http://dx.doi.org/10.18593/r.v42i1.11554

DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA E FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA EPISTEMOLOGIA DE GASTON BACHELARD

UNIVERSITY TEACHING AND FORMATION OF THE SCIENTIFIC SPIRIT: AN APPROACH FROM THE EPISTEMOLOGY OF GASTON BACHELARD

ENSEÑANZA UNIVERSITARIA Y LA FORMACIÓN DEL ESPÍRITU CIENTÍFICA: UNA APROXIMACIÓN DESDE LA EPISTEMOLOGÍA DE GASTON BACHELARD

Altair Alberto Fávero1

Universidade de Passo Fundo, Professor e pesquisador do Curso de Filosofia no Mestrado e no Doutorado em Educação  

Carina Tonieto2

Universidade de Passo Fundo, Professora do Curso de Filosofia na área de Ética e Conhecimento

Resumo: Neste artigo realizamos uma análise teórica, por meio de uma pesquisa bibliográfica, desenvolvida no Grupo de Pesquisa Docência Universitária, políticas educacionais e expansão da educação superior: perspectivas e desafios, na Universidade de Passo Fundo, RS. Primeiramente, reconstruímos de modo breve a proposta epistemológica bachelardiana na tentativa de superação do dualismo entre realismo e racionalismo, na direção de um racionalismo aplicado; posteriormente, reconstruímos a argumentação de Bachelard em torno da noção de obstáculo epistemológico e formação do espírito científico; e, para finalizar, apresentamos as implicações da epistemologia bachelardiana para repensar alguns desafios da docência universitária.

Palavras-chave: Docência universitária. Epistemologia. Obstáculos epistemológicos. Formação.

Abstract: In this article a theoretical analysis was carried out through a bibliographic research developed by the University Teaching Research Group, educational policies, and expansion of higher education: prospects and challenges at the University of Passo Fundo, located in the City of Passo Fundo, RS State. First, it was briefly reconstructed Bachelard’s epistemological proposal as an attempt to overcome the dualism between realism and rationalism, toward applied rationalism. Afterwards, Bachelard’s arguments about the notion of epistemological obstacle and formation of the scientific spirit were rebuilt. Finally, the implications of Bachelard’s epistemology to rethink some challenges of university teaching were presented.

Keywords: University teaching. Epistemology. Epistemological obstacles. Formation.

Resumen: En este artículo se realiza un análisis teórico, a través de una búsqueda en la literatura, desarrollado por el Grupo de Investigación Enseñanza Universitaria, Políticas Educativas y Expansión de la Educación Superior: perspectivas y desafíos, de la Universidad de Passo Fundo, RS. En primer lugar se reconstruye brevemente la propuesta epistemológica bachelardiana en un intento de superar el dualismo entre el realismo y el racionalismo, en la dirección de un racionalismo aplicado; después reconstruimos los argumentos de Bachelard en torno a la noción de obstáculo epistemológico y la formación del espíritu científico; y para finalizar presentamos las implicaciones de la epistemología bachelardiana para reconsiderar algunos de los retos de la enseñanza universitaria.

Palabras clave: La docencia universitaria. Epistemología. Obstáculos epistemológicos. Formación.

1 INTRODUÇÃO

Nossa pretensão, nos limites do presente texto, é esclarecer alguns conceitos centrais da epistemologia de Gaston Bachelard, a fim de apontar possíveis relações com a docência universitária por meio de sua proposta de formação do espírito científico. O conjunto de argumentos que desenvolvemos está ancorado epistemologicamente em uma perspectiva racionalista, em um posicionamento crítico-analítico e enfoque da complexidade, já que tomamos como referência o contexto contemporâneo de sociedades complexas. Recorremos a conceitos de nosso referencial teórico localizados historicamente, porém considerados na sua força interpretativa e versatilidade a-histórica, os quais nos auxiliam a compreender os desafios contemporâneos ligados ao processo de produção do conhecimento científico e de formação que acontece nas instituições de educação superior. Na pesquisa desenvolvida buscamos projetar uma resposta satisfatória para a pergunta: quais as possíveis contribuições da proposta de formação do espírito científico apresentada pela epistemologia bachelardiana para a docência universitária? Assim, projetamos uma análise teórica, por meio de uma pesquisa bibliográfica, desenvolvida no Grupo de Pesquisa Docência Universitária, políticas educacionais e expansão da educação superior: perspectivas e desafios, na Universidade de Passo Fundo, RS.

O texto está dividido em três partes: na primeira, reconstruímos de modo breve a proposta epistemológica bachelardiana na tentativa de superação do dualismo entre realismo e racionalismo, na direção de um racionalismo aplicado; na segunda parte reconstruímos a argumentação de Bachelard em torno da noção de obstáculo epistemológico e formação do espírito científico; e na terceira, apresentamos as implicações da epistemologia bachelardiana para (re)pensarmos alguns desafios da docência universitária.

