http://dx.doi.org/10.18593/r.v43i3.16422

Política pública e educação integral no Brasil: do nacional-desenvolvimentismo ao neodesenvolvimentismo

Public policy and integral education in Brazil: from national developmentalism to neo-developmentalism

Política pública y educación integral en Brasil: del nacional-desarrollismo al neodesenvolvimentismo

Magda Cruz dos Santos1

Universidade Federal de Pelotas, Bolsista CAPES

Leonardo Dorneles Gonçalves2

Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Instituto de Educação, Área de Políticas Públicas da Educação, Professor

Conceição Paludo3

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Educação, Departamento de Estudos Básicos, Docente e Pesquisadora no Curso de Licenciatura em Educação do Campo

Resumo: Evidenciar as contradições das principais políticas de educação integral na escola pública de Educação Básica e problematizar suas relações com o desenvolvimento do capitalismo no Brasil foram os objetivos centrais neste estudo. Para tanto, realizamos a análise sobre as intencionalidades das políticas de educação integral dos últimos anos, respaldada por pesquisa bibliográfica sobre a história da educação integral nas políticas educacionais brasileiras, em diálogo com autores como Falleiros, Pronko e Oliveira (2010), Shiroma, Moraes e Evangelista (2000), Frigotto (2000) e Cavaliere (2010). Com a intencionalidade de analisar as concepções de educação integral no chamado modelo neodesenvolvimentista, recorremos à primeira versão do Programa Mais Educação que, lançada em 2007, vigorou até 2016. Os estudos efetivados permitem analisar a política de educação integral no Brasil como um instrumento que cumpre papéis distintos em cada período histórico, mas que tem se efetivado na relação com os objetivos apresentados pelas diferentes formas de sociabilidade capitalista, distanciando-se radicalmente dos referenciais históricos, teóricos e práticos que sustentam a educação integral na perspectiva anticapitalista e da emancipação humana.

Palavras-chave: Educação integral. Política pública. Emancipação humana.

Abstract: To demonstrate the contradictions of the main policies of integral education in the public school of Basic Education and to problematize their relations with the development of capitalism in Brazil they were the central objectives of this study. In order to do so, we analyze the intentionalities of the policies of integral education of the last years, supported by bibliographical research on the history of integral education in Brazilian educational policies, in dialogue with authors such as Falleiros, Pronko and Oliveira (2010), Shiroma, Moraes and Evangelista (2000), Frigotto (2000) and Cavaliere (2010). According to the intention of analyzing the conceptions of integral education in the so-called neodevelopmental model, we resorted to the first version of the Program: Mais Educação, which launched in 2007, lasted until 2016. The studies carried out allow us to analyze the politics of integral education in Brazil as an instrument that plays different roles in each historical period. However, it has become effective in relation to the objectives presented by the different forms of capitalist sociability and radically distancing itself from the historical, theoretical and practical that support integral education in the anti-capitalist perspective and human emancipation.

Keywords: Integral education. Public policy. Human emancipation.

Resumen: Evidenciar las contradicciones de las principales políticas de educación integral en la escuela pública de Educación Básica y problematizar sus relaciones con el desarrollo del capitalismo en Brasil fueron los objetivos centrales del estudio. Para estos fines, realizamos el análisis sobre las intencionalidades de las políticas de educación integral de los últimos años, respaldada por una investigación bibliográfica sobre la historia de la educación integral en las políticas educacionales brasileñas, en diálogo con autores como Falleiros, Pronko y Oliveira (2010), Shiroma, Moraes y Evangelista (2000), Frigotto (2000) y Cavaliere (2010). Con la intencionalidad en de analizar las concepciones de educación integral en el llamado modelo neodesarrollista, recurrimos a la primera versión del “Programa Mais Educação” que, lanzada en 2007, vigoró hacia 2016. Los estudios realizados permiten analizar la política de educación integral en Brasil como un instrumento que cumple papeles distintos en cada periodo histórico, pero que tiene se concretado en la relación con los objetivos planteados por las diferentes formas de sociabilidad capitalista, distanciándose radicalmente de los referenciales históricos, teóricos y prácticos que sostienen la educación integral en la perspectiva anticapitalista y de la emancipación humana.

Palabras clave: Educación integral. Política pública. Emancipación humana.

1 INTRODUÇÃO

A educação integral constitui uma das categorias centrais para as propostas educacionais que têm por perspectiva a emancipação humana, pois visa à superação da divisão entre formação manual e formação intelectual decorrente do modo de produção capitalista. No Brasil, as primeiras propostas de educação integral, nessa perspectiva, emergem com os movimentos operários do início do século XX. Assim, libertários, socialistas e comunistas realizavam a crítica à educação formal da época e defendiam projetos de educação que, em comum, apresentavam a perspectiva da emancipação humana. Mais do que a democratização do acesso à escola, eles defendiam uma nova concepção de educação integral, articulada com o projeto de uma nova sociedade.

Para os movimentos operários, a educação integral representava um dos elementos no processo de ruptura com o projeto de sociabilidade do modo de produção capitalista, potencializando a ação política dos trabalhadores. As experiências desses movimentos não tiveram continuidade em virtude da falta de financiamento por parte do Estado ou de recursos próprios para manter suas iniciativas. Mesmo assim, a educação integral foi incorporada por diversas políticas públicas educacionais, assumindo, no entanto, perspectivas antagônicas àquela pretendida pelos movimentos operários do início do século XX, pois, de modo geral, no âmbito da política pública, a educação integral passa a objetivar a adaptação dos sujeitos das classes populares às metamorfoses do projeto capitalista, conforme explicitamos no decorrer do texto.

