http://dx.doi.org/10.18593/r.v42i2.13118

SOBRE A EDUCAÇÃO NA ENCRUZILHADA

Denise Madeira de Castro e Silva1

Scarlett Giovana Borges2

FERNÁNDEZ-ENGUITA, Mariano. La Educación em la Encrucijada. Madrid: Fundación Santillana, 2016. 289 p.

No início do século XXI, diversas têm sido as análises acerca das políticas e dos processos de escolarização. Interpreta-se que as condições do presente impõem desafios e dilemas incontornáveis aos fazeres escolares. Mariano Fernández-Enguita, consagrado sociólogo da educação espanhola, por meio da obra ora resenhada, propõe uma reflexão crítica acerca de duas clássicas questões no âmbito dos estudos e pesquisas em Educação, a saber: que educação temos? Qual educação queremos?

Para tal, propõe rediscutir e repensar algumas premissas fundamentais do sistema educacional, mediante o questionamento a tópicos representativos, o enfrentamento de tabus e o posicionamento de pontos de interrogação sobre supostas coerências. Nesse sentido, abordam-se todos os agentes escolares – professores, alunos, famílias, etc. –, desnudando antigos debates e contextualizando-os nas tramas da sociedade contemporânea. Ao retomar temas do passado, busca-se diagnosticar o presente e colocar em prospectiva o futuro da política educativa a partir de um pensamento ativo, por isso o título A Educação na Encruzilhada.

Na Introdução do livro, a instituição escolar é colocada em questão. Em um cenário em que sua universalidade foi garantida na maioria dos países ocidentais, é difícil imaginar um contexto para a infância, a adolescência e a juventude, na sociedade atual, sem que a inclua. As sociedades modernas escolarizam em uma forma particular de educar. A escola não é a única instituição que educa, mas somente ela é obrigatória. Para Fernández-Enguita, isso ocorre, sobretudo, porque no Estado moderno a escola é a responsável pela unidade e pela integração nacional com o papel de conduzir as novas gerações a uma nova sociedade. Porém, ao longo dos anos, a sociedade foi sendo transformada e a escola ainda mantém hegemonicamente seu modelo básico, um professor ensinando vários alunos, invariavelmente, um conteúdo de uma única área do conhecimento.

Um mundo global pós-nacional é abordado no primeiro capítulo. Como a escola continua basicamente a mesma desde a sua fundação, esse é um dos argumentos centrais nessa obra; hoje, os professores enfrentam um divórcio entre a escola e o mundo do trabalho, as famílias e os próprios alunos. Cada um desses segmentos pensa diferente e apresenta questionamentos à função escolar. A obrigatoriedade da escola se justifica em virtude da necessidade de educar os corpos para o trabalho, bem como em seu trabalho de custódia da infância e da juventude para possibilitar que os pais trabalhem. O autor destaca o papel das avaliações internacionais citando o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), as quais influenciam a escola porque servem de parâmetro comparativo entre os países e são balizadores da qualidade da mão de obra no mundo globalizado.

A sociedade permeada por um ambiente digital, a chamada era da informação e do conhecimento, é o destaque do segundo capítulo. Fernández-Enguita desenvolve uma analogia entre a Galáxia de Gutemberg (Marshall McLuhan) e a Galáxia da Internet (Manoel Castells), considerando que a escola se encontraria na galáxia de Gutemberg, sendo ainda o quadro negro o recurso mais utilizado, a despeito do impacto da internet e dos computadores na gestão do conhecimento. Inúmeras transformações na sociedade foram engendradas nas últimas décadas, situação que leva o autor a indagar sobre os motivos pelos quais a escola ainda sobrevive quase incólume na contemporaneidade. Sua resposta centra-se na obrigatoriedade escolar, sem que outra instituição alternativa a substitua, outro argumento central da obra. Destaca que a educação é um direito, mas também uma obrigação ou, até mesmo, uma imposição. Não há na sociedade outra instituição de custódia em massa da infância tão barata. A obrigatoriedade escolar se justifica por ser uma instituição propedêutica, na preparação que realiza ao jovem em todas as esferas da vida adulta. Paradoxalmente, o formato digital, a conectividade, as redes sociais configuram um novo ambiente, no qual nossas crianças e jovens estão inseridos. Deixar nossos estudantes sem essa preparação é como deixá-los sem um curso de sobrevivência, alerta o autor.

