http://dx.doi.org/10.18593/r.v44i1.15086

Reconhecimentos, sensibilidades e relações étnico-raciais: a obrigatoriedade do ensino do Holocausto em Porto Alegre

Recognition, sensitivities and ethno-racial relations: the mandatory Holocaust education in Porto Alegre

Reconocimientos, sensibilidades y relaciones étnico-raciales: la obligatoriedad de la enseñanza del Holocausto en Porto Alegre

Carla Beatriz Meinerz1

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Ensino e Currículo, Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação, Professora da área de ensino de História

Cássio Michel dos Santos Camargo2

Secretaria do Estado do Rio Grande do Sul, Professor de História

Resumo: O artigo resulta de uma escrita conjunta que tematiza as memórias ressentidas em luta por reconhecimento (ANSART, 2001) e os temas sensíveis (ALBERTI, 2013) nas prescrições legais acerca do que deva ser ensinado nas aulas de História da Educação Básica no Brasil. Parte do caso emblemático da aprovação da Lei Municipal n. 10.965/2010 que, no contexto nacional da obrigatoriedade legal do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira, indígena e da educação para as relações étnico-raciais, torna também obrigatório o ensino do Holocausto nas escolas da rede municipal de Porto Alegre. As orientações legais, construídas na forma de políticas públicas vinculadas aos processos contemporâneos de reparação histórica, são atravessadas pelos embates do tempo presente e projetam o ensino de temas sensíveis, especificamente nessa escrita – o Racismo e o Holocausto. O artigo cruzará duas pesquisas em andamento, enfocando a historização das políticas afirmativas que atingem os currículos de História, dentro e fora do Brasil, relacionando-as com os projetos de educação das relações étnico-raciais e de educação para os direitos humanos.

Palavras-chave: Educação. Relações étnico-raciais. Holocausto. Racismo. Direitos humanos.

Abstract: The article is the result of a joint writing that thematizes the resentful memories in the campaign for recognition (ANSART, 2001) and the sensitive topics (ALBERTI, 2013) in the legal prescriptions about what should be taught in the History classes of Basic Education in Brazil. Begins of the emblematic case of the approval of Municipal Law n. 10.965/2010, which, in the national context of the legal obligation to teach history and culture African, Afro-Brazilian, indigenous and ethnic-racial education, also makes it mandatory the teaching of the Holocaust In schools of the municipal network of Porto Alegre. The Legal guidelines, constructed in the form of public policies linked to contemporary processes of historical reparation, are crossed by shocks of the present time and design teaching sensitive issues, specifically in this writing – Racism and the Holocaust. The article will cross two research in progress, focusing on the historicity of affirmative policies that reach the history curricula, inside and outside Brazil, relating them to the educational projects of ethnic-racial relations and education for human rights.

Keywords: Education. Ethnic-racial relations. Holocaust. Racism. Human Rights.

Resumen: El artículo resulta de una escritura conjunta que tematiza las memorias resentidas en lucha por reconocimiento (ANSART, 2001) y los temas sensibles (ALBERTI, 2013) en las prescripciones legales acerca de lo que deba ser enseñado en las clases de Historia de la Educación Básica en Brasil. Parte del caso emblemático de la aprobación de la Ley Municipal n. 10.965/2010 que, en el contexto nacional de la exigencia jurídica de la enseñanza de la historia y la cultura africana, afro brasileña, indígena y educación para las relaciones raciales, también hace obligatorio la enseñanza del Holocausto en las escuelas de la red municipal de Porto Alegre. Las pautas legales, construidas en forma de políticas públicas vinculadas a los procesos contemporáneos de reparación histórica, son atravesadas por los conflictos del tiempo presente y proyectan la enseñanza de temas sensibles abordados en este artículo – el Racismo y el Holocausto. El texto confronta dos investigaciones en curso, enfocando la historización de las políticas afirmativas que alcanzan los currículos de Historia, dentro y fuera de Brasil, relacionándolas con los proyectos de educación de las relaciones étnico-raciales y de educación para los derechos humanos.

Palabras clave: Educación. Relaciones étnico-raciales. Holocausto. Racismo. Derechos humanos.

Recebido em 02 de agosto de 2017

Aceito em 11 de setembro de 2018

Recebido em 19 de fevereiro de 2019

1 INTRODUÇÃO

Lâmina de palavras

Gama de palavras

Gana de palavras

Cortando no pensamento

Palavra é pedra

Atirada no universo

Gravidade do verso

Que flutua na minha cabeça

Corre corre cachoeira

Lá no alto da pedreira

Trovão retumba

Ganga Zumba é filho do homem

Senhor de Oyó, rei dos quilombos

Justiça? Justiça?

Não precisa pedir

Que ele traz. Ele faz

Pra quem merece

Pra quem conhece

O poder de um Saravá

A força divina do Axé

E o segredo abissal de um Kaô

(Duan Kissonde. Machado Xangô. 2016).