No presente artigo discorremos sobre alguns dos resultados de nossas pesquisas4 que abordam os temas da educação integral, da politecnia e da política pública educacional, tendo o materialismo histórico dialético (FRIGOTTO, 2000) por abordagem teórico-metodológica.

Em nossos estudos observamos que a educação integral na Educação Básica, no bojo do modelo neodesenvolvimentista, recebeu grande ênfase nas políticas públicas educacionais, especialmente por meio do Programa Mais Educação do Ministério da Educação, uma política pública de âmbito nacional que visa à implementação da educação integral nas escolas públicas, por meio da escola de tempo integral. O Programa Mais Educação foi lançado no ano 2007 no âmbito do projeto político, social e econômico que Katz (2016) denomina neodesenvolvimentista. Com o afastamento da Presidente Dilma Rousseff em 2016 se tem a consolidação de uma ruptura com esse projeto de desenvolvimento, e a partir de então o Programa Mais Educação é reformulado e recebe uma nova denominação, Programa Novo Mais Educação. Nossos estudos limitaram-se à primeira versão do Programa, de 2007 até 2016.

Embora enfatizando as contradições que a educação integral apresenta, quando incorporada pela política pública educacional, o artigo visa contribuir para o debate sobre as possibilidades de apropriação da escola pública pelas classes trabalhadoras, constituindo espaços para o exercício efetivo da democracia que possibilite suas ações de resistência às imposições do sistema capitalista. Neste artigo, iniciamos com uma breve análise e síntese da política de educação integral no Brasil, em seguida, explicitamos como ela foi intencionada no chamado modelo neodesenvolvimentista, analisando o Programa Mais Educação, e, finalmente, tecemos considerações finais sobre o estudo realizado.

2 EDUCAÇÃO INTEGRAL E POLÍTICA PÚBLICA NO BRASIL: BREVE SÍNTESE DE SUA HISTÓRIA E CONTRADIÇÕES

A compreensão sobre o sentido hegemônico que a proposição da política de educação integral assume atualmente requer uma análise sobre as principais políticas de educação integral que se destacaram ao longo da história da educação brasileira. Segundo Ferreira (2007), é com a imigração de trabalhadores europeus integrantes de diferentes movimentos políticos, que a educação integral chega ao Brasil no final século XIX. Esses trabalhadores, que em grande parte já participavam do movimento operário na Europa, organizados nos movimentos Comunistas, Socialistas e Anarquistas, foram os primeiros a defender no Brasil a educação integral como uma proposta de educação fundamentada na perspectiva da emancipação humana, em novas formas de organização do trabalho e, portanto, vinculada ao projeto de uma nova sociedade.

Defendiam uma proposta de educação integral que se aproximava daquela apresentada no III Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) que foi realizado em Bruxelas no ano 1868, o qual sintetizou os fundamentos da concepção de educação integral na perspectiva da emancipação humana (FERREIRA, 2007; GHIRALDELLI JÚNIOR, 1987). Segundo Gallo (1993, p. 11),

O conceito de instrução integral cunhado pelos libertários que participavam da Associação Internacional dos Trabalhadores não se reduziu à permanência dos estudantes em turno integral na instituição escolar, mas procurou desenvolver a mais ampla formação articulando todos os aspectos do desenvolvimento humano, estabelecendo um diálogo permanente entre teoria e prática. [...] Essa necessidade ética de formar homens e mulheres “integrais”, substituindo uma educação para, por uma educação pelo trabalho, ultrapassou os cuidados com o desenvolvimento físico e intelectual, contemplando o estímulo aos sentidos de justiça e reciprocidade social, contidos na chamada “educação moral”.

Para Gallo (1993), essa proposta, que foi redigida por Paul Robin, procurou expor o sentido revolucionário da educação, demonstrando que a sociedade capitalista se divide em duas classes distintas, sendo que para a classe trabalhadora uma formação predominantemente intelectual havia sido negada. Assim, apresenta a ideia de uma formação integral como um dos elementos necessários para a revolução social, ou seja, para a superação da sociedade de classes e do Estado. Essa concepção de educação integral foi comum aos movimentos libertários, socialistas e comunistas, embora divergissem em aspectos relacionados à gestão e ao financiamento da educação dos trabalhadores.5

No Brasil, em termos de realizações concretas, no âmbito da política pública, o movimento operário não obteve êxito, e essa concepção de educação integral não apresentou influência significativa na configuração do sistema de ensino (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1987). O debate educacional brasileiro no início do século XX se caracterizou pela tentativa de modernizar a educação nacional, atrelando-a às novas exigências apresentadas pelas formas que o capitalismo assumiu na época – a ascensão industrial e a necessidade de formação para o trabalho – o que se diferencia em aparência e essência de uma proposta de trabalho coletivo e de educação integral, na perspectiva da emancipação humana.

Todavia, a proposta de educação integral no Brasil não ficou restrita às concepções e práticas do movimento operário, que propunha uma educação pautada nos seguintes princípios: reunificação da formação técnica/manual com a formação intelectual, uma educação que tenha por base o trabalho coletivo e socialmente útil, uma educação que potencialize a ação política dos movimentos dos trabalhadores e uma educação na perspectiva da superação da sociedade de classes e na emancipação humana, portanto, uma educação alinhada com transformações fundamentais na forma como a sociedade organiza a produção, a distribuição e o consumo dos bens materiais e imateriais.

