https://doi.org/10.18593/ejjl.34821
Razoabilidade e proporcionalidade na hermenêutica do direito público
Legal reasoning and proportionality in public law hermeneutics
Maria Fernanda Pereira Rosa1
Rafael Lazzarotto Simioni2
Resumo: O presente artigo objetiva explicitar as diferenças estruturais e funcionais inscritas na história dos conceitos de proporcionalidade e razoabilidade, de modo a demonstrar as diferentes possibilidade e âmbitos de aplicação no campo dos direitos fundamentais e sociais. Trata-se de conceitos que ultrapassaram as discussões hermenêuticas e hoje encontram-se presentes tanto na legislação nacional positiva, quanto em precedentes judiciais e doutrinas jurídicas importantes, mas com significados contingentes e muitas vezes utilizados com finalidades retóricas. Assim, esse uso predominantemente retórico da proporcionalidade e razoabilidade obstaculizam as suas respectivas funções interpretativas, especialmente a proteção dos direitos fundamentais-sociais. Através do método analítico e a técnica de revisão literária sistemática, esta pesquisa conclui que razoabilidade e proporcionalidade, com suas diferenças tanto estruturais quanto funcionais, são importantes chaves interpretativas da nossa cultura jurídica, que transcendem o direito positivo e a dogmática jurídica para afirmar, em um nível metalinguístico, a proteção e realização prática dos direitos fundamentais-sociais.
Palavras-chaves: direito constitucional; razoabilidade; proporcionalidade; direitos fundamentais.
Abstract: This article explain the structural and functional differences inscribed in the history of the concepts of proportionality and reasonableness, in order to demonstrate the different possibilities and scopes of application in the field of fundamental and social rights. These are concepts that have gone beyond hermeneutical discussions and are now present both in positive national legislation, as well as in judicial precedents and important legal doctrines, but with contingent meanings and often used for rhetorical purposes. Thus, this predominantly rhetorical use of proportionality and reasonableness obstructs their respective interpretative functions, especially the protection of fundamental social rights. Through the analytical method and the technique of systematic literary review, this research concludes that reasonableness and proportionality, with their structural and functional differences, are important interpretative keys of our legal culture, which transcend positive law and legal dogmatics to affirm, in a metalinguistic level, the protection and practical realization of fundamental-social rights.
Keywords: constitutional law; reasonableness; proportionality; fundamental rights.
Recebido em 23 de maio de 2024
Avaliado em 23 de junho de 2024 (AVALIADOR A)
Avaliado em 23 de junho de 2024 (AVALIADOR B)
Aceito em 01 de julho de 2024
Introdução
O Direito é tangível, ou pelo menos precisa parecer ser. Existe uma necessidade social de compreensão do Direito como algo palpável. No geral, quando as pessoas estão diante de demandas judiciais o que está sendo discutido, sempre será tangível para os demandantes. Mesmo tratando-se da moral ou imagem. O indivíduo que sofreu determinado dano, sempre irá visualizar o objeto do dano, não como um conceito geral e abstrato e sim como um conglomerado de lembranças, sentimentos específicos e tangíveis, já que toda essa percepção faz parte do próprio indivíduo.
Por mais abstratos que sejam alguns conceitos, como razoabilidade e proporcionalidade por se tratarem de conceitos advindos do mundo jurídico, passa a haver uma atribuição materializada a estes conceitos intangíveis, o que em última análise pode explicar o motivo pelo qual no Brasil há tanta divergência sobre a distinção entre razoabilidade e proporcionalidade.
Diariamente são prolatadas centenas de sentença que se utilizam da razoabilidade e proporcionalidade para justificar os danos morais, geralmente através de frases como: “A pretensão à indenização por dano moral leva em conta as peculiaridades do caso, com aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que estabelecem uma relação equitativa entre a gravidade da lesão e o valor da indenização, que não deve ser insignificante ao ofensor, nem causar enriquecimento indevido à vítima.” Evidenciando o uso meramente retórico da razoabilidade e proporcionalidade no cenário jurídico nacional.
Desde a Constituição Federal de 1988, a ordem jurídica brasileira incorporou princípios de Direito Público que rapidamente conformaram diversos ramos do Direito Administrativo, dentre eles, a razoabilidade e a proporcionalidade nas decisões. Expressamente previstas no Direito brasileiro no artigo 21, parágrafo único da LINDB, artigo 2º da Lei 9.784/99 e artigo 8º do CPC, como também em uma série de súmulas e precedentes dos tribunais superiores, a razoabilidade e a proporcionalidade são, contudo, aplicadas em geral de modo ambíguo, vago, indeterminado e com finalidade precipuamente retórica.
Essa problemática pode ser didaticamente observada em três dimensões: a) na primeira dimensão identifica-se o uso da razoabilidade e proporcionalidade como sinônimos, que não são, nem histórica, tampouco funcionalmente; b) na segunda dimensão identifica-se o uso contingente da razoabilidade e proporcionalidade como fichas retóricas em discursos jurídicos tanto do direito público – ramo no qual ambos foram criados –, quanto do direito privado; c) na terceira dimensão, destaca-se o uso da razoabilidade e proporcionalidade com a finalidade de relativizar direitos fundamentais-sociais importantes, especialmente em países periféricos, marcados pela desigualdade social, como o Brasil.
