https://doi.org/10.18593/ejjl.35945

A imutabilidade do papel da lógica no direito na Teoria de Hans Kelsen

The continuity of the role of logic in law in Hans Kelsen’s theory

Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno1

Resumo: Este trabalho procurar analisar detalhadamente as posições que Kelsen defendeu em diferentes trabalhos sobre o papel da lógica no direito. Ele começa identificando as fases da obra de Kelsen em geral e as supostas características da última fase, a denominada “doutrina tardia” (Spätlehre). Mostra-se que geralmente são apontadas três mudanças radicais na última fase do pensamento de Kelsen: a suposta mudança na teoria da interpretação, a suposta mudança na doutrina da norma fundamental e a suposta mudança do papel da lógica no direito. Após isso o trabalho se concentra na terceira suposta mudança radical. Ele combate a interpretação tradicional e majoritária e defende duas novas teses. A primeira tese afirma que, (i) ao contrário do que defende a interpretação majoritária, não há mudanças substanciais no papel que Kelsen atribuiu à lógica no direito ao longo de suas obras de teoria do direito. Defende-se que essa ausência de mudanças substanciais se mantém, ao contrário do que afirma a grande maioria dos intérpretes de Kelsen, na última fase da obra de Kelsen, a doutrina tardia. Assim, consequentemente, defende-se não haver uma mudança sobre o tema na obra póstuma de Kelsen sobre teoria do direito, a Teoria Geras das Normas. A segunda tese defende que (ii) aquela que a maioria dos intérpretes de Kelsen considera a posição habitual de Kelsen sobre o tema da aplicabilidade da lógica do ao direito, ou seja, a defesa, na segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), da aplicabilidade indireta da lógica às normas jurídicas por via de sua aplicação direta às proposições jurídicas, é, na verdade, a posição dissonante de Kelsen em relação às demais partes de sua obra, inclusive outras partes da própria segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960). Assim, o trabalho defende a existência, na segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), de duas posições incompatíveis defendidas pelo próprio Kelsen sobre o papel da lógica no direito, e que uma dessas passagens, que a interpretação tradicional considera a única passagem sobre o papel da lógica no direito nessa obra, é, na verdade, a passagem discrepante na obra de Kelsen sobre o tema. Contudo, argumenta-se que essa discrepância, que se encontra na segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960) e não Teoria Geral das Normas, não constitui, de modo algum, uma ruptura no projeto kelseniano de desenvolvimento de uma teoria jurídico-normativa de base kantiana, ou seja, de uma Teoria Pura do Direito.

Palavras-chave: lógica; direito; Kelsen; teoria pura do direito.

Abstract: This paper tries to analyse in detail the arguably different positions that Hans Kelsen has defended in his professional career about the role of logic in law. It begins by identifying the different phases of Kelsen’s legal-theoretical work, the Pure Theory of Law, and particularly the main features of the last phase, the so-called late doctrine (Spätlehre). It shows that most interpreters affirm a radical change in the late doctrine and that the radical change would be represented by dramatic changes in three of Kelsen’s fundamental theories: the argued change in the theory of legal interpretation, the argued change in the doctrine of the basic norm and the argued change about the role of logic in law. Then, the paper focuses on the third topic, the role of logic in law. It challenges the traditional and majoritarian view according to which Kelsen would have made a radical change in his thought and places two new theses: the first thesis affirms that, (i) contrary to the majoritarian view, there is continuity regarding the role that logic plays in law along the legal works of Kelsen. It is also argued that this continuity is not broken, as many suggest, in Kelsen’s late doctrine, and therefore not in the posthumous work General Theory of Norms (1979). The second thesis affirms that (ii) the position considered by the majority of the interprets as Kelsen’s habitual position on the role of logic in law, that is, his defence of the indirect applicability of logic to legal norms through its direct applicability to legal propositions, which was developed in the second edition of the Pure Theory of Law (1960), is indeed the dissonant passage of Kelsen’s works regarding this topic. Yet, it is argued that this small discrepancy does not mean at all a rupture in Kelsen’s project of developing a legal-normative theory on Kantian basis, that is, does not mean abandoning the development of a Pure Theory of Law.

Keywords: logic; law; Kelsen; pure theory of law.

Recebido em 06 de setembro de 2024

Avaliado em 25 de novembro de 2024 (AVALIADOR A)

Avaliado em 25 de novembro de 2024 (AVALIADOR B)

Aceito em 25 de novembro de 2024

Introdução

A teoria jurídico-normativa de Kelsen, também conhecida como “Teoria Pura do Direito”, foi desenvolvida através de um longo período. O desenvolvimento começou com a tese de habilitação de Kelsen, Principais Problemas da Teoria Jurídica do Estado – Desenvolvidos com Base na Teoria da Proposição Jurídica (Kelsen, 1923),2 publicada em 1911, tendo durado até meados dos anos 1960, que foi o momento até o qual Kelsen trabalhou ativamente.

É importante ressaltar que os argumentos e teses da fase final do desenvolvimento da teoria de Kelsen, a denominada “doutrina tardia” (Spätlehre), foram parcialmente publicados enquanto Kelsen ainda estava vivo. Quando se toma o período entre a segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960) e a morte de Kelsen (1973), percebe-se, por um lado, que vários trabalhos produzidos por Kelsen nesse período foram publicados antes de sua morte, em alguns casos após 1965,3 o que, porém, naturalmente, não significa que Kelsen tenha trabalhado ativamente até o momento de sua morte.4 Por outro lado, percebe-se que, após a morte de Kelsen, vários trabalhos de sua autoria foram publicados, entre eles a Teoria Geral das Normas, que foi organizada e publicada em 1979 pelo Instituto Hans Kelsen.

Segundo vários intérpretes da teoria de Kelsen, a segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960) teria marcado o término da penúltima fase de sua teoria jurídica (a Teoria Pura do Direito) e o começo da última fase, que, como já ressaltado, é por alguns denominada “doutrina tardia” (Spätlehre). Grande parte desses intérpretes entende que na doutrina tardia teria havido inúmeras mudanças significativas. Uma dessas mudanças diz respeito ao papel da lógica no direito. Constitui objetivo deste artigo investigar as supostas mudanças que Kelsen teria atribuído ao papel da lógica no direito, sobretudo na fase final de seu pensamento.

Para realizar a investigação proposta será trilhado o seguinte caminho: na segunda seção, será abordada a periodização da obra de Kelsen e será apresentada uma tentativa de delimitação temática da doutrina tardia. Após isso, na terceira seção, será apresentada a visão dominante sobre o papel da lógica no direito na obra de Kelsen. Essa visão afirma que Kelsen teria realizado, na doutrina tardia, mudanças significativas na sua teoria sobre o papel da lógica no direito. Na quarta seção será realizada uma análise detalhada do papel da lógica no direito ao longo das obras de Kelsen. Na quinta seção apresento uma tese nova, que se desvia da tese ortodoxa sobre as supostas mudanças que Kelsen teria realizado, em sua doutrina tardia, no papel da lógica no direito. Essa tese afirma que, na segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), Kelsen defende duas posições sobre o papel da lógica no direito que são incompatíveis entre si. Com base na análise realizada no trabalho apresentarei uma outra tese, que até onde sei também é inédita: não há, na teoria jurídica de Kelsen, ou seja, na Teoria Pura do Direito de Kelsen, ruptura no que diz respeito ao papel da lógica no direito, prevalecendo antes, em relação a esse tema, uma continuidade, que é violada apenas por uma passagem desviante da segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), e não pela Teoria Geral das Normas (1979), como afirma a interpretação dominante. Em minha visão, essa passagem desviante presente na segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960) não ameaça, porém, a continuidade da Teoria Pura do Direito, constituindo apenas uma pequena dissonância presente nessa teoria.

1 As fases da Teoria Pura do Direito e o Suposto Abandono do Projeto Kantiano na Doutrina Tardia (Spätlehre) de Kelsen

Como já ressaltei em outro lugar, não existem muitos estudos sobre a periodização das obras de Kelsen, e as principais propostas de periodizações existentes chegam a diferentes conclusões (Trivisonno, 2024, p. 90).5

As primeiras propostas de periodização dos trabalhos de Kelsen foram os trabalhos de Losano (Losano, 1966), Schild (1971) e Kubeš (cf. Paulson, 1990). Em 1990, Paulson publicou um artigo especialmente dedicado à periodização das obras de Kelsen (Paulson, 1990), esboçando aquela que pode, a meu ver, ser denominada “primeira periodização das obras de Kelsen, de Stanley L. Paulson” (cf. Trivisonno, 2024, p. 93 s.). No mesmo ano, Bulygin sugeriu, no contexto da abordagem de uma suposta antinomia no pensamento de Kelsen, uma periodização da Teoria Pura do Direito (Bulygin, 1990).6 Em 1997, Heidemann apresentou, no âmbito de seu estudo sobre o conceito de norma jurídica em Kelsen, uma nova proposta de periodização da teoria de Kelsen (Heidemann, 1997). A periodização de Heidemann foi objeto de um estudo crítico de Paulson (Paulson, 1998), que contém aquela que, a meu ver, pode ser considerada a “segunda periodização das obras de Kelsen, de Stanley L. Paulson” (Trivisonno, 2024, p. 108 s).7

Neste trabalho, não analisarei em detalhes as diversas periodizações da obra de Kelsen.8 Partirei da segunda periodização de Paulson, apresentarei minha posição em relação a ela e procurarei, nesse contexto, delimitar os temas e o período da denominada “doutrina tardia” de Kelsen. Vejamos.