Inspirados no poeta, afirmamos que a justiça é instituída a partir de diferentes formas de saber, crer e poder. Neste texto, reiteramos lutas por justiça e equidade no campo das políticas raciais em intersecção com as políticas educacionais e de direitos humanos, mas observamos que elas não dependem de uma espera daqueles que a merecem. A justiça nos parece mais que uma dádiva, pois resulta de disputas humanas em conexão com crenças científicas, espirituais e políticas. No contexto da presente escrita, destacamos a marca de nossas aprendizagens cotidianas sobre o fato de que justiça e sistema judicial nem sempre são sinônimos, mas derivam de disputas e agenciamentos cotidianos, realizados por homens e mulheres em distintos tempos-espaços. Muitos não esperam a justiça pelas mãos de outros, são os que lutam pequenas e grandes batalhas, congregados em coletivos humanos capazes de admitir o possível não humano, a força divina do Axé.

Somos signatários, enquanto Estado Nacional, de um conjunto de acordos internacionais propulsores de políticas públicas vinculadas aos direitos humanos e ao combate ao racismo. Essa posição representa admissão oficial da existência de sociedades racializadas em diferentes nações, também a brasileira. Essa admissibilidade da racialização e do racismo está pautada no uso da categoria social raça como fundamental para a compreensão das relações sociais, reiterada na reflexão ora apresentada.

Eis o resultado de um compartilhamento de pesquisas em andamento, entrecruzadas na perspectiva da educação das relações étnico-raciais em interface com as prescrições legais acerca do que deva ser ensinado nas aulas de História na Educação Básica em nosso País. O recorte espacial situa-se no Brasil sulino, mais especificamente na região metropolitana de Porto Alegre. Uma das pesquisas configura-se no processo de investigação componente da consecução de um mestrado acadêmico em Educação, a outra trata de um projeto de pesquisa institucional de longo prazo; ambas estão situadas no Grupo de Pesquisa do Laboratório de Ensino de História e Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A primeira almeja historicizar o processo de composição da Lei Municipal n. 10.965/2010, que impõe o Ensino do Holocausto dentro dos conteúdos de História das escolas da rede municipal, analisando as peculiaridades da conjuntura de composição dessa Lei. A segunda objetiva investigar a recepção das Leis Federais n. 10.639/03 e n. 11.645/08, já consolidadas no Ensino de História, mediante a imersão nas trajetórias de alguns discursos e de algumas práticas educativas, coletivas ou individuais, de professores dos municípios gaúchos de Cachoeirinha e de Palmares do Sul. O artigo cruzará esses estudos em andamento, enfocando os contextos de composição e de recepção das legislações correlatas às políticas afirmativas que atingem os currículos de História, dentro e fora do Brasil, relacionando-as com os projetos de educação das relações étnico-raciais e de educação para os direitos humanos.

Instiga-nos, inicialmente, o fato de sermos cidadãos e professores de História em uma cidade que, por meio de lei específica, obriga o ensino do Holocausto na rede pública municipal de Porto Alegre. Tal obrigatoriedade legal situa-se temporalmente em 2010, sete anos após a criação do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que obriga o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira (Lei n. 10.639/03) e indígena (Lei n. 11.645/08). Quais as possibilidades de análise a partir dessas prescrições legais que se vinculam às políticas de reparação histórica?

2 LUTAS POR RECONHECIMENTO E MEMÓRIAS RESSENTIDAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

A análise que propomos ganha importância pela possibilidade de refletirmos sobre os conceitos de memórias ressentidas em luta por reconhecimento (ANSART, 2001) e os temas sensíveis (ALBERTI, 2013) na perspectiva de sua formalização educacional. Compreendemos raça e racismo como categorias centrais para essa análise. Entre a intelectualidade brasileira, isso ainda é campo de disputa e polemização, mesmo que importantes pensadores como Vírginia Leone Bicudo, Abdias do Nascimento, Alberto Guerreiro Ramos e Clóvis Steiger de Assis Moura, no século XX, tenham argumentado que raça é tema central do pensamento brasileiro e que racismo é fenômeno social estruturante de relações em nosso País. Destaca-se que tal polêmica é atualmente diminuta em outros grupos acadêmicos, constituídos também em países extremamente desiguais do ponto de vista racial, como, por exemplo, a comunidade científica norte-americana.

No caso do campo vinculado aos historiadores, Alberti (2013) propõe o racismo como tema sensível no ensino e cita pensadores da comunidade inglesa para sua fundamentação. Um tema sensível é aquele evitado em sala de aula, pois aborda processos não resolvidos socialmente, envolvendo injustiças, crimes e violações aos direitos humanos. Segundo Alberti (2013, p. 35), um tema sensível “pode ser uma história contestada, ou cujo reconhecimento seja difícil ou constrangedor.” O uso desse conceito está bastante associado aos estudos de eventos traumáticos, geralmente vinculados aos temas do Holocausto e da ditadura civil-militar.

