colocados em operação. Nessa perspectiva, a docência que opera pelo agenciamento é ação cujo exercício mobiliza uma “atuação pedagógica do professor [que] passa a ser mediadora da aprendizagem, estimulando a reflexão crítica e o livre pensar, como elementos constituidores da autonomia intelectual dos acadêmicos.” (PPI VIII) (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA, 2014, p. 27). A docência é esse esforço orientado a fazer algo — estimular acadêmicos, objetivando que se constituam capazes de produzir efeitos.

A atmosfera dos materiais analisados possibilita indicar um tipo de agenciamento, aquele que tem como esforço construir um sujeito capaz de produzir um efeito, parafraseando Maia (2010). Um agenciamento que, apoiado na compreensão inspirada em Deleuze e apresentada por Fuganti (2016), tem sentido de criação, de produção e autoprodução permanentes, de produção de subjetivações projetadas, estimadas. A docência na educação superior no presente opera pelo agenciamento orientado pela ideia de formação do sujeito potencializado pela educação, com condições de responder positivamente (1) à racionalidade de mercado porque possuidor de diferenciação competitiva, inovador, empreendedor, criativo, eficiente e flexível; (2) às exigências de rigor e produção de conhecimento científico, tecnologia e inovação; (3) às demandas por uma atuação transformadora alicerçada nos princípios humanistas de autonomia, liberdade e cidadania, construídos sobre a base da educação e do esclarecimento, da solidariedade e da responsabilidade social.

As recorrências discursivas encontradas nos documentos dão mostras frequentes de que as influências do contexto de empresariamento se apresentam e imprimem à docência a ideia de ação que se propõe, por exemplo, a “identificar estudantes com inaptidão para a área do conhecimento à qual se vinculam e encaminhá-los para serviços de orientação psicopedagógica e aconselhamento, com vistas ao redirecionamento profissional.” (PPI I) (UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO, 2006, p. 23). Ou seja, cabe à docência o agenciamento adequado sobre o profissional em formação, e, se identificada uma inadequação ao propósito da formação por parte daquele a ser formado, este deve ser realocado, até encontrar seu lugar no jogo econômico em operação.

Não são raras as manifestações de estudos que, pelo menos desde os anos 1990, têm indicado transformações no neoliberalismo e suas articulações com o campo da educação. Alguns deles, a exemplo de Saraiva e Veiga-Neto (2009), trazem a ascendência da empresa como modelo do capitalismo contemporâneo. Essa nova configuração traz a empresa como uma espécie de criado de mundos aos quais é preciso pertencer, aos quais é desejável pertencer. O consumo deixa de ser necessariamente possuir e passa a ser, também, pertencer (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009). Em termos de educação superior, isso significa pertencer ao mundo dos educados, profissionalizados, aptos, potencializados, flexíveis, inovadores, empreendedores, racionais, críticos, conscientes, tolerantes, solidários e socialmente responsáveis.

Os discursos presentes na materialidade investigada mostram que a docência, apesar de ser atingida pelos movimentos que configuram o que Biesta (2013) chama de ênfase na linguagem da aprendizagem e consequente esmaecimento do ensino, segue orientada pela ideia de intencionalidade, de ser uma ação metódica e sistemática; segue como intervenção na vida do outro; segue como uma ação cuja razão de ser é produzir efeito no outro, de modo que este, potencializado pela educação (entenda-se pela condução da docência), seja capaz de produzir efeitos racionais, que podem dar soluções inovadoras aos problemas do cotidiano, produzir conhecimento articulado à responsabilidade social de um sujeito transformador.

Os processos educativos na educação superior objetivam, indicam os materiais, a formação de egressos, “possibilitando-lhes a flexibilidade das competências e habilidades exigidas pela sociedade e pelo mundo do trabalho”, o que vem acompanhado do desenvolvimento de “uma consciência crítica e atitudes proativas na resolução de desafios que permitam alterações nos valores, nas aspirações e nos comportamentos das pessoas, para o enfrentamento dos desafios atuais e vindouros, atuando, como agentes transformadores.” (PPI II) (UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL, 2013, p. 54-55). O “outro” potencializado pela docência deve produzir efeitos úteis ao jogo econômico em curso, apto “a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da força de trabalho quanto dos recursos físicos e materiais e de informação, [...] serem empreendedores, gestores, empregadores ou lideranças na equipe de saúde (PPI VII) (UNIVERSIDADE DE CRUZ ALTA, 2010, p. 23).