Apesar das pesquisas jurídicas realizadas pela comunidade científica nas décadas de 1990 e 2000, que procuraram explicitar as diferentes motivações históricas da razoabilidade e da proporcionalidade, suas formações históricas e problemas práticos para os quais elas foram pensadas por autores como Wilson Steinmetz em sua obra Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade (2001); Virgílio Afonso da Silva na Revista dos Tribunais n. 798 em 2002, com o artigo de título: “O proporcional e o razoável”; Lucas Laurentis em sua obra: “A proporcionalidade do direito constitucional: Origem modelos e reconstrução dogmática”; Luiz Roberto Barroso em seu livro: “Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo” e o artigo com título: “Os princípios da razoabilidade e proporcionalidade no direito constitucional” publicado na Revista de Direito do Ministério Público, n. 4 em 1996; Lenio Streck na obra: “Dicionário de hermenêutica”; Wilis Santiago Guerra Filho com seu artigo “O princípio constitucional da proporcionalidade” publicado na Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região em 2002 e por fim, Humberto Ávila nas obras: “A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade” de 1999 e “Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos” de 2018.
A dogmática jurídica nacional e os precedentes jurisdicionais, no geral, não assimilaram a importância dessas distinções ou não as levaram à sério. Isso porque, diferente das experiências da Europa e dos USA, onde razoabilidade e proporcionalidade estão mais ligadas à proteção de direitos fundamentais individuais, no Brasil elas também passaram a ser utilizadas no campo dos direitos fundamentais sociais, especialmente sob a forma de princípios curiosamente antagônicos, como a “reserva do possível” e o “mínimo existencial”, dentre outros eufemismos para a relativização dos direitos a prestações pelo Estado de Bem-Estar Social.
No que segue, queremos resgatar essas diferentes motivações históricas da razoabilidade e proporcionalidade para, com a ajuda dos trabalhos de Steinmetz, Laurentis, Virgilio Afonso da Silva, estabelecer uma reflexão crítica sobre o uso desses conceitos para afirmar e não para relativizar, direitos fundamentais-sociais no Brasil. Para tanto, objetiva-se explicitar as diferenças estruturais e funcionais inscritas na história dos conceitos de proporcionalidade e razoabilidade, de modo a demonstrar as diferentes possibilidades e âmbitos de aplicação.
Para serem alcançados estes resultados, este artigo será desenvolvido com o método analítico e a técnica de revisão sistemática da literatura jurídica dos anos de 1990 e 2000, que foi o período no qual foram desenvolvidos os estudos mais importantes sobre as distinções funcionais e estruturais da razoabilidade e da proporcionalidade no Brasil. Esse levantamento permitirá desenvolver os objetivos, em especial a pergunta pelas razões que motivaram o apagamento ou desinteresse da dogmática jurídica brasileira em geral com essa importante diferenciação.
Entender os motivos pelos quais a dogmática jurídica em geral ignorou as diferenças entre proporcionalidade e razoabilidade é uma questão relevante não apenas para o problema da efetividade dos direitos fundamentais-sociais, mas sobretudo para o desenvolvimento do Projeto de Pesquisa “Topologias da Hermenêutica Jurídica”, que procura explicitar, em uma perspectiva histórica, as diferentes problemáticas da hermenêutica jurídica que contribuíram para a formação da cultura jurídica brasileira do século XX, realizado no âmbito do Grupo de Pesquisa Margens do Direito (PPGD/FDSM e CNPq).
1 Origens da razoabilidade e proporcionalidade
O uso da razoabilidade e proporcionalidade como sinônimos é fundamentalmente contraproducente e simplificador. Contraproducente porque tratar os dois conceitos como sinônimos esvazia seus fundamentos históricos mais importantes, que é a afirmação e garantia dos direitos fundamentais-sociais contra os excessos. E simplificador porque tanto a razoabilidade quanto a proporcionalidade são operações discursivas altamente complexas, que envolvem estruturas de pensamento que transcendem os limites sintáticos dos textos legais, para permitir considerações de justiça, equidade, equilíbrio e correção na aplicação prática do direito.
Existem, historicamente, importantes diferenças entre razoabilidade e proporcionalidade. Elas não só possuem estruturas discursivas diferentes, como também apresentam finalidades diferentes. Além disso, a razoabilidade tem origem estadunidense e está relacionada a ideia de equilíbrio e equidade na aplicação do direito. A proporcionalidade, por sua vez, advém de uma cultura jurídica da Alemanha, desenvolvida a partir da jurisprudência dos interesses, e diz respeito à suportabilidade das sanções legais e está ligada à ponderação. Os dois conceitos estão intrinsicamente conectados ao direito e sua diferenciação é de suma importância. Suas distinções a priori se dão no ponto de vista estrutural, já que a razoabilidade faz a proibição do excesso (Ubermassverbot) e proibição da proteção deficiente (Untermassverbot), enquanto a proporcionalidade trabalha com adequação, necessidade e ponderação em sentido estrito.
Bem como, a posteriori existem diferenças referente a finalidade destes conceitos. A razoabilidade busca entender se a sanção jurídica no caso concreto não é exagerada ou insuficiente para a tutela do bem, ao passo que a proporcionalidade trata da solução, de modo justificado e argumentativamente consistente, dos problemas de colisão de princípios.
O princípio da razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento ligados à garantia do devido processo legal (due process of the law), instituto ancestral do direito norte-americano (Barroso, 1996, p. 160). Sua matriz remonta à cláusula lei da terra (law of the land), presente na Carta de João Sem Terra/Magna Carta, de 1215. O princípio do devido processo legal (due process of the law) nos Estados Unidos, é marcado por duas grandes fases: a primeira, onde se revestiu de caráter estritamente processual (procedural due process), e uma segunda, de cunho substantivo (substantive due process). Esta versão substantiva do devido processo legal tornou-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais, ensejando o controle do arbítrio do Legislativo e da discricionariedade governamental, é por seu intermédio que se procede ao exame de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality) das normas jurídicas e dos atos do Poder Público em geral (Castro, 1989, p. 210-211).
