http://dx.doi.org/10.18593/r.v44i1.15451

Pedagogia decolonial e educação de jovens, adultos e idosos no contexto de uma sociedade racializada1

Decolonial pedagogy and youth, adults and elderly education in the context of a racialized society

Pedagogía decolonial y educación de jóvenes, adultos y ancianos en el contexto de una sociedad racializada

Marizete Lucini2

Universidade Federal de Sergipe, Docente do Programa de Pós-graduação em Educação

Leyla Menezes de Santana3

Universidade Federal de Sergipe, Pesquisadora do Grupo Educação, História e Interculturalidade

Resumo: O presente artigo objetiva apresentar reflexões assentadas no âmbito da pedagogia decolonial como contribuições insurgentes às práticas pedagógicas da educação de jovens, adultos e idosos. Fruto de reflexões teóricas e pedagógicas, o caminho aqui delineado, à luz da fenomenologia hermenêutica, percorre os tensionamentos que o ensino na Educação de Jovens e Adultos (EJA) experimenta em relação às suas formas colonizadoras, em uma sociedade marcadamente racializada, mas também estabelece relação com as práticas pedagógicas vivenciadas por alfabetizadoras populares que, fixadas na realidade do campo, foram se constituindo e se reconhecendo como agentes de transformação ao se relacionarem com a educação e se engajarem comunitariamente para que jovens, adultos e idosos alcançassem a habilidade de ler e escrever. Essa dinâmica era vivenciada a partir de um movimento de construção, reflexão e reconstrução contínuos do ato educativo, com o deslocamento opressão/libertação, cuja principal exigência era a tomada de consciência que se realizava comunitariamente e a partir de um salto crítico.

Palavras-chave: Pedagogia decolonial. Educação de Jovens, Adultos e Idosos. Ensino decolonizado.

Abstract: This article aims to present reflections based on decolonial pedagogy as insurgent contributions to the pedagogical practices of the education of young people, adults and the elderly. As a result of theoretical and pedagogical reflections, the path outlined here, in the light of the phenomenological hermeneutics, goes through the tensions that teaching in Youth and Adult Education (YAE) experiences in relation to its colonized forms, in a markedly racialized society, but also establishes relationship with pedagogical practices lived by rural female literacy teachers who, established themselves in the countryside reality, were becoming and recognizing themselves as agents of transformation during the relational educational process, when community engaged to develop reading and writing skills of young people, adults and the elderly. This dynamics was experienced from a constant movement of construction, reflection and continuous reconstruction of the educational act, doing a displacement of oppression/liberation, whose main demand was the awareness that was given in a communitarian context during a critical breakthrough.

Keywords: Decolonial pedagogy. Youth, Adults and the Elderly Education. Decolonized teaching.

Resumen: El presente artículo tiene como objetivo presentar reflexiones asentadas en el ámbito de la pedagogía decolonial como contribuciones insurgentes a las prácticas pedagógicas de la educación de jóvenes, adultos y ancianos. Fruto de reflexiones teóricas y pedagógicas, el camino aquí delineado, a la luz de la fenomenológia hermenéutica, recorre los tensos que la enseñanza en la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) experimenta en relación a sus formas colonizadoras, en una sociedad marcadamente racializada, pero también establece relación con las prácticas pedagógicas vivenciadas por alfabetizadoras populares que, fijadas en la realidad del campo, se fueron constituyendo y reconociendose como agentes de transformación al relacionarse con la educación y al involucrarse comunitariamente para que jóvenes, adultos y ancianos alcanzasen la habilidad de leer y escribir. Esta dinámica ha sido vivida a partir de un movimiento constante de construcción, reflexión y reconstrucción continua del acto educativo, con el desplazamiento opresión/liberación, cuya principal exigencia era la toma de conciencia que se daba comunitariamente y a partir de un salto crítico.

Palabras clave: Pedagogía decolonial. Educación de Jóvenes, Adultos y Ancianos. Enseñanza decolonizada.

Recebido em 08 de setembro de 2017

Aceito em 26 de outubro de 2018

Publicado em 19 de fevereiro de 2019

1 REFLEXÕES TEÓRICAS E PEDAGÓGICAS: OS PRIMEIROS DELINEAMENTOS DO CAMINHO

O texto que segue apresenta reflexões oriundas de incursões teóricas iniciais sobre a pedagogia decolonial em sua potencialidade para pensar práticas pedagógicas na educação de jovens, adultos e idosos, numa experiência de alfabetização não escolar desenvolvida sob a inspiração dos estudos da educação popular, em uma sociedade cujas marcas do analfabetismo atingem principalmente os sujeitos negros, indígenas e camponeses. Fruto de reflexões teóricas e pedagógicas, o caminho aqui delineado percorre os tensionamentos que o ensino na Educação de Jovens e Adultos (EJA) experimenta em relação ao pensamento colonizador como prática que se efetiva intersticialmente nas formas de viver e ser dos sujeitos em situação de opressão. Opressão que se efetiva pela negação do direito ao acesso a outras formas de conhecer, ao mesmo tempo que desvaloriza o saber popular que advém do pensar-se como sujeito inserido no mundo, protagonista de sua história.

Ao pensamento colonizador, nesse texto, confrontamos práticas pedagógicas vivenciadas por alfabetizadoras populares, que fixadas na realidade do campo, atuando majoritariamente com populações negras e camponesas, foram se constituindo e se reconhecendo como agentes de transformação ao se relacionarem com a educação e ao se engajarem comunitariamente para que jovens, adultos e idosos alcançassem a habilidade de ler e escrever.