2 A RELAÇÃO ENTRE REALISMO E RACIONALISMO NA EPISTEMOLOGIA BACHELARDIANA

No primeiro parágrafo da introdução de O novo espírito científico, Bachelard (1968, p. 11) demarca sua posição em relação à sua compreensão da relação entre filosofia e ciência, afirmando que “[...] todo homem, em seu esforço de cultura científica, apoia-se não sobre uma, mas sobre duas metafísicas e que estas metafísicas naturais e convincentes, implícitas e tenazes, são contraditórias”, denominadas por ele de “atitudes filosóficas fundamentais” ou “etiquetas clássicas” chamadas racionalismo e realismo. De um lado, elas revelam-se inerentes, claras e eficazes no esforço de construção do conhecimento científico, mas, de outro, não se revelam na sua totalidade, deixando aspectos subentendidos, o que revela seu caráter paradoxal. O paradoxo reside no fato de que essas metafísicas são parte intrínseca do espírito científico e, por isso, de um lado, nos parecem claras e eficazes, porém, de outro, possuem dimensões que permanecem ocultas. Tais aspectos, quando enunciados isoladamente, demonstram suas limitações em compreender a nova dinâmica do espírito científico, como, por exemplo, a separação entre experiência e razão, porém, quando enunciados de modo dialético, revelam suas potencialidades, nas quais experiência e razão se complementam. Assim, o racionalismo e o empirismo, quando tomados de forma dicotômica, por mais que pareçam claros e eficazes em suas postulações, revelam suas fragilidades na compreensão do processo de produção do conhecimento; porém, quando tomados dialeticamente, ressaltam a sua capacidade de complementaridade, ganhando destaque as suas potencialidades.

Na perspectiva da epistemologia bachelardiana, a disputa entre realismo e racionalismo impede a compreensão de três dimensões fundamentais do saber científico: a primeira delas é que tais formas de compreensão acabam impondo um dualismo para a compreensão a respeito do conhecimento: ou se compreende a partir dos princípios gerais (razão) ou a partir dos resultados particulares (experiência), desconsiderando a nova dinâmica do novo espírito científico; a segunda é que ambas as posturas não resistem aos dois obstáculos epistemológicos contrários que enfraquecem toda a forma de pensamento, que é a oposição entre o geral (princípios universais) e o imediato (fatos e experiências particulares), já que eles produzem respostas satisfatórias para si, porém não consideram a dialética do novo espírito científico, que trabalha a partir da razão e da experiência; a terceira é que eles desconsideram os valores básicos do pensamento científico contemporâneo, que é a dialética entre os valores experimentais e racionais e entre o a priori e a posteriori, assim, tendem a um dos extremos, desconsiderando o potencial do movimento entre ambos. Desse modo, é possível afirmar que ambas as posturas ainda operam baseadas na oposição ou um ou outro, enquanto o novo pensamento científico opera permanentemente com o movimento dialético, entre um e outro;33 ambos desconhecem epistemologicamente que é na dialética que se pode pensar uma relação frutífera entre os princípios gerais e os resultados particulares, entre o racionalismo e o empirismo, e que essa é a dinâmica do novo espírito científico.

Tomados em oposição, ambos consideram que o realismo imediato não pode continuar o mesmo a partir do momento que se depara com a dúvida científica, assim como o racionalismo fechado precisa rever seus juízos a priori diante do “[...] duplo sentido da prova científica, que se afirma na experiência assim como no raciocínio, ao mesmo tempo num contato com a realidade e numa referência à razão.” (BACHELARD, 1968, p. 12). Quando tomados na sua complementaridade há o reconhecimento de que as descontinuidades e rupturas entre o conhecimento científico e o conhecimento comum são uma constante necessária que torna possível a evolução do pensamento científico, retificando-o constantemente e evitando que os dogmas do senso comum sejam substituídos pelos dogmas da ciência.

Desse modo, pensar cientificamente é, nas palavras de Bachelard (1978, p. 5), ter a capacidade de “[...] colocar-se no campo epistemológico intermediário entre teoria e prática, entre matemática e experiência”, sendo conhecer cientificamente a capacidade de conhecer uma lei natural “[...] simultaneamente como fenômeno e como número.” Não é de espantar tal constatação, já que Bachelard toma a física como modelo, e, nela, o modelo matemático é que orienta a realização experimental, em que a experiência é apenas a realização do que foi criado racionalmente por um processo de abstração pelo modelo matemático. Porém, tal proposta nos ajuda a perceber que a explicação científica apresenta o dado como resultado de um processo teórico-prático de compreensão, no qual a experiência aponta para a pertinência da compreensão proposta pelo modelo teórico, reafirmando a necessidade de um racionalismo aplicado. Assim, arrefece-se a disputa entre os cientistas do reino dos fatos e os filósofos do reino dos princípios absolutos diante de uma epistemologia que trabalha sempre com uma realidade informada, com um objeto científico construído e aberto à retificação.

Bachelard (1979, p. 5) reconhece, entretanto, que esse movimento epistemológico tem uma direção, a qual é denominada de vetor epistemológico; ele “[...] vai do racionalismo para à experiência”; “[...] vai seguramente do racional ao real e de nenhum modo, ao contrário, da realidade ao geral.” (BACHELARD, 1968, p. 13). Para ele, tal direção é crucial no pensamento científico, uma vez que permite a superação do realismo/empirismo ingênuo, ou seja, que os objetos científicos estão dados, eles existem no real, cabendo ao sujeito apenas captá-los, organizá-los e explicá-los por meio da experiência e das categorias do entendimento. Tal linearidade consiste em uma armadilha ou “obstáculo epistemológico”, que implica a incapacidade de abstração, ou seja, de falar daquilo que não pode ser apreendido pelos sentidos, ou seja, daquilo que não existe enquanto objeto concreto, palpável, dado, que está fora de alcance de nossos sentidos e de nossas categorias. A ciência não busca mais apenas descrever dados ou o real, mas cria os seus objetos, sendo o dado científico um resultado e não um achado. Na visão de Bachelard, o dado ou o objeto científico nunca está dado, ele é construído por meio de um processo racional e metódico de abstração, construído a partir de uma elaboração teórica e experimental. Desse modo, o real é sempre racional, o que implica reconhecer que não há uma ciência pura independente da experiência, e nem um real absoluto dado que precisa ser captado na sua essência pela razão, fazendo sentido a sua constatação de que o empirismo necessita de compreensão e o racionalismo de aplicação.