Ao ser defendida por outros grupos sociais e políticos, a educação integral foi incorporada às políticas públicas educacionais em diferentes períodos históricos, assumindo contradições que a colocam em uma perspectiva radicalmente diferente daquela pretendida pelos movimentos operários do início do século XX.

Já na década de 1930, outra concepção de educação integral, vinculada aos princípios do Estado autoritário e conservador, foi defendida pela Ação Integralista Brasileira, um movimento cultural inspirado nos ideais fascistas e que em 1935 se transformou em um partido político. O lema do movimento era educação integral para o homem integral contemplando a ideia de uma educação regeneradora da moral social e individual e destacando seu caráter autoritário pela defesa de valores como “sacrifício, sofrimento, disciplina e obediência.” (CAVALIERE, 2010, p. 250).

Entretanto, após o período do Estado Novo é possível observar que a concepção de educação integral de caráter liberal se torna hegemônica e avança na proposição de políticas públicas educacionais, especialmente na passagem da década de 1950 a 1960, quando a expansão do capitalismo em nível internacional e nacional impulsiona o projeto desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek e se tem um novo direcionamento na política educacional (NORONHA, 1994).

De acordo com as necessidades do processo de “modernização econômica” ou “modernização conservadora” (OLIVEIRA, 2013), principalmente quanto à formação de mão de obra qualificada e adequada às novas demandas do sistema capitalista nacional e internacional, é nesse período que as políticas educacionais abordam o tema da educação integral.

Esse aspecto pode ser observado em uma das primeiras experiências de educação integral para a escola pública no Brasil, elaborada por Anísio Teixeira. Sua concepção de educação integral foi fortemente influenciada pelas ideias do movimento Escola Nova que, de acordo com a concepção liberal, compreendia a precariedade da educação brasileira como uma das causas dos problemas sociais e, portanto, defendia que a educação escolar seria o elemento central na superação das desigualdades sociais, contribuindo para a construção de uma sociedade desenvolvida (CAVALIERE, 2010). De acordo com Cavaliere (2010), essa proposição constituía-se em uma proposta reformista que reconhecia sua concepção de educação integral como um elemento que contribuiria para a reorganização do sistema social brasileiro, avaliado pelos liberais como atrasado.

A implantação do Centro Educacional Carneiro Ribeiro em Salvador (COELHO, 2009) foi uma das primeiras iniciativas de Anísio Teixeira nesse sentido. O objetivo de sua proposta era oferecer atividades variadas que aliassem o conhecimento trabalhado na escola ao ideal de desenvolvimento tecnológico e científico, amplamente difundido no Brasil dessa época. Apesar de estar aliada aos ideais desenvolvimentistas da época, visando atender às necessidades de reorganização do capitalismo em âmbito nacional, a experiência defendida por Anísio Teixeira não se multiplicou, talvez pelos custos que demandaria ou pela dificuldade em alcançar a “modernização” por meio da escola.

Na prática, essa experiência aliava a política educacional às ações sociais direcionadas às classes populares, oportunizando o acesso a alguns serviços sociais básicos por meio da escola de turno integral, o que, segundo Shiroma, Moraes e Evangelista (2000), constitui uma das estratégias de governabilidade do Estado capitalista, uma vez que contribui para efetivar os mecanismos de controle social, administrando os conflitos sociais e garantindo os interesses do capital. Nesse sentido, a educação integral, apoiada no discurso de alavancar o desenvolvimento, poderia representar um elemento de construção de consenso em torno do projeto desenvolvimentista, pois, diante da enorme e crescente desigualdade social impulsionada por ele, ampliava-se o risco de revolta.

Com o Golpe Civil-Militar de 1964 se instaurou um longo período de ditadura no Brasil, e, por mais de duas décadas, a educação integral não constituiu uma pauta central das políticas públicas.6 Esse período exacerbou a luta entre capital e trabalho, criando, ainda, tensões e disputas entre diversas frações do capital, pois os interesses imediatos do capital financeiro que começava a emergir entravam em conflito com os interesses imediatos do capital industrial (FALLEIROS; PRONKO; OLIVEIRA, 2010). As críticas quanto à centralização do poder, ao crescimento do Estado e sua presença na economia, somadas ao esgotamento do autoritarismo e às pressões populares pela democratização, levaram ao processo lento, gradual e controlado de abertura democrática a partir do final dos anos 1970 (NORONHA, 1994).

A partir desse período, o Estado passou a empreender um conjunto de políticas compensatórias para administrar os conflitos e desequilíbrios gerados pelo processo de acumulação e crise do capitalismo em nível mundial que agravou as desigualdades sociais. Dessa maneira, a educação escolarizada tornou-se um dos elementos fundamentais na obtenção de consenso em torno da reorganização da sociedade capitalista e das novas formas de recomposição burguesa, assumida entre as décadas de 1970 e 1980. Assim, democracia e participação tornam-se categorias centrais do discurso do Estado a partir de então (FALLEIROS; PRONKO; OLIVEIRA, 2010), e as pressões populares pelo processo de redemocratização induziram os movimentos sociais à crença exacerbada no potencial de transformação social por meio da institucionalização de suas demandas. É nesse contexto que a educação integral é retomada pelas políticas públicas educacionais.

Durante a Ditadura Civil-Militar, período em que o Estado utilizou principalmente a força para a repressão e a manutenção da coesão social, observa-se que a educação integral não aparece como uma das políticas educacionais priorizadas. Já no período após a abertura democrática, no qual o Estado se utiliza principalmente da persuasão para a produção de consenso em torno do projeto hegemônico de sociedade, a educação integral volta a configurar um importante elemento da política pública (SANTOS, 2014).