Ao propormos a reflexão sobre os confrontos possíveis ao pensamento colonizador, importa destacar que essa forma de pensar o mundo é uma constituição que perpassa todas as instâncias estruturantes da sociedade e das relações dos sujeitos entre si, com os outros e com o mundo. Portanto, trata-se de uma forma de perceber-se no mundo e de intervir, seja para reafirmar o instalado, seja para reproduzir a lógica submissa, una e homogênea que caracteriza o pensamento ocidental. Para que essa submissão/exploração seja possível, o pensamento colonizador é condição, porque produz a ideia de que somos menos civilizados e de que nossos saberes não têm valor diante dos saberes da ciência. Na construção do pensamento colonizador as formas e conteúdos são mediados por normas disciplinares, posições que moldam os corpos, recriam incessantemente a rotina e promovem um pensamento limitado e limitante.

Entendemos que a Educação de Jovens e Adultos pode e necessita considerar outras formas de produção e reconhecimento do saber, pois “[...] a sabedoria da vivência com a ordem e a desordem nas relações com os outros, nos inspira à busca de outras formas de produzir conhecimento.” (PIMENTEL, 2016, p. 10).

A pedagogia decolonial que tomamos aqui como um dos fios na tessitura desse texto é entendida como

[...] maneira múltipla: como algo dado e revelado; [que faz] abrir caminho, transpassar, interromper, deslocar e inverter práticas e conceitos herdados, estas metodologias psíquicas, analíticas e organizacionais que usamos para saber o que cremos que sabemos, para tornar possível conversas e solidariedades diferentes; como projeto tanto epistêmico como ontológico ligado a nosso ser e, portanto, aliado à formulação que fez Freire da pedagogia como metodologia imprescindível. Pedagogias [que] convocam conhecimentos subordinados, produzidos no contexto de práticas de marginalização, para poder desestabilizar as práticas existentes de saber e assim cruzar os limites fictícios de exclusão e marginalização. (ALEXANDER,4 2005, p. 7 apud WALSH, 2009, p. 26).

Evocar um conhecimento outrora marginalizado, dando-lhe visibilidade crítica, parece-nos ser um dos objetivos da pedagogia decolonial, que é entendida para além da transmissão do saber por meio do ensino, “[...] como processo e prática sóciopolíticos produtivos e transformadores assentados nas realidades, subjetividades, histórias e lutas das pessoas, vividas num mundo regido pela estrutura colonial.” (WALSH, 2009, p. 26).

A pedagogia decolonial é uma das possibilidades efetivas de materialização da interculturalidade crítica, tendo em vista que como projeto com variadas vertentes, a interculturalidade exige uma pedagogia que proporcione a interlocução política, ética, histórica, social e epistêmica com a construção de processos e práticas pedagógicas diferentes (WALSH, 2009, p. 26). Segundo Candau (2009, p. 1), a interculturalidade é termo que surge na América Latina e tem adquirido uma especial relevância a partir dos anos 1990. A relação entre educação e interculturalismo é discutida na esfera da educação escolar indígena, nos movimentos negros latino-americanos e nas experiências de educação popular. Ao discutir a temática da educação popular, a autora afirma que as

[...] experiências privilegiaram os âmbitos de educação não formal tendo, no entanto, principalmente a partir do final da década de 1980 e inícios dos anos noventa, exercido impacto nas propostas de renovação de diversos sistemas escolares. Sua principal contribuição na perspectiva deste trabalho é a de afirmar a intrínseca articulação entre processos educativos e os contextos socioculturais em que estes se situam, colocando assim os universos culturais dos atores implicados no centro das ações pedagógicas. (CANDAU, 2009, p. 3).

A educação popular é um campo de discussão no qual o pensar crítico fomenta conexões entre os processos educativos e os contextos socioculturais e políticos. Nesse sentido, ao propor uma reflexão sobre um ensino de EJA não colonizado, faz-se necessário alargar o debate acerca da interculturalidade crítica refletida a partir da educação popular e amparado pelas contribuições de Paulo Freire, pois os processos pedagógicos sofrem uma análise crítica, por meio da qual se pode perceber a realidade como movimento e não como algo estático, o que é muito presente no pensamento freireano.

Para Dussel (2012, p. 427), Paulo Freire é muito mais que um pedagogo, “[...] é um educador da ‘consciência ético-crítica’ das vítimas”, e seu pensar e fazer educação se voltam para “os oprimidos, os condenados da terra, em comunidade”, suscitando uma empreitada educativa cuja proposta fundamental é “[...] promover uma consciência ético-crítica no educando [...] Freire pensa na educação da vítima no próprio processo histórico, comunitário e real pelo qual deixa de ser vítima” (DUSSEL, 2012, p. 435), e o sujeito histórico adquire conscientização para educar-se a si mesmo. Na perspectiva freireana é impossível pensar educação sem que o próprio educando assuma o protagonismo do seu processo de libertação e consequentemente promova a transformação da realidade.

Mas como despertar no educando esse estado de consciência ético-crítica, ultrapassando as fronteiras das práticas educativas que privilegiam apenas o aspecto cognitivo? No caso da alfabetização de adultos, como ir além, muito além da aquisição da habilidade de decifrar códigos enquanto aprendizagem cognitiva de leitura e escrita e alargar para uma prática que desvela a realidade e atue sobre a mesma, transformando-a? Paulo Freire aponta duas possibilidades que recorremos aqui, as quais consideramos importantes na postura teórica que adotamos diante do objeto que investigamos.