Por outro lado, como já citado de antemão, a regra da proporcionalidade tem origem alemã. Foi com o advento da Lei Fundamental e da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão que a regra da proporcionalidade passou a integrar o ordenamento jurídico alemão. Diferentemente do que pregado por alguns, a proporcionalidade não se refere à prática judicial inglesa, do common law ou à Carta de João Sem Terra/Magna Carta, de 1215. Impróprio extrair, portanto, uma definição de proporcionalidade nos contornos em que hoje a conhecemos.
São, três os casos paradigmáticos do Tribunal alemão: o caso Lüth (Luth-Urteil), o caso das farmácias (Apotheken-Urteil) e o caso da armazenagem do petróleo (Erdölbevorratung). A Corte, inicialmente, demonstrou certa hesitação e assistematicidade na aplicação da proporcionalidade no caso Lüth (Luth-Urteil) e no caso das farmácias (Apotheken-Urteil). Mas já no terceiro caso (Erdölbevorratung), a Corte assentou seus contornos de maneira definitiva, ao afirmar que o meio utilizado pelo legislador deveria ser adequado e necessário para alcançar o fim almejado pela legislação (Bonavides, 2004, p. 406). Heinrich Scholler, aduz que “a proporcionalidade se desenvolveu, originariamente, no âmbito do direito administrativo, mais especificamente, das normas sobre o poder de polícia e seus limites, evolução que já remonta ao século XIX” (Scholler, 1999, p. 93).
1.1 Razoabilidade e proporcionalidade como sinônimos
Na dogmática jurídica brasileira, entretanto, razoabilidade e proporcionalidade são geralmente consideradas sinônimos ou como conceitos intercambiáveis. Consoante preconiza Marcus Alan de Melo Gomes (Gomes, 2008, p. 149), o proporcional é razoável, mas o razoável nem sempre é proporcional — ponderação também feita por Mariângela Gama de Magalhães Gomes (Gomes, 2003, p. 38). No mesmo sentido, Suzana de Toledo Barros vislumbra o princípio da razoabilidade forjado na jurisprudência dos Estados Unidos da América como expressão do princípio da proporcionalidade na ordem jurídica estadunidense (Barros, 2003, p. 59-70).
Também notando sinonímia entre razoabilidade e proporcionalidade, Eduardo Melo de Mesquita consigna:
Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (Mesquita, 2006, p. 68).
E conforme Irene Patrícia Nohara, “por mais que se aponte a utilização do termo proporcionalidade de forma diferenciada, sua identificação se pauta no juízo de razoabilidade, e salvo a diferenciação quanto à nomenclatura e à identificação dos elementos, que não é pacífica, os dois conceitos” (Nohara, 2006, p. 96-153) — infere — “acabam se prestando ao mesmo objetivo de controle das atividades legislativa e executiva para que não haja restrições excessivas aos direitos dos cidadãos” (Nohara, 2006, p. 96-153).
Destarte, Luiz Roberto Barroso afirma que “se nada impede que se atribuam significados diversos à mesma palavra, com muito mais razão será possível fazê-lo em relação a vocábulos distintos” (Barroso, 1996, p. 168; 2009, p. 258). Lenio Streck também analisa a proibição do excesso e da proteção deficiente como proporcionalidade (Streck, 2005). Inclusive, Streck em seu livro Dicionário de hermenêutica trata da proporcionalidade como ponderação e a descreve como sendo o modo de resolver os conflitos jurídicos em que há colisão de princípios, num procedimento composto por três etapas: a adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito (Streck, 2017, p. 217). O autor ainda critica a errônea aplicação da ponderação alexyana no Brasil e discorre que há colisão entre normas e por regras e princípios serem normas, abre-se a possibilidade da “ponderação de regras” (Streck, 2017, p. 224), o que seria uma prática equivocada de acordo com a própria teoria da proporcionalidade de Alexy.
Mas não é só estrutural e funcionalmente que os conceitos se distinguem. Historicamente também, os termos estão revestidos de conotações técnico-jurídicas próprias. A razoabilidade e a proporcionalidade expressam construções jurídicas diversas e o fato de possuírem objetivos semelhantes não autoriza o tratamento de ambas como sinônimos (Ávila, 1999, p. 173; 2018, p. 203-205). De acordo com Flavia D´Urso, adotar-se o princípio da razoabilidade como sinônimo do princípio da proporcionalidade reduziria a abrangência daquele, ao confiná-lo à seara do devido processo legal (D’Urso, 2007, p. 59).
A regra da proporcionalidade é uma regra de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, empregada comumente nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, promove a restrição de outros direitos fundamentais. O objetivo da aplicação da regra da proporcionalidade, é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais. E invocando a célebre expressão, é uma “restrição às restrições”. Para alcançar esse objetivo, o ato estatal deve passar pelos exames da adequação, da necessidade e da ponderação em sentido estrito. Esses três exames são considerados como sub-regras da regra da proporcionalidade (Silva, 2002, p. 23).
Por outro lado, a razoabilidade trabalha com a proibição do excesso (Ubermassverbot) e proibição da proteção deficiente (Untermassverbot). Antes se falava apenas em Ubermassverbot. Já há algum tempo fala-se também em Untermassverbot. Esse termo foi utilizado pela primeira vez, segundo Silva (2002, p. 28), por Claus-Wilhem Canaris, em seu famoso “Grundrechte und Privatrecht”. O debate sobre a aplicabilidade da regra da proporcionalidade também para os casos de omissão ou ação estatal insuficiente encontra-se em fase embrionária, mas a simples possibilidade de aplicação da proporcionalidade a casos que não se relacionam com o excesso estatal já é razão suficiente para abandonar o uso sinônimo de regra da proporcionalidade e proibição de excesso (Silva, 2002, p. 28).