Em sua segunda periodização, Paulson afirma existirem três fases no pensamento de Kelsen. A primeira fase, “construtivista”, começaria em 1911 e seria seguida por uma fase de transição, que iria de 1913 a 1922. A segunda fase, que Paulson denomina “clássica”, iria de 1922 a 1960, sendo, porém, dividida em duas subfases: um período neokantiano, de 1922 a 1935, e um período híbrido, de 1935 a 1960, ou seja, um período em que as influências neokantianas são misturadas com outros elementos. Segundo Paulson, a razão para se dividir o longo período clássico em dois períodos ao invés de se introduzir uma nova fase na periodização é que a grande continuidade da longa fase é perdida a menos que seus dois períodos sejam vistos como parte de um todo maior. A terceira e última fase, denominada “cética”, começaria em 1960 e seria marcada, segundo Paulson, por um abandono do neokantismo e até mesmo do projeto kelseniano de desenvolvimento de uma Teoria Pura do Direito. (Paulson, 1999, p. 353; Paulson, 2013, p. 17). Em síntese, para Paulson, as fases do pensamento de Kelsen são as seguintes:

Quadro 1 – Fases do Pensamento de Kelsen

2ª Periodização de Paulson (1998)

1a fase - Construtivista

1911-1913

2a fase - Clássica

Período de transição -1920-1930

Neokantiana -

1930-1960

Híbrida -

1935-1960

4a fase - Cética

1960 em diante

Fonte: o autor.

A fase que Paulson denomina cética em sua segunda periodização, e que começa, em 1960, após a segunda edição da Teoria Pura do Direito, geralmente é também denominada “doutrina tardia” de Kelsen. Essa doutrina seria caracterizada, segundo Paulson e outros autores, por uma ruptura no pensamento kelseniano. A ruptura ocorreria porque teria havido, segundo a maioria dos intérpretes, mudanças radicais em três pontos fundamentais do pensamento de Kelsen: a teoria da norma fundamental, a teoria da interpretação e o papel da lógica no direito.

A mudança na teoria da intepretação teria ocorrido antes de 1960 e consequentemente antes da segunda edição da Teoria Pura do Direito, enquanto tanto a mudança na teoria da norma fundamental quanto a mudança sobre o papel da lógica no direito teriam ocorrido após 1960. Vejamos.

Segundo Paulson, mesmo antes da segunda edição da Teoria Pura do Direito, mais precisamente em 1951, no Prefácio da obra O Direito das Nações Unidas (The Law of the United Nations), Kelsen já teria alterado sua teoria da interpretação (Kelsen, 1951). A razão disso seria que Kelsen teria passado, nessa obra, a defender que interpretações realizadas por parte de órgãos aplicadores do direito seriam válidas mesmo quando estão fora da moldura das interpretações possíveis, desde que se confirmadas pela última instância decisória (Kelsen, 1951, p xiii ss.). Como procurei mostrar em outro lugar, apesar de a interpretação majoritária defender ter havido uma mudança radical no pensamento de Kelsen sobre a interpretação jurídica, a meu ver não há, aqui, sequer mudança (cf. Travessoni Gomes Trivisonno, 2024, p. 150-161; Travessoni Gomes Trivisonno 2024a)

No que diz respeito à norma fundamental, a alegação, também amplamente difundida, é a de que Kelsen teria abandonado um argumento kantiano da norma fundamental como hipótese no sentido de Cohen para adotar uma suposta “ideia duvidosa” da norma fundamental como ficção no sentido da filosofia do como se de Vaihinger. Essa interpretação teria suporte nos textos do próprio Kelsen que, de fato, a partir de 1962, começa a afirmar tanto que a norma fundamental é uma ficção quanto que estaria abandonando sua antiga doutrina. Porém, também no caso da norma fundamental, como também procurei demonstrar em outro lugar, não só não há mudança radical como não há qualquer mudança significativa, tendo havido apenas uma mudança de terminologia (Trivisonno, 2021).

Uma vez constatado que a doutrina tardia de Kelsen seria caracterizada por essas três supostas mudanças radicais na Teoria Pura do Direito e uma vez mencionadas resumidamente as características das supostas mudanças tanto na teoria da interpretação de Kelsen quanto em sua teoria da norma fundamental, cabe agora passar ao tema central deste artigo: as supostas mudanças que Kelsen teria realizado, na doutrina tardia, no papel da lógica no direito. Também nesse caso, como veremos, não há mudança radical, mas antes continuidade.

2 A Opinião Dominante: A Suposta Mudança Radical no Papel da Lógica no Direito na Doutrina Tardia de Kelsen

Grande parte dos intérpretes de Kelsen avalia a doutrina tardia de forma negativa, pois ela constituiria uma ruptura ou abandono do projeto kelseniano de construção de uma Teoria Pura do Direito no sentido de Kant. Não é por outro motivo que, como vimos, Paulson, em sua segunda periodização das obras de Kelsen, denomina a última fase como cética (Paulson, 1998, p. 161).

Quais são as mudanças referentes ao papel da lógica no direito que teriam ocorrido entre a penúltima e a última fase da Teoria Pura do Direito de Kelsen, ou seja, entre a fase que Paulson denomina “clássica ou neokantiana” e “cética” (ou doutrina tardia)? Consideremos as tese e argumentos de alguns autores que se ocuparam desse tema.

Um dos primeiros autores que criticou as mudanças da doutrina tardia de forma veemente foi Ota Weinberger. Ele sugere que, especialmente na Teoria Geral das Normas, em virtude da suposta nova posição que nega a aplicabilidade da lógica ao direito, teria havido um giro em direção ao irracionalismo:

O livro ‘Teoria Geral das Normas’ como um todo se destina a provar a irracionalidade das normas. Por isso, a argumentação contra a possibilidade de uma lógica das normas não é disposta, por Kelsen, em um sumário organizado, encontrando-se antes espalhadas em todo o texto do livro afirmações que dizem respeito a esse tema.

Como irracionalismo normativo eu designo a concepção de que entre normas (bem como entre proposições normativas) não podem existir quaisquer relações lógicas, especialmente quaisquer contradições lógicas (ou seja, qualquer inconsistência) e que não podem existir quaisquer operações de dedução lógica com elementos normativos (Weinberger, 1981, p. 94; tradução minha). 9

Mario Losano também vê a “nova” posição de Kelsen sobre o papel da lógica como sinal de irracionalidade na Teoria Geral das Normas de Kelsen:

Kelsen iniciou, assim, uma progressiva revisão de suas concepções, o que culminou com a negação da aplicabilidade ao direito de qualquer princípio lógico. Essa aceitação do irracionalismo jurídico […] é a orientação intelectual que caracteriza a Teoria Geral das Normas (Losano, 1985, p. 59; tradução minha).10

Assim como Weinberger, Losano compreende irracionalismo como a suposta virada de direção que Kelsen teria iniciado com seu artigo de 1965, Direito e Lógica. Nesse trabalho, Kelsen afirma que o princípio de não-contradição e as regras de conclusão de raciocínio não são aplicáveis ao direito e que os argumentos per analogiam e a maiore ad minus não são argumentos de uma lógica jurídica (Losano, 1985, p. 59).

Outro autor que vê as mudanças na doutrina tardia de forma extremamente crítica é Duxbury:

As dúvidas que ele tinha sobre seu próprio projeto jurídico-científico não eram pequenas. É conhecido entre filósofos do direito o fato de que Kelsen, em seus anos finais, realizou duas alterações radicais na teoria pura. Em primeiro lugar, após ter defendido durante grande parte de sua vida que normas em conflito não podem ser simultaneamente válidas, nos anos 1960 ele mudou de ideia e começou a defender que embora a lógica não possa resolver o problema de normas válidas conflitantes, a existência e validade, em um mesmo sistema jurídico, de normas conflitantes, é perfeitamente concebível. A conclusão final de Kelsen sobre a questão das normas conflitantes é completamente inconvincente; como afirma Joseph Raz, um exercício de lógica maluca, em que uma lei válida dentro de um sistema jurídico poderia determinar a prática de uma ação e outra lei válida poderia proibir a mesma ação. Porém, é possível, a partir de alguns de seus últimos escritos, perceber como ele chegou a essa conclusão. Contudo, não se pode encontrar um uma explicação clara para a segunda mudança radical em sua teoria – sua mudança de opinião sobre a norma fundamental de um ordenamento jurídico (Duxbury, 2008, p. 52; tradução minha; ênfase acrescentada).11

No artigo A Teoria Jurídica de Kelsen: A Rodada Final, (Kelsen’s Legal Theory: The Final Round), Paulson afirma que a Teoria Geral das Normas contém duas mudanças radicais:

O livro marca mudanças verdadeiramente extraordinárias na teoria de Kelsen. A norma jurídica emerge como o significado de um ato de vontade, e a validade da norma é ‘condicionada ao ato de vontade do qual ela é o sentido’. A norma fundamental, que no trabalho anterior de Kelsen estava ligada a um argumento kantiano ou neokantiano para fundamentar a tese da normatividade, emerge aqui como uma ficção. Refletindo a transformação da norma fundamental, a tese da normatividade é entendida de forma contrafactual, dentro do vocabulário do teórico do ‘como se’ Hans Vaihinger – que Kelsen segue literalmente – como ‘não correspondente à realidade objetiva’. Em suma, Kelsen se junta aos teóricos da ‘vontade’ que ele tinha combatido por tanto tempo.