A primeira diz respeito ao processo de alfabetização, que não está associado apenas à habilidade de codificar e decodificar, mas essencialmente interligada à leitura do mundo, já que linguagens e realidade estão entrelaçadas, tendo em vista que o entendimento do texto exige a percepção das relações entre o escrito e o contexto, pois “Ler o mundo é um ato anterior à leitura da palavra. O ensino da leitura e da escrita da palavra a que falte o exercício crítico da leitura e da releitura do mundo é, científica, política e pedagogicamente capenga.” (FREIRE, 1992, p. 41). Assim, a leitura de mundo implica questionar a realidade como condição de superação da visão fatalista de mundo.

Valendo-nos dos registros da experiência vivenciada por Paulo Freire quando esteve em Guiné-Bissau (1976-1980) para trabalhar com educadores e educandos da educação de adultos, amparamos a nossa segunda possibilidade, cujo destaque é a participação do educador enquanto sujeito crítico no processo, pois

[...] o que se coloca a tal educador é a procura dos melhores caminhos, das melhores ajudas que possibilitem ao alfabetizando exercer o papel de sujeito de conhecimento no processo de sua alfabetização. O educador deve ser um inventor e um reinventor constante desses meios e desses caminhos com os quais facilite mais e mais a problematização do objeto a ser desvelado e finalmente apreendido pelos educandos. [...] o importante é o exercício da atitude crítica em face do objeto. (FREIRE, 1978, p. 13).

Tanto na primeira inferência quanto na segunda podemos visualizar a participação do educador: por um lado, reconhecendo o entrelaçamento entre o mundo e a linguagem a ser aprendida; por outro, jamais desassociando “ato de ensinar do ato de aprender” (FREIRE, 2001a, p. 259). O educador pode despertar no educando sua condição de oprimido, de colonizado, pois a “[...] consciência não chega à vítima “de fora”, mas surge “de dentro” da sua própria consciência despertada pelo educador. A importância do educador consiste no fato de dar ao educando maior criticidade, ao ensiná-lo a interpretar a realidade objetiva criticamente.” (DUSSEL, 2012, p. 439).

Nesse sentido, indo em direção à pedagogia decolonial, que intercede pelo colonizado, pela vítima, por aquele submetido a um processo histórico-sociocultural de opressão, seja em relação ao gênero, à raça ou à condição social, compreende-se que a postura colonizadora é uma relação incompatível com a perspectiva freireana de pensar e fazer alfabetização de jovens, adultos e idosos. A postura colonizadora é antagônica a esse processo porque ela é herdeira de um pensamento submisso, que tira do sujeito a sua consciência de mundo, e mais do que isso, põe-lhe em um estado de “[...] reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença.” (FREIRE, 1996, p. 53).

O pensamento de Freire na célebre obra Pedagogia do Oprimido é combativo das expressões opressoras e caminha na contramão do pensamento colonizador:

A “Pedagogia do Oprimido” propõe a objetivação e a desconstrução do mito da estrutura opressora como estratégia para que o educando possa questionar temas e aspectos da realidade antes tidos como dados, superando assim sua visão fatalista do mundo. No mesmo sentido a literatura pós-colonial advoga pela objetivação e desconstrução do mito do eurocentrismo, através do paradigma da colonialidade/modernidade, como forma de produzir um conhecimento menos colonizado e excludente; daí seu caráter pedagógico para o campo das ciências sociais. (PENNA, 2014, p. 192).

O imperativo do conhecimento menos colonizado é o princípio do educar para a liberdade, do educar para a consciência crítica, do educar para a autonomia. Essa tríade privilegia uma prática educativa que promove a autonomia do ser. Nesse sentido, o educando rompe com a situação opressora, pois “[...] enquanto se encontra nítida sua ambiguidade, os oprimidos dificilmente lutam, nem sequer confiam em si mesmos. Têm uma crença difusa, mágica, na invulnerabilidade do opressor. No seu poder de que sempre dá testemunho.” (FREIRE, 1987, p. 28). Nesse aspecto, importa considerar a discussão relativa à colonização do ser.

Sob a ótica freireana, podemos considerar que decolonizar o ser é promover

O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível deixar claro que a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de transgressão. (FREIRE, 1996, p. 59).

Nesse sentido, percebe-se que o desvio ético, quando o assunto é romper com a estrutura opressora, essa que desrespeita a cultura e a realidade sócio-histórica, que minimiza a inquietude, o gosto estético e a linguagem dos educandos, é uma condição e não um favor, como afirma Freire. Por isso, esse rompimento com o padrão que oprime e coloniza o ser é premissa na prática educativa libertadora, cooperando consequentemente com a decolonização do saber, via operante do pensamento decolonial, que neste estudo é instrumentalizado por meio de uma experiência de alfabetização menos colonizada, cujo princípio fundante se alicerça no pensamento de Paulo Freire.