Racismo e escravização podem se confundir, na medida em que ambos são processos históricos inacabados e, por estarem socialmente inconclusos, interseccionam passado e presente de uma forma potente. Desse modo, discorrer sobre tais questões exige explicitação de posicionamentos políticos e, justamente a forma como temos analisado a recepção das leis em questão, aponta para o fato de que o projeto da educação das relações étnico-raciais, na perspectiva antirracista, é o que mais sofre no campo das disputas sobre o que ensinar.

Meinerz (2017) ressalta que o movimento por uma educação para a diversidade, antirracista e pela inclusão de tais temáticas nos currículos escolares brasileiros não é novo, tampouco é datado apenas do momento da promulgação dessas Leis. Basta estudar as lutas pela promoção da igualdade racial no Brasil, promovidas pelo Movimento Negro e pela organização das mulheres negras, incluindo os temas relativos à educação (RIBEIRO, 2014), para perceber que as políticas públicas historicamente são indissociáveis dessa dinâmica de tensionamentos sociais em nosso País.

Na presente reflexão, propomos o debate acerca dos currículos prescritos e praticados, a respeito de temáticas que envolvem racismo e holocausto, como maneiras de produzir saberes e fazeres em disputa, formas de construir resistências e reconhecimentos a partir de determinados temas. O conceito de Dever de Memória (RICOUER, 2003; HEYMANN, 2006) também se coloca nesse cenário reflexivo, muito embora apontamos algumas distinções analíticas na observação dos dois casos em estudo.

A história ensinada se alinha, por vezes, aos grupos que tiveram suas narrativas negligenciadas, cumprindo um papel importante na disputa por espaços de memória e de reconhecimento de sua dor, criando possibilidades de contar a história compartilhada e plural. Para Ricouer (2003), esse efeito ocorre quando a dor e o trauma são explicitamente colocados na sociedade que os causou. O autor entende o reconhecimento como uma espécie de pequeno milagre, pois nenhuma outra experiência consegue chegar nesse ponto de certeza da presença real da ausência do passado.

Para o filósofo francês, o fenômeno do reconhecimento repousa no desejo de memória coletiva, mas não necessariamente pertencente a todos os grupos sociais que compõem a mesma sociedade. Segundo Ansart (2001), os conflitos em torno do reconhecimento da memória são frutos de processos históricos guiados e marcados por ressentimentos, sendo desenvolvidos na perspectiva nietzschiana, pelo cruzamento de três abordagens complementares: histórica, psicológica e sociopolítica. Para o autor, “O ressentimento teria sido fruto da própria sociedade judaico-cristã ocidental, assim a sua existência traz consequências para as formas de sociabilidade, sendo a base dos grandes movimentos de contestação.” (ANSART, 2001, p. 11).

Baseados nesses pressupostos, analisamos, primeiramente, a Lei Federal n. 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e as Diretrizes correlatas que estabelecem a obrigatoriedade do ensino de história afro-brasileira e africana nas redes públicas e particulares de Educação Básica e, em seguida, a Lei Municipal n. 10.965/2010 (PORTO ALEGRE, 2010) que, no bojo dos estudos das relações étnico-raciais, torna obrigatório o ensino do Holocausto nas escolas da rede municipal de Porto Alegre. Percebe-se, no segundo caso, que não há diretrizes correlatas, assunto que pode ser alvo de reflexão acerca das suas singularidades, uma vez que a escrita das Diretrizes do artigo 26-A aconteceram em um cenário de intenso debate, logo após a promulgação da Lei n. 10.639/03. As duas orientações legais trazem temas sensíveis ao ensino, ligados aos processos de reparação histórica, nos quais os direitos de história e de memória foram negados ou silenciados. Desse modo, o ressentimento como chave de leitura pode ser compreendido em ambos os processos, como marca das lutas e dos contextos de implementação das diferenciadas prescrições curriculares. Segundo Ansart (2001, p. 15-16), existem cinco formas de expressão do ressentimento: a primeira é referente ao ódio dos detentores do poder diante das rebeliões dos dominados; a segunda pontua que o ressentimento ocorre em intensidades diferentes, o que levará, ao fim e ao cabo, ao conflito ou ao mero afastamento; a terceira considera não apenas os sentimentos, mas também os afetos (pensamentos e crenças de toda a espécie); a quarta leva em conta as funções desempenhadas pelos sujeitos e conjuntos sociais; e a quinta trata sobre as consequências do ressentimento, quando da sua formação baseada no “ódio recalcado”.