Em um esforço para apresentar ao leitor uma visão dessas mudanças na teoria de Kelsen, eu esboço, na seção I, os principais tópicos e temas da Teoria Geral das Normas. Na seção II, eu me dedico à mudança dramática de Kelsen em sua doutrina da norma fundamental e, na seção III, àquele que é supostamente o tema central do livro: a visão cética de Kelsen sobre o papel da lógica no direito (Paulson, 1992, p 265; tradução minha; ênfase acrescida)12

Especialmente no que diz respeito ao papel da lógica no direito, tema que nos interessa agora, inicialmente Paulson descreve o argumento que Kelsen havia apresentado na segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960). Esse argumento afirma que a lógica se aplica apenas mediatamente a normas jurídicas, pois ela seria aplicável imediatamente apenas a proposições jurídicas (Paulson, 1992, p. 271 s.). Após essa descrição Paulson volta sua atenção à suposta nova posição que estaria presente na Teoria Geral das Normas:

Kelsen argumenta, na Teoria Geral das Normas, que ambas as normas que estão em um conflito expresso tem que ser válidas, caso contrário não haveria um conflito. E sem qualquer base para uma aplicação per analogiam do princípio de não-contradição as normas conflitantes continuam válidas a menos que sejam abolidas através de derrogação ou anulação. Kelsen descreve o conflito entre elas como uma ‘antítese ou oposição’, como ‘duas forças agindo em direções diferentes no mesmo ponto’.

Essa última posição de Kelsen, embora apresente seus próprios problemas, pelo menos possui a virtude de ser intuitivamente plausível do ponto de vista do positivista jurídico, para quem questões a respeito da validade jurídica são respondidas somente com recurso a condições estabelecidas através do processo de produção do direito. A aplicação de princípios da lógica nesse caso é algo estranho ao ponto de vista positivista. O argumento per analogiam, que Kelsen tinha apresentado anteriormente, representa uma parte de seu esforço neo-kantiano para assegurar ‘a unidade da multiplicidade das normas [jurídicas]’; quando ele abandona a fundamentação neo-kantiana, como fez na Teoria Geral das Normas, é natural que ele abandone também os argumentos que ele tinha aduzido a favor da visão neo-kantiana (Paulson, 1992, p. 272; tradução minha).13

Antes de uma análise detalhada das supostas mudanças realizadas por Kelsen na doutrina tardia em relação ao papel da lógica no direito, o que será realizado na próxima seção, faz-se necessária uma observação sobre a afirmação de Paulson de que, em sua doutrina tardia, Kelsen teria se juntado aos teóricos da “vontade” que ele tinha criticado fortemente nas fases anteriores de sua obra. Como vimos, Paulson afirma que Kelsen se junta aos teóricos da “vontade” que ele havia combatido por tanto tempo. Mas essa interpretação, a meu ver, não se sustenta. Vejamos. Por um lado, é verdade que Kelsen havia criticado de forma veemente, em seu primeiro trabalho teórico-jurídico, Principais Problemas da Teoria Jurídica do Estado – Desenvolvidos com Base na Teoria da Proposição Jurídica (1911), a interpretação do direito como um fenômeno oriundo da vontade (Paulson, 1992, p. 226).14 Essas teorias criticadas por Kelsen tratavam o direito e conceitos centrais da ciência do direito, tais como o direito subjetivo e a pessoa, com base em um conceito psicológico de vontade. Isso englobava tanto o direito privado (direito subjetivo como vontade) como o direito público (vontade do estado como vontade dos representantes do estado). Mas, por outro lado, ao contrário do que defende Paulson, entendo que nem na Teoria Geral das Normas e nem em sua doutrina tardia em geral Kelsen defende uma teoria da vontade que ele havia criticado na fase inicial de sua carreira. A razão disso é muito simples: em sua doutrina tardia, Kelsen não adota, de modo algum, uma teoria psicológica da vontade no direito. Como já ressaltei em outro lugar, para Kelsen uma norma sempre constitui o sentido de um ato de vontade. Isso sempre foi assim desde seus trabalhos iniciais. Contudo, em nenhum trabalho de Kelsen, em qualquer fase de sua obra, isso significou que uma norma seja somente um ato de vontade em sentido psicológico (cf. Trivisonno, 2021, p. 19).

3 O Papel da Lógica no Direito ao Longo da Obra de Kelsen

No que diz respeito à suposta mudança do papel da lógica no direito na doutrina tardia de Kelsen, deve-se observar que a maioria dos intérpretes de Kelsen parte do pressuposto de que teria aparecido, na Teoria Geral das Normas, uma nova posição. Contudo, apesar dessa afirmativa genérica, os intérpretes quase nunca determinam qual é o período de comparação que tomam como base, ou seja, eles não determinam os trabalhos de qual período serviriam de base para se afirmar a mudança que ocorreu na doutrina tardia em geral e mais precisamente na Teoria Geral das Normas. Na verdade, o período de comparação quase sempre é omitido; isso significa que muitos dos intérpretes que afirmam existir na Teoria Geral das Normas uma posição completamente nova no que diz respeito ao papel da lógica no direito não determinam em relação a quais trabalhos a posição é supostamente nova.

Dentre as posições defendidas sobre esse tema pelos diversos intérpretes de Kelsen há variações. Embora alguns autores afirmem que a mudança contida na Teoria Geral das Normas se opõe à segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), a maioria parece acreditar que elas se opõem a toda obra anterior de Kelsen. Para se determinar melhor essa questão, vale a pena dar uma olhada nas afirmações de alguns desses intérpretes sobre esse tema.

Como vimos acima, Weinberger afirma que “[o] livro ‘Teoria Geral das Normas’ como um todo se destina a provar a irracionalidade das normas” (Weinberger, 1981, p. 94). Assim, embora não afirme expressamente, Weinberger parece acreditar que o livro contradiz a Teoria Pura do Direito como um todo. Como também vimos acima, Duxbury define com maior precisão o período de comparação que usa, na medida que afirma que o papel atribuído por Kelsen na Teoria Geral das Normas à lógica contradiz a posição que ele havia defendido “por grande parte de sua vida (Duxbury, 2008, p. 52, ênfase acrescentada). Assim, no caso de Duxbury, há a afirmação expressa do período de comparação, que seria constituído pela obra de Kelsen como um todo.

A posição de Paulson parece ambivalente. Como vimos acima, inicialmente ele afirma, sem definir um período de comparação, que a doutrina tardia defendida por Kelsen na Teoria Geral das Normas contém “mudanças verdadeiramente extraordinárias” (Paulson, 1992, p. 272; ênfase acrescida). É importante ressaltar, que nessa passagem, Paulson não está se referindo somente à mudança no papel da lógica no direito na Teoria Geral das Normas, mas antes às mudanças dessa obra como um todo. Isso significa que ele está se referindo não apenas às mudanças no papel da lógica no direito, mas também à doutrina da norma fundamental. A meu ver, pode-se dizer que, nessa passagem, Paulson está defendendo que a Teoria Geral das Normas contradiz a obra de Kelsen como um todo, pois ele não define um período específico como âmbito de comparação.

Porém, quando se refere particularmente ao papel da lógica no direito Paulson parece definir um âmbito de comparação de forma mais específica. Mas vejamos se essa definição realmente ocorre. Como vimos acima, Paulson começa descrevendo o papel da lógica no direito na segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960) para então comparar esse papel da lógica na segunda edição da Teoria Pura do Direito ao suposto novo papel que Kelsen teria atribuído à lógica na Teoria Geral das Normas. Isso poderia sugerir que Paulson sabe que o âmbito de comparação compreende somente a segunda edição da Teoria Pura do Direito. Porém, infelizmente, esse não é o caso. Por um lado, Paulson conecta a posição que Kelsen havia defendido na segunda edição da Teoria Pura do Direito sobre o papel da lógica no direito com o neokantismo, que Kelsen vinha defendendo desde trabalhos bem anteriores à segunda edição da Teoria Pura do Direito. Por outro lado, Paulson conecta a suposta nova posição de Kelsen sobre o papel da lógica no direito, defendida na Teoria Geral das Normas, com o abandono do neokantismo. Assim, Paulson entende haver dois Kelsens: o primeiro Kelsen, que era um neokantiano, e o segundo e último Kelsen, que surge após 1960 e que abandona o neokantismo. Isso indica que o âmbito de comparação de Paulson, mesmo no que diz respeito às mudanças realizadas por Kelsen no que diz respeito ao papel da lógica no direito, não é constituído apenas pela segunda edição da Teoria Pura do Direito, mas antes pelos trabalhos anteriores em que Kelsen expressou argumentos neokantianos. Por isso, a meu ver, é possível concluir que, na verdade, Paulson entende defender Kelsen, na Teoria Geral das Normas, uma nova posição, que ele nunca tinha defendido.

Contra a tese de que Kelsen teria defendido, na Teoria Geral das Normas, uma posição completamente nova sobre o papel da lógica no direito, quero defender a tese de que as afirmações de Kelsen na doutrina tardia sobre o papel da lógica são completamente compatíveis com seus escritos anteriores. A minha tese afirma que a passagem dissonante sobre o papel da lógica no direito, em Kelsen, não se encontra na Teoria Geral das Normas, como geralmente se afirma, mas antes na segunda edição da Teoria Pura do Direito ou, mais precisamente, em uma parte ou passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito. Essa posição dissonante é representada por uma passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito em que Kelsen defendeu a aplicabilidade indireta da lógica ao direito, o que não impediu, porém de continuar a defender, nessa mesma obra, uma outra posição, que ele vinha defendendo desde seus trabalhos anteriores: que duas normas colidentes são simultaneamente válidas. Essa outra posição, que não é de modo algum incompatível com seus trabalhos anteriores, foi defendida por ele em parte explicitamente e em parte implicitamente na própria segunda edição da Teoria Pura do Direito.