Para operacionalizar este estudo, optou-se por um método de abordagem de base fenomenológica hermenêutica, uma vez que intenciona “[...] compreender o que se mostra (abertura no sentido de estar livre para perceber o que se mostra e não preso a conceitos ou predefinições).” (MASINI, 2010, p. 68). As informações coletadas acerca do processo vivenciado por educandos e educadoras populares na experiência do ensino de EJA dão conta de que a dinâmica vivenciada era de construção, reflexão e reconstrução contínua do ato educativo. Dessa forma, nos enveredamos nesse exercício metodológico, uma vez que

O método fenomenológico não se limita a uma descrição passiva. É simultaneamente tarefa de interpretação (tarefa da Hermenêutica) que consiste em pôr a descoberto os sentidos menos aparentes, o que o fenômeno tem de mais fundamental. Na pesquisa (como em qualquer outra situação) a apropriação do conhecimento dá-se através do círculo hermenêutico: compreensão-interpretação-nova compreensão. (MASINI, 2010, p. 69).

A investigação aqui apresentada parte do interesse de compreender o ensino de EJA crítico, cuja ação está alicerçada no desvelar da realidade e na atuação sobre esta, possibilitando, assim, a transformação. Posição que implica uma postura fenomenológica hermenêutica, pois o fenômeno em questão são os processos vivenciados no cerne da experiência alfabetizadora menos colonizada. Procuramos interpretar e compreender esse fenômeno do ponto de vista exploratório, considerando que mais adiante ele poderá ser visto sob uma nova interpretação, o que configura uma das características da fenomenologia, o inacabamento.

2 UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO (ALFABETIZAÇÃO) DE ADULTOS FORA DOS PROCESSOS DE ESCOLARIZAÇÃO

A persistência nas tentativas de solução e combate ao analfabetismo é histórica e precisa cada vez mais ser eficiente, aproveitando todo o tempo, todos os espaços, todas as disposições pessoais, todos os métodos de ensino, sem esquecer a valorização dos profissionais envolvidos, pois se trata de um esforço que ultrapassa ações pontuais, por se caracterizar como um campo em que estão envolvidos projetos de vida dos sujeitos alfabetizandos e alfabetizadores. A ausência ou mesmo a deficiência no uso da leitura e da escrita por uma parcela significativa da população brasileira, com idade de 15 anos ou mais, é um fenômeno que contribui sobremaneira para a manutenção da desigualdade social.5

Ao apresentar o Balanço do Programa Brasil Alfabetizado de 2012, a Secretaria de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos do Ministério da Educação, a partir do Censo do IBGE/2010, apontou para um dos aspectos que entendemos como significativo na reflexão relativa ao pensamento colonizador sobre o tecido social, pincipalmente em relação à raça, localização geográfica e sexo.

Em relação à raça, observa-se que o analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais atinge 23,28% dos que se autodeclararam indígenas, 12,90% dos que se autodeclararam pardos, 14,40% dos que se autodeclararam pretos, 8,7% dos que se autodeclaram amarelos, e 5,90% dos que se autodeclararam brancos (BRASIL, 2012).

Em relação ao sexo, a população com 15 anos ou mais, analfabeta, segundo o gênero, 9,30% são mulheres e 9,90%, homens. Para a mesma faixa etária de 15 anos ou mais, analfabeta, 23,18% residem na área rural e 7,28%, na área urbana. Nos dados apresentados fica evidente que entre as diferentes raças, conforme a autodeclaração dos sujeitos, a maioria dos analfabetos corresponde a indígenas, negros e pardos, do gênero masculino e residentes na área rural. Contudo, ao nos remetermos ao perfil dos alfabetizandos, conforme dados da Secretaria de Alfabetização de Jovens e Adultos, divulgados em 2012, 66% são pardos, 12% negros, 19% brancos, 2% amarelos e 1% indígenas. Destes, 56% são mulheres e 44% homens, sendo que 58% residem na área rural e 42%, na área urbana (BRASIL, 2012).

Observa-se que os altos índices de analfabetismo se situam entre negros, pardos e indígenas, o que denota que o analfabetismo desses grupos sociais não é um dado irrelevante, mas uma evidência dos processos de exclusão vivenciados por grande parcela da população brasileira. Nesse sentido,

[...] cabe problematizar que, não é por acaso que o percentual de negros/as com baixa escolaridade é bem maior que o de não negros. Historicamente, estabeleceu-se um modelo excludente, impedindo que muitos brasileiros tivessem acesso à escola ou até mesmo que nela permanecessem. (JESUS, 2015, p. 13).

Trata-se, portanto, de um modelo excludente que não se refere apenas ao acesso à escola, mas também a uma estrutura pedagógico-administrativa que reflete a lógica do colonizador e não acolhe outras formas de existir, seja organização temporal, saberes privilegiados, relações hierárquicas ou as normas reguladoras da escola. Ao não acolher os diferentes sujeitos em sua existencialidade, a escola se torna um mecanismo de exclusão.

Contudo, em uma sociedade na qual a escrita é um meio substancial utilizado para estabelecer relações, para produzir e registar conhecimentos e informações, como ficam as pessoas que não sabem ler e escrever? Com efeito, a habilidade humana de ler e escrever influencia sobremaneira a de inserção dos sujeitos no mundo contemporâneo.

Ao considerarmos que para além dos domínios técnicos da leitura e da escrita, a alfabetização altera projetos de vidas de alfabetizandos e alfabetizadores, propomo-nos agora a dialogar e entrecruzar as discussões até aqui fomentadas e oriundas da pedagogia decolonial, com uma experiência de alfabetização de adultos desenvolvida pela Pastoral da Criança no Estado de Sergipe,6 que objetivou contemplar aqueles que tiveram o direito à educação (alfabetização) negado.