O desafio das demandas das duas Leis requer cuidado, porque ambas reverberam cicatrizes remotas: em um caso, mulheres e homens, negras e negros, constituídos na diáspora africana, em experiências ancestrais distintas, marcadas pelo tráfico transatlântico e pelo racismo institucionalizado em diferentes momentos da configuração nacional brasileira; em outro caso, mulheres e homens, judias e judeus, constituídos nas perseguições que culminam, a partir do início do século XX, com o Holocausto na Segunda Grande Guerra Mundial. Racismo e Holocausto, vividos na carnalidade de corpos que cruzam as barreiras entre passado e presente, são proposições temáticas para pensar o ressentimento e o silêncio. Observa-se que Racismo não é tema que entra na redação do artigo 26-A da LDBEN, mas afirma-se a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2004), enquanto Holocausto é parte da redação da própria Lei Municipal n. 10.965/2010.

A seguir destacamos a redação das duas prescrições legais:

Artigo 26-A da LDBEN com redações das Leis Federais 10.639/03 e 11.645/08:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ ١º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ ٢º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (BRASIL, 2003, 2008, p. 1).

Lei Municipal 10.965/10:

Art. 1º Fica obrigatório, na Rede Municipal de Ensino, o ensino sobre o holocausto do povo judeu.

Parágrafo único. O ensino sobre o holocausto do povo judeu será desenvolvido junto ao conteúdo programático da disciplina de História.

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. (PORTO ALEGRE, 2010).

No caso do artigo 26-A e Diretrizes correlatas está muito explícito que, mais do que um dever de memória, há uma intenção de trabalho com a memória como estratégia para desenvolver um projeto de sociedade equitativa do ponto de vista racial. A intervenção na história ensinada, visibilizando e positivando narrativas acerca das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras, coloca-se na perspectiva da educação das relações étnico-raciais, e isso é um delimitador de diferença em relação ao ensino proposto na Lei Municipal acerca do Holocausto. No segundo caso, parece-nos que se impõe mais o dever de memória do que a proposição de uma educação antirracista, por exemplo.

O Holocausto inaugura-se como evento da modernidade contemporânea, marcada pela técnica a favor da morte, do racismo e do xenofobismo. O sociólogo Bauman (1998) afirma que, antes da ascensão nazista, o ódio aos judeus era praticamente inexistente na Alemanha e que o antissemitismo não era algo novo na Europa, remontando à Idade Média, com seus medos e imaginários. Mas, diferente do esperado, foram os civilizados alemães que desenvolveram a intolerância que levou à morte cinco milhões de judeus entre 1939 e 1945. Dessa forma, “o Holocausto foi o clímax espetacular de uma história de séculos de ressentimento religioso, econômico, cultural e nacional.” (BAUMAN, 1998, p. 51). A Lei Municipal n. 10.965/2010, que torna obrigatório o ensino do Holocausto, constrói-se na disputa que inclui organizações judaicas de Porto Alegre, uma vez que a cidade possui um contingente populacional identificado com essa ascendência. No Município de Porto Alegre, os judeus se estabeleceram a partir das décadas de 1920 e 1930, no bairro hoje nomeado Bom Fim, mas primeiramente conhecido como Colônia Africana, pois foi local de moradia de escravizados e libertos já no século XIX. Meinerz (2017) toma como exemplo os estudos sobre a Porto Alegre do século XIX, especificamente a Colônia Africana que, pouco a pouco, foi apagada da história da Cidade. Tratava-se de um espaço habitado por negros no período da abolição, mas que igualmente acolhia imigrantes desembarcados em Porto Alegre e que não seguiam para as colônias alemãs ou italianas. Tal região da Cidade foi retratada na literatura e nos estudos como local de marginais e marginalizados. Sabemos que os moradores negros da Colônia Africana foram removidos da região pela ação dos poderes públicos e da especulação imobiliária (KERSTING, 1998). Entretanto, estudos mais recentes (ROSA, 2014) indicam que foi também a atitude de alguns moradores da Colônia Africana, notadamente imigrantes brancos, motivo de aversão ao local e aos seus moradores negros e contributo para sua extinção. Conforme Rosa (2014, p. 276),

Como apontam diferentes estudos, uma longa série de péssimos predicados, como “falhas de caráter”, “indolência”, “preguiça”, “sujeira” e até mesmo “bagunça”, atribuídos por viajantes, cronistas, memorialistas e jornalistas, eram formas de desclassificação e depreciação que, desde o século XIX, tomavam por alvo principal a população negra da cidade.

Hoje o espaço urbano em que existia a Colônia Africana, em termos de especulação imobiliária, é um dos locais mais caros da Cidade e congrega bairros como Rio Branco, Bom Fim e Mont’Serrat. Esse pequeno exemplo, reiterado por Meinerz (2017), nos faz refletir sobre o fato de que a questão racial não está submissa à discussão de desigualdade socioeconômica, uma vez que possui um estatuto próprio de construção de desigualdades nas relações sociais.

Tal questionamento acerca das tensões nas relações étnico-raciais, capazes de atravessar passados e presentes, faz-nos tratar de outro ponto de disputa de memória presente nas proposições do artigo 26-A: o reconhecimento e a positivação do continente africano, em contextos diaspóricos, na construção do que seja o Brasil no presente e no passado. Sabemos que, nos séculos XVI e XVII, quase 11 milhões de escravizados foram comercializados e colocados em diáspora no caminho da América, dos quais quatro milhões chegaram ao Brasil.

