http://dx.doi.org/10.18593/r.v44i1.16988
Contando outra história da educação popular: uma interlocução entre o pensamento de Paulo Freire e Orlando Fals Borda
Sil-Lena Ribeiro Calderaro Oliveira1
Universidade Federal de Santa Catarina, Licenciada pela Secretaria de Educação do Estado do Pará para estudos de Pós-Graduação em Educação
Elison Antonio Paim2
Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Metodologia de Ensino (MEN) do Centro de Educação, Professor Adjunto
“Decolonialidade, na esteira destes autores, designa o questionamento radical e a busca de superação das mais distintas formas de opressão perpetradas contra as classes e os grupos subalternos.” (MOTA NETO, 2016, p. 17).
MOTA NETO, J. C. da. Por uma pedagogia decolonial na América Latina: reflexões em torno do pensamento de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. 1. ed. Curitiba: CRV, 2016.
O pensamento e as ações colonizadoras colocaram-se em pauta a partir de 1492, quando europeus invadiram o continente americano e montaram as empresas coloniais calcadas na exploração das gentes e dos recursos. Apoderando-se, encarceraram tanto os corpos quanto as mentes, as terras e a natureza nas dimensões animal, vegetal e, principalmente, mineral. Tudo foi organizado para a total submissão e exploração. As empresas colonizadoras mantiveram-se durante mais de quatro séculos nesse sistema exploratório; muitos domínios perduraram mesmo após a independência político-administrativa das antigas colônias.
A colonialidade foi muito além da colonização de territórios no Novo Mundo. Os impérios europeus construíram possessões que, em suas diversas formas, foram construindo e instalando um padrão de poder com base em princípios da colonialidade moderna, ou seja, não foi pautada em uma relação formal entre povos ou nações, mas na forma de trabalho, de conhecimento, de autoridade, na articulação das subjetividades e na ideia de raça, contribuindo de forma sistemática e deliberada para o desperdício das experiências, saberes e formas de vida que não estivessem em consonância com o pensar europeu.
Os europeus utilizaram-se de múltiplas estratégias para naturalizar e internalizar um pensamento único, racional, moderno, cristão, heterossexual e eurocêntrico como sendo correto. A imposição do pensamento racional eurocêntrico determinou como emblema da modernidade, calcando-se na racialização e despojamento dos saberes intelectual como sustentáculo do padrão de poder. Desse modo, os povos não europeus passaram a ser racializados, classificados e patologizados de acordo com uma hierarquia europeia que definiu quais eram as raças inferiores e superiores. Na ordem construída, os europeus estavam no topo da cadeia. Assim, os demais povos, inferiores que eram, poderiam ser submetidos, escravizados, torturados e até eliminados sem o menor constrangimento, caso não aceitassem o modo de vida considerado superior.
Estudiosos da decolonialidade apontam que a colonização permanece na colonialidade do poder, na colonialidade do ser, na colonialidade do saber e na colonialidade da natureza. Em contraposição ao pensamento único colonial, os epistemólogos da decolonialidade apregoam o rompimento total com o pensamento eurocêntrico. Nesse sentido, defendem a necessidade de compreender que a forma epistemicida, ecocida, memoricida da atual estrutura de poder e saber são uma falácia que deve parar de ser reproduzida.
A decolonização deve ser uma (des)aprendizagem de tudo que foi imposto e assumido pela colonização e uma desumanização para que homens e mulheres reaprendam a ser sujeitos de si. Nessa lógica, para que ocorra a decolonização de corpos e mentes é preciso assumir a perspectiva epistemológica decolonial como um processo de ação e pedagógico para a transformação social e um caminho possível para a construção de outro mundo.
Foi na esteira do pensamento decolonial latino-americano que nasceu a tese e, posteriormente, o livro Por uma Pedagogia Decolonial na América Latina. Seu autor é graduado em Pedagogia e doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA), com Bolsa Sanduíche na Universidad Pedagógica Nacional (Bogotá, Colômbia). Atualmente é pesquisador e professor na Universidade Estadual do Pará.
Na Colômbia, desenvolveu estudos sobre o pensamento do sociólogo Orlando Fals Borda, o precursor na investigación-acción participativa, sendo um intelectual sentipensante que soma a razão crítica e responsável ao vínculo orgânico e afetivo junto às comunidades populares, mais precisamente à população marginalizada do seu país. A partir desses estudos, João Colares passou a defender que a violência é “fruto não apenas de um histórico de opressão e domínio colonial, mas, também, de um modo de pensar a região que distorce nossa história, nega nossa cultura, aprisiona os nossos povos em modelos interpretativos que nos são estranhos.” (p. 15).
Com um olhar sensível e cuidadoso do professor autor-pesquisador para as temáticas de opressão, racismo, exploração de classe, patriarcalismo nas tantas formas e formatos da colonialidade ainda vigente em contextos da/na(s) história(s) da América Latina, vê-se que sua trajetória na docência não tinha como não adentrar na caminhada e pegadas de Paulo Freire – um educador que soube ser, também, um sentipensante como seu contemporâneo Orlando Fals Borda.