Em praticamente toda a sua obra, inclusive na própria segunda edição da Teoria Pura do Direito ou mais precisamente em parte dela, Kelsen defendeu que duas normas que colidem permanecem simultaneamente válidas. Na segunda edição da Teoria Pura do Direito, além de defender em algumas passagens a posição que acabo de mencionar, Kelsen defende, em uma passagem, a aplicação indireta da lógica a normas jurídicas, através de sua aplicação direta a proposições jurídicas que descrevem normas jurídicas.

A meu ver, a parte dissonante da obra de Kelsen é exatamente essa passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito em que ele defende a aplicação indireta da lógica a normas jurídicas, e não o que Kelsen afirma sobre o tema na Teoria Geral das Normas. Em síntese, o que Kelsen afirma na Teoria Geral das Normas sobre a aplicabilidade da lógica ao direito é coerente com a obra de Kelsen como um todo.

Naturalmente, essa tese, que se distancia consideravelmente da leitura ortodoxa da obra de Kelsen, precisa ser fundamentada. A seguir será abordada a posição de Kelsen sobre o papel da lógica no direito em seus trabalhos anteriores à segunda edição da Teoria Pura do Direito. Após isso, abordarei a posição de Kelsen na segunda edição da Teoria Pura do Direito e, por fim, na Teoria Geral das Normas, a fim de poder, então, compará-las entre si.

3.1 O Papel da Lógica no Direito em Kelsen antes de 1960

A opinião dominante pressupõe que apenas a partir de 1960 Kelsen começou a defender a validade de duas normas colidentes e a não aplicabilidade das regras de conclusão de raciocínio a normas. Mas um exame mais detalhado dos escritos de Kelsen mostra com clareza que ele já defendia essa posição bem antes. Na doutrina das disposições alternativas, que Kelsen desenvolveu no final dos anos 1920, ele já afirmava aquilo que ele repete mais tarde na Teoria Geral das Normas: que não há contradição lógica entre duas normas colidentes de níveis diferentes.

Em Essência e Desenvolvimento da Jurisdição Estatal (1929) (Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit), obra que foi publicada em francês um ano antes da publicação em alemão sob o título A Jurisdição Constitucional (1928) (La Garantie Juridictionnelle de la Constitution – La justice constitutionnelle), Kelsen afirma:

A constituição afirma, segundo seu teor literal e seu sentido subjetivo, que leis só podem ser criadas de determinada maneira e que elas devem ter ou não devem ter esse ou aquele conteúdo. Mas, de acordo com seu sentido objetivo, elas valem mesmo quando são produzidas de outro modo e mesmo quando seu conteúdo viola as diretrizes da constituição. Se leis inconstitucionais devem ser válidas, a constituição precisa ser interpretada dessa maneira; pois mesmo essas leis inconstitucionais devem poder se apoiar em uma constituição, devem poder derivar sua validade de algo, ou seja, somente da constituição; devem de algum modo, porque válidas, também ser constitucionais como leis válidas (Kelsen, [1929] 1968, p. 30; tradução minha).15

Essa passagem mostra de forma clara que, já no final da década de 1920, Kelsen afirmava que uma lei inconstitucional e a constituição que a fundamenta são simultaneamente válidas. As disposições constitucionais possuem o caráter de determinações alternativas, o que significa que o legislador pode produzir duas leis: uma que está de acordo com a constituição e outra que a viola. Essa posição só pode ser interpretada de uma maneira: em caso de uma lei inconstitucional não são aplicáveis o princípio lógico de não-contradição e as regras de conclusão de raciocínio.

Uma ideia parecida aparece na primeira edição da Teoria Pura do Direito (1934), quando Kelsen aborda o conceito de “direito contrário ao direito”:

Deve-se perguntar, então, como é possível se manter a unidade da ordem jurídica como um sistema de normas logicamente fechado quando entre duas normas de níveis diferentes existe uma contradição lógica, quando são válidas tanto a constituição quanto a lei que a viola, quando são válidas tanto a lei quanto a sentença judicial que a contradiz. Não se pode duvidar que, de acordo com o direito positivo, isso de fato acontece. Exatamente na medida em que toma diversas medidas para evitar ou limitar esses conflitos, o direito positivo aceita o direito contrário ao direito e confirma sua existência. Mas ao fazer isso, ao considerar – por um motivo qualquer – que uma norma (mesmo que indesejada) é válida como direito, o direito positivo retira dessa norma o caráter próprio de contrariedade ao direito. E, de fato, se o fenômeno denominado norma contrária a outra norma – dentre outras, a lei inconstitucional, a sentença judicial ilegal – significasse realmente uma contradição lógica entre uma norma de um nível superior e uma norma de um nível inferior, então estaria arruinada a unidade da ordem jurídica. Mas esse não é, de modo algum, o caso (Kelsen, ١٩٣٤, p. ٨٤; Kelsen, 2021, p. 78).1616

Portanto, já no final dos anos 1920 e, posteriormente, em 1934, na primeira edição da Teoria Pura do Direito, Kelsen enfatizou que não há qualquer contradição lógica quando duas normas de níveis diferentes colidem. Isso significa, pelo menos implicitamente, que o princípio de não-contradição e as regras de conclusão de raciocínio não são aplicáveis ao direito.

Em 1945, na Teoria Geral do Direito e do Estado (General Theory of Law and State), Kelsen reafirma a já mencionada doutrina das determinações ou disposições alternativas. Ele defende enfaticamente que entre duas normas de níveis diferentes que colidem não há qualquer contradição lógica:

O caráter alternativo da norma superior que determina o nível inferior impede qualquer contradição real entre a norma superior e a norma inferior. Uma contradição com a primeira das duas disposições alternativas da norma superior não é uma contradição com a norma superior em si mesma. Além disso, a contradição entre a norma inferior e a primeira das duas alternativas apresentadas pela norma superior é relevante apenas na medida em que é estabelecida por uma autoridade competente. Qualquer outra opinião que não seja a opinião da autoridade sobre a existência de uma contradição é juridicamente irrelevante. A autoridade competente estabelece a existência jurídica de tal contradição anulando a norma inferior.

A ‘inconstitucionalidade’ ou ‘ilegalidade’ de uma norma que, por algum motivo, tem que ser pressuposta como válida significa, portanto, ou a possibilidade de ela ser anulada (de forma comum caso se trate de uma decisão judicial e em uma forma diversa quando se tratar de uma lei) ou a possibilidade de ela ser nula. Sua nulidade significa a negação de sua existência pelo conhecimento jurídico. Não pode haver qualquer contradição entre normas de níveis diferentes da ordem jurídica. A unidade da ordem jurídica nunca pode ser colocada em risco por qualquer contradição entre uma norma superior e uma norma inferior dentro da estrutura hierárquica do direito (Kelsen, 1945, 161 s.).17

Portanto, Kelsen defendeu bem antes de 1960 uma posição que grande parte dos intérpretes de Kelsen consideram uma posição defendida apenas na doutrina tardia.

3.2 O Papel da Lógica no Direito na Segunda Edição da Teoria Pura do Direito (1960)

Em uma passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), Kelsen afirma que princípios lógicos como o princípio de não-contradição e as regras de conclusão de raciocínio não se aplicam diretamente ao direito, mas se aplicam indireta ou mediatamente. A aplicação ocorreria diretamente às proposições jurídicas; como elas se referem a normas, haveria então a aplicação indireta. Para se poder compreender de forma mais completa a aplicabilidade da lógica ao direito nessa passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito é útil esclarecer o conceito de proposição jurídica na teoria de Kelsen.

A distinção entre norma jurídica e proposição jurídica é em certo sentido problemática, pois Kelsen a modificou parcialmente durante o desenvolvimento de sua teoria.1818 Já que, neste trabalho, a proposição jurídica é central como meio de aplicabilidade da lógica ao direito, o que ocorre na referida segunda edição da Teoria Pura do Direito, concentrarei minha análise à distinção entre norma jurídica e proposição jurídica apresentada por Kelsen nesta obra. Nela, Kelsen afirma:

Ela [A ciência do Direito] descreve as normas jurídicas produzidas através de atos de conduta humana e que hão de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e, consequentemente, descreve as relações constituídas, através dessas normas jurídicas, entre os fatos por elas determinados. As proposições ou enunciados através dos quais a ciência do direito descreve essas relações devem, como proposições jurídicas, ser distinguidas das normas jurídicas que são produzidas pelos órgãos jurídicos a fim de por eles serem aplicadas e serem observadas pelos destinatários do Direito. Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, em conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem ocorrer certas consequências pelo mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou competência. De todo modo elas não são – como, por vezes, identificando direito com ciência jurídica, se afirma - instruções (ensinamentos) (Kelsen, 1960 [2000], p. 73; Kelsen, 1987, p. 78 s.; tradução alterada).19

Em síntese, na concepção apresentada por Kelsen na segunda edição da Teoria Pura do Direito, normas jurídicas são imperativos criados por órgãos jurídicos, enquanto proposições jurídicas são juízos hipotéticos produzidos pela ciência do direito, juízos esses que descrevem normas jurídicas.