No século XIX, o Brasil constituía-se como um país mestiço e racializado, pois o racismo estava institucionalizado por meio de políticas estatais de branqueamento que atingiam também as práticas sociais cotidianas. Segundo Schwarcz (1998), a chegada tardia das teorias raciais no Brasil reverberou na criação de uma ideia de raça negociada no país. Na década de 1930, com o Estado Novo, o mestiço surge como ícone nacional, estabelecendo-se a construção de uma ideia de cultura nacional, capaz de expropriar-se e tomar para si práticas específicas dos afro-brasileiros, como o samba e a capoeira. Junto com o Estado Novo, desenvolve-se a ideia de democracia racial e de valorização da mestiçagem, como características capazes de produzir esquecimentos e invisibilidades. Tal arranjo social e histórico compõe uma das possibilidades de compreensão das lutas por visibilidade de mulheres e homens negros atingidos em suas maneiras de lembrar e de viver. No exterior, o Brasil era visto como um país exótico e mestiço, o que impulsiona a ideia de um racismo inexistente. Dessa feita, o Estado brasileiro ingressará na última metade do século XX com o mito da democracia racial, no qual os silêncios e ações relativos à presença e ao lugar desigual do negro na sociedade serão mitificados. A educação tornar-se-á um cenário de disputas nas lutas por reparação histórica, via políticas afirmativas de inclusão racial e social dos negros, correlatas às lutas pelos direitos humanos, ambos presentes na inserção das temáticas africanas, afro-brasileiras e indígenas nos currículos escolares e universitários.

As legislações em análise resultam de ações dos movimentos sociais organizados, com viés étnico-racial, no sentido da construção e consolidação de reconhecimento de uma determinada memória social, capaz de se tornar memória histórica aceita e compartilhada. Nessa perspectiva, Halbwachs (1990) afirma que a memória individual está contida nos quadros sociais, mas o acesso à rememoração se estabelece na intersecção das memórias coletivas que são construídas nos espaços de convivência, pois os elos de referência estruturam a memória pertencente a cada sujeito e a cada grupo em que este se situa. Socialmente, a memória consegue portar um poder quase institucional, capaz de revigorar a coesão social, construída pela ação afetiva ligada ao grupo que a convoca como sua. A memória coletiva não é cristalizada, pois está sempre em construção, enquanto alvo e local de disputa, composta pela seletividade e pela negociação favorável para conciliar as memórias individuais e coletivas. A construção da memória coletiva/individual se estabelece pela lembrança, que nos traz a ideia de reconhecimento, possível por intermédio da escuta, do olhar alheio, da possibilidade de fala que estabelece o processo de negociação da memória, da luta contra o ressentimento que cria possíveis impeditivos. Esse reconhecimento tem como base a memória histórica, constituída pela herança social – contada ou lida – e que compõe a chamada “memória da nação” por Halbswachs (1990, p. 55). Logo, a memória de uma nação é fruto de disputas de poder ocorridas entre os grupos sociais ao longo de anos.

É interessante perceber que o mesmo ressentimento que levou às guerras, aos conflitos de independência e às lutas resistentes por liberdades hoje traz o desejo de memória, próprio para o contexto de reconhecimento, depositando nos espaços e nos currículos escolares uma expectativa importante para a rememoração, justamente situada no campo da história ensinada. A escola, como microcosmo das práticas sociais e culturais, expressa-se igualmente em um cenário de disputa e construção da memória histórica, agenciado por distintos grupos. Aqueles que tiveram seu passado negligenciado agenciam discursos e práticas no presente e, nessa perspectiva, lutam cotidianamente pela oportunidade de compor a sua memória social e registrar a sua história, rompendo com os silêncios e os esquecimentos. Não conseguimos apenas romper o esquecimento e retomar a lembrança no presente, mas, de outra forma, a memória social pode buscar o encontro das memórias múltiplas, estabelecendo intersecções contínuas que instituem um lastro comum (POLLACK, 1989). Inúmeras vezes o silêncio, segundo Pollack (1989), é fruto da falta de desejo daquele que foi vítima de contar, da ridicularização da sua fala, que é tratada como mentira ou falácia. Além disso, nem sempre tal lembrança está apaziguada. Para Pollack (1989, p. 10):

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.

As questões trazidas por Pollack estão conectadas com sua proximidade em relação a experiências atrozes realizadas na Segunda Guerra e aos traumas deixados pela República de Vichy, na França. Da mesma forma que escutar os silêncios é desafiante, falar com o portador de memórias ressentidas também o é, pois por vezes se impõem vozes dissonantes mesmo quando a harmonia é esperada, o que configura como um grande feito para a reconstrução da memória em conexão com a educação para as relações étnico-raciais e para os direitos humanos. Devemos perceber que o silêncio ressaltado se estabelece também pelo tormento de não encontrar escutas sensíveis, assim como pelo poder do emudecimento socialmente constituído. Assim, o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável estão no limiar de processos indissociáveis de escuta e fala. No caso em análise, as Leis aparecem como formas de romper os silenciamentos e resultam justamente dos agenciamentos dos grupos que lutam por direitos à memória e à equidade.

