http://dx.doi.org/10.18593/r.v42i3.12955

BABEL: NOTAS PARA PENSAR A EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Renata Porcher Scherer1

Seja como for, eu continuo a repetir que, entre os veículos disponíveis para a viagem ao longo da estrada, é o diálogo sério, com disposição favorável, buscando a compreensão mútua e o benefício recíproco que merece mais confiança.

(BAUMAN; MAURO, 2016, p. 140)

BAUMAN, Zygmunt; MAURO, Ezio. Babel: entre a incerteza e a esperança. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

Em sua mais recente obra, intitulada Babel: entre a incerteza e a esperança, Zygmunt Bauman e Ezio Mauro estabelecem uma interlocução profícua sobre questões contemporâneas e nos convidam a repensar a importância do diálogo como ferramenta para enfrentarmos alguns dos desafios que têm nos interpelado contemporaneamente. Entre esses desafios, pode-se destacar a individualidade, a exacerbação da competitividade e os sentimentos profundos de incerteza e de solidão. Todavia, como aponta a epígrafe escolhida para a abertura desta resenha, o estabelecimento dessa forma de diálogo não consiste em uma tarefa fácil, mas pressupõe disposição para a mudança por meio do reconhecimento e da correção de nossos erros. Serenidade, equilíbrio e paciência, nas palavras dos autores, são as chaves para que possamos estabelecer tal dialogicidade.

Mesmo que em sua argumentação a obra aponte para um prognóstico um pouco pessimista, seus autores, aparentemente, mantêm certo otimismo, sobretudo ao afirmarem que, possivelmente, o estabelecimento dessas formas de diálogo, embora levem “muito tempo e muito esforço” (p. 140), ainda assim, não são, de todo, impossíveis. Nessa direção, será em um tom entre a incerteza e a esperança que o diálogo será estabelecido.

As contribuições do pensamento de Zygmunt Bauman para o campo educacional já têm sido amplamente exploradas e defendidas. As pesquisas em Educação seguidamente se utilizam de conceitos como “modernidade líquida” e “sociedade individualizada”, objetivando contextualizar a sociedade, as relações e as condições de possibilidade para a emergência de algumas questões educacionais contemporâneas que interpelam professores, escolas e pesquisadores. Na obra que nesta resenha se pretende apreciar criticamente, o pensador – Zygmunt Bauman – estabelece uma conversa com Ezio Mauro, jornalista e escritor italiano, que traz à tona questões atuais do cenário político e econômico, conferindo dinamicidade e atualidade para a discussão estabelecida.

No primeiro capítulo, intitulado Num espaço desmaterializado, os autores estabelecem um diagnóstico sobre os perigos a serem enfrentados perante o enfraquecimento da democracia. Inicia-se o diálogo a partir da evidência de que a crise que enfrentamos atinge, principalmente, os mecanismos criados para aperfeiçoar e desenvolver a democracia, com o firme propósito de nos proteger nas nossas vidas em conjunto, mostrando, desta forma, que a democracia não é autossuficiente, e que os governos democráticos se apresentam de forma instável, porque tudo ao seu redor se encontra fora do controle. Ao assumirem que “a democracia está sob ataque” (p. 13), os autores examinam se essa democracia ainda seria capaz de pensar sobre si mesma, de se repensar e, ainda, de recuperar o poder de governar, de fato.

Para realizar tal exercício analítico sobre o enfraquecimento da democracia e sobre as possibilidades para ela se reinventar, recupera-se uma das questões-chave que vem sendo discutida em outras obras de Bauman: a relação liberdade versus segurança. Para os autores, vivemos em uma constante relação pendular, que se movimenta “da ânsia por mais liberdade à angústia por mais segurança.” (p. 15). O sistema democrático seria aquele a quem entregamos nossa miséria angustiante e que agora nos faz sentirmos traídos e desapontados.