A conclusão, segundo Bachelard (1979, p. 7), é simples: se quisermos uma filosofia do conhecimento científico aberta, então é necessário, primeiro, reconhecer que o conhecimento é fruto da evolução do espírito, ou seja, da evolução da capacidade do sujeito de conhecer; segundo, que essa evolução não é linear e perene, ela aceita variações e erros; terceiro, que o espírito que constrói a si mesmo e o mundo trabalha sempre no desconhecido, sempre à procura daquilo que contradiga os conhecimentos anteriores de modo a retificá-los; quarto, que a novidade sempre diz não ao estabelecido e que tal contradição é condição para o novo; quinto, que o “não” dito ao estabelecido não é definitivo para o espírito em processo de construção, mas dialético, por isso capaz de constituir e buscar novas evidências, de enriquecer seu cabedal de experiências sem privilegiar o cabedal de verdades naturais já existentes e que tem a função de tudo explicar.

Desse modo, fica evidente a postura bachelardiana de que a compreensão possível pelo vetor epistemológico do racional para o real é possível por um espírito que seja capaz de ultrapassar as contingências sensíveis do real pelo uso da razão, porém não uma razão absoluta, mas uma razão aberta capaz de criar problemas e soluções a partir do real, mas para além dele; que seja capaz de pensar o impensado ou aquilo que não será pensado duas vezes. Por isso, não se pode esquecer, segundo Bachelard (1968, p. 16), “[...] que o real científico já está em relação dialética com a razão científica”, não fazendo mais sentido falar em uma experiência muda, mas em experiências informadas capazes de expor suas objeções, tanto em relação a si mesmas quanto em relação à teoria. Assim, de nada adianta apenas descrever, como de nada adianta buscar somente verdades absolutas e perenes; é necessário o diálogo entre ambas, pois se colocando nessa fronteira o epistemólogo compreenderá “[...] o duplo movimento pelo qual a ciência simplifica o real e complica a razão”, o que não significa a absolutização da experiência, mas que quando bem feita é sempre positiva, o que acarreta que seja uma experiência completa, isto é, “[...] precedida de um projeto bem estudado a partir de uma teoria acabada.” (BACHELARD, 1968, p. 16-17).

Assim, a realidade científica aparece considerando duas perspectivas, a da retificação empírica e da precisão teórica, efetivando o movimento epistemológico dialético, que conduz a uma filosofia da ciência aberta, a uma filosofia do não, do porque não. Tal filosofia é passível de ser captada tanto pelo realismo quanto pelo racionalismo, desde que sejam capazes de se colocar na fronteira e seguir o trajeto que vai da realidade explicada ao pensamento aplicado, em que a objetividade não é mais um dado primitivo, mas uma tarefa pedagógica nada fácil, possível de ser levada adiante por “[...] uma espécie de pedagogia da ambiguidade”, capaz de “[...] dar ao espírito científico a flexibilidade necessária à compreensão das novas doutrinas.” (BACHELARD, 1968, p. 21). Desse modo, compreender a dinâmica do novo espírito científico, assim como analisar criticamente o conhecimento científico e apreender sua objetividade é um processo que requer aprendizagem, por isso uma tarefa pedagógica que exige retificar o modo como se compreende o estatuto epistemológico do conhecimento científico, que deixa de ser realista ou racionalista, para ser realista e racionalista. Tal tarefa pedagógica se coloca para todos aqueles que estão envolvidos no processo de produção científica, isto é, envolvidos no processo de formação do espírito científico e, por consequência, na superação dos obstáculos epistemológicos. A respeito de tais aspectos tratamos a seguir.

3 OS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS E A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO

A formação do espírito científico é uma preocupação constante de Bachelard, tanto que para tal dedica toda uma obra, A formação do espírito científico: contribuições para uma psicanálise do conhecimento, publicada em 1938, após O novo espírito científico, que data de 1934. Cronologicamente, primeiro ele se preocupa em mostrar o nascimento de uma nova ciência que requer uma nova filosofia e, consequentemente, uma epistemologia capaz de dar conta da nova dinâmica de produção do conhecimento, o que pontuamos de modo breve na seção anterior. Posteriormente ele se preocupa com a formação desse novo espírito científico e, para isso, mergulha na busca pelo entendimento de como ocorre o processo formativo e quais são os seus principais entraves ou “obstáculos epistemológicos”, que, para serem compreendidos, necessitam de uma psicanálise do conhecimento. Tal constatação implica a necessidade de uma análise psicológica de como se constitui o espírito científico, ou seja, como o ser humano aprende e constrói conhecimento. Bachelard (1996, p. 11) afirma que compreender tal processo requer “[...] seguir a via psicológica normal do pensamento científico”, que consiste em “[...] passar primeiro da imagem para a forma geométrica e, depois, da forma geométrica para a forma abstrata.”44 Para tal, ele considerará os elementos históricos, afinal, todo processo de produção do conhecimento e evolução acontece por rupturas epistemológicas, que são, também, rupturas históricas. Porém, mostrará que determinados aspectos dos percursos formativos constitutivos do processo de desenvolvimento humano permanecem os mesmos apesar das rupturas histórico-epistemológicas, ou seja, não têm correspondência histórica e, como se trata de uma formação individual, constituem armadilhas epistemológicas que podem conduzir à passividade do espírito científico e culminar com a sua estagnação.