3 RACISMO E HOLOCAUSTO: TEMAS SENSÍVEIS NA HISTÓRIA ENSINADA

Remonta ao século XX a busca filosófica de o historiador questionar o seu ofício dentro da sociedade: para quem ou para que serve essa prática de narrar histórias? No bojo dessas questões está a reflexão crítica acerca da possibilidade de uma história una e verdadeira, construindo-se um caminho aberto para a história no plural e na perspectiva da verossimilidade. Isso proporciona uma nova relação entre passado e presente, pois tratamos mais do próprio presente ou de seus produtores, agora entendidos em conexão com o passado que analisam. Nesse momento, a crítica ao eurocentrismo como posição marcante dos escritos da História (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012), forjado em uma premissa de colonialidade do saber e do poder (QUIJANO, 2005), torna-se fundamental.

Pollack (1989), mesmo falando de um processo europeu, destacando o caso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), traz reflexões importantes sobre o processo de rompimento dos silêncios e de conquista de espaços agenciado pelos grupos sociais anteriormente dominados. No caso do Brasil, a colonização afetou também as múltiplas formas de pensar, ser e agir. Para conceber a construção do pensamento colonizado, Quijano (2005) afirma que essa mudança é viável com a denúncia do eurocentrismo como projeto político e teórico, inaugurado simbolicamente pela violenta conquista da América Colonial. Logo, uma nova ordem de controle deve partir de dentro do Estado para romper com as barreiras institucionais e fazer eclodir a multiculturalidade e multinacionalidade formadoras da América Latina. Para esse autor, um rompimento real só é possível quando há uma mudança na forma de pensar, logo, “a colonialidade se esconde na nossa própria racionalidade domada.” (QUIJANO, 2005, p. 122).

No Brasil, as lutas pelo rompimento dessas barreiras começaram a ter maior visibilidade a partir da década de 1950, por distintos motivos, mas também em decorrência da perda de âncoras de memória, tendo em vista que as pessoas que haviam vivido o processo de escravização na própria pele estavam falecendo. Assim, por meio de um desejo de reconhecimento e de preservação das memórias daqueles que sofreram com os crimes de escravização e com as políticas raciais do pós-abolição, destacaram-se homens e mulheres que herdaram esse dever de memória e agenciaram essa luta por espaços também na educação. Suas lutas agenciaram tanto temas específicos, como o direito ao acesso da população negra nos processos de escolarização, quanto temas gerais, como a educação antirracista, também denominada educação das relações étnico-raciais. Nessa busca, o Movimento Negro teve e tem papel decisivo, denunciando e combatendo o preconceito racial, lutando pela preservação da memória do negro no Brasil e tensionando as políticas públicas, desde sua implementação até a sua fiscalização.

No caso judaico, as demandas de identidade começam a ganhar maior ressonância com o Julgamento de Eichmann que ocorreu em Jerusalém, no ano 1960. Dessa forma, uma série de obras testemunhais, oriundas de escrita dos sobreviventes do Holocausto, começa a ganhar espaço, e as questões inerentes à memória desse período se tornam alvo de debate, lançado principalmente pela comunidade judaica internacional. Os sobreviventes desses eventos trazem uma demanda de tornar públicas as suas memórias, por meio do testemunho que, segundo o autor Levi (1988, p. 2), era:

a necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes, alcançou entre nós antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior.

Mesmo com os esforços intelectuais em recontar esses fatos pela escrita testemunhal e historiográfica, não se consegue dar conta das reconstruções representativas desses atos de violência, o que abre caminhos para intervenções no campo da história ensinada também. Tarefa difícil, pois sabemos, a partir de Ansart (2001, p. 18), que “o historiador não duvida da importância decisiva dos ódios coletivos, embora encontre extrema dificuldade de compreendê-los em todas as suas nuanças e contradições.”

Para podermos pensar essas Leis ora colocadas em termos comparativos, devemos lembrar que ambas se encontram no âmbito de medidas governamentais reparatórias. A Lei n. 10.639/03 inaugura o pensar, na esfera federal, acerca da função afirmativa e compensatória da educação brasileira diante de temas sensíveis como o racismo e os crimes da escravização. As Diretrizes sobre as relações étnico-raciais retomam o dever constitucional da garantia de acesso igualitário à educação, com o objetivo de romper com os empecilhos baseados no preconceito racial, tendo em vista que, institucionalmente, foram reeditados e mantidos os privilégios apenas para os brancos. A partir da chave de leitura que destaca a categoria reconhecimento, destacamos que o artigo 26-A, criado pela referida Lei, segundo as Diretrizes anteriormente citadas, atende à demanda

da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. (BRASIL, 2004).