É nessa perspectiva que, com o enfoque de democratização das condições de acesso e permanência à educação escolar, na década de ١٩٨٠, a ideia de educação integral é retomada por Darcy Ribeiro, com a implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) e dos Centros de Atenção Integral à Criança (CAICs) no Estado do Rio de Janeiro, inspirados nas propostas de Anísio Teixeira (BOMENY, 2009). A proposta, focada na ideia de escola de tempo integral, com serviços de assistência social, também previa a educação como “chave para o desenvolvimento do país.” Segundo Bomeny (2009), Darcy Ribeiro partia do pressuposto de que a escola,

[...] seria a estratégia de médio prazo mais eficaz para a redenção brasileira, o que, segundo ele, se traduzia na incorporação do povo aos benefícios restritos à elite. A escola pública, aberta a todos, em tempo integral, era a receita para iniciar as crianças nos códigos de sociabilidade, tratamento, relacionamento e preparo para a vida em sociedade. (BOMENY, 2009, p. 114).

Como se observa, a proposta de Darcy Ribeiro insere-se no bojo das políticas de democratização como uma das necessidades do capitalismo da época. Desse modo, é possível afirmar que contribuiria mais para a conformação das classes trabalhadoras ao novo modelo de sociabilidade do que propriamente para tencionar o processo de sua própria organização como classe revolucionária.7

De acordo com Bomeny (2009), na tentativa de massificar a experiência dos CIEPs, Darcy Ribeiro encontrou muita resistência por parte de educadores e das classes populares que também não concordavam com sua proposta e observavam um vínculo simbólico entre as populações pobres e as populações atendidas pelos CIEPs. Diante de tanta resistência, a proposta foi sendo modificada e abandonada ao longo dos anos pelos governos seguintes. Contudo, essa concepção de educação integral influenciou políticas posteriores, como os Centros Integrados de Atenção à Criança e ao Adolescente (CIACs), implementados em nível nacional na década de 1990 pelo Governo Collor,8 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n. 9.394/96, de que o próprio Darcy Ribeiro foi relator e que aponta a ampliação da jornada escolar, tendo em vista uma formação integral (FREITAS; GALTER, 2007).

Essas propostas caracterizam uma concepção de educação integral entendida como sinônimo de educação escolar de tempo integral. Diferentemente da concepção de educação integral defendida pelo movimento operário, seu foco não está no desenvolvimento de uma proposta político-pedagógica que alie formação manual/técnica com formação intelectual. Além disso, essas políticas não estiveram vinculadas com propostas de transformações na organização do trabalho, da produção e distribuição social, mas procuraram suprir por meio da escola demandas sociais, como saúde, alimentação e ocupação do tempo livre das crianças e jovens, agindo principalmente para evitar conflitos gerados pela falta de assistência a essas demandas (SANTOS, 2014).

Assim, com base nos estudos realizados é possível observar que ao longo da história da educação brasileira a educação integral, quando incorporada à política pública, apresentou-se como um instrumento de reprodução do modo de sociabilidade necessário ao projeto do Estado capitalista (SANTOS, 2014). Tal incorporação pode ser compreendida como mecanismo encontrado pelo Estado, por meio das políticas públicas, para efetuar controle social das populações pauperizadas, por meio do caráter normativo que, de modo hegemônico, historicamente tem caracterizado a escola pública; formar para a sociabilidade capitalista em cada período histórico, minimizando contradições sociais que obstaculizam o desenvolvimento econômico; e assegurar o processo subordinativo que marca a formação social brasileira em relação à influência externa, a qual se radicaliza no século XX, conforme abordam Fernandes (2009) e Prado Júnior (2006), entre outros.

No caso do Programa Mais Educação, em sua primeira versão, observamos sua articulação com o projeto neodesenvolvimentista, inclusive por meio da ênfase na necessidade de estimular a participação das comunidades na escola. Participação que, difundida como meio para democratização, foi de fato efetivada como forma de responsabilização da sociedade pela educação pública e atuou no sentido da construção de hegemonia e consenso em torno da lógica do capital e da sua necessidade de controlar todas as dimensões da vida em sociedade, conforme se analisa na seção a seguir.

3 A EDUCAÇÃO INTEGRAL NO PROJETO NEODESENVOLVIMENTISTA: O PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO E SUAS PRINCIPAIS CONTRADIÇÕES

Nas últimas décadas, tendo em vista atender às novas demandas do sistema capitalista, as políticas públicas educacionais no Brasil passaram por um redirecionamento que imprimiu um novo sentido para a categoria de educação integral.

Até o início dos anos 1990, seguindo as orientações dos organismos internacionais, a produção de políticas educacionais pautou-se pelos objetivos de produtividade, qualidade, competitividade, eficiência e eficácia, articulando transformação produtiva, equidade e conhecimento (EVANGELISTA; SHIROMA, 2006, p. 46), pois

Reconhecia-se que a complexificação dos processos decorrentes do avanço das forças produtivas e a incorporação de sistemas de manufatura flexíveis haviam transformado a divisão do trabalho e a progressiva desqualificação do trabalhador em entraves à extração de mais-valia. O capital via-se no dilema de elevar a qualificação média dos trabalhadores e, simultaneamente, assegurar o controle sobre eles. Havia, pois, uma situação-limite a ser administrada a qual, entretanto, precisava ser mantida velada. O que estava em causa era o suposto risco de rebelião por parte daqueles que sofrem efeitos deletérios da “modernização conservadora”.