Na Inglaterra fala-se em princípio da irrazoabilidade e não em princípio da razoabilidade (Craig, 1999). Inclusive, a utilização do termo razoabilidade, no lugar de irrazoabilidade, pode ser fruto da influência argentina (Guerra Filho, 2002, p. 283). A origem concreta do princípio da irrazoabilidade, se encontra em decisão judicial proferida em 1948 (1948, p. 228-230). E esse teste da irrazoabilidade, conhecido também como teste Wednesbury, implica-se na rejeição de atos que sejam excepcionalmente irrazoáveis. Na fórmula clássica da decisão Wednesbury: “se uma decisão (...) é de tal forma irrazoável, que nenhuma autoridade razoável a tomaria, então pode a Corte intervir”. Percebe-se que o teste sobre a irrazoabilidade é muito menos intenso do que os testes que a regra da proporcionalidade exige, destinando-se meramente a afastar atos absurdamente irrazoáveis. Inclusive, Luís Virgílio Afonso da Silva, desconsidera que a razoabilidade teria nascimento na Inglaterra, uma vez que o Wednesbury test (Associated Provincial Picture Houses Ltd. v. Wednesbury Corporation) teria disposto um teste de rejeição de atos excepcionalmente irrazoáveis, não um princípio de razoabilidade (Silva, 2002, p.30).
Desta maneira, nota-se que a análise conjunta da proporcionalidade e razoabilidade avalia se a restrição é suportável ou excessiva, formando um só teste. Negar a existência de um desses vícios implica em afastar a possibilidade do segundo. Basta, perceber que tal comunhão não é necessária e que os testes podem ser avaliados com base em duas perspectivas e duas técnicas totalmente distintas, para notar que proporcionalidade e razoabilidade podem ser provas diferentes. Tal distinção traz, por outro lado, um ganho analítico e prático à análise dos limites da medida estatal interventiva, pois, como demonstra o caso, nem sempre a excessividade da intervenção no direito está acompanhada da insuportabilidade de seus efeitos (Laurentiis, 2017, p. 204).
A confusão acontece também no campo terminológico, pois no Brasil a proporcionalidade é tratada equivocadamente como princípio. Contudo, ela é uma regra. Não exatamente uma regra de direito, mas uma regra metodológica. Alexy afirma que os subelementos da proporcionalidade “devem ser classificados como regras” (Alexy, 2017, p. 100, nota de rodapé 84). Isso porque, proporcionalidade não é um fundamento ou um objetivo a ser alcançado na melhor medida possível, mas sim uma técnica, um método, uma forma de compreensão cuja aplicação é, seguindo a linguagem de Alexy, inspirada em Dworkin (2002, p. 24), uma questão de “tudo ou nada”, ou seja, uma regra. A não-identidade entre os dois conceitos fica ainda mais clara quando se acompanha o debate acerca da adoção do Human Rights Act de 1998 na Inglaterra. Somente a partir daí passou a haver um real interesse da doutrina jurídica inglesa na aplicação da regra da proporcionalidade, antes praticamente desconhecida na Inglaterra. Atualmente, discute-se qual o papel a regra da proporcionalidade deverá desempenhar ao lado do princípio da irrazoabilidade ou, até mesmo, se aquela deverá substituir este. Se ambos fossem sinônimos, essa discussão seria impensável (Craig, 1999, p. 85-106).
Nem sempre os termos utilizados no discurso jurídico guardam a mesma relação que possuem na linguagem laica. Assim, se um pai proíbe a seu filho que jogue video game durante um ano, apenas porque este, acidentalmente, quebrara um de seus controles novos, é de se esperar que o castigo seja classificado pelo filho, ou por qualquer outra pessoa, como desproporcional. Pode se dizer também que o pai não foi razoável ao prescrever o castigo. Mas o mesmo raciocínio não se aplica quando se fala, no âmbito de um discurso jurídico, em princípio da razoabilidade ou em regra da proporcionalidade: evidente que os termos estão revestidos de uma conotação técnico-jurídica e não são mais sinônimos, pois expressam construções jurídicas diversas. Pode-se admitir que tenham objetivos semelhantes, mas isso não autoriza o tratamento de ambos como sinônimos.
A tendência a confundir proporcionalidade e razoabilidade pode ser notada não só na jurisprudência do STF, como se verá adiante, mas também em inúmeros trabalhos acadêmicos, tanto no nível científico quanto nos manuais da dogmática jurídica simplificada. São comuns entendimentos que afirmam: “O princípio da proporcionalidade, (...) como uma construção dogmática dos alemães, corresponde a nada mais do que o princípio da razoabilidade dos norte-americanos” (Barros, 2000, p. 57). Temos como hipótese que a razoabilidade e a proporcionalidade passaram a ser tratadas como sinônimos através do cruzamento de referências da Alemanha (proporcionalidade) e USA (razoabilidade). Difícil dizer se esse amálgama hermenêutico começou nos precedentes jurisdicionais ou na doutrina da academia. Mas o fato é que esse sincretismo pode ser prejudicial à afirmação dos direitos fundamentais-sociais, que é precisamente o fundamento para o qual ambos os conceitos hermenêuticos foram pensados e desenvolvidos. Podemos chamar este fenômeno de razoabilidade e proporcionalidade à brasileira.