O terceiro capítulo é dedicado à mudança e à transformação, características próprias do tempo em que estamos vivendo. As instituições tradicionais, como a família e a escola, não são capazes de acompanhar o fluxo das mudanças, as quais, de acordo com o autor, não desaparecerão enquanto instituições educadoras, mas não são mais suficientes. Contudo, como modernizar a escola e fazer com que os professores acompanhem as mudanças? A partir dessa consideração são trabalhados três eixos reflexivos. A formação dos professores precisa considerar que não estamos diante de uma aprendizagem que durará a vida toda, pois o modelo educativo consolidado na modernidade é uma formação inicial, insuficiente para toda a vida. O conhecimento das famílias e dos estudantes sempre foram facilmente desprezados pela escola, colocando-os em uma posição subordinada. Essa premissa é impossível de ser mantida, considerando toda uma geração de nativos digitais. A ideia de missão e superioridade da escola e dos professores parece ainda perdurar, apesar do ambiente digital, sobretudo no que se refere à participação das famílias. A participação da comunidade é submetida ao restrito papel que lhes é outorgado pelos órgãos escolares. Todavia, para o autor, a escola necessita abrir-se para a comunidade, não com velhos lemas como “escola para a vida”, “derrubar muros”, “entrar ar fresco”. Outrossim, significa dizer que os recursos necessários para a escola desempenhar sua função estão na mão da comunidade, das famílias dos alunos, das instituições e das empresas.

O quarto capítulo é dedicado a debater a crise da instituição escolar indagando para que e para quem a escola existe. Para tentar responder a essa questão, o autor, diferencia alguns conceitos que muitas vezes são utilizados como sinônimos. Educar é criar ou alterar uma situação com a finalidade de que o outro aprenda. Ensinar é oferecer instruções ou demonstrações expressas com essa finalidade. Portanto, são poucos os que educam e raros os que ensinam. A crise institucional também é uma crise interna. Quando a realidade muda, exigem-se novos processos, as organizações se veem obrigadas a transformar-se, a mudar para sobreviver. Seguindo o diagnóstico de Fernández-Enguita, é preciso que a escola enquanto instituição acompanhe esse movimento, pare de culpar o aluno, a família ou a sociedade, do contrário não conseguirá ir mais longe. Desse modo, há um fracasso de identidade coletiva da escola.

Não se nasce aluno, torna-se aluno por meio do processo da escolarização. Assim, inicia o quinto capítulo trazendo os alunos ao cerne da discussão. O autor afirma que se discute muito sobre a crise da escola, mas não se discute a custódia da infância. Os alunos estão inseridos em um contexto de hiperestimulação por meio jogos ou redes sociais e, ao chegarem na escola, se deparam com uma instituição com poucos recursos, com professores considerados os detentores do conhecimento. Como consequência, eles entram em um estado chamado pelo autor de “economia de atenção”, ou seja, estão presentes na escola, mas não se concentram nas atividades propostas, ocasionando indisciplina e, em muitos casos, sendo diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Nesse sentido, o autor critica o fato de a escola e os professores abominarem os jogos e os celulares; porém outras instituições mais preocupadas com a eficácia dos resultados do que com a tradição e com o dogma apressaram-se em incorporá-los com notáveis êxitos.