No Brasil, somado ao fator da reestruturação produtiva, o processo de abertura democrática exigiu, por parte do Estado, a habilidade para tentar equilibrar as demandas de grupos sociais diversos. Para isso, as políticas educacionais representaram um importante instrumento para a busca do consenso em torno do projeto neoliberal que se expandia (FALLEIROS; PRONKO; OLIVEIRA, 2010).

É diante desse contexto – a partir de meados da década de 1990 – que se torna possível observar um redirecionamento nas orientações dos organismos internacionais para as políticas educacionais da América Latina e do Caribe, passando de um viés mais economicista para um viés mais “humanitarista”, conforme enfatizam Evangelista e Shiroma (2006, p. 45),

A reestruturação produtiva realizada em bases espúrias na maior parte do continente conduziu a precarização do emprego, aumento do número de desempregados e suas indeléveis consequências. Tendo em vista ocultar os reais determinantes do empobrecimento da maioria da população e administrar eventuais levantes sociais a ele associados, um conjunto de políticas compensatórias atreladas a um discurso da educação redentora foi disseminado pelo continente.

Assim, enquanto no início da década de 1990 os documentos de organismos multilaterais, como o Banco Mundial (BM) e a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), ainda destacavam a possibilidade de inclusão da mão de obra e ampliação dos serviços sociais como uma das medidas de contenção da pobreza, já no início dos anos 2000 enfatizam as ideias de “oportunidade”, “autonomia” e “segurança”. O objetivo central das políticas públicas educacionais já não pressupõe a preparação para o mercado de trabalho, mas, sim, formas de “inclusão social”, partindo do entendimento de que a pobreza precisa ser compreendida não apenas em termos econômicos, mas também em termos sociais e culturais (EVANGELISTA; SHIROMA, 2006).

Desse modo, no lugar da ênfase no conhecimento, na ciência e na tecnologia, observada nas orientações do período anterior, as políticas educacionais a partir de meados da década de 1990 passam a apresentar uma ênfase maior na formação de uma nova sociabilidade ou nova cidadania a partir da escola (FALLEIROS; PRONKO; OLIVEIRA, 2010), de modo que a inclusão social postula a possibilidade de toda a cidadania fazer parte, em desiguais condições, da sociedade capitalista. Por isso, o desafio da educação escolar é justamente preparar para a adaptação e assegurar a passividade diante das contradições, ou seja, a incorporação do consenso.

Segundo Shiroma, Moraes e Evangelista (2000), para consolidar seus interesses, o Estado passa a utilizar o convencimento com uso mínimo de ação estatal e de força, procurando construir um novo consenso por meio da persuasão. O caráter homogeneizador das políticas públicas, a partir de então, pode ser percebido pela assimilação de expressões como “educação para todos”, “inclusão”, “educação integral”, “participação”, etc. (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2000). As demandas historicamente expressas pelos movimentos populares de educação, inclusive pelo movimento operário do início do século XX, como vimos na seção anterior, são absorvidas pela política pública educacional com, pelo menos, dois objetivos bem definidos: a) de constituir um consenso em torno de projetos antagônicos de educação, defendidos por classes sociais estruturalmente distintas, o que passa a ganhar força pela relação harmoniosa entre segmentos que representam os interesses de capital – trabalho, sob bases neoliberais; b) de serem “apassivadas e adequadas aos objetivos do projeto de sociedade e de sociabilidade hegemônico.” (FALLEIROS; PRONKO; OLIVEIRA, 2010, p. 92). O Programa Mais Educação é um exemplo desse processo, pois absorve uma das principais categorias do projeto de educação popular, expressando como sinônimos a educação escolar em tempo integral e a educação integral.

A retomada da educação integral pela política pública ocorre no contexto de consolidação do projeto neodesenvolvimentista. Segundo Katz (2016), o projeto neodesenvolvimentista não propõe rupturas com o neoliberalismo, mas, sim, ajustes a partir de um caráter social mais acentuado. O autor afirma que, em síntese, o neodesenvolvimentismo propõe: a necessidade de intensificar a intervenção estatal para emergir do subdesenvolvimento, no entanto sem obstruir o investimento privado e reproduzindo no Estado a eficiência do gerenciamento privado; que a política econômica atue como instrumento central do crescimento; que a industrialização seja retomada para multiplicar o emprego urbano; que a defasagem tecnológica seja reduzida mediante acordos com empresas transnacionais, principalmente importando pacotes tecnológicos obsoletos nos países centrais; e, além disso, propõe-se a imitar o avanço exportador do Sudeste Asiático.

No Brasil, especialmente a partir de meados da década de 1990, esse projeto de desenvolvimento combinou-se com a perspectiva da “Terceira Via”, visando amenizar os efeitos negativos do neoliberalismo. De acordo com Peroni e Caetano (2012), o Terceiro Setor é o protagonista desse projeto, falando em nome da sociedade civil. Segundo as autoras, a Terceira Via, assim como no passado a Social Democracia e o Desenvolvimentismo, propõe reformas por dentro do capitalismo, ressaltando, portanto, a importância da governança, a partir de um pacto entre a sociedade, o mercado e o setor público. No entanto, nesse pacto, sociedade civil e Estado são tratados de modo abstrato, desconsiderando as contradições estruturais de classe acirradas pelo processo de reestruturação produtiva.