2 Razoabilidade e proporcionalidade como fichas retóricas em discursos jurídicos
A jurisprudência do STF pouco ou nada acrescenta à discussão e apenas solidifica a ideia de que o chamado princípio da razoabilidade e a regra da proporcionalidade seriam sinônimos. A invocação da proporcionalidade é, não raramente, um recurso com caráter meramente retórico, e não sistemático. Em inúmeras decisões, sempre que se queira afastar alguma conduta considerada abusiva, recorre-se à fórmula: “à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, o ato deve ser considerado inconstitucional”. O Judiciário brasileiro, em geral, limita-se a equiparar proporcionalidade a razoabilidade, atendo-se à fórmula de que é proporcional aquilo que não extrapola os limites da razoabilidade.
Fausto de Morais (2016) dedicou-se a demonstrar como em 189 casos o Supremo Tribunal Federal tratou de maneira equivocada o procedimento da proporcionalidade, segundo explicitado na teoria alexiana. Nessas decisões a ponderação se incumbe apenas de demonstrar uma função explicitativa das possibilidades jurídicas nas quais o intérprete pode se valer para resolver um caso de colisão entre princípios, mas não fornece uma carga prescritiva para apontar qual posição seria mais adequada (Morais, 2016).
No âmbito da aplicação de uma regra ou princípio ao caso concreto, Robert Alexy reconhece a existência de uma primazia no nível das regras, afirmando que “quando se fixam determinações no nível das regras, é possível afirmar que se decidiu mais que a decisão a favor de certos princípios” (Alexy, 2008, p. 140). Ou seja, para Alexy, quando o texto constitucional prescreve uma hipótese e uma consequência de sua realização no mundo real, este teria ido além e aplicado os princípios que regem aquele ordenamento jurídico para o fato previsto na norma. Portanto, o respeito ao texto constitucional exigiria uma submissão ao legislador constituinte, não sendo possível que o Tribunal Constitucional se utilize de princípios com o mero intuito de fazer valer a vontade particular de seus componentes e superar aquilo que está disposto no texto constitucional.
Alexy desenvolveu uma reconstrução teórica, defendendo a abordagem básica do Tribunal Constitucional Federal aos direitos constitucionais como “princípios”. Como princípios, argumentando que os direitos são “mandados de otimização”, a serem ajustados e calibrados por meio do exame da proporcionalidade e, em particular, através do que ele chamou de “fórmula do peso”, descrita em notação matemática em muitos de seus escritos (Alexy, 2002, p. 52-53; 2017, p. 18).
Obviamente o uso retórico de fórmulas jurídicas familiares inquestionadas, incompreendias e incomensuráveis é bastante comum em todos as formas de discurso jurídico, não só nos tribunais, mas também na advocacia e nas demais organizações jurídicas. O problema do uso retórico da proporcionalidade e razoabilidade é que isso pode comprometer a eficácia de direitos fundamentais importantes da sociedade. Se o critério hermenêutico da aplicação da razoabilidade e da proporcionalidade não é bem definido, com clareza e discernimento, o uso retórico desses conceitos pode servir para qualquer coisa, inclusive para relativizar direitos fundamentais importantes, como acontece, por exemplo, no âmbito da fórmula da reserva do possível. O uso retórico desses conceitos acaba, algumas vezes, justificando justamente o sacrifício de direitos fundamentais em nome de uma razoabilidade ou proporcionalidade abstrata que só existe nesse nível retórico dos discursos jurídicos.
Razoabilidade é proibição do excesso e proibição da proteção deficiente dos direitos fundamentais das pessoas, não justificativas para instituir retoricamente estados de exceção seletivos. Proporcionalidade é juízo de adequação entre meios e fins dos princípios em colisão, necessidade desses meios para os fins dos princípios em colisão e ponderação entre os princípios em estado de colisão. Não se trata de fórmulas de contingência retóricas, mas sim de estruturas analíticas muito bem pensadas justamente para a proteção dos direitos fundamentais e não para justificar restrições, diminuições ou relativizações dos mesmos. A afirmação, que já se tornou um mantra na cultura jurídica atual, de que os direitos fundamentais “não são absolutos” porque precisam ser conformados com outros princípios igualmente fundamentais em estado de colisão é um problema que precisa ser seriamente discutido pela comunidade científica, porque isso mexe, tanto no nível da retórica jurídica quanto no da argumentação técnica, com a própria noção de direitos fundamentais como cláusulas pétreas.
Afinal, se o Legislativo não pode, nem por emenda constitucional (art. 60 §4º, IV, da CF/88), discutir norma jurídica tendente a diminuir ou restringir direitos fundamentais, por que razão o Judiciário poderia? Razoabilidade e proporcionalidade podem restringir até a proibição pétrea do art. 60 §4º, IV, da CF/88? Evidentemente não. O uso retórico desses conceitos hermenêuticos apresenta esse problema grave de proteção dos direitos fundamentais, sobre o qual a comunidade jurídica precisa retomar os estudos dos anos de 1990 e 2000 para dedicar uma séria e discernida discussão sobre proporcionalidade e razoabilidade.
3 Razoabilidade, proporcionalidade e relativização de direitos fundamentais-sociais
É fato que existe uma diferenciação ao operar no déficit das necessidades e ao operar na beleza das necessidades. Em última análise, existem questões fáticas que atendem as mesmas necessidades das quais a beleza platônica das necessidades parece ocupar meramente uma função motivacional. Muitos defendem que a proporcionalidade pressupõe uma restrição a direitos fundamentais para além do já estabelecido pela Constituição, por parte do juiz. Justificando que, quando os princípios colocam um valor, cuja medida de realização não pode ser retirada da norma, a aplicação de tais princípios é uma ponderação orientada a um fim. Como nenhum valor pode pretender primazia incondicional em relação aos outros valores, a ponderação dos direitos se transforma numa realização concretizadora de valores relativamente ao caso concreto considerado.
