https://doi.org/10.18593/ejjl.35326
Editorial
O tentador transplante jurídico e o critério científico do método comparativo no Direito
Não é rara a utilização de exemplos, argumentos e soluções desenvolvidos em ordenamento jurídico estrangeiro para a busca de resposta a problemas identificados no Direito Brasileiro. É, de fato, tentadora a possibilidade de expor o conhecimento sobre uma norma, jurisprudência ou construção dogmática alienígena que, de alguma forma, pode servir como bússola para que a pesquisa chegue a bom porto no mar nacional de ideias jurídicas.
Aquela recente jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, a construção dogmática de um renomado jurista francês do século XVIII, uma paradigmática inovação constitucional colombiana ao final do século XX, o pensamento jurídico desenvolvido em torno da primeira constituição estadunidense, tudo pode parecer servir como referência para a solução de um específico problema jurídico envolvendo direitos fundamentais no Brasil ao final do ano de 2024. O transplante da solução jurídica pode ser tentador ao ponto de se deixar de lado as peculiaridades do paciente transplantado, do problema que enfrenta, as suas origens, as suas condições prévias, o ambiente cultural no qual se insere, e, consequentemente, as possíveis reações de rejeição por parte do sistema receptor.
Entretanto, o Direito comparado, enquanto método científico que se utiliza da comparação entre elementos de diferentes ordenamentos jurídicos para, a partir disto, tirar conclusões cientificamente válidas, não se contenta com referências aleatórias a figuras do Direito estrangeiro. Estas podem ser ilustrativas, e até sugestivas de reflexões comparativas, em conversas jurídicas informais, em publicações divulgativas de um tema ou mesmo no processo de identificação de problemas de pesquisa.
Em um texto científico que busca a solução de um problema identificado no âmbito do sistema jurídico pátrio, qualquer que seja o país, a utilização do Direito estrangeiro deve se fazer acompanhar da clara identificação das razões objetivas para tanto. Sobra dizer que a comparação de uma figura jurídica transcende, em muito, a mera comparação de enunciados normativos ou de dispositivos de decisões judiciais. A pesquisa deve demonstrar os critérios utilizados para definir a relação da comparação com o problema que busca enfrentar, não deixando dúvidas quanto ao objeto (“o quê?”), a justificativa (“por quê?”) e o objetivo (“para quê?”) da comparação. Sem este mínimo exercício crítico, dificilmente a referência, ou tentativa de análise, do Direito estrangeiro passará de mera justaposição de figuras jurídicas aleatórias, um adorno na construção textual.
A adoção destes critérios, sempre pautados pelo problema que se busca resolver, o que nem sempre terá relação com as características subjetivas da pessoa envolvida com a pesquisa, permitirá a adequada identificação dos elementos a serem objeto de comparação, o que inclui a delimitação de quais figuras jurídicas, em quais ordenamentos nacionais, em qual período e a partir de qual perspectiva se dará a análise.
Ademais, assim como a solução a um problema jurídico não pode ser adequadamente analisada, e muito menos replicada, sem a consideração das circunstâncias nas quais foi gestada, a pessoa que se dedica à pesquisa em ciências jurídicas não pode ignorar as limitações impostas pela cultura jurídica na qual se formou. A pesquisa será sempre realizada por uma pessoa que possui sua formação vinculada a determinado contexto cultural e, por mais que se dedique ao conhecimento objetivo do ordenamento jurídico estrangeiro, raramente alcançará a compreensão da pessoa que desenvolveu sua personalidade imersa naquele Direito. Cada Direito, cada pessoa pesquisadora, possui suas circunstâncias.
Permita-se a referência à vastamente citada reflexão de José Ortega y Gasset que afirmou, que “yo soy yo y mi circunstancia”. No entanto, não se esqueça a sua sequência imediata, muitas vezes ignorada, segundo a qual “si no la salvo a ella [mi circunstancia] no me salvo yo”. Ou, melhor dito, não se ignore que faz parte de suas Meditaciones del Quijote, sem desconsiderar que foram publicadas por um filósofo madrilenho, no ano de 1914. Não se trata de um texto com pretensões jurídico-científicas aparentes, mas serve de bom exercício de pesquisa.
Thiago Santos Rocha
Editor-Chefe
https://orcid.org/0000-0003-3042-7059