As análises indicaram recorrências discursivas que apontam para a idealização de uma docência especializada — em termos de conhecimentos de sua especificidade técnica e científica e em termos pedagógicos —, comprometida com o projeto institucional. Dela se exige produtividade — entendida essencialmente como produção acadêmica de pesquisa e qualidade (reconhecida pelos alunos) no desempenho de sua prática pedagógica. Espera-se que seja capaz de organizar, mediar, estimular a constituição de um egresso com relação a quem também há uma idealização, um “vir a ser” projetado a priori. Essa docência é potencializadora e, para exercer-se, precisa potencializar-se. É necessário, à docência, conhecimento (um conhecimento entendido principalmente em sua dimensão tecnológica e de produção de soluções para as questões da sociedade).

As IES, mesmo que assumam posturas de resistência, não fogem completamente aos jogos de verdade em vigor, tampouco conseguem evitar as implicações do contexto. O mesmo acontece com a docência. Ambas existem como coisas deste mundo, deste tempo, presentes nesta atmosfera. Exemplo disso são as noções de usabilidade e eficiência produtiva, tão caras ao modelo empresarial que tomamos como referência e que afetam diretamente a docência. Levada ao enredamento em um jogo orientado à performatividade que acaba por regular e definir um “sistema de terror que implica julgamento, comparação e exposição, tomados respectivamente como formas de controle, atrito e de mudança” (BALL, 2010, p. 38) a performance da docência assume o papel de medida de produtividade ou resultados, como forma de demonstração de qualidade (BALL, 2010).

Esse enredamento faz da docência tanto mais autorizada e reconhecida em sua ação de agenciamento quanto mais performática for. Na lógica da performatividade, o professor é agente — no sentido de ser capaz de agenciamentos — e também um sujeito agenciado, alguém que deverá ser capaz de produzir (bons) efeitos dentro do regime de performatividade na academia, cujos acordos de produtividade são regidos por negociações empresariais (BALL, 2010). A lógica da performance atinge também o sujeito aluno que, agenciado por essa docência potente, é, ao menos em termos de projeção, um sujeito capaz de produzir soluções eficazes, de produzir conhecimentos que sejam voltados à solução dos problemas da sociedade.

Se o consumo deste mundo, como dito anteriormente, consiste no pertencimento, em pertencer à comunidade daqueles capazes de boas performances produtivas, é bom que se tenha presente que jogos de verdade operam de modo a fazer com que exista “algo muito sedutor em ser adequadamente apaixonado pela excelência, em conquistar o pico da performance.” (BALL, 2010, p. 45, grifo do autor). A presença da docência nessa lógica da performatividade faz de professores e alunos indivíduos “capturáveis”, fáceis de usar, tornados parte da economia do conhecimento, convencidos de que podem ser mais do que já foram.

3 Considerações finais

Ao longo deste texto, trouxe elementos articulados em torno da compreensão de que a docência na educação superior se constitui, no presente, como uma ação que opera pelo agenciamento. Vista como possibilidade de coordenar processos formativos que possam potencializar os indivíduos, é esta uma ação intencional, sistemática e intervalar cujos esforços teriam como efeito a produção de algo capaz de produzir efeitos. Constituída em meio às verdades que circulam nos jogos de verdade deste tempo, é a docência uma ação de potencialização, de tornar apto, capaz, útil. E, muito embora os processos de subjetivação não constituam objeto deste artigo, cabe destacar que a potencialização — “efeito” da docência— orienta-se ao outro — sujeito aluno/egresso —, mas opera, como experiência, também sobre o professor. A potencialização com a qual se envolve essa docência de agenciamento é de um tipo específico, singular: potencializar para a competição, para o jogo econômico em curso. Daí ser a docência investimento, instrumentalização, agenciamento.