Contudo, tal argumento evidência o uso da razoabilidade e proporcionalidade com a finalidade específica de relativizar direitos fundamentais-sociais, como se o Judiciário pudesse decretar implicitamente um suposto “estado de exceção” seletivo para aquela situação concreta. É tradição em países periféricos a relativização de direitos fundamentais por meio dessa estratégia discursiva, juntamente com tentativas frustradas de justificações acadêmicas por meio de teorias sofisticadas. No Brasil, infelizmente o uso neste sentido da razoabilidade e proporcionalidade se tornou senso comum teórico (Warat, 2010, p. 27-28).
Ora, se o aplicador do Direito pode restringir direitos fundamentais, há então a perda da primazia rigorosa (Strikten Vorrang). Consequentemente, no caso de colisão de direitos fundamentais, se a fundamentação assumir por completo argumentos de fixação de objetivos é introduzido no discurso jurídico a compreensão deontológica das normas jurídicas. Com isso os direitos fundamentais resultam sacrificados em favor da realização dos fins coletivos. Isso pressupõe um modelo de organização social baseado em valores, em objetivos, em finalidades, as quais sempre podem ser negociadas, transigidas, alienadas. Entretanto, direitos fundamentais não são valores, não são objetivos a serem realizados na melhor medida possível, mas sim, sobretudo, princípios, fundamentos, condições de possibilidade de uma cultura política que atingiu um certo grau de civilização. A aplicação de direitos fundamentais não é uma questão de escolha jurisdicional sobre qual deve prevalecer no caso concreto e qual deve ser sacrificado, mas sim uma questão de afirmação, de garantia, de realização material desses direitos em nossa cultura política. Razoabilidade e proporcionalidade servem para proteger, não para esvaziar o sentido deontológico dos direitos fundamentais.
Relativizar direitos fundamentais com base na razoabilidade ou na proporcionalidade é justamente o exemplo de uma fundamentação retórica que busca privilegiar o decreto tácito de estados de exceção seletivos. Ora, o exame da proporcionalidade acontece nas situações em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental, promove a restrição de outros direitos fundamentais. Ou seja, fundamentalmente a proporcionalidade é uma restrição às restrições. De outro modo, a análise da razoabilidade corrige o modo que se realiza materialmente o direito, no sentido de evitar tanto os excessos que injustamente restringem direitos fundamentais, quanto a proteção deficiente dos mesmos. Justamente o equilíbrio entre proibição do excesso e proibição da proteção deficiente na realização material dos direitos fundamentais é o que sinaliza o juízo de razoabilidade.
No âmbito dos direitos fundamentais, vale destacar também a discussão acerca da admissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos. Sustenta Ada Pellegrini Grinover que: “embora se aceite o princípio geral da inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos, propugna-se a ideia de que em casos extremamente graves, em que estivessem em risco valores essenciais, também constitucionalmente garantidos, os tribunais poderiam admitir e valorar a prova ilícita. À primeira vista, a Constituição brasileira parece impedir essa solução, quando não abre nenhuma exceção expressa ao princípio da proporcionalidade” (Grinover, 1992, p. 46).
De fato, a Constituição não prevê a aplicação da regra da proporcionalidade. E, por uma razão lógica, se não a prevê, também não pode abrir exceções e dizer quando ela não é aplicável. Se entende, no entanto, que a regra da proporcionalidade decorre logicamente do fato de os direitos fundamentais, em sua maioria, serem princípios, e não regras. De modo que não haveria como afastar a aplicação da regra da proporcionalidade sob o argumento de que não há previsão constitucional a respeito. A construção discursiva é como se ela partisse de um suposto estado de exceção hermenêutico, diante do qual o intérprete ficaria autorizado a construir qualquer coisa sobre o direito. E essa construção não é tão diferente daquela apresentada por Robert Alexy, quando justifica a aplicação da máxima da proporcionalidade justamente – e exclusivamente – nas hipóteses restritas de colisões entre preceitos fundamentais.
Isso significa, dentre outras coisas, que se pode ponderar regras. Não há proporcionalidade sobre regras. É absolutamente equivocada a possibilidade de sopesamento entre regras ou entre regras e outros princípios colidentes, porque regras, ao contrário dos princípios, não comportam sopesamento. Regras ou se aplicam inteiramente, ou não se aplicam. Regras são questões de contradição, cuja solução só pode ser realizada por meio de exceções, como os critérios de solução das antinomias do direito. A proibição da prova ilícita não é um objetivo a ser alcançado na melhor medida possível, não é um princípio, mas sim uma regra constitucional, que se aplica inteiramente ou não se aplica nada. Não há uma prova “mais ou menos” ilícita. Ou é ilícita ou não é. Não haveria, por conseguinte, como relativizar a proibição das provas ilícitas por meio da aplicação da regra da proporcionalidade, pois essa só é aplicada quando há colisão entre princípios, não nos casos de conflitos entre regras.
4 Razoabilidade e proporcionalidade no mundo
Atualmente em todo globo, existem pesquisas relacionadas ao uso e tratamento da razoabilidade e proporcionalidade, tanto no que diz respeito ao seu uso doméstico como também em relações internacionais. Em alguns países existe a distinção entre os termos, em outros não. No Canadá, a Suprema Corte introduziu uma abordagem intermediária na revisão judicial, enfatizando uma análise de razoabilidade centrada na proporcionalidade. Iryna Ponomarenko, no artigo “Tipping the Scales in the Reasonableness-Proportionality Debate in Canadian Administrative Law” aduz que a razoabilidade e a proporcionalidade são padrões de revisões distintos, com diferentes pressupostos e efeitos normativos, onde a proporcionalidade impõe restrições substantivas à ação governamental. Enquanto, a razoabilidade está enraizada na cultura da autoridade e a proporcionalidade na cultura da justificação. Sendo assim, razoabilidade e proporcionalidade são padrões distintos de revisão no direito administrativo canadense (Ponomarenko, 2016, p. 144).