Um dos reflexos da nossa decepção seria nossa relação contemporânea com as eleições, a partir da qual, cada vez mais, torna-se perceptível que os eleitores votam por razão de hábitos adquiridos em vez de ser pela esperança de uma mudança para melhor. No melhor dos casos, vai-se às urnas para escolher males menores, aumentando cada vez mais a distância entre “os que votam e os que são postos no poder pelo seu voto.” (p. 15). Essa apatia política, segundo os autores, não seria uma novidade, e é possível encontrar relatos sobre tal questão em documentos da virada dos séculos XIX e XX. Porém, um novo elemento dessa apatia contemporânea seria a falta de confiança na capacidade dos partidos políticos e nos governantes. Se antes a “passividade era baseada na confiança de que governos e parlamentos podiam realizar a tarefa e – armados como estavam do poder e dos recursos exigidos – cumprir suas promessas” (p. 23), hoje parece prevalecer o sentimento de frustração e de traição pelas promessas democráticas. A chave apontada no capítulo, como possibilidade para salvar a democracia – considerada como uma medicina preventiva para as situações de abandono, alienação e de vulnerabilidade –, estaria na nossa capacidade de “pensar e agir acima das fronteiras dos Estados territoriais.” (p. 24).

No segundo capítulo, Num espaço social em transformação, os autores abordam o enfraquecimento ou a impossibilidade de imersão da generosidade em uma sociedade de consumidores e a ampliação do fenômeno da desigualdade. Mesmo reconhecendo que sempre ocorreram desigualdades em nossas sociedades ocidentais, anteriormente parece que tal sentimento era resguardado por uma noção de todo, que hoje parece inexistente. Destarte, as desigualdades eram toleradas porque existia uma ampla oferta de oportunidades, que faziam com que os mais fracos e/ou excluídos confiassem no futuro e que suas futuras gerações pudessem obter ascensão na vida social.

Contemporaneamente, de acordo com os autores, temos produzido uma nova forma de nos relacionar com a exclusão e com a desigualdade, e tal configuração traz como consequência central a exacerbação da máxima “cada um por si”. Essa visão pessimista do presente, com uma avaliação que apresenta perspectivas de mudanças em curto e médio prazos, é contraposta no capítulo por uma visão otimista da “imortalidade da esperança” (p. 53). Para falar de esperança, Bauman e Mauro recuperam a noção de “natureza prática” de Antonio Gramsci e apontam que essa compreensão exige que sejamos realistas em relação às nossas chances de levar as transformações a cabo. Mas essa natureza prática deve ser aliada a outra noção dos autores de otimismo radical, “que se recusa a admitir as derrotas e insiste em mudanças para melhor.” (p. 60). Por conseguinte, não devemos nos sentir desobrigados ao percebermos o quanto a tarefa que se impõe parece difícil; ao contrário, devemos ver a dificuldade da tarefa como começo e não como fim.

Outra questão abordada no capítulo se refere à responsabilidade. Para os autores, o número de pessoas desobrigadas de responsabilidade tem crescido em demasia. Essas pessoas ocupam um lugar específico na vida social: a plateia, “pois seja o espetáculo atraente, ou não, agradável ou não, as pessoas na plateia não se sentem encarregadas dele, não compreendem nem esperam ser acusadas de participação.” (p. 76). Mas, estar na plateia não significaria impossibilidade de qualquer ação; aquele que assiste se sente livre para expressar suas emoções – de agrado ou de desagrado –, culpabilizando os responsáveis pelo espetáculo. Essa nova forma de nos relacionar, expressa na metáfora da plateia, teria maior semelhança com a conectividade do que com a coletividade de outrora. Essa ausência de um agente coletivo, que seria capaz de mobilizar coletividades em prol de um objetivo comum, tem sido substituída por “massas de solitários interconectados, por agentes solitários constantemente em contato.” (p. 78).

É sobre os “solitários interconectados” que os autores dialogarão no terceiro e último capítulo da obra. Para abordar sobre essa questão, mostram que, atualmente, a conexão entre os indivíduos – ou solitários interconectados – vem se estabelecendo a partir da construção de redes. A rede seria um arranjo escolhido e/ou composto a partir da responsabilidade exclusiva de cada indivíduo. Os membros e fronteiras das redes não seriam dados ou fixos; na verdade, seriam frágeis e maleáveis, podendo ser redefinidos a qualquer momento, de acordo com o interesse do seu compositor. As redes, por conseguinte, constituiriam-se como uma extensão de cada indivíduo ou como uma proteção da hostilidade que poderia advir do mundo off-line. “Uma ‘rede’ não é um espaço para desafiar as ideias recebidas e as preferências de seu criador. Ela é antes uma réplica ampliada ou um espelho de aumento daquele ou daquela que a teceu, povoada exclusivamente por pessoas de mesma opinião [...]” (p. 85, grifo do autor). Qualquer que sustente uma opinião contrária poderá ser facilmente excluído e deixar de fazer parte daquela rede.