O desenvolvimento da pesquisa que sustenta as análises e argumentações deste artigo se orientou por investigar como os discursos constituem e o que enunciam sobre a docência na educação superior no presente. Como uma das possibilidades de resposta, afirmo: discursos de uma racionalidade neoliberal trazem a lógica da empresa como referência às IES; mobilizam verdades sobre uma forma de docência que reforçam seu caráter interventivo, sistemático e intencional, com esforços justificados pela produção, como efeito, de sujeitos capazes de produzir efeitos porque potencializados pela educação; um agenciamento que torna os sujeitos aptos a responder ao jogo econômico.

O agenciamento pelo qual opera a docência na educação superior no presente mobiliza a ideia de fazer do indivíduo alguém capaz de produzir efeitos, ao menos, em três dimensões: (1) em uma dimensão de mercado, demonstrando uma atuação inovadora, empreendedora, criativa, eficiente e competitiva; (2) no atendimento às exigências de rigor e produção de conhecimento científico e tecnologia, desenvolvendo sua expertise e produzindo pesquisa e soluções tecnológicas eficientes e sustentáveis que promovam o desenvolvimento social; (3) em uma dimensão humanizadora e transformadora, cujo fundamento reside em se tornar mais e mais potente segundo os princípios da autonomia, da liberdade, da cidadania e da emancipação, construídos sobre a base da educação, do esclarecimento e da consciência (que implica também responsabilidade social).

Ainda em tempo, e antes que se diga o contrário, que se compreenda que o que aqui apresento tem em si uma posição favorável ao entendimento da docência como uma relação de causa e efeito, é importante que se esclareça: (1) ao longo do texto guiei-me pelo propósito de problematizar, desnaturalizar, interrogar a constituição da docência na educação superior no presente, portanto, o que aqui apresento é uma construção (entre outras possíveis) a partir de uma materialidade (os PPIs), sendo sustentada por um referencial teórico-metodológico, sem falar sobre o que ou como deva ser a docência, mas sobre como ela se constitui, como coisa que é; (2) reconheço a docência como experiência que produz a si mesma e o tipo sujeito professor, o que não se dá sem resistências e rotas de fuga; (3) reconheço a educação escolar como processo de subjetivação, de constituição dos sujeitos, de condução das condutas (BIESTA, 2013), que, no entanto, não se dá de modo exato, linear e direto; (4) reconheço a docência como deste tempo e deste mundo, inserida nos jogos de verdade e nas relações de poder, nos discursos do presente (sem desconsiderar sua constituição histórica), o que implica não a tomar como certa ou errada, adequada ou inadequada, e sim como “coisa” constituída em meio à complexidade do presente.

REFERÊNCIAS

BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 37-55, maio/ago. 2010.

BECHI, D. Mercantilização do ensino superior: os desafios da universidade diante do atual cenário educacional. Acta Scientiarum Education, Maringá, v. 33, n. 1, 139-147, 2011. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4025/actascieduc.v33i1.11580. Acesso em: 16 nov. 2016.

BIESTA, G. Para além da aprendizagem. Educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

BRASIL. Lei n. 9394, 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez. 1996. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf. Acesso em: 11 maio 2014.

ESCÓSSIA, L. A invenção técnica: transindividualidade e agenciamento coletivo. Informática na educação: teoria e prática, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 16-25, jul./dez. 2010. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/InEducTeoriaPratica/article/download/12491/13434. Acesso em: 23 nov. 2016.

FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 22. ed. São Paulo: Loyola, 2012. Aula inaugural no College de France pronunciada em 02 de dezembro de 1970.

FUGANTI, L. Fuganti – Agenciamento. Escola Nômade. Disponível em: http://escolanomade.org/2016/02/24/agenciamento/. Acesso em: 25 nov. 2016.

FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DE PORTO ALEGRE. Projeto Político-Pedagógico Institucional. Porto Alegre, Reitoria, 2008. 44 p.

GIACOMONI, M. P.; VARGAS, A. Z. Foucault, a arqueologia do saber e a formação discursiva. Revista Veredas, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 119-129, 2010. Disponível em: http://www.ufjf.br/revistaveredas/edicoes/2010-2/volume-14-n/. Acesso em: 30 jun. 2015.