Um dos exemplos desse processo é o movimento Todos Pela Educação, um dos principais propulsores da retomada da educação integral pela política pública nacional. A educação integral compõe o plano de metas do Compromisso Todos Pela Educação de 2003, sendo que, em 2007, cinco dessas metas, entre elas a educação integral, foram incorporadas ao Plano Nacional de Desenvolvimento da Educação (PDE).9

Saviani (2007) destaca que, embora o termo Compromisso Todos Pela Educação se apresente como uma iniciativa da sociedade civil, ele se constitui, de fato, em uma aliança protagonizada pelos principais grupos empresariais do País, como Grupo Gerdau, Banco Itaú, Banco Bradesco e Organizações Globo. Além dos grupos empresariais, participam desse movimento diversas organizações da sociedade civil, sindicalistas, intelectuais, grande mídia e o próprio Governo federal. Dessa forma, este cumpre o duplo papel de vincular-se estreitamente à esfera governamental e assumir um papel de vigilância por intermédio dos preceitos de responsabilização e controle social (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2005), o que é mais uma expressão da forma como a classe dominante, agora organizada por meio de uma agenda educacional (PDE), efetiva o caráter de classe do Estado e das políticas educacionais.

A análise dos documentos oficiais do Programa Mais Educação,10 dos limites objetivos para a sua implantação e do contexto social, político e econômico no qual emerge essa proposta, permite concluir que a “participação” prevista está diretamente relacionada com a perspectiva de sociabilidade necessária ao atual contexto do sistema capitalista e ao atual projeto do Estado nacional. Assim, configura-se mais como um mecanismo de produção de consenso e de governabilidade, do que uma forma efetiva de exercício democrático, que possibilite aos sujeitos envolvidos com o Programa fortalecer sua ação política no sentido de superação das problemáticas de sua comunidade (SANTOS, 2014).

Cabe destacar que entendemos os documentos oficiais como importantes fontes empíricas, uma vez que se constituem a partir do movimento histórico na constante disputa entre perspectivas contrárias. Como afirma Evangelista (2009, p. 2), entende-se que os documentos que orientam as políticas públicas educacionais “[...] não expressam apenas diretrizes para a educação, mas articulam interesses, projetam políticas, produzem intervenções sociais.” Assim, sua investigação pode possibilitar compreender mais do que a concepção hegemônica do Estado, mas, sobretudo, a relação dessa concepção com as demandas mais gerais do contexto social, político e econômico no qual se inserem essas políticas.

Shiroma, Campos e Garcia (2005, p. 439) afirmam que os documentos sobre política pública “[...] disseminam afirmações sobre o mundo em que vivemos que tanto pretendem oferecer representações únicas sobre a realidade como trazer soluções idealizadas para problemas diagnosticados.” Nesse sentido, durante a análise documental, procuramos observar os conceitos e argumentos que são privilegiados e quais são intencionalmente desprezados ou omitidos, no sentido de captar o que os documentos dizem e o que não dizem sobre o objeto de estudos (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2005).

Além disso, procuramos realizar o constante questionamento dos documentos, como destaca Evangelista (2009, p. 7): “[...] interrogar significa apreender no documento aquilo que o determina estruturalmente e aquilo que o compõe como efeito de realidade, mas que não ultrapassa a condição de aparência produzida para elidir a determinação referida.” Esse processo constitui o que Kosik (2011) entende como processo de passagem da aparência para a essência, processo central para se atingir a concreticidade do objeto e ir além do entendimento das fontes, construindo conhecimentos que contribuam para a compreensão dos diferentes projetos históricos e perspectivas em disputa (EVANGELISTA, 2009).

As constatações apresentadas resultam da análise documental dos principais documentos oficiais referentes ao Programa, da observação participante em uma das escolas onde ele foi implementado e a partir da revisão de literatura sobre o contexto econômico, político, social e cultural do período. De acordo com a perspectiva do materialismo histórico dialético, durante essas três etapas da pesquisa, que ocorreram de modo paralelo, procuramos sintetizar os aspectos que caracterizam a proposta hegemônica de educação integral apresentada na política investigada, para, com isso, estabelecer as relações desses aspectos com o contexto mais amplo de sua produção. Desse modo, a análise se fundou no processo de estabelecer a relação entre a parte e o todo, atentando para as contradições materiais e históricas e para as mediações necessárias à compreensão do processo e ao estabelecimento de novas sínteses no campo do conhecimento e no contexto histórico.

É possível observar que o protagonismo das organizações populares, aspecto central na concepção de educação integral na perspectiva da emancipação humana, é ofuscado pelos discursos de “educação para todos”, como se perspectivas de classes antagônicas pudessem ser contempladas por uma mesma política pública. Esse é um dos aspectos significativos que podem caracterizar a “participação” enfatizada nos documentos do Programa, como um mecanismo para a governança. Segundo Gonçalves (2006, p. 3-4), o conceito de governança, conforme os próprios documentos do Programa demonstram, relaciona-se com as novas formas de exercício do poder do Estado, não se restringindo aos seus aspectos administrativos e gerenciais,

[...] a governança refere-se a “padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais que coordenam e regulam transações dentro e através das fronteiras do sistema econômico”, incluindo-se aí “não apenas os mecanismos tradicionais de agregação e articulação de interesses, tais como os partidos políticos e grupos de pressão, como também redes sociais informais (de fornecedores, famílias, gerentes), hierarquias e associações de diversos tipos” (Santos, 1997, p. 342). Ou seja, enquanto a governabilidade tem uma dimensão essencialmente estatal, vinculada ao sistema político-institucional, a governança opera num plano mais amplo, englobando a sociedade como um todo.