Para os autores, o estabelecimento de relacionamento por meio das redes também estaria produzindo uma nova forma de nos relacionar com o conhecimento e com a informação. Nesse sentido, o acesso ao conhecimento parece nunca ter sido tão fácil quanto hoje; logo, poderíamos dizer que estamos presenciando “o fim da hierarquia, da verticalidade da informação, em nome da horizontalidade da comunicação.” (p. 103). Porém, como vivemos em um mundo que “padece sob o domínio onipresente de mercados livres em sua busca constante de terras virgens” (p. 107), o conhecimento e a informação, em vez de serem amplamente compartilhados – como poderíamos imaginar –, passam a se constituir como grandes fontes de lucro. Para dar visibilidade a essa questão, é examinado o exemplo de três gigantes editoriais: Elsevier, Springer e Wiley-Blackell. Esses editoriais, ao reunirem os periódicos acadêmicos considerados portadores de endosso coletivo das profissões, passaram a ser leituras obrigatórias para os envolvidos em pesquisa e/ou ensino científico. Além de manterem um monopólio das principais publicações, acabam ainda por reduzir o restante da informação, que pode ser obtida na internet, como também podem ser encontradas opiniões inferiores e não confiáveis. “Há fortes razões para suspeitar que, quando se trata de capacidades humanas baseadas em conhecimento, a internet como um todo esteja mais engajada em cavar fossos do que em construir pontes.” (p. 108).

O panorama construído pelo diálogo entre Bauman e Mauro descreve a constituição de uma Babel contemporânea, na qual as relações estabelecidas por meio da lógica da rede impossibilitariam cada vez mais o diálogo, sendo esse apontado como caminho possível para nos distanciar da Babel que hoje habitamos. Como a epígrafe escolhida para abrir essa resenha, os autores concluem a obra apontando para a necessidade de se recuperar “um diálogo que tenha chances de apoiar uma coabitação mutuamente benéfica, ao mesmo tempo em que ajuda a escapar das armadilhas da proximidade das diferenças.” (p. 128). Essa forma de diálogo teria três características básicas, que os autores descrevem tomando como base as contribuições do pensamento social de Richard Sennett. O diálogo precisaria, então, constituir-se informal, não possuindo uma agenda predeterminada e nem regras de procedimento; aberto, partindo da determinação de que ambas as partes podem aprender e admitir estarem erradas; e cooperativo, sem o propósito de acabar o diálogo entre vencedores e perdedores, mas de forma que todos possam sair enriquecidos dessa experiência.

Para finalizar esta resenha, gostaria de apontar algumas produtividades desse livro para pesquisadores, especialmente no campo da Educação. A leitura da obra pode auxiliar na compreensão de uma nova forma de nos relacionar, a qual se encontra descrita de forma detalhada mediante a ideia de rede. Na rede, como apontam os autores, somente entra aquilo que nos interessa e que vai ao encontro de nossas opiniões. Cabe, então, pensar se as pedagogias contemporâneas, centradas cada vez mais na aprendizagem e na construção de caminhos formativos individualizados, tomando como referência os interesses e gostos dos jovens, não estariam produzindo uma Babel também no campo pedagógico, impossibilitando progressivamente o diálogo e eliminando as possibilidades de as futuras gerações adquirirem as ferramentas necessárias para o diálogo que a obra propõe, um “diálogo sério, com disposição favorável, buscando compreensão mútua e o benefício recíproco.” (p. 140).

Roteiro, Joaçaba, v. 42, n. 3, p. 659-664, set./dez. 2017 | E-ISSN 2177-6059


1 Mestre e doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Professora na Rede Municipal de Ensino de Portão, RS; renata_ps3@yahoo.com.br