Em uma passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito, o princípio de não-contradição e as regras de conclusão de raciocínio só podem ser aplicados a proposições ou enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos. Por essa razão eles não podem ser aplicados diretamente a normas jurídicas, pois normas jurídicas não podem ser verdadeiras ou falsas, mas apenas válidas ou inválidas. Contudo, eles podem ser aplicados de forma indireta ou mediata a normas jurídicas:

Duas normas jurídicas se contradizem e não podem, por isso, ser afirmadas simultaneamente como válidas quando as proposições jurídicas que as descrevem se contradizem; e uma norma jurídica pode ser deduzida de uma outra quando as proposições jurídicas que as descrevem podem entrar num silogismo lógico (Kelsen, 1960 [2000], p. 77; Kelsen, 1987, p. 82; tradução alterada) 20

Vale apena ilustrar a posição de Kelsen com alguns exemplos. Tomemos primeiramente um exemplo em que duas proposições jurídicas que descrevem duas normas jurídicas:

- proposição jurídica 1: o direito de trânsito do país A determina que quem ultrapassar pela direita deve pagar uma multa de 100;

- proposição jurídica 2: o direito de trânsito do país A determina que quem não ultrapassar pela direita deve pagar uma multa de 100;

O argumento apresentado por Kelsen, na segunda edição da Teoria Pura do Direito, reza: proposições jurídicas são enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos. Por isso elas podem se contradizer. E uma vez que normas jurídicas são objetos de proposições jurídicas, elas podem indiretamente se contradizer, ainda que indiretamente. Assim, as normas jurídicas:

- norma jurídica 1: no país A aquele que ultrapassar pela direita deve pagar uma multa de 100, e

- norma jurídica 2: no país A aquele que não ultrapassar pela direita deve pagar uma multa de 100,

Não podem ser simultaneamente válidas. Um silogismo contendo proposições jurídicas e fáticas seria, por exemplo:

- proposição jurídica 3: o direito de trânsito do país A determina que aquele que ultrapassa pela direita deve pagar uma multa de 100;

- Joana ultrapassou pela direita;

- logo, Joana deve pagar uma multa de 100.

Uma vez que as proposições jurídicas e a proposição fática se encontram em uma relação de dedução, os seus correspondentes objetos, ou seja, a norma geral, o fato e a norma individual também estariam, indiretamente, em uma relação de dedução:

- norma jurídica 3: no país A, aquele que ultrapassar pela direita deve pagar uma multa de 100;

- fato 1: Joana ultrapassou pela direita;

- norma individual 4: Joana deve pagar uma multa de 100.

Em síntese, essa constitui a posição que Kelsen defendeu na segunda edição da Teoria Pura do Direito, ou pelo menos em uma parte dela.

3.3 O Papel da Lógica no Direito na Teoria Geral das Normas

Na Teoria Geral das Normas Kelsen apresenta uma posição que se distingue, pelo menos parcialmente, da posição que ele havia apresentado na segunda edição da Teoria Pura do Direito. Kelsen enfatiza que normas são “o sentido de atos de vontade direcionados à conduta de outros” e que, “enquanto tais, não podem ser verdadeiras ou falsas” (Kelsen, 1979, p. 153, 166; Kelsen, 1984, p. 263). Kelsen aborda então a aplicação das regras de conclusão de raciocínio ao direito:

Designa-se como uma conclusão normativa do geral para o particular aquela cuja premissa maior é uma norma geral hipotética que, sob certas e em verdade geralmente determinadas condições estabelece como devida uma conduta geralmente determinada, cuja premissa menor é um enunciado que assevera a existência individual da condição determinada na premissa maior e cuja proposição conclusiva é uma norma individual que estabelece como devida individualmente a conduta determinada geralmente na premissa maior (Kelsen, 1979, p. 184; Kelsen, 1984, p. 293; tradução alterada).21

O próprio Kelsen apresenta um exemplo:

1) se uma pessoa fez uma promessa a outra pessoa, deve cumpri-la;

2) a pessoa Maier prometeu à pessoa Schulze pagara-lhe 1.000;

3) a pessoa Maier deve cumprir sua promessa feita à pessoa Schulze, ou seja, pagar a Schulze 1.000 (Kelsen, 1979, p. 184; Kelsen, 1984, p. 293; tradução alterada).22

Kelsen esclarece que em um silogismo teórico ambas as premissas possuem o mesmo caráter lógico, pois em ambas são enunciados.23 Porém, no caso do silogismo prático, a premissa maior é uma norma e a premissa menor é uma premissa menor é um enunciado que descreve algo que aconteceu ou não aconteceu (Kelsen, 1979, p. 185; Kelsen, 1984, p. 185). Segundo Kelsen, a validade de uma norma individual não pode ser derivada da validade da norma geral correspondente (Kelsen, 1979, p. 186; Kelsen, 1984, p. 118), pois a norma individual é posta através do ato de vontade que a cria (Kelsen, 1979, p. 186; Kelsen, 1984, p. 118).

Consequentemente, Kelsen não continuou defendendo, na Teoria Geral das Normas, a aplicabilidade indireta ou per analogiam ao direito tanto do princípio de não-contradição quanto das regras de conclusão de raciocínio, ou seja, ele não mais defendeu, nessa obra, a aplicabilidade indireta da lógica a normas jurídicas através de sua aplicação direta às proposições jurídicas correspondentes, posição que ele havia defendido em uma passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito.24

Portanto, não há dúvida de entre a segunda edição da Teoria Pura do Direito – ou mais precisamente entre uma parte dela – e a Teoria Geral das Normas há uma incompatibilidade sobre o papel da lógica no direito. Para se entender a suposta mudança, são necessárias duas observações: (i) Kelsen já havia defendido, antes de 1960, exatamente a mesma posição que defende na doutrina tardia, especialmente nas obras Direito e Lógica e Teoria Geral das Normas, a saber, que duas normas jurídicas colidentes são válidas simultaneamente; (ii) em algumas passagens da própria segunda edição da Teoria Pura do Direito, Kelsen também defende essa posição, ou seja, que duas normas colidentes são válidas simultaneamente. Portanto, na segunda edição da Teoria Pura do Direito há duas posições incompatíveis sobre o papel da lógica no direito. Isso deve ser investigado mais detalhadamente.

4 Duas Posições Incompatíveis Sobre o Papel da Lógica no Direito na Segunda Edição da Teoria Pura do Direito (1960)

Como já vimos acima, Kelsen afirmou, na segunda edição da Teoria Pura do Direito, que “[d]uas normas jurídicas se contradizem e não podem, por isso, ser afirmadas simultaneamente como válidas quando as proposições jurídicas que as descrevem se contradizem [...]” (Kelsen, 1960 [2000], p. 77; Kelsen, 1987, p. 82; tradução alterada). Porém, em outras passagens da própria segunda edição da Teoria Pura do Direito Kelsen faz afirmações que parecem ser incompatíveis com a defesa possibilidade de um conflito lógico entre normas, ainda que de forma indireta. No primeiro capítulo da obra, em que Kelsen aborda o direito como ordem normativa da conduta humana, ele afirma:

Disso resulta que, dentro de uma tal ordem normativa, uma mesma conduta pode, nesse sentido, ser ‘prescrita’ e simultaneamente ‘proibida’, e que tal situação pode ser descrita sem contradição lógica. As proposições A deve ser e A não deve ser excluem-se mutuamente; de ambas as normas assim descritas apenas uma pode ser válida. Não podem ser ambas simultaneamente observadas ou aplicadas. Mas as duas proposições se A é, X deve ser e, se não-A é, X deve ser, não se excluem mutuamente e ambas as normas por elas descritas podem ser simultaneamente válidas. No domínio de uma ordem jurídica pode surgir uma situação – e de fato surgem tais situações, como veremos – em que uma determinada conduta humana e, ao mesmo tempo, a conduta oposta, têm uma sanção como consequência. Ambas as normas – as normas que estatuem as sanções – podem valer uma ao lado da outra e ser efetivamente aplicadas porque não se contradizem, isto é, porque podem ser descritas sem contradição lógica. Mas nas duas normas obtêm expressão duas tendências políticas opostas que, se bem que não provoquem uma contradição lógica, engendram um conflito teleológico. A situação, embora possível, é politicamente insatisfatória. Por isso os ordenamentos jurídicos contêm, em regra, preceitos por força dos quais uma das normas é nula ou pode ser anulada (Kelsen, 1960 [2000], p. 26 s.; Kelsen, 1985, p. 28 s; tradução alterada).25

Essa passagem mostra que quando da elaboração da segunda edição da Teoria Pura do Direito Kelsen estava inseguro sobre qual seria o papel da lógica no direito. Por um lado ele afirma que normas que enunciam dois deverem conflitantes não podem ser simultaneamente válidas. Por outro lado, ele afirma que duas normas estabelecem sanções para duas ações colidentes podem ser válidas simultaneamente, posição essa que ele reafirma na Teoria Geral das Normas.

As normas que aqui designo como “normas que enunciam deveres” são aquelas que Kelsen anteriormente, tanto na Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre) quando na primeira edição da Teoria Pura do Direito, tinha designado como “secundárias” (cf. Kelsen 1925, p. 41 s.; Kelsen 1934; p. 30, 34; Kelsen 2021, p. 34 s., 37 s.). Na segunda edição da Teoria Pura do Direito essa norma antes denominada secundária é designada simplesmente como um tipo de norma não-autônoma, que é supérflua, por não criar qualquer dever (Kelsen, 1960 [2000], p 55; Kelsen, 1985, p. 59).26

As normas que realmente criam deveres jurídicos são as autênticas normas jurídicas, que Kelsen anteriormente tinha designado como primárias. Na segunda edição da Teoria Pura do Direito essas normas antes designadas como primárias não entram em contradição, mesmo quando prescrevem sanções para duas condutas incompatíveis.