Dois latino-americanos, conhecedores e construtores de/por uma Educação Decolonial, translúcida e minuciosamente escrita na pesquisa de João Colares, que buscou compreender, mais ainda, a lógica perversa da colonização do ser, do saber com os estudos, também, dos decoloniais Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Catherine Walsh, Ramón Grosfoguel, Santiago Castro-Gómez, Edgardo Lander, Arturo Escobar, Nelson Maldonado-Torres, entre outros, abrindo o caminho para o vislumbre do legado dos dois autores, Freire e Fals Borda, para uma Pedagogia Decolonial na América Latina.
Um encontro dialógico que nos faz compreender/refletir que a Educação popular latino-americana, pautada em processos investigativo-participativos, pode e deve contribuir para o fim das mazelas sociais, do colonialismo epistemológico, reforçando a denúncia das opressões, tese defendida por Colares, em diálogo direto com as concepções decoloniais assentadas nas reflexões do pensamento de Paulo Freire (1921-1997) e Orlando Fals Borda (1925-2008), ambos intelectuais reconhecidos nos campos da educação popular, da pedagogia crítica e das ciências sociais em nosso continente.
O livro aborda os aspectos biográfico, epistemológico, metodológico e ético-político de Freire e Fals Borda, aspectos estes que subsidiaram a identificação de possibilidades de comparação (como perspectiva e recurso dialógico) entre as obras dos dois autores. Nos sete capítulos, com os capítulos introdutório e conclusivo que integram a obra, o autor aborda o giro decolonial na América Latina, perpassando pela crítica de Frantz Fanon ao pensamento e programa de investigação da modernidade/colonialidade latino-americana; a educação popular na América Latina como uma pedagogia da subversão; a concepção decolonial em Paulo Freire; a concepção decolonial em Orlando Fals Borda; e o legado de Freire e Fals Borda para a constituição de uma pedagogia decolonial na América Latina.
A aposta no conceito de decolonialidade, em relação com a educação popular, deve-se ao seu potencial crítico de denúncia dos distintos padrões de poder nascidos com a modernidade/colonialidade. É nesse contexto que o autor parte da hipótese de que as obras de Freire e Fals Borda inseridas no movimento da educação popular latino-americana são um antecedente do debate da decolonialidade na América Latina e uma importante contribuição para a constituição de uma pedagogia decolonial. João Colares argumenta que concepção decolonial se apresenta no pensamento social e pedagógico de Paulo Freire e Orlando Fals Borda ao destacar as contribuições desses autores para a constituição de uma pedagogia da decolonialidade como expressão da educação popular latino-americana.
Para o campo da Educação, este livro reacende e provoca, principalmente aos pesquisadores, o diálogo caro e crítico com as teorias europeias, mas elaborado fundamentalmente a partir de uma perspectiva não eurocêntrica de mundo, atenta às realidades vividas pelas populações periféricas e aos seus conhecimentos, às suas culturas e às suas estratégias de luta. O autor nos convida a buscar/entender a genealogia do pensamento decolonial também dentro dos movimentos sociais, como o Movimento Sem-Terra brasileiro, os zapatistas em Chiapas, os movimentos indígenas e afros na Bolívia, no Equador e na Colômbia, o Fórum Social Mundial e o Fórum Social das Américas, diferenciando-a, assim, das teorias tradicionais e com foco, em particular, no Sul global.
Ainda, sobre o pensamento decolonial de Walter Mignolo, João Colares chama atenção para não cair no equívoco de achar que é um pensamento homogêneo de intelectuais, mas se quer expressar um conjunto de práticas epistêmicas as quais se articulam dentro ou fora da academia, ao longo de nossa densa história de colonização iniciada em 1492, com a chegada de Cristóvão Colombo nas Antilhas. Uma leitura, portanto, urgente em tempos sombrios em que nossa democracia anda com pernas bambas. Precisamos rever, reler e reinventar uma educação popular no desafio e na esperança histórica de fazer valer as resistências diante daqueles que oprimem e desmotivam os sonhos, e como sabemos os sonhos não envelhecem.
João Colares da Mota Neto, intelectual engajado, conta-nos outra história da educação para construirmos outras histórias, preferencialmente decoloniais. As páginas esperançosas desse livro podem nos levar a reconhecer, à luz da concepção decolonial, possibilidades de releitura e atualização da obra desses autores, possibilitando expandir seus pensamentos com base nas contribuições do debate decolonial para a superação da colonialidade e do eurocentrismo.
Recebida em 25 de abril de 2018
Aceita em 20 de dezembro de 2018
Publicada em 19 de fevereiro de 2019
Roteiro, Joaçaba, v. 44, n. 1, p. 1-4, jan./abr. 2019 | e16988 |E-ISSN 2177-6059
1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina; Graduada em Letras, Licenciatura Plena, pela Universidade Federal do Pará; https://orcid.org/0000-0002-5287-1460; http://lattes.cnpq.br/6061061110726757.
2 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; https://orcid.org/0000-0002-7509-5572; http://lattes.cnpq.br/8695520812750828.