Compreender tais aspectos é de suma importância, para quem ensina e para quem aprende, pois implica olhar o seu processo formativo para compreender como o outro aprende e como é possível intervir pedagogicamente. Assim, é importante que compreendamos a proposta de Bachelard de desenvolvimento do espírito científico sistematizada na “lei dos três estados para o espírito científico”, que está entrelaçada à “lei dos três estados da alma” e ao conceito de “paciência científica”, a partir dos quais ele construirá o conceito de “obstáculo epistemológico” e apontará suas implicações para a epistemologia e para a educação.

Bachelard (1996, p. 11) afirma que o desenvolvimento do espírito científico percorre três etapas, denominadas “leis dos três estados para o espírito científico.” A primeira etapa refere-se ao “estado concreto”, caracterizado pelo entretenimento do espírito com as primeiras tentativas de compreender os fenômenos naturais, por meio de imagens amparadas em uma filosofia que exalta a natureza, admirando sua unidade e multiplicidade. A segunda, diz respeito ao “estado concreto-abstrato”, caraterizado pelas tentativas de compreender a experiência física por meio dos esquemas geométricos, orientados por uma filosofia da simplicidade; nessa etapa o espírito se encontra em uma situação paradoxal, pois se de um lado se sente mais seguro com a abstração, de outro ainda necessita de uma representação baseada na intuição sensível. O terceiro é o “estado abstrato” caracterizado pela abstração voluntária da experiência imediata, em oposição à realidade primeira por meio da dúvida científica.

É possível perceber que tal descrição é tecida a partir da relação entre ciência e filosofia proposta por Bachelard, na qual o primeiro estado se caracteriza por um forte realismo, o segundo, pela primeira tentativa de movimento do realismo em direção ao racionalismo, porém demasiadamente preso ao primeiro, e o terceiro, quando há a predominância do “vetor epistemológico” que vai do racionalismo ao realismo, em que é possível a abstração, isto é, compreender o mundo teoricamente, cientificamente, superando a realidade primeira. Assim, evidencia-se que o desenvolvimento do espírito científico é genético e epistemológico e, portanto, possui uma ordem e um fim, os quais devem ser considerados pelos processos formativos.

No entanto, o espírito científico é animado por interesses, que lhe constituem a base afetiva e são elementos de solidez e confiança, o que, para Bachelard, implica a necessidade de uma psicanálise do conhecimento, já que ela ajudará a compreender tais interesses, de modo a esclarecer as facetas mais importantes da formação de um espírito científico subjetivo que interferirá em uma cultura objetiva, daí o nome de sua obra A formação do espírito científico: contribuições para uma psicanálise do conhecimento. Desse modo, está colocada pela epistemologia bachelardiana a preocupação com o processo formativo, que, nesse caso, tem como fim a compreensão de como se forma o espírito científico para aqueles que ensinam e aprendem.

Na visão de Bachelard (1996, p. 12), é preciso considerar que o dever de todo educador, em qualquer estágio de formação, deve ser o de criar e manter o interesse pela pesquisa. No entanto, o interesse pela pesquisa tem uma história, e sua força se mostra no decorrer da construção da “paciência científica”, que não é a mesma paciência da erudição, já que esta trabalha com a acumulação e a repetição, enquanto aquela trabalha com a retificação. “Sem interesse, [diz Bachelard (1996, p. 12)] a paciência seria sofrimento, [porém] com esse interesse, a paciência é vida espiritual”, isto é, o interesse pela pesquisa científica desinteressada é que torna comportamentos como calma, tranquilidade, serenidade, persistência, equilíbrio e constância sinônimos de paciência, aspectos vitais do espírito científico, já que, do contrário, tornar-se-iam comportamentos perturbadores e indesejados, por isso, eliminados pela adesão fácil às verdades primeiras.

Estabelecer a psicologia da “paciência científica” é, para Bachelard (1996), adicionar às leis do desenvolvimento do espírito científico a “[...] lei dos três estados da alma [já que] as forças psíquicas que atuam no conhecimento científico são mais confusas, mais exauridas, mais hesitantes do que se imagina quando consideradas de fora”, pois “[...] mesmo na mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras. Mesmo no novo homem, permanecem vestígios do homem velho.” (BACHELARD, 1996, p. 10). Por isso, há a tendência de todo espírito se ater a determinadas explicações que são o reflexo da apreensão da realidade em sua completude, sejam elas produzidas pelas experiências primeiras em ligação direta com o reino dos fatos, seja pela apreensão da realidade pelos princípios gerais universais, presos ao reino da razão. Dessa maneira, “[...] nenhum espírito pode intitular-se científico, se não for capaz reconstruir todo o próprio saber, possível somente pelo eixo racional [pois a] paciência científica” é racional, porém uma razão aberta, em oposição à erudição fechada em si mesma; é capaz de reconstruir e não somente de reproduzir o acumulado, sendo essa reconstrução de caráter dialético e social, seguindo claramente o “vetor epistemológico” que vai do racional ao real (BACHELARD, 1996, p. 10).