Para tanto, essa discussão perpassa “uma educação que prepare para o diálogo com os ‘outros’, aqueles que historicamente foram minorizados, foram ditos sem história, inferiores, sem cultura e tantos outros adjetivos que os desqualificam.” (PAIM, 2016, p. 162).

O Projeto de Educação de Jovens e Adultos da Pastoral da Criança é procedente do Ano Internacional da Alfabetização, proposto pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 1990. Em 1991, a Pastoral da Criança resolveu incluir em suas ações, de modo complementar, a alfabetização de jovens, adultos e idosos numa proposta que visava ao desenvolvimento dos seus voluntários, das mães e dos demais familiares das crianças acompanhadas, pois se constatou que o analfabetismo entre esse público ainda era muito alto, fator que dificultava o trabalho no estímulo ao desenvolvimento integral das crianças, desde a gestação, por meio da educação de suas famílias nas comunidades acompanhadas.

Com capilaridade nacional, o projeto chegou às comunidades do Estado de Sergipe em 2000, permanecendo em atividade até 2011. Ele trouxe no seu bojo o sonho de contribuir para que líderes e familiares das crianças acompanhadas pudessem resgatar um dos direitos humanos fundamentais que lhes foi negado: a alfabetização. Outro fator que contribuiu para que a instituição decidisse por implantar o programa foi a constatação de que o analfabetismo e a mortalidade infantil estavam diretamente relacionados, pois quanto maior o índice de analfabetos no município, maior era a taxa de mortalidade infantil.

Para realizar as atividades do projeto, a Pastoral da Criança contava com voluntárias que desempenhavam a função de monitoras e supervisoras. A monitora, alfabetizadora responsável por uma turma, recebia formação pela instituição e possuía, no mínimo, o ensino fundamental completo. Ela era acompanhada por uma supervisora, que lhe dava orientações e apoio para esclarecer possíveis dúvidas. A supervisora de turmas, por sua vez, conhecia a filosofia da Pastoral da Criança e tinha, no mínimo, o ensino médio completo. Essa supervisora era acompanhada à distância pela Coordenação Nacional do Projeto de Educação de Jovens e Adultos da Pastoral da Criança e por uma coordenação local, o que se realizava por meio de visitas e acompanhamento das Folhas de Acompanhamento e Avaliação de Educação de Jovens e Adultos e relatórios.

O processo de alfabetizar era concretizado na coletividade, na troca de experiências de umas e na inexperiência de outras. Continuamente experimentavam a partilha de saberes geradores de aprendizagens. “Esta pedagogia da participação, da solidariedade, se expressava, sobretudo, em âmbito local. As práticas educativas contribuíam para que as pessoas se ajustassem aos interesses de outras pessoas e do grupo.” (RIVERO, 2009, p. 52). A soma desses esforços refletia na construção das aulas e, consequentemente, na maneira de ensinar e de aprender de cada participante do projeto. Esse modo “outro”7 de ensinar e aprender, o qual sensivelmente estamos nomeando de um ensino menos colonizado, era permeado por “[...] conhecimentos que têm contemporaneidade para criticamente ler o mundo, e para compreender, (re) aprender e atuar no presente.” (WALSH, 2009, p. 25).

As aulas eram construídas a partir de temas geradores.8 A primeira semana de aula era mobilizada a partir da frase “Quem sou eu?”. Na segunda semana, a lição era trabalhada a partir da temática “Vida”, e as próximas versavam sobre família, moradia, terra, comida, saúde, educação e cidadania. Os temas geradores tinham sentido e faziam ecoar descobertas sobre si, sobre o outro, sobre a comunidade. A dinâmica ocorria por meio da construção, reflexão e reconstrução contínua do ato educativo.

Dentro do processo de alfabetização implementado pela Pastoral da Criança, o método utilizado era de orientação freireana. Para a Pastoral da Criança (2007, p. 13):

Sem sombra de dúvida Paulo Freire, com esse novo jeito de alfabetizar, rompeu com um paradigma milenar e introduziu um método pedagógico inovador, revolucionário, capaz de levar os participantes a um comprometimento pessoal, social e estrutural. Paulo Freire, a partir de sua própria experiência percebeu a eficácia da criação de uma nova concepção de educação popular onde, pelo seu método, conclama a todo participante do processo a ter uma consciência crítica e lutar pela superação da opressão e desigualdades sociais. (PASTORAL DA CRIANÇA, 2007, p. 13).

Paiva (2000) assinala que um método deriva de ideias pedagógicas e filosóficas, não é uma simples técnica neutra, mas todo um sistema coerente no qual a teoria informa a prática pedagógica e os seus meios. Formar um homem crítico, capaz de inserir-se na sua realidade política e social, constituía-se tarefa extremamente árdua na discussão de todos os elementos que compõem o pensamento de Freire. Assim,

Encontramos em Freire a mesma preocupação com a formação de personalidades democráticas, de homens livres e cooperativos. Formá-los seria o mesmo que educar para a liberdade, num processo de educação social e não apenas escolar, que se realiza através das discussões em pequenos grupos. (PAIVA, 2000, p. 157).