Logo, o trabalho com a temática remonta sentimentos e desejos de reconhecimento, instituintes de um resgate de memória que pode estar relacionado com um dever de memória e de agenciamento de luta contra o esquecimento, a invisibilidade e a negativação. Segundo Joutard (2005), o esquecimento pode ser pensado de duas maneiras: o esquecimento do que é insignificante, ou seja, do que é indigno de memória; e o esquecimento de ocultação/voluntária do que não se quer lembrar, pois perturba. Na perspectiva de Joutard, podemos ver que o esquecimento é a base tanto da construção da memória coletiva e individual quanto do enfrentamento das suas dores e consequências correlatas. Parece-nos que as Diretrizes (BRASIL, 2004) empregam o termo reconhecimento de forma reincidente, que faz dele pressuposto essencial para o estabelecimento da memória social (RICOUER, 2003).

Igualmente, precisamos situar esse contexto reparatório no campo das possibilidades de um mundo pretensamente globalizado, onde os movimentos sociais e políticos, congregados pela interculturalidade e pela luta por equidade racial, tiveram um ponto de culminância na realização, em 2001, da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul. As declarações e documentos de tal evento tornaram-se referência internacional e impulsionam ou justificam até os dias atuais políticas públicas de reparação histórica para distintos grupos, em vários estados nacionais. Ressaltamos que, justamente em Durban, 2001, nesse encontro internacional, o Estado Brasileiro assumiu publicamente o fato de que a sociedade brasileira não é democrática do ponto de vista racial, comprometendo-se em desenvolver ações afirmativas. Estas reverberam no campo da Educação, inaugurando condições para a criação do Artigo 26-A, via Lei n. 10.639/03, na esfera federal, assim como para a homologação da Lei n. 10.965/10, na esfera municipal porto-alegrense. Inseridas, de uma forma ou de outra, no conjunto das políticas afirmativas para a promoção da igualdade racial, ambas refletem um fenômeno historicamente inovador ao trazer, para o embate público, as práticas do racismo, do preconceito e da discriminação, tradicionalmente negadas ou mantidas no plano privado (MEINERZ, 2017).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: PALAVRA É PEDRA ATIRADA NO UNIVERSO

Inspirados no poeta citado na epígrafe do texto, reiteramos que muitas palavras estão escritas em prescrições legais, especificamente nas Leis aqui referenciadas em suas intersecções com a história ensinada. São palavras que desejam produzir justiça e reparação, construídas a partir de memórias ressentidas e lutas por reconhecimento. Destacamos que a justiça se constitui nas palavras e nos efeitos de sentido destas, criados em experiências individuais e sociais. Palavras como pedras atiradas ao vento podem ser aquelas que eclodiram para fazer acontecer tais registros prescritivos na forma da Lei, elas encontram-se em posição de fala e de escuta nos distintos tempos-espaços, associando passado e presente em vozes que ecoam sensibilidades acerca do Racismo e do Holocausto como temas de urgência na história ensinada.

Essa urgência se transforma em políticas curriculares que podem ser pensadas, no mínimo, a partir de dois conceitos: um é o currículo prescrito, no caso, na forma de Lei, Diretrizes e Normativas Correlatas; outro é o currículo praticado, no qual a premissa é que toda a ação educativa é uma prática sociocultural que pressupõe as ações, interações e apropriações que mulheres e homens fazem em seu cotidiano como atores sociais. Nesse sentido, a apropriação do currículo prescrito só pode ser compreendida no contexto de uma sociedade racista e racializada no cotidiano de suas relações, expressa também nas ambiências escolares pesquisadas. As palavras colocadas, na forma de prescrição legal, estão sendo aplicadas? No caso das pesquisas acerca da recepção do artigo 26-A, nossos estudos apontam que está sendo praticada de diferentes formas, dado o contexto racializado em que estamos inseridos, algumas marcadas pelo novo silenciamento diante da imposição, outras manifestas em ações instituintes de “aprendizagens entre brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual, equânime.” (BRASIL, 2004).

Finalizamos ressaltando que as políticas afirmativas aqui refletidas por meio de seus impactos nos currículos de História têm interface não apenas com o projeto de educação das relações étnico-raciais, mas também com o plano de educação para os direitos humanos.