No direito público do Reino Unido, Yossi Nehushtan descreve a razoabilidade como um exercício de equilíbrio e ponderação. O autor em seu artigo “The Non-Identical Twins in UK Public Law: Reasonableness and Proportionality” aduz que a proporcionalidade acrescenta muito pouco aos fundamentos existentes de revisão judicial no direito público do Reino Unido. Para ele a adição da proporcionalidade não está necessariamente focada no processo administrativo de ponderação e equilíbrio (Nehushtan, 2017, p. 69-86).
Por outro lado, Jud Mathews discute a razoabilidade e a proporcionalidade como duas abordagens canônicas para a revisão das escolhas administrativas no Reino Unido, sendo a razoabilidade entendida como um padrão diferente e a proporcionalidade como uma forma intensiva de exame completo e cuidadoso. O autor examina a abordagem tradicional de Wednesbury em relação à revisão da razoabilidade e aborda a revisão da proporcionalidade, com o objetivo de comparar as duas abordagens no capítulo 44 do livro “The Oxford Handbook of Comparative Administrative Law” (Mathews, 2020, p. 917-933).
No direito administrativo australiano, a razoabilidade é um conceito central e os tribunais usam a “irracionalidade” como base de revisão judicial para determinar a fronteira entre a legalidade e o mérito na prática. Geoff Airo-Farulla, analisa uma visão geral da razoabilidade, racionalidade e proporcionalidade na revisão judicial de ações administrativas. As cortes australianas navegam mais explicitamente nas fronteiras entre a legalidade e o mérito da ação administrativa ao aplicar os fundamentos da razoabilidade (Airo-Farulla, 2012, p. 212-232).
Nessa perspectiva é relevante analisar a África do Sul. A Constituição sul-africana não possui direitos fundamentais com reserva legal. Adotou-se uma cláusula limitativa geral, que é aplicável a todos os direitos fundamentais. Dessa forma, não há direitos fundamentais sem reserva legal, com reserva legal qualificada e com reserva legal simples. Há, tão somente, uma lista de direitos fundamentais, os quais, sem exceção, são limitáveis por meio de uma cláusula geral, prevista na seção 36 da Constituição da República da África do Sul de 1996 (Costa-Neto, 2014, p. 192).
Essa cláusula para George Barrie foi influenciada pela cláusula de limitação geral da Carta Canadense (art. 1) e também pelo direito constitucional alemão na seção 36 da Constituição da República da África do Sul de 1996, que afirma: “(...) os direitos da Declaração de Direitos podem ser limitados apenas nos termos de uma lei de aplicação geral” (tradução livre). No mesmo sentido o artigo 19 da Lei Básica Alemã dispõe que:
Na medida em que, segundo esta Lei Fundamental, um direito fundamental possa ser restringido por lei ou em virtude de lei, essa lei tem de ser genérica e não limitada a um caso particular. Além disso, a lei terá de citar o direito fundamental em questão, indicando o artigo correspondente (tradução livre).
O teste da necessidade, sendo um elemento inerente à doutrina da proporcionalidade, se demonstrou na Corte sul-africana no caso Christian Education South Africa v. Minister of Education. Aqui, um estatuto proibia castigos corporais nas escolas. Os pais apresentaram uma petição ao Tribunal Constitucional afirmando que as suas liberdades religiosas foram violadas porque haviam consentido tais punições que estavam de acordo com as suas crenças religiosas. O tribunal considerou que a política e o objetivo do estatuto eram unificar os métodos educacionais em todo o país. O estatuto era, portanto, necessário. A opinião do tribunal foi que a proibição do castigo corporal era uma limitação justificável do direito à liberdade religiosa (Barrie, 2013, p. 50).
No caso Prince v. President of the Cape Law Society, o Tribunal Constitucional da África do Sul considerou que o uso de cannabis para fins religiosos era justificadamente limitado por uma proibição da posse de cannabis. O tribunal teve de decidir se a falta de isenção para o uso religioso de drogas proibidas era uma limitação justificável do direito à liberdade de religião. O requerente no caso queria tornar-se advogado, mas o seu pedido foi recusado pela Law Society devido a condenações anteriores pelo uso de cannabis. Prince argumentou que o estatuto relevante limitava desproporcionalmente os seus direitos religiosos porque não havia excepção à proibição legal relativa à posse e uso de drogas perigosas por razões religiosas. O tribunal concordou que a proibição legal tinha um propósito adequado na batalha em curso contra as drogas. O tribunal também aceitou que a proibição legal limitava a liberdade religiosa do requerente, já que ele era um Rastafari. Contudo, a maioria do tribunal considerou que a proibição era justificável porque seria impossível distinguir entre o uso Rastafari e outros usos. A proibição foi, portanto, correta de acordo com o teste de necessidade, explicirando novamente o uso da proporcionalidade (Barrie, 2013, p. 50-51).
Contudo, ainda sim, no Tribunal Sul-Africano, razoabilidade e proprocionalidade são tratadas como sinônimos em seus efeitos, pois a proporcionalidade foi aplicada nas decisões de direito administrativo como fundamento da razoabilidade (Barrie, 2013, p. 51). Evidenciando, portanto, o tratamento da razoabilidade como sub-regra da proporcionalidade e não como um instituto diverso.
Extrai-se do estudo das doutrinas especializadas internacionais que a discussão acerca da diferenciação da razoabilidade e proprocionalidade não está finita e muito menos se aproxima da adequada utilização dos termos. Razão pela qual, torna-se se ainda mais explicíta a busca pela aplicação acertada do princípio da razoabilidade e a regra da proporcionalidade.