Para Beisiegel (2010), a compreensão do homem, da educação e da sociedade era bem evidente no método freireano. Havia uma preocupação com o adulto analfabeto ao qual, por conta de diferentes situações, foi negado o direito de estudar. Em razão desse processo de exclusão, a sala de aula era chamada de círculo de cultura, em que diferentes sujeitos, com histórias e caminhos parecidos, encontravam-se para discutir e aprender. Dessa forma, o conceito antropológico de cultura era bastante presente no método.

O movimento de alfabetização acontecia longe dos ambientes escolares, em uma abordagem que avançava no campo do território dos sujeitos, na vida cotidiana, às vezes nas casas, nas igrejas ou nos espaços comunitários. Foi assim na década de 1960 com Paulo Freire e foi assim nas comunidades dos municípios sergipanos, onde pessoas, imbuídas de compromisso social, alfabetizaram jovens, adultos e idosos em espaços alternativos, longe da estrutura escolar. Dessa forma, “Reconhecemos haver o entrecruzamento de saberes dos tempos/espaços das vivências e experiências fora do universo escolar [...] que, por sua vez, traduzem-se em um saber-conhecimento integral/integralizado.” (CONTE; RIBEIRO, 2017, p. 205).

Ainda na esteira das ideias de Freire (1987) sobre alfabetização, é pertinente refletir o que caracteriza um ser solidário, necessário para compreensão do voluntariado. Ser solidário, segundo Freire, é uma atitude radical, pois o que se solidariza assume a postura daquele com quem se solidarizou. O autor dialoga com Hegel (apud FREIRE, 1987, p. 20) ao demonstrar que “[...] o que caracteriza o ‘oprimido’ é sua ‘consciência servil’ frente ao seu ‘opressor’, o que caracteriza o ‘solidário’ é o seu desejo em lutar em prol da transformação da realidade do outro, ou seja, é o ‘ser para o outro’.” Portanto,

Aprender a ler e escrever se faz assim uma oportunidade para que mulheres e homens percebam o que realmente significa dizer a palavra: um comportamento humano que envolve ação e reflexão. Dizer a palavra, em um sentido verdadeiro, é o direito de expressar-se o mundo, de criar, de decidir, de optar. (FREIRE, 2001b, p. 59).

É importante ressaltar que o processo do alfabetizar só ocorre no diálogo, na troca de experiências e conhecimentos, em que cada um contribui para o enriquecimento do grupo. Para que esse processo realmente aconteça de maneira dialógica, cada agente participante (alfabetizando e alfabetizador) deve se colocar numa atitude de querer aprender e partilhar o que entende sobre o assunto em discussão (FREIRE, 1987).

Até aqui pudemos refletir sobre a dinâmica do projeto, sobre o método adotado que culminava em aulas marcadas pelo exercício da participação e da tomada de consciência, pois, conforme já apresentado, as alfabetizadoras utilizavam-se do tema gerador que era sugestivo em cada lição, e este “[...] não propunha apenas que eles aprendessem a ler e a escrever, mas a pensar; é que, fazendo o aprendizado da leitura e da palavra – e da escrita da palavra – nós contribuímos de maneira melhor a fazer a leitura do mundo.” (FREIRE, 2014, p. 288). Pensamos também sobre o território de funcionalidade dessas aulas e ponderamos, porque acreditamos, que estas devem, a exemplo dessa experiência alfabetizadora não escolar aqui compartilhada, acontecer no território do sujeito, na comunidade.

Tendo em vista essas abordagens, precisamos agora considerar a participação das educadoras populares, por vezes chamadas de alfabetizadoras ou monitoras. Mas qual é a identidade dessas mulheres? Suas histórias, suas memórias, suas trajetórias? Como elas se fizeram educadoras? Mesmo oferecendo uma rápida visão panorâmica dessas mulheres, é necessário voltarmos o olhar sensível aos seus processos de constituição e reconhecimento enquanto educadoras populares, tendo em vista que essas mulheres alfabetizadoras rurais, negras e não negras, vivenciaram processos diferenciados, longe da lógica hegemônica, fora dos padrões estabelecidos pelas diretrizes de formação de alfabetizadores.

As trajetórias pessoais dessas educadoras evocam maneiras múltiplas de pensar a inserção no magistério e, obviamente, no modo de viver a profissão. A composição da história de vida de cada uma reflete no que elas acreditam e no que são capazes de realizar como pessoas e profissionais. Essa dinâmica configura-se, então, como um deslocamento do olhar, outrora visto a partir dos conceitos enraizados e agora consolidados a partir das experiências do seu modo de ver e ser educador.

Ao interpretar os estudos de Catherine Walsh sobre a colonialidade do poder, do saber e do ser, Figueiredo e Silva (2012) corroboram com esse cenário ao esclarecerem a colonialidade desvelada por meio do saber, pois, para eles

[...] é a colonialidade do saber, que define uma única lógica de conhecimento: o conhecimento científico eurocêntrico, identificado, sobretudo, à racionalidade cartesiana. Com isso, rejeita-se à existência outras formas de conhecer, pois a ciência passa a ser a única forma de conhecimento válido e verdadeiro. As outras formas de conhecer, dos povos tradicionais e das classes populares, não são somente tomadas como inferiores, mas até como inexistentes. (FIGUEIREDO; SILVA, 2012, p. 117).