Os três estados da alma, nos quais se revela ou não a “paciência científica”, são para Bachelard (1996, p. 12): o “[...] estado da alma pueril e mundana”, em que predomina a curiosidade ingênua e o assombro diante dos fenômenos instrumentalizados, no qual o espírito se distrai brincando com a física, sendo a alma “[...] passiva até na felicidade de pensar.” Tal estado da alma, em que o interesse é satisfazer a curiosidade ingênua, por meio do conhecimento da realidade primeira, anima o pensamento concreto e sua pedagogia; não se pode falar em “paciência científica”, já que não há interesse em pesquisas, mas, sim, em testar e revelar evidências por meio de instrumentos, estes ganhando mais notoriedade já que revelam os fenômenos em sua essência. Assim, segundo Bachelard (1978, p. 15), cria-se a conduta da medição e da pesagem na qual somente é possível pensar aquilo que se pode medir e pesar.

O “estado da alma professoral”, por sua vez, cuidadoso com seu dogmatismo, permanece imóvel na sua primeira abstração, repete ano após ano os seus saberes, impõe suas demonstrações, centrada no interesse dedutivo “sustentáculo tão cômodo da autoridade” (BACHELARD, 1996, p. 12), fixa-se perenemente nos êxitos da juventude. A alma professoral está alinhada ao “estado abstrato-concreto”, pois faz uma tentativa primeira de abstração, porém se prende de modo perene a ela, de modo a garantir sua segurança e autoridade, por isso sua pedagogia se limita a repetir dedutivamente e jamais duvidar para retificar. A paciência, nesse caso, está mais para a erudição científica, pois se reduz ao interesse de repetir dedutivamente, ou seja, a partir das leis gerais já estabelecidas, o espírito reconforta-se em aplicá-las a mais e mais casos particulares, jamais interferindo na lei geral, pois seria desestabilizar o saber já produzido. Dessa maneira, mais vale ensinar a relação entre o “conceito e a balança” por meio de uma “objetividade instrumental” em que o “o instrumento precede a teoria” e os conceitos empíricos, que apesar de mal compreendidos, estão organizados de forma a garantir uma segurança pragmática, por isso, fáceis de ensinar e de aprender (BACHELARD, 1979, p. 15).

Já o “[...] estado da alma com dificuldade de abstrair e de chegar à quintessência” é a consciência científica dolorosa, que “[...] entregue aos interesses indutivos sempre imperfeitos, no arriscado jogo do pensamento sem suporte experimental” (BACHELARD, 1996, p. 13), é desacomodada pelas objeções da razão, colocando em dúvida o direito de abstrair, porém é seguro que a “abstração é um dever, o dever científico”. A consciência científica dolorosa se manifesta no “estado abstrato”, no qual por força de uma vontade autônoma a dúvida científica é recolocada permanentemente, a fim de pensar o impensado, a partir do já pensado, retificando-o. Desse modo, reconhece que a dúvida é um movimento arriscado, já que trabalha com o desconhecido, porém não é ingênua, pois sabe que o dado não existe em si mesmo, mas é construído, é um projeto forjado pela “paciência científica”, já que todo saber científico deve ser constantemente reconstruído.

Aqui a “paciência científica” ganha sua expressão máxima, por reconhecer que tudo o que é fácil de ensinar é inexato, e como tal, desafia quem ensina e quem aprende, já que inverte a “dialética prematura”, ou seja, deixa de operar sobre as coisas para operar a partir de axiomas, em que a experiência deixa de ser a legitimadora de toda e qualquer teoria (BACHELARD, 1979, p. 13-15). A teoria é que passa a legitimar toda e qualquer experiência, que não se satisfaz com a manipulação das coisas, quer manipular as leis e seu processo de produção. Para tanto, é necessário reconhecer que fazer ciência é atacar a ciência já constituída por meio de um esforço de reorganização teórica, no qual primeiro se prepara o fenômeno teoricamente para depois produzi-lo (BACHELARD, 1979, p. 19-20). Assim, produz-se uma dialética madura, na qual o problema é preciso apesar de desconhecida a sua aplicação, em que se prepara o terreno para a descoberta e a experiência faz sentido, pois seu resultado já era esperado, fazendo sentido o racionalismo aberto e dialético.

Explicitadas tais diferenças, ao mesmo tempo grandiosas e sutis, que animam o espírito científico, Bachelard (1996, p. 13) coloca a si mesmo a pergunta: “[...] conseguiremos a convergência de interesses tão opostos?” e, imediatamente, responde afirmando que a filosofia científica tem uma tarefa muito nítida, que é “[...] psicanalisar o interesse, derrubar qualquer utilitarismo por mais disfarçado que seja, por mais elevado que se julgue, voltar o espírito do real para o artificial, do natural para o humano, da representação para a abstração”, fazendo necessário, dessa forma, explicitar o que é e quais são os “obstáculos epistemológicos” que entravam a realização do espírito científico naquilo que ele tem de mais frutífero, pensar o impensado, e isso implica compreender seu processo formativo.