Além dessa passagem há outras passagens na segunda edição da Teoria Pura do Direito que se chocam com a ideia da aplicabilidade indireta da lógica ao direito. Kelsen confirma, na segunda edição da Teoria Pura do Direito, a doutrina das disposições alternativas, que ele havia desenvolvido no final dos anos 1920. Como vimos acima, essa doutrina afirma a validade simultânea tanto da constituição quanto de uma lei inconstitucional. Na segunda edição da Teoria Pura do Direito Kelsen afirma:

A afirmação de que uma lei válida é ‘contrária à constituição’ é uma contradictio inadjecto; pois uma lei somente pode ser válida com base na constituição. Quando se tem fundamento para aceitar a validade de uma lei, o fundamento da sua validade tem de residir na constituição. De uma lei inválida não se pode, porém, afirmar que ela é contrária à constituição, pois uma lei inválida não é sequer uma lei, porque não é juridicamente existente e, portanto, não é possível sobre ela qualquer afirmação jurídica. Se a afirmação, corrente na jurisprudência tradicional, de que uma lei é inconstitucional de ter um sentido jurídico possível, não pode ser tomada ao pé da letra (Kelsen, 1960 [2000], p. 275; Kelsen, 1987, p. 287; tradução alterada).27

De acordo com Kelsen, algumas ordens jurídicas permitem que um órgão jurídico, por exemplo uma corte ou o legislador, decida se uma lei é inconstitucional ou não. Sobre isso, Kelsen afirma:

Se o controle da constitucionalidade das leis é reservado a um único tribunal, ele pode deter competência para anular a validade da lei reconhecida como ‘inconstitucional’ não só em relação a um caso concreto mas em relação a todos os casos a que a lei se refira – quer dizer, para anular a lei como tal. Até esse momento, porém, a lei é válida e deve ser aplicada por todos os órgãos aplicadores do direito (Kelsen, ١٩٦٠ [2000], p. 278; Kelsen, 1987, p. 290; tradução alterada).28

Portanto, na segunda edição da Teoria Pura do Direito, Kelsen confirma a doutrina das disposições alternativas, que considera uma lei inconstitucional e a constituição que a fundamenta como válidas até que o órgão competente a derrogue. De acordo com essa doutrina tanto a norma mais elevada quando a norma inferior que a viola, são simultaneamente válidas. Por outro lado, não se pode questionar o fato de Kelsen, em outra passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito, passagem essa que já foi citada acima, defendeu a aplicabilidade indireta da lógica ao direito. Nessa passagem, como vimos, Kelsen afirma que duas normas que colidem não podem ser válidas simultaneamente. Isso nos leva a uma única conclusão possível: na segunda edição da Teoria Pura do Direito há duas posições diferentes sobre o papel da lógica no direito. Essas posições são irreconciliáveis, pois são incompatíveis entre si.

Considerações finais

A análise realizada nesta investigação mostra que Kelsen, durante a maior parte de sua vida profissional, defendeu a possibilidade da validade simultânea de duas normas que colidem. Apenas de forma superficial na primeira edição da Teoria Pura do Direito e mais detalhadamente em uma passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito Kelsen defendeu uma posição que se desvia dessa posição que ele em geral defendeu. Essa passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito, que pode ser compreendida como a passagem “dissonante” da teoria do direito de Kelsen sobre o papel da lógica no direito é a passagem em que ele defende a aplicação indireta da lógica ao direito. A validade simultânea de duas normas jurídicas colidentes, seja uma norma superior e uma norma inferior ou uma norma posterior e uma norma anterior, é possível na teoria de Kelsen, com exceção da passagem dissonante da segunda edição da Teoria Pura do Direito. Kelsen afirmou expressamente essa posição nas passagens em que aborda o direito contrário ao direito e a doutrina das disposições alternativas. Após 1960, Kelsen simplesmente reafirmou e aprofundou a visão que já tinha defendido antes. Um exemplo disso constitui a tese defendida por Kelsen, após 1960, segundo a qual a regra lex posterior derogat legi priori não é um princípio lógico (Kelsen; Klug, ١٩٨١, p. ٤٨).

Se há dissonância em relação ao papel da lógica no direito na obra de Kelsen, essa dissonância não se encontra na Teoria Geral das Normas e nem em outros trabalhos da doutrina tardia, como em geral se afirma. Na verdade, a dissonância se encontra na mencionada passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito em que Kelsen defende a aplicabilidade indireta da lógica ao direito.

Em seus trabalhos iniciais, Kelsen não se dedicou detidamente à aplicabilidade das regras de conclusão de raciocínio ao direito. Mas a visão que Kelsen apresenta sobre esse tema na Teoria Geral das Normas é compatível com as ideias que ele apresentou em seus trabalhos iniciais, pois ele sempre enfatizou a necessidade de um ato de vontade para a existência de uma norma. Isso não significa que Kelsen passa, na doutrina tardia, a derivar o direito da vontade em um sentido psicológico, mas antes apenas que a criação de uma norma depende, como em sua obra sempre dependeu, de um ato de vontade. Exatamente por essa razão as regras de conclusão de raciocínio não podem dar origem a uma norma jurídica.

Como vimos acima, alguns autores como Weinberger e Losano entendem ter havido, na doutrina tardia de Kelsen, uma virada irracionalista. O motivo para essa interpretação consiste no fato de que, na visão desses autores, Kelsen teria começado a defender, na doutrina tardia, a inaplicabilidade da lógica ao direito. Se eu estiver correto, Kelsen não começou a defender essa posição após 1960, ou seja, em sua doutrina tardia, pois ele já a defendia em trabalhos anteriores, desde pelo menos o final dos anos 1920. Ao contrário do que afirmam Weinberger e Losano, a rejeição da aplicabilidade da lógica ao direito não significa a adoção de um irracionalismo. Mas, como mostrado acima, se ela significasse, Kelsen não teria se tornado um irracionalista no final de sua carreira; ele sempre teria sido um irracionalista.

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WEIBERGER, Ota. Normentheorie als Grundlage der Jurisprudenz und Ethik. Berlim: Duncker & Humblot, 1981.


  1. 1 Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Pós-Doutor em Direito pelo Instituto de Filosofia da Universidade de Saarland; Professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais. https://orcid.org/0000-0002-9153-968X. a.travessoni@gmail.com.

  2. 2 A primeira edição dessa obra foi publicada em 1911, tendo em 1923 sido publicada uma segunda edição sem modificações no texto, mas que contém um significativo novo prefácio, o Prefácio à segunda edição. Antes dessa obra, Kelsen já havia publicado sua tese de doutorado, A Doutrina do Estado de Dante Alighieri (Kelsen, 1905). Contudo, essa primeira obra não contém elementos da teoria do direito que Kelsen viria a desenvolver.

  3. 3 Como, por exemplo, Sobre o Fundamento de Validade do Direito, Direito dos Povos e Visão Jurídica de Mundo (Vom Geltungsgrund des Rechts, Völkerrecht und rechtliches Weltbild; 1960a); O Que É a Teoria Pura do Direito? (What is the Pure Theory of Law?; 1960b); Derrogação (Derogation; 1962); O Juiz e a Constituição (Der Richter und die Verfassung; 1962a); Fundamentos da Doutrina do Direito Natural (Grundlage der Naturrechtslehre; 1962b); A Função da Constituição (Die Funktion der Verfassung; 1964); Direito e Lógica (Law and Logic; 1965); O Professor Stone e a Teoria Pura do Direito (Professor Stone and The Pure Theory of Law; 1965a); Direito e Lógica (Recht und Logik; 1965b); Sobre o Conceito de Norma (Zum Begriff der Norm; 1965c); Sobre a Teoria Pura do Direito (On The Pure Theory of Law; 1966); Uma Vez Mais: Direito e Lógica: Sobre a Questão da Aplicabilidade de Princípios Lógicos a Normas Jurídicas (Nochmals: Recht und Logik. Zur Frage der Anwendbarkeit logischer Prinzipien auf Rechtsnormen; 1967) e Sobre a Questão do Silogismo Prático (Zur Frage des Praktischen Syllogismus; 1968). Essa lista não é exaustiva, não contendo, portanto, todos os trabalhos publicados por Kelsen nesse período. É interessante notar que alguns desses trabalhos mencionados acima abordam o papel da lógica no direito, e que alguns de seus conteúdos reaparecem na obra póstuma Teoria Geral das Normas (1979).

  4. 4 Geralmente se assume que Kelsen trabalhou até meados dos anos 1960. A esse respeito, cf. Opalek, 1980.

  5. 5 Como também ressaltei, isso ocorre por dois motivos. Em primeiro lugar porque Kelsen teve uma produção muito extensa. Como ressalta Duxbury, entre 1911 e 1960, Kelsen publicou mais de quatrocentos trabalhos (Duxbury, 2008, p. 51). Em segundo lugar, porque essa produção apareceu no decorrer de um longo período (Trivisonno, 2024, p.90).

  6. 6 Ou seja, o trabalho de Bulygin apresenta uma periodização não como objeto principal de estudo, mas no contexto da abordagem de outro tema (cf. Bulygin, 1990, p. 29-45).

  7. 7 Esse texto conta com uma tradução em língua portuguesa, que mereceu um pós-escrito inédito (cf. Paulson, 2013). Em 1999, Heidemann publicou uma resposta a Paulson (Heidemann, 1999), que foi seguida de uma nova resposta de Paulson (Paulson, 1999) e uma resposta final de Heidemann (Heidemann, 2007).

  8. 8 Para tal análise cf. Trivisonno, 2024, p. 90-134.

  9. 9 No original: Das ganze Buch ‚Allgemeine Theorie der Normen‘ ist darauf angelegt, die Irrationalität der Normen zu beweisen. Deswegen wird die Argumentation gegen die Möglichkeit einer Normlogik von Kelsen nicht in einer geordneten Übersicht zusammengestellt, sondern wir finden im ganzen Text des Buches wichtige Behauptungen verstreut, die dieses Thema betreffen.

    Als ‚Normirrationalismus‘ bezeichne ich die Auffassung, daß zwischen Normen (bzw. Normsätzen) keine logischen Beziehungen – insbesondere keine logischen Widersprüche (d.h. keine Inkonsistenz) – bestehen können und daß es keine logischen Folgerungsoperationen mit normativen Gliedern geben kann.