Os princípios norteadores da educação em direitos humanos, segundo o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos são:

a) a educação deve ter a função de desenvolver uma cultura de direitos humanos em todos os espaços sociais;

b) a escola, como espaço privilegiado para a construção e consolidação da cultura de direitos humanos, deve assegurar que os objetivos e as práticas a serem adotados sejam coerentes com os valores e princípios da educação em direitos humanos;

c) a educação em direitos humanos, por seu caráter coletivo, democrático e participativo, deve ocorrer em espaços marcados pelo entendimento mútuo, respeito e responsabilidade;

d) a educação em direitos humanos deve estruturar-se na diversidade cultural e ambiental, garantindo a cidadania, o acesso ao ensino, permanência e conclusão, a equidade (étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, físico-individual, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade, dentre outras) e a qualidade da educação;

e) a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais da educação básica e permear o currículo, a formação inicial e continuada dos profissionais da educação, o projeto político pedagógico da escola, os materiais didático-pedagógicos, o modelo de gestão e a avaliação;

f) a prática escolar deve ser orientada para a educação em direitos humanos, assegurando o seu caráter transversal e a relação dialógica entre os diversos atores sociais. (BRASIL, 2007, p. 32).

Trata-se de dois projetos educacionais e sociais, caracterizados pela proposição que extrapola o princípio curricular prescritivo do ensino de conteúdos específicos, pois pressupõe práticas pedagógicas cotidianas capazes de entrecruzar planejamentos, projetos político-pedagógicos, formação de professores, materiais didáticos, espaços coletivos em processos de avaliação contínua e de gestão democrática.

O reconhecimento da cultura afro-brasileira, africana e indígena fora dos paradigmas do mito de democracia racial e da inferioridade desses povos em relação aos brancos e europeus, mediante práticas pedagógicas que visem à sua valorização e positivação, conforma as perspectivas educativas desses projetos. Tais práticas são impulsionadas por educadores capazes de construir cotidianamente espaços escolares livres de preconceito, discriminação e marginalização.

Ricouer (2003) estabelece uma reflexão sobre as políticas de interdição da memória quando cita um decreto ateniense que proibia os cidadãos de lembrarem uma determinada guerra civil, para evitar a recordação de infelicidades. As Leis que discutimos vêm num sentido contrário, pois rompem com as barreiras do esquecimento imposto. Elas são forjadas nos movimentos sociais enquanto propulsores da eclosão e do registro de memórias outras, que não aquelas hegemônicas até um determinado momento.

As Diretrizes (BRASIL, 2004) explicitam o compromisso em estabelecer e construir o conhecimento fundado na pluralidade étnica, racial e cultural, enquanto critério para a constituição de uma nação democrática e equitativa de fato, e não apenas de direito. Relevamos:

a Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. (BRASIL, 2004, p. 31).

Tais Diretrizes estabeleceram os marcos iniciais das ações afirmativas no campo da Educação, possibilitando que outras memórias, em processos de invisibilidades e esquecimentos, ganhassem foco no cenário escolar e acadêmico. A Lei Municipal n. 10.965/2010, que estabelece o ensino do Holocausto contra o povo judeu dentro do conteúdo programático de História, segue na esteira desses caminhos abertos por esses marcos compensatórios. As memórias sociais, prescritas juridicamente, são igualmente movidas por paixões, dores e remorsos, desejosos de espaços de fala e representação. O dever da memória, nessas situações legais, é retomado como uma obrigação que o Estado Nacional, ou alguma Instituição Social, assume como reparação e reconhecimento (HEYMANN, 2006). Nesse sentido, a História, como disciplina escolar, é ainda destacada como lócus privilegiado para a concretização desse processo de compensação.

Reafirmamos as ideias defendidas por Todorov (2000) no tratamento dado aos usos da memória, que podem ser percebidos por meio dos vestígios do passado que se mantiveram no presente. Essas memórias podem ser tidas de forma exemplar ou literal. Para o autor, a memória exemplar quer ser usada para pensar o presente; a memória literal se fecha e acaba em si mesmo (TODOROV, 2000, p. 30-31).

Destacamos que muitos são os desafios do trabalho com os temas sensíveis ligados às memórias traumáticas, silenciadas e sensíveis. O caminho para o desenvolvimento das práticas educativas permeia o ofício do professor-pesquisador, capaz de entrecruzar qualificadamente experiências do passado e do presente. A memória pode ter tantas faces: direito social, herança deixada no tempo, possível redenção para com os que padeceram no passado. É, porém, no presente que a memória ganha sentido enquanto experiência, nesse caso exigente de reparação e justiça. Haverá justiça? Não há melhor resposta dos que as palavras do poeta: “Justiça? Justiça?/Não precisa pedir/Que ele traz. Ele faz/Pra quem merece/Pra quem conhece/O poder de um Saravá/A força divina do Axé/E o segredo abissal de um Kaô. (KISSONDE, 2016).

REFERÊNCIAS

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Endereços para correspondência: Faculdade de Educação UFRGS 12201, Av. Paulo Gama, 110 Farroupilha, 90046-900, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; carlameinerz@gmail.com

Roteiro, Joaçaba, v. 44, n. 1, p. 1-18, jan./abr. 2019 | e15086 |E-ISSN 2177-6059


1 Pós-doutora em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU-UFRGS); https://orcid.org/0000-0002-9270-8705; http://lattes.cnpq.br/9741624321390195.

2 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU-UFRGS); Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; https://orcid.org/0000-0002-9336-5564; http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4492374E3.