Buscar as condições psicológicas do progresso científico é, na visão bachelardiana (1996, p. 17), reconhecer que “[...] é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado” e que tais obstáculos não são meramente objetivos (complexidade e fugacidade) ou subjetivos (fragilidade dos sentidos e do espírito humano), mas que eles são intrínsecos ao ato de conhecer e se mostram como uma “espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos”, isto é, fazem parte do ato de conhecer como uma condição obrigatória prática, vagarosa e conturbada, na qual residem as causas da imobilidade e até do retrocesso, as quais são denominadas de “obstáculos epistemológicos”. Desse modo, os obstáculos epistemológicos são parte integrante do ato de conhecer e, por consequência, “[...] o conhecimento do real é sempre luz que projeta algumas sombras” (BACHELARD, 1996, p. 17), o que implica reconhecer que o ímpeto natural de conhecer não é alcançado em sua plenitude, pois é um processo sempre parcial e imperfeito que trata do contingente e que, por ser empírico, na sua primeira aproximação, torna-se claro depois, quando apoiado por um conjunto de argumentos. A história é reveladora de tais equívocos e reforça a tese bachelardiana (1996, p. 17) de que o ato de conhecer é destruidor e retificador; nas suas palavras: “[...] o ato de conhecer se dá contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização”; assim o sujeito que conhece, ao mesmo tempo em que reconstrói e retifica o seu conhecimento do mundo, reconstrói as próprias estruturas e as condições que lhe permitem conhecer. Eis o seu processo formativo em ação.

Aceitar a retificação e a reconstrução como inerentes ao progresso científico implica opor-se à tese de que o ato de conhecer parte do zero, já que não tratamos de culturas de simples justaposição, nas quais vigora a “paciência erudita”, mas de cultura científica, em que se reconhece que é impossível eliminar todos os conhecimentos habituais, e ao mesmo tempo, que aquilo que cremos saber com clareza impede que vejamos o que deveríamos saber. Desse modo, o espírito que produz cultura científica é modificado por ela, nunca é jovem, mas idoso e a sua idade é a idade dos seus preconceitos, assim “[...] aceder à ciência é rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o passado” (BACHELARD, 1996, p. 18), isto é, adentrar na cultura científica significa, de um lado, remoçar, revigorar, mas, por outro, negar, contradizer as certezas. Tal movimento implica reaprender em uma dupla dimensão, ou seja, tanto de conteúdo quanto de método, e, por isso, é necessária uma nova pedagogia que ajude a reconstruir com novo vigor.

O primeiro obstáculo a ser superado, em direção à cultura científica, é a opinião, pois ela “[...] pensa mal; não pensa: traduz a necessidade em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los” (BACHELARD, 1996, p. 18), por isso o primeiro passo é destruí-la. Não basta remodelá-la, pois compreender cientificamente significa se abster de opinar a respeito de questões que não consigamos formular claramente. Tal posicionamento acarreta que adentrar na cultura científica exige uma atitude primeira, que é saber formular problemas, o que não acontece de forma espontânea e, por isso, precisa de aprendizagem. Na visão de Bachelard (1996, p. 18), “[...] para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído.”

Assim, a primeira atitude a ser aprendida é formular perguntas científicas, sendo esta a primeira ação do espírito que lhe permite a superação da “alma pueril e mundana” e sair do “estado concreto”, superar o realismo ingênuo, reino das opiniões. Colocar um problema por meio da dúvida científica e formulá-lo por meio da pergunta, eis a primeira e mais importante aprendizagem. Por quê? Porque colocar um problema significa formulá-lo, criá-lo, projetá-lo, percebê-lo além daquilo que está dado; significa duvidar das explicações e compreensões dadas até então e lançar-se na sua retificação.

Entretanto, não é qualquer pergunta que provoca tal movimento, pois a “[...] pergunta abstrata e fraca se desgasta: a resposta concreta fica” (BACHELARD, 1996, p. 18), causando a inversão da atividade espiritual e a instalação de um obstáculo epistemológico no conhecimento não questionado. Quando os hábitos intelectuais saudáveis entravam a pesquisa? Quando a ideia se torna clara por si mesma, ou seja, paramos de questioná-la e passamos a reafirmá-la constantemente, assim o instinto formativo dá lugar ao instinto conservativo, e o “[...] espírito prefere o que confirma seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta mais de respostas do que de perguntas.” (BACHELARD, 1996, p. 19). Da “alma pueril e mundana” passou-se à “alma professoral”, na qual se prefere a repetição, a paciência erudita; em que a tentativa de abstração fez sua aparição, mas cessou e se resguardou; perdeu seu vetor de abstração. Nos termos bachelardianos (1996, p. 20), tem-se uma “cabeça bem feita”, porém ela é “infelizmente uma cabeça fechada”.

Todavia, as crises e rupturas da evolução do pensamento estão acontecendo e acarretam a necessidade de reorganização integral do sistema de saber. As crises de crescimento fazem uma exigência ao homem, que consiste na necessidade de se refazer constantemente. Nas palavras de Bachelard (1996, p. 20), é preciso ser “mutante”, assumir a condição da mudança como uma característica, que negada se torna sofrimento, mas se vivida permite uma cabeça bem feita e aberta. Aliado a tais aspectos está o erro em considerar que a ciência é a busca da unidade e da simplicidade. O progresso científico está justamente em abandonar tal busca, pois ela facilmente conduz à contemplação. O grande avanço está em mostrar as suas variações, “[...] sair da contemplação do mesmo para buscar o outro, para dialetizar a experiência.” (BACHELARD, 1996, p. 21). É assim que o pensamento se torna inquieto, desconfia, exige mais precisão, cria novos espaços para distinguir, diversificar, retificar, é assim que coloca em movimento sua “consciência científica”, seu desejo de saber acompanhado de sua capacidade de perguntar: o “[...] homem movido pelo espírito científico deseja saber, mas para, imediatamente questionar.” (BACHELARD, 1996, p. 21). Tal postura abre espaço para a alma com dificuldade de abstração, já que ciente de sua incompletude e da dificuldade de trabalhar sempre com o desconhecido, mas este é o primeiro passo para chegar ao “estado abstrato”, de colocação de problemas, de construção do real e do dado, de proposição de novas experiências, que é o estado de compreensão científica.