A colonialidade do saber, portanto, rejeita a ideia da formação longe do pragmático, do habitual, do rotineiro. O pensamento colonizador muitas vezes olha o campo aqui pesquisado com desconfiança, pois a tríade mulher negra ou não, educadora de adultos, camponesa, não é valorizada. Com efeito, o pensamento decolonial encontra ressonância na tríade, dando a ela uma proposta que adentra o campo popular e que contempla esse grupo, partindo do vivido para propor uma transformação. Dessa forma, o que propõe é uma reflexão crítica e ampla sobre os variados moldes de se formar educador, desvelando, assim, as diversas realidades e tornando-as também essenciais nesse conjunto de articulações formativas.

Assim, a partir de Freire, reconhecemos o ato de educar e de educar-se como um ato político e afirmamos que o formar e o formar-se se caracterizam da mesma maneira que o pensar, o aprender, como bem salienta Walsh (2009, p. 29):

[Freire] destacou a responsabilidade de pensar criticamente, de aprender a ser o que se é em relação com e contra seu próprio ser, e a partir de uma ética humana em e com o mundo, uma ética inseparável da prática educativa e enraizada na luta de confrontar as condições de opressão e suas manifestações incluindo – como ficou mais evidente em seus últimos trabalhos – a discriminação racial, de gênero e de classe. (WALSH, 2009, p. 29).

Assim, ecoam as ideias freireanas acerca de uma prática pedagógica emancipatória, para a qual “é preciso que a gente trabalhe no sentido da construção de uma educação e da alegria, da seriedade, do rigor e da transformação do mundo, para que homens e mulheres possam amar com menos cobrança” (FREIRE, ٢٠١٤, p. 289) e, consequentemente, alfabetizar-se sem oprimir-se e/ou sem deixar-se oprimir. Esse deslocamento opressão/libertação exige uma tomada de consciência que ocorre comunitariamente e a partir de um salto crítico, pois “sem consciência ético-crítica não há educação autêntica.” (DUSSEL, 2012, p. 440).

Assim, arriscamo-nos a afirmar e confirmar, com base na experiência aqui descrita, que um ensino decolonizado, seja ele para crianças, jovens, adultos e idosos, negros, indígenas e camponeses, é um ensino questionador, que não reproduz a discriminação social, mas que é predominantemente marcado por “[...] forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular e construir. Essa forma, iniciativa, agência e suas práticas dão base para o que chamamos de continuação da pedagogia de-colonial.” (WALSH, 2009, p. 25).

3 TEMOS ALGO A CONSIDERAR E A PROPAGAR

O que temos a considerar ainda é ressonância do que nos propusemos a pensar nestas linhas de reflexão: por um ensino na EJA não colonizado, ensino insurgente, com práticas pedagógicas inclusivas e libertadoras, com menos regras rígidas e institucionais, um ensino que ensine a partir da realidade e que desperte a consciência ético-crítica a ponto de mobilizar o sujeito para a transformação de si, do outro, do entorno. Para pensar esse ensino colocamos em evidência, mas sem atribuir juízo moral de certo ou errado, de êxito ou não êxito, de menos ou mais colonizado, uma experiência de alfabetização desenvolvida no âmbito da Pastoral da Criança em comunidades do Estado de Sergipe, usando como pano de fundo o recorte teórico da pedagogia decolonial em consonância com os apontamentos freireanos.

Dessa experiência, em comunhão com o campo teórico aqui discutido, temos pontos a considerar e propagar: o primeiro ponto aporta-se na questão da persistência do analfabetismo que colabora com a privação da leitura e da escrita por parte de uma parcela significativa da população, principalmente negros, indígenas e camponeses. Será esse imbróglio um atestado da ausência do Estado em criar e efetivar políticas públicas educacionais que priorizem a universalização da alfabetização? Olhando por uma perspectiva rasa, tendo em vista não ser esse o objetivo desta reflexão, talvez não seja ausência do Estado,9 mas a presença de um poder colonizador, aliado a um sistema que reforça a manutenção do analfabetismo, que recria cotidianamente mais indicadores de analfabetismos, alimentados por uma lógica que insiste em separar o ato de ensinar do ato de aprender, reproduzindo ainda mais desigualdades educacionais.

Na contramão dessas proposituras está a interculturalidade crítica instrumentalizada pela pedagogia decolonial que “[...] viabiliza maneiras diferentes de ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e criação de compreensões e condições que [...] articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualde e respeito.” (WALSH, 2009, p. 25). Assim, seria possível alinhar esses processos de alfabetização que já estão postos às ferramentas pedagógicas decoloniais? Ou o esforço seria “desaprender o aprendido para voltar a aprender”? (WALSH, 2009, p. 24). Aqui reside um grande desafio, que exige um estado pleno de consciência ético-crítica por parte dos elaboradores e executores da agenda propositiva de redução das taxas de analfabetismo.

O segundo ponto a se considerar diz respeito à tomada de consciência ético-crítica por parte dos sujeitos participantes dos processos de alfabetização. Essa tomada de consciência se realiza de forma comunitária, de modo que educandos e educadores participam do “[...] processo ético ‘material’: a vida é o tema, o meio, o objetivo, a alegria alcançada. E situando-se no ‘lugar’ de onde a crítica ética é possível, precisa que, como é evidente, o sujeito é tal quando se torna origem da transformação da própria realidade.” (DUSSEL, 2012, p. 440).