  10. 10 No original: Kelsen inició así una progresiva revisión de sus concepciones, que culminó con la negación de la aplicabilidad al Derecho de cualquier principio lógico. Esta aceptación del irracionalismo jurídico […] es la orientación intelectual que caracteriza a la Teoría general de las normas. Recentemente foram publicadas novas visões sobre o papel da lógica em Kelsen (cf., por exemplo, Sasdelli, 2024).

  11. 11 No original: The doubts that he did have about his own jurisprudential project were not minor. It is well known among legal philosophers that Kelsen, in his late years, made two radical alterations to the pure theory. First, having argued for the best part of his life that conflicting norms cannot be simultaneously valid, in the 1960s he changed his mind and began to argue that although logic cannot accommodate valid conflicting norms, it is perfectly conceivable that conflicting norms could co-exist and be valid within a legal system. Kelsen’s ultimate conclusion on the matter of conflicting norms is wholly unconvincing – an exercise in ‘mad logic’, as Joseph Raz once put it, whereby one valid law within a legal system might oblige and another valid law might forbid the same action – but it is at least possible to work out from some of his last writings how the conclusion was reached. However, for a clear explanation of his second radical modification of his theory – his change of heart concerning the basic norm of a legal system – one will search in vain.

  12. 12 No original: The book marks truly extraordinary changes in Kelsen’s theory. The legal norm emerges as the meaning of an act of will, and the validity of the legal norm is ‘conditional upon the act of will of which it is the meaning’. The basic norm, flagging in Kelsen’s earlier work a Kantian or neo-Kantian argument in support of the normativity thesis, emerges here as a fiction. Reflecting the transformation of the basic norm, the normativity thesis is understood counterfactually, within the words of ‘as-if’ theorist Hans Vaihinger, whom Kelsen follows to the letter – ‘no corresponding objective reality’. In a word, Kelsen joins forces with the very ‘will’ theorists whom he had engaged in battle for so long.

    In an effort to give the reader a picture of these changes in Kelsen’s theory, I outline, in section I, the main topics and themes of General Theory of Norms. I turn, in section II, to Kelsen’s dramatic shift in his doctrine of the basic norm, and, in section III, to what is arguably the central theme in the book, Kelsen’s sceptical view of the role of logic in the law.

  13. 13 No original: Kelsen contends in General Theory of Norms that both norms making up an express conflict have to be valid, lest there be no conflict. And, without any basis for a per analogiam application of the principle of non-contradiction, the conflicting norms remain valid unless and until overturned by derogation or repeal. Kelsen describes the conflict between them as an ‘antithesis or opposition’, a matter of ‘two forces acting in different directions on the same point’. Although not without problems of its own, this later position of Kelsen’s at least has the virtue of being intuitively plausible from the standpoint of the legal positivist, for whom questions of legal validity are answered solely by appeal to the conditions set by the lawmaking process. That principles of logic might apply here is an alien notion from the positivist’s standpoint. Kelsen’s earlier, per analogiam argument represents a part of his neo-Kantian effort to ensure ‘the unity of the multiplicity of [legal] norms’; once he abandons the neo-Kantian foundation, as he has in General Theory of Norms, it is not surprising that he abandons, too, the arguments he had adduced in support of the neo-Kantian view.

  14. 14 Cf. Kelsen, 1923, especialmente os capítulos IV, V, VI e XXIII.

  15. 15 No original: Die Verfassung sagt zwar, Ihrem Wortlaut und subjektiven Sinne nach, daß Gesetze so und nur so zustande kommen sollen, und daß sie dieser oder jenen Inhalt haben oder nicht haben dürfen. Aber ihr objektiver Sinn ist: auch wenn Gesetze auf einen andere Wege zustande kommen, und auch wenn ihr Inhalt gegen die gewiesenen Richtlinien verstößt, sollen sie gelten. So muss man die Verfassung deuten, wenn auch verfassungswidrige Gesetze gelten sollen; denn auch diese müssen sich – als gültige Gesetze – auf eine Verfassung stützen können, müssen ihre Geltung irgendwoher: also nur aus der Verfassung holen, müssen irgendwie, weil gültig, auch verfassungsmäßig sein.

  16. 16 No original: Wie kann, so muß man fragen, die Einheit der Rechtsordnung als eines logisch geschlossenen Systems von Normen aufrecht bleiben, wenn zwischen zwei Normen verschiedener Stufe Systems ein logischer Widerspruch besteht, wenn sowohl die Verfassung als auch das sie verletzende Gesetz, wenn sowohl das Gesetz als auch das ihm widersprechende Urteil in Geltung stehen. Daß dies aber der Fall ist, kann nach positivem Recht nicht bezweifelt werden. Dieses rechnet mit rechtswidrigem Recht und bestätigt dessen Existenz gerade dadurch, daß es mannigfache Vorkehrungen trifft, es zu verhindern oder doch einzuschränken. Aber indem es dies tut, indem es aus irgendwelchen Gründen eine, wenn auch unerwünschte Norm als Recht gelten läßt, nimmt es diesem den eigentlichen Charakter der Rechtswidrigkeit. Und in der Tat: bedeutete das als normwidrige Norm bezeichnete Phänomen, das verfassungswidrige Gesetz, das gesetzwidrige Urteil usw. wirklich einen logischen Widerspruch zwischen einer Norm höherer und einer Norm niederer Stufe, dann wäre es um die Einheit der Rechtsordnung geschehen. Dem ist aber keineswegs so”. Contudo, Kelsen afirma, em outra passagem da primeira edição da Teoria Pura do Direito Kelsen afirma: “Uma contradição lógica pode ocorrer apenas entre duas proposições de ser ou entre duas proposições de dever ser, nunca entre uma proposição que afirma um ser e outra que afirma um dever ser. Assim, uma contradição pode, portanto, muito bem ocorrer entre duas normas; não, porém, entre uma norma de dever ser e um pressuposto fático no âmbito do ser” (Kelsen, 2021, p. 35; Kelsen, 1934, p. 30 s.) (No original: “Ein solcher [Wiederspruch] kann nur zwischen zwei Soll- oder zwischen zwei Seins- Sätzen, niemals zwischen einem ein Sollen und einem ein Sein aussagenden Satze, wohl also zwischen zwei Normen, nicht aber zwischen einer Soll-Norm und einem Seins-Tatbestand bestehen. Essa passagem parece antecipar, em uma pequena medida, a posição que Kelsen apresenta na segunda edição da Teoria Pura do Direito.

  17. 17 No original: The alternative character of the higher norm determining the lower norm precludes any real contradiction between the higher and the lower norm. A contradiction with the first of the two alternative prescriptions of the higher norm is no contradiction with the higher norm itself. Further, the contradiction between the lower norm and the first of the two alternatives presented by the higher norm is relevant only as established by the competent authority. Any other opinion concerning the existence of a contradiction than that of this authority is legally irrelevant. The competent authority establishes the legal existence of such a contradiction by annulling the lower norm.
    The ‘unconstitutionality’ or ‘illegality’ of a norm which, for some reason or other, has to be presupposed as valid, thus means either the possibility of its being annulled (in the ordinary way if it is a judicial decision, in another than the ordinary way if it is a statute); or the possibility of its being null. Its nullity means the negation of its existence by juristic cognition. There cannot occur any contradiction between two norms from different levels of the legal order. The unity of the legal order can never be endangered by any contradiction between a higher and a lower norm in the hierarchy of law.

  18. 18 Uma distinção razoavelmente clara entre norma jurídica e proposição jurídica apareceu já em 1941, quando Kelsen afirma que proposições jurídicas descrevem normas jurídicas, não sendo, contudo, elas próprias, normas jurídicas. Elas constituem, segundo Kelsen, proposições de dever ser (ought propositions) (cf. Kelsen, 1941, p. 51).

  19. 19 No original: Sie [die Rechtswissenschaft] beschreibt die durch Akte menschlichen Verhaltens erzeugten und durch solche Akte anzuwendenden und zu befolgenden Rechtsnormen und damit die durch diese Rechtsnormen konstituierten Beziehungen zwischen den von ihnen bestimmten Tatbeständen. Die Sätze, in denen die Rechtswissenschaft diese Beziehungen beschreibt, müssen als Rechtssätze von den Rechtsnormen unterschieden werden, die von den Rechtsorganen erzeugt, von ihnen anzuwenden und von den Rechtssubjekten zu befolgen sind. Rechtssätze sind hypothetische Urteile, die aussagen, daß im Sinn einer – nationalen oder internationalen – der Rechtserkenntnis gegebenen Rechtsordnung unter gewissen von dieser Rechtsordnung bestimmten Bedingungen gewisse von dieser Rechtsordnung bestimmte Folgen eintreten sollen. Rechtsnormen sind keine Urteile, das heißt Aussagen über einen der Erkenntnis gegebenen Gegenstand. Sie sind, ihrem Sinne nach, Gebote und als solche Befehle, Imperative; aber nicht nur Gebote, sondern auch Erlaubnisse und Ermächtigungen; jedenfalls aber nicht – wie mitunter, Recht mit Wissenschaft identifizierend, behauptet wird - Belehrungen.

  20. 20 No original: Zwei Rechtsnormen widersprechen sich und können daher nicht zugleich als gültig behauptet werden, wenn die beiden sie beschreibenden Rechtssätze sich widersprechen: und eine Rechtsnorm kann aus einer anderen abgeleitet werden, wenn die sie beschreibenden Rechtssätze in einen logischen Syllogismus eingehen können.