Pensar o crescimento do espírito científico em termos de obstáculos epistemológicos pode ser útil, segundo Bachelard (1996, p. 21), para a história e para a educação. Nos limites do presente artigo nos detivemos a analisar suas implicações para a educação, mais especificamente para a docência universitária, o que apresentamos a seguir.

4 CONCLUSÃO: AS IMPLICAÇÕES DA EPISTEMOLOGIA BACHELARDIANA PARA (RE)PENSAR ALGUNS DESAFIOS DA DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA

A educação desconhece o conceito de obstáculo epistemológico, afirma Bachelard (1996, p. 23), surpreendendo-se “[...] que os professores de ciências, mais do que os outros se possível fosse, não compreendam que alguém não compreenda”, o que revela que poucos compreendem a origem e o processo do erro, da ignorância e da irreflexão. Assim, os professores consideram que o desenvolvimento do espírito inicia com uma aula, quando pela repetição da lição é possível suprir as lacunas de uma cultura falha, e que se entende uma demonstração realizando-a passo a passo. Desconsideram que os estudantes possuem uma grande bagagem de conhecimentos empíricos já organizados, e que, por isso, não se trata da simples aquisição de uma cultura experimental, mas, sim, de reconstruir, retificar e “[...] derrubar os obstáculos epistemológicos já sedimentados pela vida cotidiana.” (BACHELARD, 1996, p. 23). Para que seja possível construir uma nova compreensão, primeiro é necessário criticar e desfazer a teia de intuições primeiras, de conhecimentos empíricos, que pela sua segurança e simplicidade, impedem a compreensão racional das leis científicas. Eis o primeiro desafio para a docência universitária, ou seja, derrubar os obstáculos epistemológicos adquiridos e cultivados desde a mais tenra idade, o que implica levar os sujeitos da aprendizagem a se atentarem de quão limitadas e ingênuas são suas compreensões de mundo, e que, se não reconstruídas, serão obstáculos para a compreensão científica.

Se os docentes desconsiderarem a psicanálise dos erros iniciais, então, continuarão a não compreender por que os estudantes não compreendem e a desconsiderar a importância do “erro epistemológico”, do erro do espírito, que faz os seus primeiros movimentos em direção à ruptura de um saber já estabelecido. A cultura científica se estabelece quando a cultura empírica é derrubada, e o seu início está na “catarse intelectual e afetiva” e não na justaposição instrumental. A tarefa mais difícil, segundo Bachelard (1996, p. 24), é “[...] colocar a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico, dialetizar todas as variáveis experimentais, oferecer enfim à razão razões para evoluir.”

Todavia, se o educador continuar preso em sua “alma professoral”, em seu “estado abstrato-concreto”, não conseguindo dialetizar o seu próprio conhecimento, como proporcionará tal movimento aos estudantes? Trata-se, aqui, de uma variável muito simples, ninguém ensina aquilo que não sabe; as nossas práticas são reveladoras do modo como compreendemos. Desse modo, ou compreende-se epistemologicamente a cultura científica na sua dialética, isto é, conhecimento como aberto e dinâmico, ou se limitará a reproduzir o conhecimento estático e fechado. Bachelard (1996, p. 24) denuncia tal situação falando de sua experiência como docente: “[...] no decurso de minha longa e variada carreira, nunca vi um educador mudar de método pedagógico. O educador não tem o senso de fracasso justamente porque se acha um mestre. Quem ensina manda. Daí a torrente de instintos.”

Tal constatação revela que se o educador não compreender a si mesmo como um espírito científico em formação, então, sua ação tende a ser meramente instintiva e reprodutiva de suas primeiras abstrações. Ele não se dá conta de como opera enquanto sujeito que produz conhecimento, e que há variáveis que interferem no modo como se relaciona com a cultura científica. Assim, sua epistemologia docente reduz-se a um dos lados do dualismo, realista-empirista ou racionalista-apriorista, desconsiderando o vetor epistemológico da produção do conhecimento. Eis o segundo desafio para a docência, ou seja, o docente precisa compreender como ele produz conhecimento e a forma como se relaciona com a cultura científica.

Se o professor, que deveria mobilizar permanentemente a sua cultura científica e a de outros, não a compreender epistemologicamente, então, como conseguirá conduzir os estudantes na direção da construção de uma consciência epistemológica crítica? Se o professor não faz movimentos em direção ao aperfeiçoamento do seu espírito científico, então, pouco se pode esperar que faça em relação aos outros espíritos. Se o professor não compreender o processo de formação do espírito científico, nos termos de rupturas, erros e obstáculos epistemológicos, então, a sua ação pedagógica tenderá sempre a um dos extremos, isto é, ou sua docência estará amparada em uma epistemologia realista, que vê o racionalismo (teoria e os axiomas) como um obstáculo, ou em uma epistemologia racionalista, que vê o realismo (experiência de vida, as demonstrações práticas, a cultura geral) como um obstáculo.