4.1 Razoabilidade e proporcionalidade no Brasil
O artigo 21, parágrafo único da LINDB, o artigo 2º da Lei 9.784/99 e o artigo 8º do CPC, consolidam a razoabilidade e a proporcionalidade em nosso ordenamento jurídico. No entanto, conforme introduzido a priori o judiciário brasileiro, em geral, quando não trata destes institutos enquanto sinônimos os trata como meras fichas retóricas de interpretação e argumentação. No entanto, os direitos não podem servir de trunfos sobre procedimentos majoritários se as pessoas discordam com relação a quais são e como se materializam esses direitos básicos (Waldron, 1998, p. 75-97).
Os acórdãos das cortes constitucionais soam como livros didáticos, com construções teóricas. Dando a impressão de que o princípio da proporcionalidade parece ter sido feito para ensinar e servir junto da razoabilidade de ferramentas doutrinárias da dogmática jurídica. Já que, de fato, o teste de proporcionalidade pode formar um ponto de partida para trabalhos de teorização extremamente elaborados (Alexy, 2002, p. 8-9). Contudo, estes trabalhos teoréticos retrocitados, só são de fato elaborados caso levem em consideração o próprio significado e técnica de utilização para qual foram elaborados a razoabilidade e proporcionalidade. Cria-se no imaginário jurídico um conceito fantasmagórico, portanto, vazio do que se é razoável ou proporcional.
A passividade da proporcionalidade é visível na forma como apresenta os resultados como sempre já inerente à entrada e ao processo. No nível da teoria constitucional, a ilustração mais impressionante dessa característica é provavelmente o uso de diagramas por Alexy com representações de curvas de indiferença, para ilustrar a lei do equilíbrio que ele considera integral à revisão da proporcionalidade (Alexy, 2002, p. 103-104).
Razoabilidade e proporcionalidade no Brasil podem ser compreendidas como um amálgama espelhado que reflete nossa própria cultura jurídica. Uma imagem mental, similar àquele signo original que, contudo, não é capaz de representar o objeto do conhecimento. Daí a necessidade de discernimento e individualização da razoabilidade e proporcionalidade, para que, transcorram na justiça brasileira decisões mais acertadas na dimensão empírica, levando em consideração as diferenças estruturais e de finalidade da razoabilidade e proporcionalidade abordadas ao longo do presente estudo.
Considerações finais
A prática da indiferenciação entre razoabilidade e proporcionalidade no Brasil influenciou e continua a influenciar diretamente o bem-estar democrático e a qualidade da nossa cultua constitucional. Decisões jurisdicionais, argumentos advocatícios e dogmáticas jurídicas construídas com conceitos imaginários do que seria razoável ou proporcional não permitem desempenhar a verdadeira função para as quais esses conceitos foram pensados e desenvolvidos, que é a proteção e afirmação dos direitos fundamentais. O uso retórico desses conceitos pode comprometer, portanto, a qualidade da nossa cultura política e desequilibrar a complexa e conflituosa relação entre constitucionalismo e democracia. Cria-se no “inconsciente coletivo judicial” uma falsa ideia de razoabilidade e proporcionalidade como valores emocionais, subjetivos, abstratos do direito. Um imaginário que já não possui nenhum vínculo com as razões históricas, os fundamentos e os objetivos das teorias hermenêuticas que os conceberam e desenvolveram.
Nesta investigação destacamos o perfil do uso dos conceitos de razoabilidade e proporcionalidade, no cenário jurídico brasileiro, em três dimensões: a) o uso da razoabilidade e proporcionalidade como sinônimos; b) o uso contingente da razoabilidade e proporcionalidade como fichas retóricas em discursos jurídicos; c) o uso da razoabilidade e proporcionalidade com a finalidade de relativizar direitos fundamentais-sociais.
Entretanto, razoabilidade e proporcionalidade são métodos de interpretação e argumentação jurídica extremamente sofisticados, que pressupõem pré-requisitos específicos para sua aplicação. Tornou-se necessário um processo de “hermenêutica reversa” para resgatarmos os verdadeiros significados e as diferentes problemáticas de aplicação da razoabilidade e proporcionalidade, como já foi feito, no Brasil, nos importantes estudos de Wilson Steinmetz, Virgílio Afonso da Silva, Lucas Laurentis, Luiz Roberto Barroso, Lenio Streck, Wilis Santiago Guerra Filho e Humberto Ávila. Esses estudos continuam atuais e necessários para reentendermos, hoje, a importância da proporcionalidade e da razoabilidade não para relativizar, negociar ou condicionar a leitura e aplicação dos direitos fundamentais, mas para ampliá-los, efetivá-los e desenvolvê-los com vistas à garantia da plenitude de sua proteção, tanto para a emancipação do sujeito, quanto para o progresso social.
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1 Mestranda em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; Graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; Editora associada da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas; Advogada. https://orcid.org/0009-0007-2793-2333. maferosacontact@gmail.com.
2 Pós-Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Mestre em Direito pela Universidade Caxias do Sul; Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas e do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Educação, Conhecimento e Sociedade da Universidade do Vale do Sapucaí; Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas; Pesquisador-líder do Grupo de Pesquisa Margens do Direito (PPGD/FDSM/CNPq) e Educação e Direitos Humanos (PPGEDUCS/Univás/CNPq); Coordenador da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas; Coordenador Executivo da Editora Univás; Coordenador da Coleção Educação, Conhecimento e Sociedade (PPGDUCS/Univas); Coordenador Científico e de Pós-Graduação da FDSM. https://orcid.org/0000-0002-8484-4491. simioni2010@gmail.com.