  21. 21 No original: Als eine normative Schlussfolgerung von dem Allgemeinen auf das Besondere bezeichnet man eine solche, deren Obersatz eine generelle hypothetische Norm ist, die unter bestimmten, und zwar generell bestimmten, Bedingungen eine generell bestimmtes Verhalten als gesollt setzt; deren Untersatz eine Aussage ist, die das individuelle Vorhandensein der im Obersatz bestimmten Bedingung behauptet und deren Schluß-Satz eine individuelle Norm ist, die das im Obersatz generell bestimmte Verhalten individuell als gesollt setz. Das Bedeutet, daß die individuelle Norm der generellen Norm entspricht.

  22. 22 No original:

    1) Wenn ein Mensch einem anderen ein Versprechen gegeben hat, soll er es halten.

    2) Der Mensch Maier hat dem Menschen Schulze versprochen, ihm 1.000 zu zahlen.

    3) Der Mensch Maier soll sein dem Menschen Schulze gegebenes Versprechen halten, d. h. dem Schulze 1.000 zahlen.

  23. 23 Segundo Kelsen, enunciados podem ser verdadeiros ou falsos, pois descrevem algo. Por outro lado, normas não podem ser verdadeiras ou falsas, mas antes válidas ou inválidas, pois prescrevem condutas (Kelsen, 1979, p. 130, 175; Kelsen, 1984, p. 207, 277 s.).

  24. 24 Uma importante fonte para a compreensão das supostas mudanças do pensamento kelseniano sobre o papel da lógica no direito antes e depois da publicação da segunda edição da Teoria Pura do Direito encontra-se na correspondência entre Kelsen e o lógico Ulrich Klug, entre 1959 e 1965. As cartas que ambos trocaram e dois manuscritos sobre Direito e Lógica que Kelsen enviou a Klug forma publicados por Klug, como livro, em 1981 (Kelsen; Klug, 1981). Em uma carta datada de 27 de abril de 1959, Kelsen afirma que a lógica seria aplicável tanto ao direito quanto à ciência do direito (Kelsen; Klug, 1981, p. 10). Essa posição é compatível com a posição defendida por Kelsen em uma parte da segunda edição da Teoria Pura do Direito. No manuscrito de 1959 Kelsen afirma que a Teoria Pura do Direito aplica princípios lógicos a normas jurídicas que pertencem a uma ordem jurídica, e, portanto, que duas normas se contradizem quando uma norma prescreve que alguém deve se comportar de uma determinada maneira enquanto outra norma prescreve que alguém não deve se comportar dessa maneira (Kelsen; Klug, 1981, p. 16). Em outra carta, datada de 28 de julho de 1959, Kelsen afirma expressamente que princípios lógicos não são aplicáveis diretamente a normas jurídicas (Kelsen; Klug, 1981, p. 37). De forma interessante, Kelsen escreve, em uma carta datada de 4 de julho de 1960: “Em caso de um conflito de normas a questão não é qual das normas vale e qual não vale, pois ambas são normas válidas. A questão é qual das normas perde sua validade, qual das normas deixa de ser válida e qual continua a ser válida.” (Kelsen; Klug, 1981, p. 46 s.; tradução minha [no original “Im Falle eines Normenkonfliktes ist nicht die Frage: welche der beiden Normen gilt und welche nicht gilt; denn beide sind geltende Normen, sondern die Frage: welche der beiden ihre Geltung verliert, welche zu gelten aufhört, und welche weiter gilt”]). Na mesma carta, Kelsen acentua que a derrogação não é um princípio lógico (Kelsen; Klug, 1981, p. 47) e que um conflito entre normas jurídicas não constitui uma contradição (Kelsen; Klug, 1981, p. 48 s.). Isso já indica a adoção de uma posição que não é compatível com a passagem da segunda edição da Teoria Pura do Direito em que Kelsen defende a aplicabilidade indireta da lógica ao direito. Assim pode-se supor que logo após a publicação da segunda edição da Teoria Pura do Direito Kelsen não subscreveria mais o que tinha afirmado na passagem em que defendeu a aplicabilidade indireta da lógica ao direito. Nas demais cartas após 1960 torna-se claro que Kelsen progressivamente defende a inaplicabilidade da lógica ao direito, No manuscrito Direito e Lógica, de 1965, Kelsen rejeita a aplicabilidade a normas jurídicas do princípio de não-contradição (Kelsen; Klug, 1981, p. 63, 65 s.) e retorna à doutrina das disposições alternativas, afirmando a validade simultânea de duas normas supostamente contraditórias: a lei inconstitucional e a constituição que a fundamenta (Kelsen; Klug, 1981, p. 69). Além disso, no manuscrito de 1965, Kelsen rejeita a possibilidade de dedução de uma norma individual a partir de uma norma geral (Kelsen; Klug, 1981, p. 76). Ele também critica a afirmação de que o argumento per analogiam e o argumento a maiore ad minus são argumentos lógicos. Kelsen chega à conclusão de que não há uma lógica jurídica. O manuscrito Direito e Lógica, que Kelsen enviou a Klug, foi publicado em 1965 no periódico científico Forum (Viena) (cf. Kelsen; Klug, 1981, p. 92 e nota de rodapé 2, acima). Esses argumentos de Kelsen voltam a aparecer em passagens da Teoria Geral das Normas.

  25. 25 No original: Daraus ergibt sich, daß innerhalb einer solchen normativen Ordnung ein und dasselbe Verhalten in diesem Sinne ‚geboten‘ und zugleich ‚verboten‘ sein und daß diese Situation ohne logischen Widerspruch beschrieben werden kann. Die beiden Sätze: A soll sein, und A soll nicht sein, schließen sich gegenseitig aus; von den beiden damit beschriebenen Normen kann nur eine gelten. Beide können nicht zu gleicher Zeit befolgt oder angewendet werden. Aber die beiden Sätze: Wenn A ist, soll X sein, und: Wenn non-A ist, soll X sein, schließen sich gegenseitig nicht aus, die beiden damit beschriebenen Normen können zu gleicher Zeit gelten; unter einer Rechtsordnung kann eine Situation bestehen – und tatsächlich bestehen solche Situationen, wie wir noch sehen werden –, in der ein bestimmtes menschliches Verhalten und zugleich das gegenteilige Verhalten eine Sanktion zur Folge haben. Die beiden – die Sanktionen als gesollt setzenden – Normen können nebeneinander gelten und tatsächlich angewendet werden, weil sie sich nicht widersprechen, das heißt: sie können ohne logischen Widerspruch beschrieben werden. Aber in den beiden Normen kommen zwei einander entgegengesetzte politische Tendenzen, zwar kein logischer Widerspruch, aber ein teleologischer Konflikt, zum Ausdruck. Die Situation ist möglich, aber sie ist politisch unbefriedigend. Daher enthalten Rechtsordnungen in der Regel Bestimmungen, denenzufolge eine der beiden Normen nichtig ist oder vernichtet werden kann.

  26. 26 Na primeira edição da Teoria Pura do Direito Kelsen distingue normas primárias e secundárias. Aquelas são as autênticas normas jurídicas, que de fato criam deveres jurídicas. As normas secundárias são supérfluas, porque elas meramente enunciam aquilo que as normas primárias criam: deveres jurídicos. Uma norma primária seria, por exemplo, “aquele que praticar homicídio, deve ser punido com a pena X”. Uma norma secundária seria, por exemplo, “não se deve praticar homicídio” (cf. Kelsen, 1934, p. 30 ss; Kelsen 2021, 34 ss.). Na segunda edição da Teoria Pura do Direito essa Kelsen não adota mais a antiga nomenclatura, passando a falar da norma autêntica (antiga norma primária) e normas não-autônomas. Kelsen distingue cinco tipos de normas não-autônomas: (i) as normas que descrevem o comportamento que evita a sanção, e que são supérfluas (por exemplo, “não se deve praticar homicídio”, a antiga norma primária); (ii) a norma que restringe o âmbito de aplicação de outra norma, e por isso permite uma conduta; (iii) a norma que suprime completamente a validade de uma outra norma, a norma derrogante; (iv) a norma que atribui poder para produção de determinado ato; (v) a norma que determina o sentido de outra norma (Kelsen, 1960 [2000], p 55 ss.; Kelsen, 1985, p. 59 ss. ). É importante enfatizar que. Para Kelsen, dentre esses cinco tipos de normas não-autônomas somente a primeira, ou seja, a antiga norma secundária, é supérflua.

  27. 27 No original: Die Aussage, daß eine gültiges Gesetz verfassungswidrig sei, ist eine contradictio in adjecto; denn ein Gesetz kann gültig nur auf Grund der Verfassung sein. Wenn man Grund hat anzunehmen, daß ein Gesetz gültig ist, muß der Grund seiner Geltung in der Verfassung liegen. Von einem ungültigen Gesetz kann aber nicht ausgesagt werden, daß es verfassungswidrig sei, da ein ungültiges Gesetz überhaupt kein Gesetz, weil rechtlich nicht existent ist, und daher darüber keine rechtliche Aussage ist. Soll die in der traditionellen Jurisprudenz übliche Behauptung eines verfassungswidrigen Gesetzes einen möglichen juristischen Sinn haben, kann sie nicht wörtlich genommen werden.

  28. 28 No original: Ist die Prüfung der Verfassungsmäßigkeit der Gesetze einem einzigen Gericht vorbehalten, kann dieses ermächtigt sein, die Geltung des als ‚verfassungswidrig‘ erkannten Gesetzes nicht nur für einen konkreten Fall, sondern für alle fällen, auf die sich das Gesetz bezieht, das heißt, das Gesetz als solches, aufzuheben. Bis zu diesem Augenblick aber ist das Gesetz gültig und von allen rechtsanwendenden Organen anzuwenden.