GIROUX, H. Os professores como intelectuais. Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

KINCHELOE, J. L. A formação do professor como compromisso político. Mapeando o pós-moderno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

MAIA, A. C. O agenciamento Foucault/Deleuze. Lugar Comum/Rede Uninômade Brasil, n. 23-24, p. 167-184, jun. 2010. Disponível em: http://uninomade.net/wp-content/files_mf/110810121135O%20Agenciamento%20Foucaul-Deleuze%20-%20Alexandre%20do%20Nascimento%20.pdf. Acesso em: 25 nov. 2016.

PENSIN, D. P. Agenciamento e docência na educação superior. 2017. 204 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2017.

PENSIN, D. P. Educação superior e agenciamento: a constituição singular do professor da educação superior no presente. Revista Internacional de Educação Superior, Campinas, v. 4, n. 1, 74-94, 2018.Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/riesup/article/view/8650674. Acesso em: 14 jun. 2018.

PIMENTA, S. G.; ANASTASIOU, L. G. C. Docência no ensino superior. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL. Projeto Pedagógico Institucional. Porto Alegre, 2011. 24 p.

REVEL, J. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

ROSE, N. Inventando nossos selfs. Psicologia, poder e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2011.

SARAIVA, K.; VEIGA-NETO, A. Modernidade líquida, capitalismo cognitivo e educação contemporânea. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, 187-201, 2009. Disponível em: www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/8300. Acesso em: 03 maio 2016.

SILVA, R. R. D. A constituição da docência no ensino médio no Brasil contemporâneo: uma analítica de governo. 2011. 215 p. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2011.

SILVA, R. R. D. Universitários S/A: estudantes universitários nas tramas de vestibular/ZH. 2008. 166 p. (Mestrado em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2008.

TORRES, C. A. Teoria crítica e sociologia política da educação. São Paulo: Cortez/ Instituto Paulo Freire, 2003.

UNIVERSIDADE DE CRUZ ALTA. Plano de Desenvolvimento Institucional. Cruz Alta, Reitoria, 2010. 126 p.

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO. Projeto Pedagógico Institucional. Passo Fundo, Reitoria, 2006. 41 p.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. Projeto Político-Pedagógico. Santa Maria, Reitoria, 2000. 39 p.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA. Plano de Desenvolvimento Institucional. Bagé, Reitoria, 2014. 111 p.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE. Projeto Pedagógico Institucional. Rio Grande, Reitoria, 2011. 12 p.

UNIVERSIDADE FEEVALE. Projeto Pedagógico Institucional. Novo Hamburgo, Reitoria, 2012. 265 p.

UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL. Projeto Pedagógico Institucional. São Paulo, Reitoria, 2013. 127 p.

YOUNG, M. Para que servem as escolas? Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 101, p. 1287-1302, set./dez. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v28n101/a0228101.pdf. Acesso em: 15 ago. 2016.

Endereços para correspondência: Rua André Lunardi, 1436, apto. 201, 89825-000, Xaxim, Santa Catarina, Brasil; daniela.pensin@unoesc.edu.br

Roteiro, Joaçaba, v. 44, n. 1, p. 1-18, jan./abr. 2019 | e17529 |E-ISSN 2177-6059


1 Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Mestre em Educação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina e Instituto Pedagógico Latinoamericano y Caribeño, Cuba; https://orcid.org/0000-0002-7591-9922; http://lattes.cnpq.br/2694377885076169.

2 Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA); Universidade Federal do Pampa (Unipampa); Universidade Federal do Rio Grande (FURG); Universidade de Passo Fundo (UPF); Universidade Luterana do Brasil (Ulbra); Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Universidade Feevale (Feevale); Universidade de Cruz Alta (Unicruz).

3 Objetivando a simplificação na apresentação dos excertos que aparecem ao longo deste artigo, a identificação dos documentos está assim organizada: PPI I – Universidade de Passo Fundo (UPF); PPI II – Universidade Luterana do Brasil (Ulbra); PPI III – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); PPI IV – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); PPI V – Universidade Feevale (Feevale); PPI VI – Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA); PPI VII – Universidade de Cruz Alta (Unicruz); VIII – Universidade Federal do Pampa (Unipampa); PPI IX – Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

4 Essa informação foi encontrada no sítio da instituição na internet, cujo acesso se deu em 06/05/2016. A manchete trazia: “UFSM: a 16a melhor universidade do Brasil segundo ranking do Inep.”