É nesse sentido, como meio de promoção e garantia da governança, que a “participação” é destacada nos documentos que orientam a implementação do Programa Mais Educação:

Governantes e lideranças sociais são responsáveis por promover o diálogo entre o poder público, a comunidade escolar e a sociedade civil, para assegurar o compromisso coletivo de construção de um projeto de Educação Integral que estimule o respeito aos direitos humanos e o exercício da democracia, com a participação qualificada dos alunos nos processos de discussão de como agir para melhorar suas sociedades. (BRASIL, 2011b, p. 26).

Em outro trecho do mesmo documento a relação entre participação e governança se torna mais evidente:

A governança requer, do Estado, a capacidade de coordenar os atores sociais e políticos envolvidos, dotados de poder e legitimidade no processo decisório de políticas públicas. Além de fortalecer contextos democráticos, deve poder alcançar objetivos comuns a um menor custo, o que potencializa novas ações. (BRASIL, 2011b, p. 28).

Como se pode observar, a “participação qualificada”, embora muito enfatizada ao longo dos documentos que orientam a implementação do Programa Mais Educação, não está centrada na perspectiva de uma formação para a participação efetiva dos sujeitos no sentido discutido anteriormente, isto é, na construção do direcionamento da política e o seu controle. A ”participação qualificada” e o “exercício da democracia” aparecem nos documentos como elementos da governança e, assim, tornam-se necessários para que o Estado garanta a governabilidade, o que pode ser compreendida, também, como participativismo autoritário (PUCCINELLI, 2016), uma vez que acolhe a participação social como condição necessária para legitimar decisões previamente tomadas, a fim de salientar o componente democrático de interesses particulares assumidos pela coletividade.

Tais práticas estão circunscritas no bojo das modificações recentes da sociedade capitalista, como destaca Gonçalves (2006, p. 4):

O fenômeno da globalização, entendido como um processo não exclusivamente econômico, mas também que envolve aspectos sociais, culturais, políticos e pessoais, recolocou, de maneira dramática, as relações entre sociedade e Estado. Trouxe como consequência uma mudança no papel do Estado nacional (não sua extinção, mas certamente uma reconfiguração) e suas relações no cenário internacional. Impulsionou, portanto, a discussão sobre os novos meios e padrões de articulação entre indivíduos, organizações, empresas e o próprio Estado, deixando clara a importância da governança em todos os níveis.

Esse aspecto, somado ao fato de essa política estar direcionada prioritariamente para escolas localizadas em regiões consideradas em situação de vulnerabilidade social, além do contexto político e econômico do qual emerge sua proposta, permite concluir que a concepção de educação integral difundida pelo Programa Mais Educação se relaciona mais ao objetivo de produção de consenso, em torno do projeto social hegemônico, por meio de políticas compensatórias, do que ao objetivo de qualificar a educação formal ofertada para as classes trabalhadoras. Apresenta-se, assim, em consonância com as atuais demandas do capitalismo no âmbito da educação escolarizada, o que confere à sua categoria de educação integral um sentido radicalmente oposto à educação integral na perspectiva da emancipação humana (SANTOS, 2014).

A partir do estudo realizado, procuramos caracterizar e analisar as perspectivas de educação integral que se tornaram hegemônicas nos diferentes períodos analisados, nacional-desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo. Essas concepções apresentadas certamente não representam as únicas elaboradas no período, mas, sim, aquelas que, em razão dos embates políticos e sociais da época se constituíram em concepções hegemônicas e, portanto, passaram a ter uma maior influência na proposição das práticas de educação integral. Procuramos também demonstrar o quanto essas concepções, que se tornaram hegemônicas e que foram incorporadas pela política pública, distanciaram-se da proposição de educação integral dos movimentos operários. Nossa intenção foi analisar as concepções da educação integral proposta pelas políticas públicas, a partir dos condicionantes históricos, econômicos, sociais e políticos que culminaram com a concepção que se torna hegemônica em cada período histórico. Entendemos que o Estado, a partir de suas políticas públicas, não apenas incorpora as demandas e concepções que a partir dos embates históricos, sociais e políticos se tornam hegemônicos, como também influencia a produção de novos embates e conhecimentos sobre a questão. Esse processo se configura de modo contraditório, e, na perspectiva do materialismo histórico dialético, seus resultados somente podem ser compreendidos na relação parte e todo, nesse caso, na relação da concepção de educação integral difundida pelas políticas públicas e pelo projeto político, social e econômico do Estado no período investigado. Nesse sentido, a concepção elaborada pelo movimento operário não serviu como proposição, a priori, em nossa análise, mas enquanto proposição que nasce das lutas históricas desse movimento e que tem por horizonte a construção de uma nova sociedade e que, assim, demonstra os limites que a educação integral a cargo da política pública apresentou nos contextos analisados, especialmente pela criação de obstáculos à organização das classes populares.