No projeto EJA da Pastoral da Criança emergia esse processo ético-material, pois o aspecto de engajamento comunitário era imprescindível. Todas as mulheres voluntárias eram engajadas na comunidade por meio das ações cotidianas da Pastoral da Criança. Para participar do projeto não havia exigência de trajetória na alfabetização de adultos ou de experiência na educação básica, o pré-requisito indispensável era de comprometimento com a comunidade, território de funcionalidade da turma. Podemos considerar que esse envolvimento comunitário é gerador de conscientização10 e, consequentemente, de libertação, pois “[...] não é um ato final, mas o ato constante que relaciona os sujeitos entre si em comunidade transformadora da realidade” (DUSSEL, 2012, p. 443) e inibidora de qualquer natureza de opressão.

Levando em consideração que no ponto anterior se discutiram elementos inerentes à experiência alfabetizadora desenvolvida pela Pastoral da Criança de forma comunitária, é válido continuar nesse caminho e fazer convergir neste terceiro ponto o processo de inserção e formação das mulheres que atuaram no projeto, pois, para participarem como alfabetizadoras, não havia exigência prévia de formação pedagógica, e essas mulheres, que não passaram por uma formação inicial institucionalizada, despertaram potencialidades necessárias para o domínio da habilidade de alfabetizar jovens, adultos e idosos. Elas vivenciaram, assim, um processo formativo a partir de si, evocando o deslocamento do conceito de formação para as fronteiras das experiências, a exemplo das vivenciadas por elas, que imbuídas da responsabilidade de alfabetizar, acreditaram que poderiam colaborar para a transformação da vida de todos os alfabetizandos.

Assim, foi no desenrolar dos encontros e das atividades que elas foram se constituindo alfabetizadoras. E imersas em um ambiente cujo princípio básico era a politicidade e a dialogicidade, essas mulheres aprenderam a conhecer o contexto social para atuarem como agentes de transformação da realidade existente.

A partir dos entrelaçamentos conceituais aqui levantados, há de se considerar e propagar, por derradeiro, que muitas outras discussões nos ajudam a refletir sobre os processos de alfabetização de adultos com a participação eminente da sociedade e dos movimentos sociais. Contudo, vale ponderar que o que se desenhou aqui é mais uma introdução acerca de um ensino menos colonizado, por meio de uma releitura de Paulo Freire aportada nos elementos constitutivos de uma pedagogia decolonial, objetivando, acima de tudo, construir novos sentidos para a educação (alfabetização) de jovens, adultos e idosos.

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência: Rua Pedro Lazar, n. 19, 49038-300, Conjunto Beira Mar I, Bairro Aeroporto, Aracaju, Sergipe, Brasil; malucini@hotmail.com

Roteiro, Joaçaba, v. 44, n. 1, p. 1-18, jan./abr. 2019 | e15451 |E-ISSN 2177-6059


1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, bem como tem o apoio de Programas de fortalecimento da Pós-Graduação em Sergipe desenvolvidos em parceria CAPES/FAPITEC/SE, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe.

2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; https://orcid.org/0000-0003-1532-8968; http://lattes.cnpq.br/7998559848634694.

3 Mestre em Educação pela Universidade Tiradentes; Especialista em Ensino de História: novas abordagens pela Faculdade São Luís de França; https://orcid.org/0000-0003-2181-3097; http://lattes.cnpq.br/2886256237727135.

4 ALEXANDER, Jaqui. Pedagogies of Crossing. Meditations on Feminism, Sexual Politics, Memory, and the Sacred. Durham (NC): Duke, 2005.

5 Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios apontam que o Brasil possui 11,5 milhões de pessoas acima de 15 anos analfabetas, correspondendo a 7% da população. A Região Nordeste acumula o dobro do indicador nacional: 14,5% da população. E o Estado de Sergipe amarga um índice aproximado de 17% da população analfabeta (IBGE, 2018).

6 Organismo de Ação Social da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, cuja missão é promover o desenvolvimento das crianças, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, do ventre materno aos seis anos, contribuindo para que suas famílias e comunidades realizem sua própria transformação, por meio de orientações básicas de saúde, nutrição, educação e cidadania, fundamentadas na mística cristã que une fé e vida.

7 Esses modos “outros” representam apartar-se das “[...] formas de pensar, saber, ser e viver inscritos na razão moderno-ocidental-colonial [...] Essas histórias e experiências marcam uma particularidade do lugar epistêmico – um lugar de vida – que recusa a universalidade abstrata.” (WALSH, 2009, p. 25).

8 A Pastoral da Criança, através da sua equipe pedagógica, elaborou o livro-base do projeto, cuja metodologia era inspirada no Ver-Julgar-Agir-Avaliar-Celebrar. Intitulado Aprendendo e ensinando, ensinando e aprendendo, o livro era composto por lições, e todas possuíam uma mesma estrutura didática: um tema gerador, uma frase da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma leitura bíblica, uma música, uma sequência de perguntas para dialogar sobre a realidade, um conjunto de atividades de fixação e sugestões de dinâmicas e materiais (PASTORAL DA CRIANÇA, 2008).

9 Entre os anos 2004 e 2012, o Governo Federal, por intermédio do Ministério da Educação/Programa Brasil Alfabetizado, repassou mais de R$ 2 bilhões de reais em valores pagos para ações de concessão de bolsa ao alfabetizador e de apoio à capacitação de alfabetizadores de jovens e adultos no Brasil (MACHADO, 2015, p. 204).

10 A conscientização é um compromisso histórico, é uma inserção crítica na história, assumindo o homem uma posição de sujeito podendo transformar o mundo (FREIRE, 1987, p. 58).