Assim, reafirmaria a epistemologia do “ou...ou” ao invés da epistemologia do “e”; nesta última residiria a formação dialética do espírito científico. Ancorar a docência na epistemologia do racionalismo aplicado, isto é, em uma pedagogia que conduzirá a formação do espírito científico seguindo o vetor epistemológico do racional para o real, em que as impressões primeiras são indagadas cientificamente por meio de teorias e axiomas, para posteriormente retornar a elas e retificá-las, implica reconhecer: que toda pedagogia é uma epistemologia e vice-versa, na qual a consciência de saber é revelada pelo ato de ensinar e que a riqueza das novas ideias não está no trabalho consensual, mas de sua inserção em um processo dialógico de corroboração de sua coerência e retificação de saberes anteriores.

Contudo, a compreensão científica, a dúvida científica e o olhar científico precisam ser ensinados para o espírito que compreende inicialmente com a “alma mundana e pueril”, que, no “estado concreto”, perde-se em deslumbramentos ingênuos e na objetividade instrumental; após desmontar os erros iniciais da compreensão primeira, surge a possibilidade das primeiras abstrações que ainda não se libertarão por completo do mundo concreto, precisando dele para compreender como as coisas funcionam. Porém, o perigo reside na permanência de pequenas abstrações vagas e imprecisas, que, por colocar perguntas fracas e a elas dar uma resposta concreta satisfatória, tende a deter-se na resposta, e, assim, o espírito científico em formação professará a resposta concreta como a verdade científica, imitando o mestre, que também não superou tal estado de compreensão. Eis o terceiro desafio para a docência, pois se o professor der por encerrada a sua tarefa pedagógica nesse nível de desenvolvimento do espírito científico, substituirá as descobertas por aulas e promoverá a “paciência erudita” ao invés da “paciência científica” e estará instrumentalizando em vez de contribuir para a autoformação do sujeito.

Porém, segundo Bachelard (1996, p. 303), há algo que pode ajudar a escapar da negligência intelectual que arrefece a novidade espiritual que é “[...] o ensino das descobertas ao longo da história científica, [pois] para ensinar o aluno a inventar, é bom mostrar-lhe que ele pode descobrir”, e que descobrindo pode se dar conta de que errar não é um mal, mas uma oportunidade de aprendizagem; o erro é positivo, normal e útil quando consequência de um interesse, de uma possibilidade de racionalização, já que a evolução do espírito é a retificação de seus erros pessoais e “[...] não há verdade sem erro retificado.” (BACHELARD, 1996, p. 293). Desse modo, o erro é visto como uma etapa na superação dos obstáculos epistemológicos subjetivos e objetivos, e os professores, mestres e doutores de espírito científico bem desenvolvido serão capazes de aproveitá-lo como oportunidade de retificação de saberes em direção à compreensão científica. Desse modo, substitui-se a erudição instrumentalizada pela autoformação, já que para que aconteça o processo formativo do espírito científico este precisa se reconstruir. Tal aprendizagem é salutar tanto para o espírito científico do estudante quanto para o professor. Eis o quarto desafio para a docência, que consiste em provocar o erro e dar condições de superação, pois nesse processo consiste o movimento de reconstrução de si, de autoformação.

Os quatro desafios para a docência universitária apontados aqui a partir da epistemologia bacherlardiana implicam, ao nosso ver, o reconhecimento da docência universitária e da educação superior como autoformação do espírito científico. Assim, ao docente caberia uma dupla responsabilidade: autoformar-se cientificamente e contribuir para a autoformação dos estudantes, o que acarreta a explicitação epistemológico-pedagógica do modo como compreende a produção do conhecimento científico e do modo como ensina. Sem esse duplo movimento, a docência, assim como a epistemologia, corre o risco de ancorar-se ou no realismo imediato ou no racionalismo absoluto, desconsiderando que é na dialética entre ambos, ou seja, por meio do racionalismo aplicado, que ocorre a construção do conhecimento científico e a autoformação do espírito científico, pois assim seria possível superar os obstáculos epistemológicos que são inerentes a todo sujeito que se engaja na tarefa de aprender. Porém, a superação dos obstáculos não acontece sem o erro epistemológico e sua reconstrução, mas para isso é necessário que o vetor epistemológico do processo de aprendizagem siga a direção do racional para o real, ou seja, que as teorias e os axiomas permitam a compreensão crítica da experiência de vida, das demonstrações práticas, da cultura geral ou das experiências, de modo a não simplesmente explicar, mas criar novas possibilidades de compreensão e ação. No entanto, tal processo não acontece se o sujeito, que aprende e que ensina, não reconstruir a si mesmo.

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 09 de agosto de 2016

Aceito em: 07 de dezembro de 2016

Endereço para correspondência: Rodovia BR 285, Km 292,7, São José, 99052-900, Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil; altairfavero@gmail.com

Roteiro, Joaçaba, v. 42, n. 1, p. 155-172, jan./abr. 2017 | E-ISSN 2177-6059


1 Pós-Doutor pela Universidad Autónoma del Estado de México; Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

2 Mestre e doutoranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo.

3 A gramática da língua portuguesa traz que as conjunções podem ser classificadas em coordenativas e subordinativas. Dentre as coordenativas, em que os elementos ligados pela conjunção podem ser separados entre si, estão as: conjunções coordenativas aditivas, que ligam expressões ou palavras expressando ideia de acréscimo ou adição; dentre elas está o “e”; e as conjunções coordenativas alternativas, que ligam orações ou palavras, expressando a ideia de alternância ou escolha, indicando fatos que acontecem separadamente, dentre elas está o “ou...ou”.

4 A inclinação de Bachelard pela física e pela matemática, como modelos epistemológicos, já foi explicitada na seção anterior do presente artigo.