Ao pensar sobre os atores da educação, o sociólogo espanhol passa da análise do aluno ao professor, no sexto capítulo. Argumenta acerca da correspondência do trabalho docente com a qualidade da educação. Inicialmente, traça as diferenças entre uma organização e uma instituição, identificando a escola enquanto uma instituição que tem seu funcionamento diretamente relacionado à profissão, núcleo de sua operacionalização e poder, os professores. Ao longo do capítulo, sinaliza que os desafios enunciados pelos professores em relação ao exercício de sua profissão tendem a estar ligados a velhos argumentos, como a desvalorização da atuação docente, tanto relacionada aos rendimentos pecuniários quanto ao prestígio social da profissão. O autor apresenta dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que demonstram que na Espanha os rendimentos, o número de alunos por sala de aula e a carga horária anual estão dentro da média dos outros países analisados e, por vezes, em situação melhor do que a de outros profissionais com a mesma exigência de qualificação. Referente ao prestígio da profissão, apresenta uma pesquisa que demonstra que os professores são mais bem avaliados por alunos, famílias e comunidade do que imaginam. O autor considera que a pretensão de prestígio dos professores esteja relacionada ao sentimento nostálgico do pertencimento à elite, em comparação a outras profissões, o que se torna impossível, hodiernamente, pelo alto número de profissionais docentes formados, a baixa nota média dos cursos e o curto período de graduação. Nesse sentido, destaca a necessidade de uma reforma na política de contratação de docentes na Espanha, considerando o deficit na formação pela vulgarização da profissão.

No sétimo capítulo, discute as promessas de igualdade atribuídas à educação que não são cumpridas. É de consenso global a importância imputada à educação, no sentido de sua oferta e acesso universal, ainda que a igualdade educativa ou escolar permita uma ampla significação e interpretação. Nesse sentido, o autor lança duas perguntas: igualdade para quem? E, para quê? Segundo o autor, é preciso que a escolarização enfrente as diversas desigualdades que a permeiam, gênero, classe, raça, etnia, território, etc., as quais caracterizam a multiplicidade de sujeitos que atuam nessa política. Mas, também, reconheça e aja nas fraturas causadas pelo próprio processo de escolarização. Assim, aponta o desequilíbrio na oferta e a descriminalização institucional como pontos que historicamente causam ou reforçam as desigualdades. Contudo, destaca que a escola não pode mais ser vista como um local de redenção dos males sociais, posto que essas questões têm suas causas arraigadas para além do alcance da política de escolarização. Desse modo, enfatiza que é imprescindível que a escolarização seja comprometida com a justiça escolar, superando os ideais de meritocracia, mas que sejam reconhecidos seus limites, visto que a igualdade de oportunidade, ou o ponto de saída desigual dos alunos estão distantes das atribuições das instituições escolares.

O autor finaliza o livro com uma crítica, no Posfácio, aos profissionais da educação, tanto professores quanto estudiosos, que deixam sua postura militante predominar ao seu compromisso profissional, manifestando tendenciosamente a utopia que os move. Argumenta que é necessário pactuar os compromissos da educação, compostos por responsabilidades sociais e profissionais, sem perder o foco nas metas compatíveis com a função de escolarização. Assim, evidencia que o compromisso apenas será fortuito se firmado por todos os atores envolvidos, alunos comprometidos com o acompanhamento das aulas, comunidade que participe e não trate a escola como um espaço de custódia dos menores, governo que invista de maneira planejada e inovadora na política de educação, mas, principalmente, que os professores tenham um compromisso profissional, visto que são suas práticas que definirão o caráter da instituição educativa.

O livro A Educação na Encruzilhada cumpre a expectativa de análise dos diversos fatores que envolvem as manifestações discursivas que apontam, coerentemente ou não, ao fracasso, aos problemas ou à crise na educação. Todavia, para os leitores brasileiros, vale ressaltar que nem todos os argumentos podem ser vistos de maneira análoga à nossa realidade, considerando que são estudos baseados em indicadores coletados na Espanha e informam sobre taxas e indicadores específicos. As indagações realizadas ao longo da obra proporcionam, com efeito, reflexões válidas acerca da instituição escolar, como a conhecemos, entre elas a obrigatoriedade e custódia da infância e juventude, a imobilidade da forma escolar, os dilemas relacionados à profissão docente, a multiplicação das desigualdades, bem como os limites sociais da política de escolarização. A leitura da obra, ainda, faz-se interessante pelas discussões teórico-metodológicas, considerando que, pela longa jornada acadêmica do autor, o livro acolhe variadas pesquisas para análise das questões que colocam a educação na encruzilhada.

Roteiro, Joaçaba, v. 42, n. 2, p. 393-398, maio./ago. 2017 | E-ISSN 2177-6059


1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pelotas; doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Professora na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul; denimcs@gmail.com

2 Graduada em História pela Universidade de Caxias do Sul; mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; scarlettgborges@hotmail.com