Conforme destacamos anteriormente, nossos estudos se limitaram à primeira versão do Programa, que sofreu alterações significativas em sua proposta a partir de 2016, com o afastamento da Presidente Dilma Rousseff e com a consolidação da ruptura com o projeto neodesenvolvimentista. Em uma leitura inicial dos documentos referentes à sua reforma, é possível inferir que, em sua nova versão, o Programa tem aprofundado as contradições entre a concepção de educação integral na perspectiva do capital e a concepção de educação integral na perspectiva da emancipação humana.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A investigação realizada permite afirmar que a proposta de educação integral emerge no debate das políticas públicas educacionais em momentos em que o Estado busca rearticular suas ações para com a sociedade civil, com o objetivo de consolidar a hegemonia em torno das ações necessárias para reestruturações do sistema capitalista. A análise dos documentos oficiais do Programa Mais Educação e a revisão de literatura sobre as políticas de educação integral do período nacional-desenvolvimentista permitem observar três aspectos comuns que se destacam nos diferentes períodos analisados. Primeiro, a ênfase na necessidade de democratização do acesso ao ensino público, segundo, o direcionamento dessas políticas às populações mais empobrecidas dos centros urbanos e, terceiro, a ênfase na “proteção social” dessas populações, ofertando alimentação, saúde e ocupação do tempo livre através da escola (SANTOS, 2014). Dessa forma, essas políticas agem mais no sentido de produção de consenso em torno da hegemonia da sociedade capitalista e na formação do seu necessário modo de sociabilidade, como enfatizam outros estudiosos da política pública educacional no período (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2005; FALLEIROS; PRONKO; OLIVEIRA, 2010), do que para a superação da dicotomia entre formação intelectual e formação manual, expressão formal das contradições entre capital e trabalho na educação.

No caso do Programa Mais Educação (2007 a 2016), do qual analisamos a política de educação integral no projeto neodesenvolvimentista, destaca-se o objetivo de promover espaços de participação democrática das comunidades nas atividades da escola, sugerindo que essa participação viabilizaria a formação da cidadania necessária ao contexto atual. Como procuramos demonstrar ao longo do texto, consideramos que esse aspecto merece muita atenção em nossos estudos, visto que a análise dos documentos oficiais do Programa demonstrou que a “participação” proposta não pode ser confundida com o protagonismo das classes trabalhadoras, como se pressupõe em um projeto de educação na perspectiva da emancipação humana.

A análise das principais contradições da concepção de educação integral apresentadas por essas políticas em relação à proposta de educação integral defendida pelo movimento operário possibilita explicitar o falso consenso em torno de uma perspectiva única de educação integral, resgatando a radicalidade da concepção de educação integral na perspectiva da emancipação humana/anticapitalista e, sobretudo, enfatizando a necessidade de disputa pelos educadores comprometidos com essa perspectiva, no sentido de efetivar uma educação integral que realmente contribua para elevar as classes trabalhadoras à sua condição de protagonistas do projeto político e pedagógico da educação pública.

REFERÊNCIAS

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Recebido em 12 de janeiro de 2018

Aceito em 20 de setembro de 2018

Endereços para correspondência: Rua Francisco Ferreira Filho, 148, apartamento 20, Centro, 94410-010, Viamão, Rio Grande do Sul, Brasil; magdacs81@yahoo.com.br

Roteiro, Joaçaba, v. 43, n. 3, p. 1027-1050, set./dez. 2018 | E-ISSN 2177-6059


1 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas; Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas.

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Mestre em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

3 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

4 Pesquisas de mestrado e doutorado realizadas no âmbito de dois dos grupos de pesquisa vinculados aos Programas de Pós-Graduação de nossas universidades.

5 Essas divergências, que não interferem na concepção fundamental de educação integral compartilhada por ambas as vertentes do movimento operário, são apresentadas por Ghiraldelli Júnior (1987).

6 Em termos educacionais, os governos militares empenharam-se em realizar reformas no ensino superior e na difusão de programas de alfabetização, como ações principais na área educacional.

7 A despeito da experiência levada a cabo por Darcy Ribeiro – herdeiro dos postulados do movimento da Escola Nova – pode-se dizer que a década de 1980 foi marcada pela ampliação do debate educacional, apresentando, inclusive, por parte de importantes associações de pesquisadores e intelectuais da educação, a proposição da Politecnia como referência para a educação pública.

8 Iniciado em 1990, no governo do então presidente Fernando Collor de Mello, o Centro Integrado de Atenção à Criança e ao Adolescente (CIAC) pretendia oferecer atendimento de saúde, de educação, de assistência e de promoção social para adolescentes e crianças. Em 1993, o Ministério da Educação assume o projeto que passa a se chamar Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (Pronaica), articulando órgãos federais, estaduais e municipais, ONGs e organismos internacionais. A partir desse período, os CIACs passaram a ser denominados CAICs (FREITAS; GALTER, 2007).

9 O Programa Mais Educação constitui uma das propostas do PDE divulgada em 2007 para compor as ações que visam efetivar o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) no campo da educação. Segundo sua proposta, o PDE visa focar a democratização no acesso às instituições de ensino, mediante ações que contribuam para suprir as “deficiências” básicas da educação que representam entraves para a superação das desigualdades educacionais e, portanto, para a “aceleração do crescimento nacional”.

10 Os documentos analisados foram: A – Caminhos para elaborar uma proposta de Educação Integral em Jornada Ampliada (BRASIL, 2011a); B – Programa Mais Educação passo-a-passo (BRASIL, 2011b); C – Rede de saberes Mais Educação: pressupostos para projetos pedagógicos de Educação Integral – Caderno para professores e diretores de escola (BRASIL, 2009c); D – Educação Integral: Texto referência para o debate nacional (BRASIL, 2009a) e E – Programa Mais Educação: gestão intersetorial no território (BRASIL, 2009b). Utilizamos as letras (A, B, C, D e E) que antecedem os documentos para referenciá-los ao longo do texto.